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MARISA MONTE | OUTUBRO, 1994

Playboy Entrevista

Uma conversa franca com a mais popular cantora de elite sobre

música a dois, namoro, filhos, planos e a liberdade de não ter planos.


Marisa Monte é nome de estrela, não é? — diz ela, com um sorriso. Nada é gratuito nela: se ela sorri, é porque ou está feliz ou porque é uma brincadeira. Na verdade, ela é uma estrela, por maior horror que possa ter a rótulos e definições, “sempre empobrecedores”; mas uma cantora-compositora cujo disco (Cor-de-Rosa e Carvão) é lançado simultaneamente em 38 países, como fez a sua gravadora EMI-Odeon em agosto, configura um fenômeno, é uma aposta na qualidade, envaideceria uma estrela, e nem por isso ela acha que tem de estar sorrindo à toa por ai. O disco abriu caminho para uma turnê internacional que, até janeiro, com um possível e justificável intervalo no Natal, em família, vai fazer sumir no mapa aquele 1,75 metro de mulher — assumidíssimos, aliás, até de certo modo reiteradas por sapatos de saltões enormes e sólidos e por uma silhueta muito esguia. Só em fevereiro, o Brasil passa de novo a ter chance de um contato pessoal. Enquanto isso, o consolo é ouvir o disco.

Com aqueles cabelos encaracolados escorrendo até a metade das costas, boca marcante, sobrancelha generosa, o nariz que as pessoas chamam de mediterrâneo já que não é do tipo arrebitadinho, roupas predominantemente escuras, uma coisa meio confusa entre o que ela, que já morou na Itália, poderia chamar de moda povera e sobreposições com cheiro de brechó (“eu adoro fazer minha própria roupa”, ela desmente), claro que o que chama atenção nela, de cara é a sua figura, embora bastem dois dedinhos de prosa para perceber que há algo ali muito além de um rosto e um corpo bonitinhos. Há vida inteligente, e como, em Marisa Monte. Ela é absolutamente firme no que diz e no que crê, inclusive na firme ideia de que tem toda a liberdade de mudar de opinião. Por exemplo, quem sabe alguém não a convença um dia de sua beleza? “Sou interessante, no máximo; um tipo exótico”, diz. Seus 27 anos são vividos como 27 anos. Hoje, um disco e uma turnê. Amanhã, quem sabe o quê?

Só que, no caso dela, esse, digamos, descompromisso não significa descaso, irresponsabilidade, deixa-para-lá. Muito ao contrário, se alguém pode ser chamada de meticulosa e detalhista, é ela. Sua carreira é uma obra de engenharia artística, estética, profissional de um rigor como a de um daqueles escultores do Renascimento — tudo no jeito, tempo, configuração que só ela mesma dá, no máximo com uma mãozinha experiente do seu empresário Leonardo Netto. Engenharia, aí, sem nada a ver com marketing, jogada, slogan. Marisa Monte já vendeu mais de 1 milhão de discos com base naquela voz que Deus lhe deu e na estranha ideia de que não dá para mentir ao público. O público acredita e penhoradamente agradece — e já fez dela a campeã nacional em vendas de CDs.

No seu primeiro encontro com o Ibope, o especial Marisa Monte, na Rede Manchete, em 1989, direção de Walter Salles Jr., houve crítico que, no íntimo adorando, andou desconfiando de que ela não passaria de mais uma das muitas invenções de seu mentor Nelson Motta - assim como as Frenéticas ou a Gang 90, de curta memória. Primário engano. Marisa Monte não tem mentor nenhum, ainda que agradeça a Nelsinho aquele que foi paradoxalmente o conselho fundamental de sua carreira: ser ela mesma, cantar o que ela quisesse, ser rigorosamente coerente apenas consigo mesma. Marisa Monte já era aquilo ao pé da letra.

Do especial, que já era em resultado de vários shows dirigidos por Nelsinho, veio o disco, MM. Mas ela esperou, por livre e espontânea vontade, dois anos para o segundo disco, Mais — um nome mais do que sintomático. Esperou não por causa da terrível síndrome da segunda obra, e sim porque quis obter os elementos maduros para demonstrar sua tese de que era mais do que uma cantora — não só porque podia compor — e que ser uma cantora não é só cantar. No caminho, ficaram os escombros de muitos equívocos que Marisa Monte, a metamorfose ambulante provocou na crítica, em especial aquela suspeita de "elitismo", de "cantora cult" etc. Os dois discos venderam em quantidades assustadoras. Até agosto deste ano, ela estava hibernada de show, disco, televisão — mas quem disse que, não fazendo aparentemente nada, ela não esta­va exatamente no seu momento mais produ­tivo? Um ano e meio à sombra e, de repente, um disco, Cor-de-Rosa e Carvão (de uma letra do timbaleiro Cadinhos Brown cuja música acabou ficando fora). Como nin­guém há agora de suspeitar de que ela não é uma artista popular, ela pôde, em mais uma de suas provocações paradoxais (ou paradoxos provocativos?), botar em ação as pastoras da Velha Guarda da Portela e o baiano Brown, sem perder de vista o produ­tor americano Arto Lindsay, o músico-poeta concretista Arnaldo Antunes e, sobretudo, Nando Reis, um dos Titãs — por sinal, há quase dois anos seu namorado.

Marisa Monte janta com a cult Laurie Anderson quando vai a Nova York e seu círculo internacional de parceiros inclui Philip Glass, Ryuichi Sakamoto e o poeta Octavio Paz, mas acha Orlando Silva me­lhor do que Luciano Pavarotti, e seus shows já passearam por Gretchen (a rainha da preferência nacional, aquela do Conga la canga), Waldick Soriano e Wanderley Cardoso. Se menos de dez anos atrás ela es­tava em Roma, à espera do início das au­las de canto lírico na Academia de Santa Cecilia, para a qual tinha sido aceita com distinção, quem é capaz de dizer onde é que andará, que tipo de repertório estará percorrendo essa moça, daqui a dez anos? Ela é a primeira a dizer, e a saber, que não tem a menor ideia.

Canceriana que não consulta horóscopo, Marisa de Azevedo Monte é filha de Carlos e Sylvia, mas praticamente viveu a vida to­da com a mãe, pois os pais se separaram antes de ela completar 10 anos. Tem três ir­mãs, mora na Rio e namora quase sempre em São Paulo. Se tivesse que levar um disco para uma ilha deserta, talvez levasse um de Tim Maia, mas avisa: "Não tenho a me­nor vontade de ir para uma ilha deserta."

Esta entrevista, com o editor-sênior de PLAYBOY, Nirlando Beirão, constou de duas sessões, uma em São Paulo, no hotel em que Marisa se hospedava para promo­ver seu disco, a segunda na casa de seu em­presário, numa ruazinha de paralelepípe­dos numa encosta de Copacabana. "Cho­via tanto no Rio, naquele dia, que os car­ros simplesmente não conseguiam subir a ladeira", observa Beirão. "Os pneus patinavam e os carros escorregavam de ré, la­deira abaixo. Nunca tinha visto um dia de chuvas como aquele no Rio. Era, com certe­za, um dia muito especial. Assim como des­cobri na minha entrevistada uma pessoa muito especial. É impossível capturá-la em qualquer rótulo, em qualquer clichê, em qualquer vulgaridade. Ela diz o que tem a dizer, e, no caso dela, isso é ótimo. Foge das pergunta sobre suas predileções mais frívolas com um infernal 'gosto e não gosto' ou 'todos e nenhum. Pelo menos descobri que ela continua usando aquele batom Cassis da Payot. E algumas coisitas mais."


PLAYBOY — Que ideia é essa de, 4 da tar­de, num dia de semana, ir a um jogo de futebol?

MARISA MONTE — Olhem só meu capotão. Para segurar o frio no Morumbi, só assim.

PLAYBOY — Mas por que? É o efeito do tetra?

MARISA — Não, eu gosto e, de vez em quando, vou. O Nando [Reis, baixista dos Titãs e namorado dela] é são-paulino fanático, não perde um jogo e quando posso eu o acompanho.

PLAYBOY — Nando Reis não é aquele que escrevia na Folha, junto com o Mar­celo Fronier, dizendo que, com Parreira e Zagalo, o Brasil nunca seria campeão?

MARISA — Ele mesmo. Eu não sou muito do ramo, mas acho que, sem o Parreira e o Zagalo, talvez tivesse sido menos so­frido, não é mesmo?

PLAYBOY — Com seu 1,75 metro, seu es­porte não seria basquete, ou vôlei. Você pratica, ou praticou?

MARISA — No colégio, joguei um pouco de basquete. Tipo cestinha. Cheguei a ser da seleção do Andrews. Fora isso, patinar. E, ah, velejar. Até hoje, adoro velejar.

PLAYBOY — Você é, então, da geração saúde?

MARISA — Sem fanatismo, mas eu gosto. Fiquei aí uns seis anos paradona, foi a época em que eu comecei a fazer show, gravar, me profissionalizar. Hoje, corro todos os dias. Em turnê no Nordeste, fiz todo o circuito das praias, uma delícia. Em parques em Belém, em Brasília, on­de pintar. No Rio, prefiro as Paineiras e o calçadão de Copacabana, à noite. Oito quilômetros, ida e volta.

PLAYBOY — Qual é o seu tempo, a sua performance?

MARISA — Só corro pelo meu bem-estar. Em época da turnê, era maravilhoso. Corria, dava um mergulho, ia direto pa­ra o teatro, passava o som, tomava um banho e aí era só esperar o cabelo secar e estraçalhar. Contundi vários seguran­ças. O que eu gosto é de dinamizar o organismo. Ficar quente, suar. Como no Rio nem sempre é fácil, tem trânsito, fu­maça, problema de segurança, hoje em dia eu faço mais ginástica.

PLAYBOY — Você já foi assaltada alguma vez? Não te reconheceram?

MARISA — Eu estava começando, não era muito conhecida. Saía da casa do [Rober­to] Menescal, tinha ido ensaiar, início de noite em Ipanema. Ali bem abaixo do morro do Pavãozinho. O cara estava ar­mado, mas não parecia estar doidão, não. Tanto que foi muito legal.

PLAYBOY — Você está dizendo que o as­salto foi legal?

MARISA — Peraí, o que eu senti foi que o cara estava necessitado. É claro que quando ele te põe um revólver na cara, bate aquela adrenalina, tum! Dá um gosto químico na boca. Ele me pediu a bolsa, mas eu disse: "Pô, deixa os docu­mentos." Ele concordou: "Mas não faz alarde." Eu abri a bolsa, vi o dinheiro e não achava os documentos. Situação chata porque, num assalto, todo mun­do tem pressa, tanto o assaltante como assaltado. Você quer se livrar logo. Imagina, Rua Visconde do Pirajá, aque­le movimento. Falei: "Vou te dar o di­nheiro, não acho os documentos." Ele disse: "Ok, o dinheiro e o relógio." Cheguei a me despedir dele: "Obriga­da. boa sorte."

PLAYBOY — Hoje, a barra é outra, não é?

MARISA — É, estava comentando isso...

PLAYBOY — Sequestro, essas coisas...?

MARISA — Sequestro, não. Eu não me acho uma pessoa sequestrável.

PLAYBOY — Mas você deve estar, com certeza, na lista das pessoas que ga­nham mais dinheiro na música popular brasileira. Não ganha?

MARISA — Eu? Acho que não. Tem outra coisa: eu não sou tão conhecida assim. São poucas as pessoas que me reconhe­cem na rua.

PLAYBOY — Por que será? Será que a Marisa Monte do palco não se parece com a Marisa Monte que anda pela rua?

MARISA — Bem, estou procurando apro­ximar uma da outra. A profissão de can­tora é muito mitificada, cada um pensa dela o que bem entende, é impossível controlar o que, na cabeça das pessoas, você parece ser e o que, dentro de você mesma, você é. Geralmente, não tem na­da a ver uma coisa com a outra.

PLAYBOY — Mas, falando só de aparên­cia, nos seus primeiros shows era impos­sível saber como era verdadeiramente o seu rosto e o seu corpo. Tinha aquela maquiagem muito branca, aqueles ges­tos quase expressionistas, você, no palco, parecia uma artista japonesa de butô. Era proposital?

MARISA — Pode ser, mas tinha uma outra coisa, bem minha. Não se constrói uma intimidade de uma hora para outra. Nem do artista com o público, nem de uma pessoa com outra. Insisto: eu faço questão que seja assim. Não sou do tipo de ficar fazendo piadinha no palco para conquistar as pessoas de qualquer ma­neira. Minha conquista se dá pela minha voz, minha música, meu trabalho. A inti­midade é uma questão de tempo.

PLAYBOY — Por que toda foto sua pare­cia posada, sempre de olho fechado? Como diriam seus amigos Titãs, você tem medo de quê?

MARISA — Era um estilo espontâneo. Tão espontâneo quanto são as fotos desse novo disco, fotos pequenas, flagrantes de gravação, eu no meio da galera. Ago­ra, tem uma coisa, sim: eu nunca sorrio em foto. Eu me recuso a fazer aquele "agora fala xis" dos fotógrafos de coluna social. Sorrio única e exclusivamente quando tenho motivos para sorrir. Tem uma música do Arnaldo [Antunes] que diz: "Não sorrimos à toa." Pode saber: se a Marisa Monte aparece sorrindo, é por­que ela viu ou ouviu uma coisa muito engraçada ou então é porque ela está extremamente feliz.

PLAYBOY — Você não deveria ter seguido a profissão de psicanalista, alguma coisa assim?

MANSA — Eu? Por quê? Sou uma cantora e compositora bárbara, não acham? [ri] Mas eu gosto de ter no meu trabalho se­riedade e legitimidade. Sou do tipo que gosta da verdade.

PLAYBOY — Na MPB, quanta gente está nessa? Uns 5%?

MARISA — Não estou aqui para julgar a atitude de ninguém. Mas pode saber que fazer música é uma coisa muito mais séria do que parece.

PLAYBOY — Você é gótica?

MARISA — Gótica? Nunca? Não tenho o menor talento, a menor vocação para a tristeza. Tem muita gente que se dedi­ca ao aprendizado da tristeza e exerce isso, né?

PLAYBOY — Quem, por exemplo?

MARISA — Não sei, não me interessa. No Nelson Rodrigues, há muita viúva profissional.

PLAYBOY — Ficção, de novo. Na realida­de, quem é Marisa Monte?

MARISA — Sou uma pessoa que não gosta de sofrer e que não sabe conviver com problemas por muito tempo. Adoro re­solver os problemas. Sou uma pessoa to­talmente de atitude.

PLAYBOY — De onde vem isso? Horósco­po? Está escrito nas estrelas? A propósi­to, você de que signo é?

MARISA — Câncer. Eu acredito e não acredito. No caso, não tem nada a ver. O Arto [Lindsay, o mais brasileiro dos ameri­canos, produtor de seus dois últimos discos] me chama de objetivona. Sabe o que me move? A ideia de que tenho de fazer o que tem de ser feito. É simples e compli­cado. Para mim, é assim. Nada de tapar o sol com a peneira.

PLAYBOY — Quando é que a objetivona decidiu: vou ser uma cantora?

MARISA — Não fui eu quem decidiu, foi o público. Bom, eu cantava. Cantava em casa. Cantava no banheiro. Cantava en­tre os amigos, no colégio. Eles me pe­diam: "Canta." Eu cantava. Pintava um violão, diziam: "Vai, Marisa, canta." E aí eu ia [cantarola]: "O melhor o tempo es­conde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui." Obviamente, eu gostava. Tinha meus caderninhos de letra, ficava tirando o Milton [Nascimento], a Elis [Regina]. Minha irmã tinha aula particu­lar de piano em casa e ficava lá a chata, do lado, assim, queixo caído, 6, 7 anos, até que ganhei ali uns quinze minuti­nhos finais da aula dela para mim, sabia o que era pentagrama, conhecia uma partitura, sustenidos, bemóis, acordes, claves. Depois, eu tinha muito ritmo, sambando bem para cacete. E me pe­diam: samba, samba. E eu saía, rebolando. Nove anos de idade, encanei que queria uma bateria. Ganhei, de meus pais. Uma bateria mirim.

PLAYBOY — Tudo bem com os vizinhos?

MARISA — Morava primeiro em casa. De­pois é que fui para um apartamento. Mas tudo bem. Tocava Detalhes, do Ro­berto Carlos, tatchi, tatchi, tatchi. É Talvez fosse o gosto da vizinhança. Passei a ter aula com um professor de bandolim e tocava em parceria com ele, xote, xaxa­do, baião, foxtrote, coisas bem antigas. Depois, passei para uma bateria semi-profissional.

PLAYBOY — E a vizinhança, nem assim?

MARISA — Sem problemas. Só vendi essa bateria uns quatro anos atrás, para com­prar outra...

PLAYBOY — Que você ainda toca?

MARISA — Não, está em casa, desmonta­da. Não pratico, nunca tocaria publica­mente, mas se sentasse, acho que um Detalhes ainda sairia.

PLAYBOY — É o seu único instrumento?

MARISA — Meu principal instrumento é a voz, não estão de acordo?

PLAYBOY — É claro. Mas, antes de chegar lá, você namorou algum outro tipo de arte?

MARISA — Aos 13, 14 anos, eu tinha uma ânsia de transformar o mundo em mi­nha volta. Era super-inquieta. Vivia pin­tando as paredes de meu quarto...

PLAYBOY — ... tipo mural, grafite, Capela Sistina?

MARISA — Nada disso, pintar com tinta mesmo. Mudava as cores. Rodapé ver­melho. Parede azul. Sabia tricô, crochê, corte e costura. Sentava na máquina e inventava uma cortina louca. Um absurdo. Mamãe liberava geral, e só ela para liberar. Outra mãe diria: "Essa menina não está batendo hem." Literalmente, eu pintava e bordava. Era ligada também em produção em série. Natal, por exem­plo: eu saía produzindo objetos para mamãe dar de presente. Ou perfumes: es­sências, álcool de cereais, fixador, vidri­nhos, fitinhas. Minha mãe me dava o maior estímulo. E, pô, ainda me pagava. Fui uma grande empreendedora.

PLAYBOY — A indústria da confecção perdeu, então, uma fera para a MPB?

MARISA — Com minhas irmãs, inventa­mos até uma fábrica de cabides. Com­právamos os cabines, nus, e forrávamos, enfeitávamos — e vendíamos para as amigas da vovó. Ela me ensinou muito. Passei a infância praticamente com um botão, uma linha e um paninho na mão. Mas era a minha curiosidade que me movia. De tudo; além de tricô, crochê, bordado, faço instalação elétrica, pinto parede, costuro na máquina, trabalho com alicate, martelo, qualquer lance.

PLAYBOY — Prendada desse jeito, o que é que o Nando Reis está esperando para casar com você?

MARISA — Taí: em casa, pode deixar tu­do comigo.

PLAYBOY — Mas o Nando...

MARISA — A gente pode falar nisso no seu devido tempo. Não dá para ver que eu estou empolgada?

PLAYBOY — Esse seu figurino, de palco e de vida civil, tem muito dessa máquina de costura, é da grife Marisa Monte? E sua fase de brechó, já passou?

MARISA — Grife, que palavra horrorosa. Quer dizer: sempre fui mais de fazer mi­nha roupa em casa. Não é que eu queira dizer que sou contra grife. Não sou con­tra nem a favor.

PLAYBOY — Mas não é sua praia, é?

MARISA — O que? Aquela coisa de "estou deprimida, vou ao shopping center com­prar umas roupinhas"? Não mesmo. Não é comigo.

PLAYBOY — Nem no palco você tem figu­rinista?

MARISA — Para palco, hoje eu tenho. Uma hora, você tem de delegar. Você tem oito horas diárias de ensaio, não dá para sair do estúdio e ainda ver aquele tal tecido, porque o outro não caiu bem. Trabalho com a Rita Murtinho, filha da Kalma. É uma pessoa maravilhosa.

PLAYBOY — Você é vaidosa?

MARISA — Sou e não sou.

PLAYBOY — De repente, você que faz muita turnê no exterior, está em Paris, passa pela loja do Kenzo ou na Comme des Garçons, não dá ímpeto de com­prar?

MARISA — Só muito de vez em quando. Não passo o dia comprando e carregan­do sacolas. Tenho outros interesses. De mais a mais, comprar roupa é muito chato. Você tem de tirar a roupa, experi­mentar... Chatíssimo.

PLAYBOY — E não é que seu figurino seja simples, né? Jeans e camiseta. Você não usa, né?

MARISA — Usei quando tinha de usar, até os 14, 15 anos. Blue jeans, estou dizen­do. Se você reparar bem, estou com uma calça de jeans preta. Não parece, mas é. Outra coisa que não consumo é tênis. Uso para fazer ginástica. E só.

PLAYBOY — O que mais você fazia aos 14, 15 anos e não faz mais?

MARISA — Teatro. Na verdade, só tive uma experiência, um musical que ia ser montado no Andrews, por um professor de teatro que não era muito conhecido na época, o Miguel Falabella. Ele e a Maria Padilha faziam uma parceria, mas no meu ano a Maria já tinha saído — me parece que ela estudou lá também, não sei. Miguel anunciou: o musical vai ser o Rock Horror Show. Quem tem uma voz legal? Imediatamente, todo mundo olhou para mim, "ela, ela". Eu era muito tímida. Subi no palco, já tinha que fazer um teste de voz, ganhei um papel mara­vilhoso. Abertura da peça, a baleira entrava no palco vendendo "balas, bombons, chocolates", e aí cantava minha música.

PLAYBOY — Tímida, você?

MARISA — Era, pode acreditar. Mas fiz lá meu papel, direitinho. O que facilitou foi que minha mãe era amiga do Cao Rossman, responsável pela montagem anterior do Rock Horror Show, aquela com a Lucélia Santos, no início dos anos 70. O Cao tinha o vídeo — quer dizer, uma cópia do filme, aquela coisa cult que até hoje passa toda semana em Londres, todas as sextas-feiras à noite...

PLAYBOY — E naquele pulgueiro da Rua 8, em Nova York, sempre às sextas... Também continua, não é?

MARISA — Totalmente cult, mas aconte­ceu do Cao ter o vídeo e também o tex­to, senão a gente ia ter de ir bater à por­ta dessas entidades do teatro, sei lá, co­mo é que se chama mesmo, SBAT, eu acho. A tradução era do próprio Cao. Ele, gracinha, emprestou para a gente. O vídeo ficava lá em casa. Virou point. Vinte pessoas em média, três sessões por dia. Os atores e a banda — ia ter uma banda ao vivo. Foi assim porque minha casa era liberadaça — liberadaça, nem tanto, mas é que a minha mãe deixava que a gente fizesse tudo, desde que fosse em casa, gostava de ter a gente por per­to, com tantos amigos que fosse, na hora que fosse...


PLAYBOY — O que você chama de fazer tudo?

MARISA — Aquilo que uma galera de 15 anos faz: ver filme, comer pizza, papear sobre música. Os adultos às vezes supe­restimam o que os adolescentes fazem. Minha mãe, não: no fim de semana, ela enchia a geladeira e sumia. Era maravi­lhoso. Minha casa era assim. Como nem todas as outras casas eram assim, a mi­nha virou um puta point. Conheci, na época, muita gente. Malu Mader, Pauli­nha Lavigne. Todo mundo que fazia tea­tro. O pessoal do Tablado. A turma do Andrews.

PLAYBOY — Essa sua geração ainda era uma geração que namorava. Já existia isso de ficar?

MARISA — Não me lembro muito de ca­sais. Era um grupo, essa coisa de adoles­cente. A gente ensaiava para um musi­cal, fazia teatro, cantava. Pode ficar tranquilo: não rolava nada de mais pavoroso do que isso.

PLAYBOY — Droga, não?

MARISA — Não estava entre as nossas prioridades. Não rolava.

PLAYBOY — Baseado, nada?

MARISA — Eu não fumo.

PLAYBOY — E quem fuma?

MARISA — Você pode fazer quase tudo, desde que você queira realmente fazer. Eu não quero, não me preocupo. Mas sou a favor de descriminalizar o fumo para quem usa.

PLAYBOY — O que aconteceu com essa turma?

MARISA — Bem, o Rock... foi um suces­são, tinha gente espremida na grade para ver, mas também pudera, a banda ensaiava durante as aulas, todo mundo sabia cantar todas as músicas. Aí eu fui me aproximando mais dessa coisa da música, tanto que no ano seguinte já fui convidada para outro musical, e dis­se ao Falabella: "Desculpa, mas este ano não vou fazer suas aulas, surgiu um convite para um lance semiprofissio­nal..." Fiz, por dois meses, outro musi­cal, Azul, de André Felipe Mauro. Era um tal de ligar um carinha, "olha, te­nho aqui uma fita demo, quer botar voz?" Pouco a pouco, um back-vocal aqui, um show ali, e fui indo.

PLAYBOY — E a escola, dançou?

MARISA — Estava no segundo científico, já meio adiantadinha, mas aquilo de fi­car ensaiando até as 3 da manhã me fa­zia dormir durante a aula. Tinha até um professor que dizia: "Por favor, vamos fa­lar baixinho para não acordar a Marisa." A coisa era meio ostensiva. Meu travesseiro era um desses casacões acolchoa­dos, que eu levava diariamente, para es­tupor geral — mesmo naqueles dias de verão infernal do Rio de Janeiro. Ainda assim, passei de ano.

PLAYBOY — Mas sua cabeça já estava lon­ge, não estava?

MARISA — Depois do Rock Horror Show eu comecei a estudar canto. A primeira professora foi dona Alda Pereira Pinto, que já morreu. Canto lírico, é claro — ela tinha um Beethoven meio emburra­do em cima do piano dela. Tinha umas unhas cumpridas que batiam na tecla e faziam um barulho assim, tac, tac, tac, marcando as escalas. E tinha peruca de cada cor, cada dia uma. Minha mãe foi lá uma vez, me viu cantando todo aquele repertório e disse: "Não te reconheço, minha filha; mas os espíritas explicam." Era muito nova...

PLAYBOY — ... e muito boa, é isso?

MARISA — Eu poderia ter sido uma gran­de cantora lírica, não tenho a menor dú­vida. Estudava a sério, tanto que, termi­nado o colégio, eu quis estudar música na faculdade, mas aí eu tinha de fazer um teste de habilidade específica. Assim como você tem de fazer desenho, no vestibular de arquitetura, eu tinha de fa­zer provas como ditado melódico — a criatura toca uma música e você tem de escrever as notas na partitura — e solfe­jo — que é cantar uma partitura que vo­cê jamais viu. Teoria, assim por alto, eu me virava. Mas tinha de me preparar mais. Foi por isso que acabei fazendo vestibular para comunicação. Não estudei porra nenhuma, passei, fiz dois me­ses de faculdade, tranquei matrícula. Passei o ano estudando música com do­na Carolina, continuei com a dona Alda, aí passei para a dona Marilena Bezzi, que é uma figura maravilhosa e me dava solfejo.

PLAYBOY — Você queria, na época, ser uma daquelas soprano ou contralto de ópera, gordas e peitudas?

MARISA — Não, é que não havia jeito de estudar canto no Brasil, a não ser o can­to lírico. É claro que, como parte do es­tudo, eu ouvia muita música, ópera na vitrola, ia ao Municipal, assisti à Ileana Cotubras, vi ensaios da Carmem. Como precisava conhecer também repertório, fui ter aulas com Vera Canto e Mello. Um amigo da minha mãe, Eduardo Ál­varez, um tenor, também me ajudava muito. O maestro John Neschling, tam­bém. Fiz a Escola Nacional de Música, passei no vestibular, mas minha mãe e minhas irmãs estavam indo para uma temporada na Europa e, você sabe, esco­la ou Europa, dá para imaginar quem venceu. Mas eu fui para estudar lá.

PLAYBOY — Por Europa você quer dizer o quê?

MARISA — Tinha três possibilidades. Londres — eu tinha uma indicação do maestro John Neschling. Hamburgo, on­de a Vera tinha estudado. E a outra, Itá­lia, a Academia de Santa Cecilia, em Ro­ma. Tinha um problema: era janeiro e o ano letivo na Europa começa em setem­bro. Em Londres, a professora foi logo me dizendo isso: "Olha, vaga não tenho agora, mas como você veio de tão longe, tem essa indicação, quero pelo menos te ouvir." Ela tocou algumas árias que eu conhecia, adorou, disse: "Se quiser, é só voltar em setembro." A escola é uma ma­ravilha, chama-se Guildháll School. Aquele clima lindo, você sai de um jar­dim, entra na escola, ouve uma flauta ali, um oboé aqui, um tenor ensaiando... Olhava, ouvia, pensava: este é o meu mundo. Hamburgo, mesma coisa: a pro­fessora da Vera Canto me ouviu, disse, tudo bem, setembro. Mas eu pensava mesmo era na Itália, a facilidade da lín­gua, que eu tinha estudado, a tradição do canto lírico italiano, e, depois, Itália é Itália. Encontrei Londres naqueles seus dias cinzentos — hoje eu adoro, mas na época me assustou. Hamburgo, sabe como é: eu não falava uma palavra de alemão.

PLAYBOY — Você foi ficando, é isso?

MARISA — Isso, minha mãe e minhas ir­mãs voltaram, eu já tinha matrícula cer­ta na Santa Cecília, comecei a ter aulas particulares em Roma. Fevereiro, mar­ço... Só que, quando setembro chegou, eu já tinha feito dez shows de música brasileira.

PLAYBOY — Por que mudou tão radical­mente de rumo?

MARISA — Pela primeira vez eu tinha saí­do do Brasil. Vi o que significava o Brasil dentro do mundo. Vi o que significava a música brasileira dentro do mundo. E vi o que significava a música brasileira den­tro de mim — minha bagagem musical, tudo aquilo que eu tinha ouvido e canta­do desde criancinha. De repente, perce­bi: tenho um tesouro dentro de mim e não sabia.

PLAYBOY — Quais eram as jóias desse te­souro?

MARISA — Milhares, milhares. Meu pai, minha mãe sempre foram muito ligados — meu pai era diretor da Portela, dá pa­ra imaginar em que clima musical eu cresci. Mas disco meu, mesmo, eram dois, eu me lembro: um compacto do Tim Maia, Primavera, tipo Som Livre, com aquela espiral no selo...

PLAYBOY — Ele sabe disso?

MARISA — Sabe e não sabe. Quer dizer, não sei se lembra. E o outro era um dis­co, LP, dos Secos & Molhados.

PLAYBOY — Um tesouro?

MARISA — Eu adorava, era um presente da minha babá e eu cantava o Vira dia e noite. Lembra do Vira? "Ou vira, vi­ra, vira homem, ou vira, vira, lobisomem" [cantarola]. O disco era um tesou­ro, Ney Matogrosso é um tesouro. Fora isso, lá em casa era assim: saiu hoje um disco do Chico? Imediatamente. Da Be­thânia? Imediatamente. Elis, Tom. E, é claro, muita coisa de samba. Paulinho da Viola. Aquela coleção da Editora Abril com todos os compositores da MPB. Eu ouvia direto.

PLAYBOY — Com um pai diretor da Por­tela, você ia à quadra, subia o morro, convivia com a velha guarda?

MARISA — Eu não ia à quadra, a quadra vinha até a minha casa. Todos aqueles compositores. Monarco diz que se lem­bra de mim quando tinha aquelas rodas de samba lá em casa, eu com 6 anos, já ficava peruando em volta. Manacéa, eu não me lembro dele, mas meu pai me conta que ele ia muito. Dona Ivone Lara tocou. O movimento era em casa. Para você ter ideia, a primeira vez que eu fui a uma desfile de escola de samba foi um ano atrás, naquele clima de camarote nú­mero 1. Meu pai é do tipo que me apre­sentava as coisas, os discos. "Olha aqui, minha filha, este é o Noel Rosa. Conhe­ce?" "Prazer em conhecer." Meu pai can­ta muito bem, é muito musical. Na famí­lia dele, a mãe, a avó — tenho até hoje algumas árias que ela cantava.

PLAYBOY — Profissionalmente, cantora de ópera?

MARISA — Não, de salão. Naquela época, não ficava bem. Cantava em casa, noites de saraus e recitativos, em cima de parti­turas dadas pelo marido [empostando a voz] : "À minha querida esposa, com amor e devoção..."

PLAYBOY — Seu pai ainda é de ir a quadra?

MARISA — Não, ele saiu da Portela quan­do houve aquele racha, quando o Pauli­nho da Viola também saiu, acho que em 1975, por aí, com a chegada dos bichei­ros. Foram fundar a Tradição. Fui a cen­tenas de shows do Paulinho com meu pai. Ele chora em todos eles.

PLAYBOY — Você chora?

MARISA — Já chorei. É sempre muito emocionante.

PLAYBOY — Quem mais, na música, te faz chorar?

MARISA — Ihhhh, muita gente. Não só da música popular brasileira, isso era um período da minha vida. Mas, aos 13 anos, como qualquer adolescente, eu também ouvia Janis Joplin e conheci os Beatles. Não eram esses os discos que ti­nha lá em casa. Foi coisa minha.

PLAYBOY — Mas, na Itália, você cantava MPB, era isso?

MARISA — Isso. Cantante? Brasiliana? Andiamo a fare un show. De repente, eu já estava dando uma canja num barzi­nho do Trastevere. Em Veneza, tinha conhecido um italiano casado com uma brasileira e ele me avisou que, no verão, rolavam muitos shows por lá. E, de fato, no verão, julho, agosto, setem­bro, aconteceu.

PLAYBOY — E a Academia de Santa Cecí­lia, niente?

MARISA — Até liguei para minha mãe: "Cinco anos de estudos, não estou a fim." Logo, vou voltar...

PLAYBOY — Foi em Roma, então, sua conversão?

MARISA — Eu já tinha feito uma pancada de shows no Rio, meio brincadeirinha, no Jazzmania, no Double Dose, todo o circuito dos barzinhos, com amigos, can­tando Gil, Tim Maia, Marvin Gaye, eu já cantava Grapevine, que está no meu pri­meiro disco, Speak Low, do Kurt Weill, que também está. Em Veneza, já foi mais profissional. Fiquei um mês e meio na casa deles, ensaiando, e fizemos um show maravilhoso, cinco dias.

PLAYBOY — De rua, no verão?

MARISA — Não, num bar.

PLAYBOY — Foi aí que você conheceu o Nelsinho Motta, que viria a ser o produ­tor do seu primeiro show de verdade no Brasil, aquele que virou especial de TV e disco?

MARISA — Não, o Nelsinho tinha morado e trabalhado lá, na RAI [Rádio e Televi­são Italiana], mas eu conheci antes de viajar. Aquilo de amigo de alguém que é amigo da minha mãe, e aí ele me deu uns telefones e a maior força. Ouvia umas fitas em que eu cantava, deu até umas letras dele. Super gente fina, ele disse, vai, pode ser uma boa. Aí, quando eu estava em Veneza, a minha mãe deu o meu telefone de lá e ele ligou, estava de passagem pela Itália. Queria saber co­mo estava minha vida, aí eu falei do show, perguntei se ele não queria vir ver podia até ficar na nossa casa, que nem era em Veneza, mas ali pertinho, em Mestre. Gentil, ele pegou o avião e foi. Fim de verão, eu ia voltar para o Brasil, ficamos de nos falar. Eu já estava decidido: queria trabalhar com música brasileira, e foi daí que comecei a ir ao MIS [Museu da Imagem e do Som], às fa­culdades de música, aos colecionadores — queria, mesmo, aprender tudo sobre música popular brasileira.

PLAYBOY — Em outras palavras, a objeti­vona entrou em ação, foi assim?

MARISA — Objetivona total: quem são to­dos os cantores, o que fizeram todos os compositores, tudo o que já foi feito. Acabei fazendo um show só de música antiga brasileira, num bar do Leblon. Assis Valente, Lamartine, Lupiscínio, Ary Barroso, Pixinguinha. Serra da Boa Esperança, Rancho Fundo, Lamento. Co­mo não tinha dinheiro para pagar uma banda, era voz e piano — uma garota que estudava em Berkeley [Califórnia]. Ainda um dia desses, eu conversava com a Malu Mader, e ela me disse que viu. Com o Taumaturgo Ferreira, que era o namorado dela. Disse a ele: "Conheço essa menina, vamos lá." Da época do An­drews. eu já contei.

PLAYBOY — Você já era cult entre a rapa­ziada?

MARISA — Não, nem um pouco, era um show só por semana, aos domingos, tar­de da noite, ninguém me conhecia ain­da. O que aconteceu foi que o Lula Buarque de Holanda, namorado da mi­nha irmã até hoje e formado em antro­pologia, estava fazendo a pesquisa antro­pológica para o filme Casa Grande & Senzala, que o Joaquim Pedro [de An­drade] queria fazer. Aí pintou um da­queles climas típicos de cinema brasilei­ro, não saía o financiamento, tudo mui­to enrolado, e o Lula ficou meio dispo­nível e me propôs um show, para levan­tar uma grana. Eu tinha 18, 19 anos, ele tinha 22 — não é que ele tivesse dinhei­ro para investir, mas podia organizar, administrar a coisa toda, fazer a produ­ção. Ah, não, espera aí, antes eu ainda fiz outro show.

PLAYBOY — Onde?

MARISA — No Jazzmania, época do Natal, com uma banda de uns dez amigos. Foi um custo, porque não tinha data dispo­nível, era próximo do Natal, e a minha mãe teve de dar uma garantia.

PLAYBOY — Garantia? Aval?

MARISA — Cheque mesmo. Garantindo um mínimo de 100 pessoas naquela noi­te. Claro que todo mundo saiu corren­do, no boca-boca, implorando: gente, aparece lá. No final, fomos ver o borde­rô e deu tipo 105 pagantes. Ninguém te­ve prejuízo mas foi por um triz. Uma coisa boa do show foi que o Nelsinho Mona, que já tinha me visto em Veneza, foi, e gostou. Um dia, quando ficou cer­to aquele lance produzido pelo Lula, fui à casa do Nelsinho, conversamos, ele me fez a pergunta fundamental: mas de que é que você gosta? Eu disse: olha, Nelsi­nho, aquilo que você viu, e mais Luis Melodia, Candeia, Tim Maia — aliás, o Tim é um gênio, abro um parênteses rá­pido, ele é rápido e inteligente, tão inesperado em sua coerência, fecho parênteses. Mas, voltando: o Nelsinho, lá, ano­tando, tudinho. No final, disse que fazia uns seis meses que não fazia nada, tinha tido aquela história da Itália, estava de­vagar, mas queria dirigir meu show. Com uma condição, e eu me lembro muito bem: "Não me fale em dinheiro." Deu ênfase nisso. Queria dirigir o show, mas o dinheiro não interessava.

PLAYBOY — Paixão à primeira vista, então?

MARISA — Teria de ser à segunda vista, se fosse.

PLAYBOY — A fama do Nelsinho é a de ser mais do que simples produtor ou di­retor das moças bonitas que ele costuma lançar. É verdade?

MARISA — Ele mesmo já falou sobre isso.

PLAYBOY — Enfim: vocês foram ou não foram namorados?

MARISA — Não, pode perguntar a ele. Is­so também é uma tentativa de diminuir o nosso trabalho. "Eles tiveram um ca­so." Foi muito mais e muito mais legal do que isso. O que deixa as pessoas con­fusas, perturbadas.

PLAYBOY — No bom e no mau sentido?

MARISA — Só teve bom sentido. Ele tem aquela incrível cultura musical, ele é fi­no, a gente trocou altas conversas. Ele me ensinou a ter confiança nas minhas escolhas. Isso que, no início, as pessoas chamaram pejorativamente de ecletis­mo. Não sou eclética, nunca quis ser, não devo explicação a esse rótulo. É uma tentativa de limitar precocemente as pessoas. Aliás, no dicionário Aurélio, e olha que até fui ao Aurélio, nem é pejo­rativo: eclética significa versátil. Ao Nel­sinho devo também muita coisa prática, aprendi sobre como funciona o esque­ma das gravadoras e sobre a imprensa.

PLAYBOY — Foi aí, então, que nasceu Marisa Monte, a cantora?

MARISA — Tipo "Nasce Uma Estrela", aí sim. O Lula produzindo, o Nelsinho di­rigindo. Ensaiei dois meses com o pia­nista, mais três semanas para montar a banda. Foi no Jazzmania. A repercussão foi ótima, páginas na imprensa, aquilo de "fique de olho". Por uns dóis anos, a gente ficou nessa parceria, muitos shows, Casa de Cultura Laura Alvim, conseguimos um patrocínio da Shell, Teatro Ipanema, e depois São Paulo, Ae­roanta, Masp.

PLAYBOY — Para localizar: 1987? 1988?

MARISA — Isso. Tudo lotadaço, gente de­sesperada atrás de ingresso, fila na por­ta. De repente, Belo Horizonte. Uma turnê sem ter disco.

PLAYBOY — Convite para gravar você não tinha?

MARISA — Tinha, milhões. Lá atrás, aos 16 anos, eu tinha gravado uma fita que caiu nas mãos do produtor Luis Antônio Mello, que trabalhava na Rádio Cidade e tinha um programa chamado Novos Caminhos, um espaço aberto, você podia mandar uma fita demo e o cara tocava. Ele ouviu, gostou, disse que valia tentar alguma coisa comigo e me encaminhou para o Menescal, que era o diretor artís­tico da PolyGram. Menescal disse: a gen­te pega uma música aqui de tal figura, uma outra de fulaninho... Eu estava ter­minando o colegial, tinha aquela de via­jar para fora, estudava canto lírico, pre­feri dizer olha, Menescal, eu não tenho repertório, vamos deixar para depois. Não tinha a menor ideia do que era um diretor artístico, não sabia o que era PolyGram, mas fui acompanhada de mi­nha madrinha, que era secretária da Ma­ria Bethânia e sempre me levava nos shows dela.

PLAYBOY — Quando um crítico te cha­mou, então, de "a Maria Bethânia dos anos 90", você não ligou nem um pou­quinho?

MARISA — Eu acho a Bethânia exemplar. Ela é uma legenda. Considerei um elo­gio, só pode ter sido um elogio.

PLAYBOY — Outra crítica era sempre em cima do seu, digamos, elitismo. Você era apresentada como uma cantora cult e não de massa. Como reagia?

MARISA — Isso estava na cabeça das pes­soas, não na minha. Eu queria subir no palco e cantar. Se as pessoas gostavam de me ouvir, suspiravam ao me ouvir, nada melhor. Mas, tem razão, chegou uma hora em que as pessoas falavam muito de mim e pouca gente tinha me ouvido. Quer dizer, começou a haver a necessidade real de gravar o disco. Pen­sei: está na hora de ter um trabalho mais acessível às pessoas. E o disco veio muito em função da Rede Manchete, fazer um especial. No meio de muitos convites de TV, houve o da Manchete e o Lula Buarque, com aquela cabeça dele de cinema, propôs: vamos fazer em 16mm, vamos fazer. O Waltinho [Saltes Jr.] dirigiu, com o Nelsinho Mot­ta, em 16mm. E já que era cinema na TV, chamamos a Odeon para fazer a trilha, com o trato de que, se o som fi­casse legal, a gente entraria em estúdio dois meses depois. O especial foi ao ar antes do disco, o que foi ótimo. Acabei sendo apresentado a um público mais amplo, o da TV, e audiovisualmente. Quando o disco chegou às lojas, esgo­tou em uma semana.

PLAYBOY — E com aquela música, Bem que se quis, como trilha de novela, aí é que as vendas devem ter disparado mes­mo, não é?

MARISA — A música foi recusada na nove­la. Aquela história de sempre: o diretor artístico da gravadora propõe ao diretor musical da novela, que aí decide... Foi a Lúcia Veríssimo quem foi pedir à Mari­na uma música como tema dela na nove­la, Salvador da Pátria. A Marina disse que não tinha, mas falou do meu disco, e a Lúcia foi falar com o Nelsinho. Esco­lha dela, pessoal da Lúcia Veríssimo, que eu não conhecia e nem conheço muito bem até hoje. Claro que tem um lance de muita sorte aí, a música foi muito tocada, naquelas cenas de amor da Lúcia com quem? Quem mesmo? Ah, sim, com o Francisco Cuoco.

PLAYBOY — Vendeu 400.000, foi isso?

MARISA — Vendeu mais. Quer dizer, mais de lá até agora. Porque é um disco que vende bem até hoje. O primeiro, MM, e também o segundo, Mais, vendem muito até hoje, muito mesmo, é um fenômeno dentro da gravadora. Neste último ano, de 1994, em que eu não fiz show, não fiz TV, não fiz disco, não fiz nada, eu vendi mais de 100.000 discos.

PLAYBOY — Essa história de que você é a rainha do CD, a cantora que mais vende CD no Brasil, ainda continua?

MARISA — Fui a recordista, mas não sei se ainda sou.

PLAYBOY — Aí, volta a questão do elitis­mo. Marisa Monte é a cantora dos bem de vida?

MARISA — Marisa vende aos montes [ironizando]. Isso não existe. Tive a sorte das novelas, mas estou certa de que o que vende disco, no Brasil, é show. É o contato direto com o público. Do pro­dutor ao consumidor sem intermediá­rios. Vendo porque minha carreira está estruturada no palco. É um registro mui­to forte. Agora, é bom lembrar que pal­co significa trabalho. Ensaios, turnê, via­gens, banda. Eu gosto. Cantar num pal­co, para mim, é o maior prazer.


PLAYBOY — Qual é o melhor público do Brasil?

MARISA — Não dá para dizer, por exem­plo, São Paulo, porque existe, sim, outro fator absolutamente diferencial: o preço do ingresso. Quanto menos o público paga, mais quente ele é. E vice-versa, é claro. Ele paga em aplauso. Show de gra­ça, então, é uma beleza. Lembro de um, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Incrível. Já fiz no Parque do Cocó, em Fortaleza, para 15.000 pessoas, mara­vilha. Agora, se paga muito caro, nem precisa aplaudir. As pessoas acham que o aplauso já está incluindo no preço.

PLAYBOY — E como é que você faz para seduzir o público quando ele está mais para Palace do que para Memorial, as­sim meio blasé, mais para o frio? Você não é do tipo de falar no palco, ou é?

MARISA — Falo pouco. Mas não é despre­zo ao público. Eu me recuso é a ser di­dática, "essa música foi feita por fulani­nho, em tal ano". Existe aquela situação de alguém do público te dizer alguma coisa, aí eu acabo falando. Mas roteiro de show eu não tenho. Pode ser que, um dia, eu venha a ter. Mas é um pro­cesso de intimidade que, como eu insis­to, não se adquire assim de uma hora para outra. Esse relaxamento que algu­mas pessoas têm, como o Caetano, de sentar e bater um papinho, é coisa de anos e anos de carreira. Mas, por favor, não confundam isso com não gostar de platéia. Eu adoro uma plateiazinha. Tem até uma história, lá em casa, de que eu era muda...

PLAYBOY — Muda?

MARISA — Até os 3, 4 anos de idade, eu não falava nada.

PLAYBOY — Estava se guardando para o futuro, então?

MARISA — É, tinha aquele perigo de dize­rem: "Vai ser bonitinha e burra." Mas quando eu comecei a falar, era do tipo sai de baixo. Eu não parava mais de fa­lar. Sabe aquela menininha abusada, de 5 anos, na mesa do jantar, aí a mãe fala e ela interrompe: "Por favor, não está ven­do que estou falando?" Quem sabe ago­ra eu não estou só explorando o terreno? Um dia, acabo desembestando a fa­lar com a platéia. Sem brincadeira: faz parte de um processo de aproximação, de desmitificação da figura do artista que eu tenho interesse em trabalhar. De qualquer forma, minha relação com o público será sempre através da música.

PLAYBOY — Você já teve de improvisar muito em palco?

MARISA — Já tive de improvisar e tive de não improvisar. Uma vez, num show em Nova York, no Town Hall, eu na quinta música, feliz da vida, quando ouço o meu técnico dizer, nos bastidores, "fogo, fogo" — era um amplificador, assim meio escondido, de fundo de palco, mas uns brasileiros que estavam na primeira fila ouviram e ficaram repetindo "fogo? fogo?" Eu fui aquela, "canto mais uma música", vejo o que acontece, se for pre­ciso digo "don't panic" e dou aquela de comandante que é o último a abando­nar o navio. Mas aí apagaram. Era o am­plificador de baixos. Passamos o resto do show sem os graves. A propósito, No­va York é o lugar onde o som do seu show é sempre o pior do mundo. O meu, de qualquer um — o Caetano tam­bém já reclamou consigo. Você imagina: "Pô, Nova York, deve ser uma maravilha, tanta tecnologia, tanto equipamento."

PLAYBOY — Gente que invade o palco para te abraçar, tipo beijoqueiro, acon­tece?

MARISA — Acontece, e o segurança vem devagarzinho, devagarzinho, especial­mente se é no Nordeste. Quando sobe um, tem de tirar, senão sobem dez. Pensa bem, você ali cantando, de olho fechado, e, de repente, neguinho te agarrando, te puxando pelo braço... Não é agressão, é carinho. O que torna as coisas ainda mais difíceis, porque aí não é o caso de empurrar, de agredir, mas de tirar com calma. Mas alguém tem de dizer: "Gente, ela é uma figura pública, mas não é um orelhão, para qualquer um usar."

PLAYBOY — No exterior, quem é o público de seus shows? É o ouvinte cult, bem-informado sobre música brasileira, o bra­sileirinho típico, com saudade de casa e louco por um auê, ou é o estrangeiro pa­ra quem música brasileira é Carmem Mi­randa, samba-enredo e Olodum?

MARISA — Depende muito do lugar. Nas grandes capitais da Europa — Londres, Paris, Lisboa, Berlim — ou nas grandes cidades do Estados Unidos, tipo Nova York, Los Angeles, Miami, Boston, tem muito brasileiro, saudoso, gente que às vezes nunca viu show meu. Mas aí tem também Marselha, Juan-Les-Pins, Dort­mund, que é outra gente. Aliás, tem muito festival de música brasileira na Europa hoje, mesmo assim no interior da Alemanha, ou na Côte d'Azur, não é só aquele mito Montreux, Montreux... O da Suíça. Foi um festival muito impor­tante para dar uma força para a música popular brasileira, o primeiro, há mais de quinze anos, a ter uma noite brasilei­ra. A MPB é um fenômeno estabelecido, não precisa ninguém ficar dando uma força. Participei de um desses festivais de verão numa cidadezinha da Europa onde cantamos eu, um conjunto do Se­negal e um conjunto gótico alemão, tu­do na mesma noite.

PLAYBOY — É um mercado, portanto. Mercado forte, dinheiro forte?

MARISA — É, é muito comum a gente se topar por lá meio por acaso. Estou che­gando um dia, encontro com o Djavan, que cantou na véspera. Ou o Jorge Ben. Também já abri shows do Gilberto Gil.

PLAYBOY — Onde é que você já encon­trou um público mais informado sobre música brasileira?

MARISA — Disparado, o Japão. Depois, tem mais uma vantagem: as entrevistas que eles fazem com os artistas são muito curtas, muito objetivas. No Japão, time is money [tempo é dinheiro]. Eu não sei co­mo se diz isso em japonês, mas tenho cer­teza de que a frase nasceu lá. Quinze mi­nutos de entrevista — o repórter sabe tu­do de sua carreira. Às vezes, dá a impres­são de saber mais do que você mesma.

PLAYBOY — E onde tem mais o tipo bra­sileirinho?

MARISA — Em Londres, 80% da platéia falam português. Já em Dortrnund, 95% são alemães, e o que tem de brasileiro é aquela. moça que saiu do Brasil vinte anos atrás, casada com um alemão, e já se esqueceu do português. Não tem aquilo da bandeira, do grito "Braa­siiiillll".

PLAYBOY — Quanto você cobra por um show no exterior?

MARISA — Juro: não sei. E depende do lugar, é claro.

PLAYBOY — Mas, por exemplo, numa en­trevista do Pelé sobre os seus compro­missos sociais e esportivos, ele dizia, com todas as letras, "eu não saio de casa por menos de 1 milhão de dólares". Para que a nossa Pelé da voz saia de casa, quanto tem de ser, no mínimo? 20.000, 50.000 dólares?

MARISA — Não, eu garanto que não es­tou com essa bola toda, não. Ainda es­tou numa fase de investir na minha car­reira. Tenho que ver se aquilo interessa. Já trabalhei de graça. Por beneficência. Mas também por aprendizado. Traba­lhei dois anos, antes do meu primeiro disco, sem ganhar um centavo. Quer di­zer, empatando, despesa e receita. Às ve­zes, até ficando no vermelho. Tenho 27 anos, quero investir ainda na minha car­reira.

PLAYBOY — Mas de onde vem essa di­nheirama que alguns músicos da MPB têm? Disco ou show?

MARISA — No meu caso, ganho dinheiro com show. Muito mais. O disco não é uma prioridade na carreira de um can­tor. Não faço minha carreira em função da indústria fonográfica. É um interme­diário muito forte. Eu gostaria sempre de trabalhar — comercialmente falando — do produtor ao consumidor. O disco é importante para tornar você mais acessível ao público. Meu trabalho não é de difícil acesso, intelectualmente falando. Se não fosse o disco, ia ter gente me ou­vindo só de três em três anos: se calhasse de eu passar na cidade tal, ou tal, de ter ingresso, essas coisas. O disco é um obje­to de consumo doméstico, portátil, com a vantagem de você poder usar quantas vezes quiser.

PLAYBOY — No fundo, você não conti­nua sendo aquela que dizia "não quero ser salsicha de gravadora"?

MARISA — É, isso é do começo de carrei­ra, eu me referindo àquela coisa indus­trializada, produção em série — um pro­duto insípido e macilento. Cada disco meu é uma tentativa de fazer o contrá­rio disso — eu posso dizer: é meu disco, é meu trabalho. O primeiro, como eu disse, custou a acontecer, era minha ma­neira de tornar acessível um trabalho de shows e até para fugir daquele rótulo — as pessoas adoram rótulos — de can­tora cult, para poucos. O segundo veio da minha necessidade de deixar claro o que eu penso ser uma cantora, coisas que não tinham ficado claras no primeiro. O primeiro é a apresentação da voz, da cantora, não tem um repertório iné­dito: cantava as coisas que eu gostava e mostrava que tinha potencial para uma carreira. O segundo disco é um contato com a produção musical contemporâ­nea, com o meio cultural e com o pro­cesso histórico do que está sendo feito — ele é de estúdio, tem uma qualidade técnica melhor, e tem o Arto Lindsav, também, que é americano mas morou no Brasil quinze anos. Conhece tudo da produção musical brasileira, mas conhe­ce tudo da cultura musical mundial. O que permite uma reflexão sobre o Brasil dentro do mundo, que me interessava. O segundo disco significa, portanto: can­tar não é só cantar, é também pensar em todas essas coisas, e estou pensando. Daí o nome Mais.

PLAYBOY — Qual é a tese agora desse ter­ceiro disco? Porque deve haver alguma tese, não há?

MARISA — Terminou a turnê do Mais, um ano e meio atrás, e aí eu senti a ne­cessidade de estudar, de me preparar. Estava trabalhando desde os 19 anos, e percebi que mais para a frente vou preci­sar de mais referência musicais, de falar um inglês melhor. Como diz minha mãe, "essa vida é muito boa mas não é só isso". Depois de 250 shows em um ano e meio, cinco por semana, para que toda essa intensidade tenha tido algum valor, eu precisava agora de um momento de reflexão, de auto-alimentação. Parei e comecei a fazer trabalhos que eu não te­ria tempo de fazer. Fiz show com os Ti­tãs, fiz disco com o Arnaldo Antunes, show com o Arto Lindsav e a Laurie An­derson, show com Raphael Rabello, ou­tro com Raphael Rabello e Paulinho da Viola, depois um show com Gilberto Gil na Alemanha. Um show, um dia, uma noite, mas três semanas de ensaio, e o interessante para mim é o ensaio. Era como um estágio — um estágio com o Gil, outro com o Paulinho da Viola. Mais importante do que as quinze músicas que íamos cantar juntos, eram as conver­sas sobre as outras trinta músicas que nós tínhamos descartado. Sobre a histó­ria de cada um, a maneira de conduzir a carreira, as fases, Por que você faz isso? por que você não faz mais isso?

PLAYBOY — Uma espécie de doutorado?

MARISA — Pós-graduação, talvez gradua­ção mesmo. Acabei indo para Londres, passar dois meses, estudando inglês em regime intensivo. Eu dou muitas entre­vistas em inglês, francês e italiano. Italia­no eu estudei, e, chegando lá, em três semanas eu já falava. Francês, eu também falo, de escola e aula particular. Ma­dame Mariette. Líamos Molière juntas. No fundo, o francês também ajudou o italiano, essas coisas do passé composé — tem nas duas línguas. E, no português, se tem, ninguém usa. Inglês eu falava, de escola, fiz uns cursos, era até legal, mas percebi que tinha de ter um inglês fluente. Entrevista para jornal, você se vira. Parar, pensar. Mas na rádio ou na TV, não dá. Tenho ouvido bom. E te­nho tempo para aprender, ou pelo me­nos achei que devia me dar essa tempo. Viajei também para lugares fora do circuito de qualquer show. Fui ao Nepal, à Tailândia...

PLAYBOY — Por que Nepal? O caminho de Katmandu, essa coisa mística de sa­bedoria oriental? Ou você queria era comprar umas roupinhas daquelas de hippie?

MARISA — Nem uma coisa nem outra. Nepal era uma curiosidade cultural. E, mais do que isso, uma viagem no tempo. O país ficou preservado até o final do sé­culo passado porque os ingleses que es­tavam na Indía não se arriscavam a atra­vessar a planície do Pradesh porque es­tava infestada de malária. As pessoas que moravam lá, há milhares de anos, já estavam imunizadas.

PLAYBOY — Você encarou essa viagem sozinha?

MARISA — Não, fui com um amigo meu.

PLAYBOY — Por que as mulheres têm es­sa mania de chamar os namorados de "um amigo meu"?

MARISA — É, na época era namorado.

PLAYBOY — O Nando?

MARISA — Não, não era o Nando.

PLAYBOY — Vocês foram nessa de andari­lhos, subindo as montanhas?

MARISA — Não, nada de trekking. Mas river acting, ou seja, de barco. Fernan­dinha Torres tinha feito, me aconselhou: "Você vai adorar". É um lugar lindo. Tem de ser assim, não dá para ser turnê, show, turnê, show, senão vira uma expe­riência emburrecedora. Você trabalha, trabalha, um ano e meio, sei lá, aí chega para a banda e diz: bom, até daqui a dois anos.


PLAYBOY — Aí é voltar e sair debaixo?

MARISA — É o que eu dizia sobre esse ter­ceiro disco, o Cor de Rosa e Carvão, foi o resultado de ir à Bahia, de conversas com o Carlinhos Brown, com o Nando, o Arto, o Bernie [Worrell, tecladista], é o resultado de uma vivência, o disco não é o início de um processo, não. Ele é todo le­gítimo, ele é vivido, eu tenho uma intimi­dade total com ele, sei por que cada uma daquelas pessoas está ali, sei porque cada uma daquelas músicas está ali.

PLAYBOY — Nunca vai haver um disco de Marisa Monte igual ao outro, assim co­mo nunca vai haver uma Marisa Monte igual a outra, é isso? Quando a gente vai poder dizer: esta é a Marisa?

MARISA — Vinte anos é um prazo legal para vocês?

PLAYBOY — Roberto Carlos é o mesmo há vinte anos. As pessoas sabem o que esperar dele. Essa sua atitude não ali­menta aquele tipo de crítica, que havia especialmente no início de sua carreira: Marisa Monte é uma cantora que não sa­be se imita a Carmem Miranda, a Billie Holiday ou a Clementina de Jesus?

MARISA — Posso ser as três ao mesmo tempo, e mais eu. Ou só eu. Não é preci­so que as pessoas me entendam agora. Não é para entender. Mas as pessoas acabam sentindo. O tempo responde.

PLAYBOY — Você não namorou o Nelsi­nho Motta, mas hoje namora um parcei­ro seu, o Nando Reis, dos Titãs. Como começou? Por acaso?

MARISA — Não, aí foi pela música. A gente já trabalhava junto. Nossa parce­ria era aí.

PLAYBOY — Facilita ou atrapalha?

MARISA — Nem facilita nem atrapalha. Mas também não dá para dissociar: aqui ele é parceiro, aqui é namorado. Eu di­go que é ótimo. Mas incomoda às pes­soas, às vezes. Julgam a minha parceria musical com o Nando de uma forma di­ferente da minha parceria com outros. Deixa as pessoas julgarem. Eu tenho uma grande admiração por ele. Muito inteligente, muito talento. Uma das mú­sicas que gravei e das que gosto mais é dele, Diariamente. Para mim, é a melhor música do Mais. Mas nós musicalmente somos polígamos. É muito importante. Não precisa existir fidelidade na música. Minha fidelidade, na música, é comigo, em primeiro lugar. Tenho de gostar. Além do Nando, faço música com ou­tros, ele faz música com outros — ou com outras, se preferirem.

PLAYBOY — Com o Arnaldo Antunes, por exemplo, você tem mais músicas do que com o Nando, não tem?

MARISA — Tenho. E por que as pessoas não ficam incomodadas?

PLAYBOY — Como é que você compõe? Faz mais música ou letra?

MARISA — Mais música, melodias, harmo­nias simples, no violão. Já musiquei poe­sias. Já fiz melodias inteiras para as pes­soas, depois, fazerem letras. Com o Nan­do, com o Arnaldo, com o Carlinhos Brown, já teve o caso de a gente fazer letra e música juntos, ao mesmo tempo, a coisa surgindo aos poucos. Porque, embora eu seja mais da música, eu can­to, e sei quando uma palavra pode ser potencializada numa música ou não. Cada caso é um caso, cada música é uma música.

PLAYBOY — Com o Nando, rola aquele clima de "eu faço samba e amor até mais tarde", com na música do Chico Buar­que?

MARISA — Olha, a gente gosta muito de ficar tocando violão, cantando, mesmo quando acaba não dando em música ne­nhuma. Ouvir disco também é bom.

PLAYBOY — Vocês moram juntos?

MARISA — Não. Ele mora em São Paulo e eu, no Rio. Vivo na Ponte Aérea, e é fá­cil para mim, que moro na Urca. É mais fácil do que ir à Barra da Tijuca.

PLAYBOY — Nem têm planos?

MARISA — Huumm... Agora não. Imedia­to, tipo dois meses, não.

PLAYBOY — Seus namorados costumam durar, não é?

MARISA — Ih, esse assunto não vai longe numa entrevista. Esse assunto é para fa­lar com os amigos, e só.

PLAYBOY — Qual é o problema?

MARISA — Já disse que intimidade — no caso, no palco — não existe, se conquista. Eu não me dou a muita intimidade e intimidade não se dá de uma hora para outra. Você não faz amigos de uma hora para outra. Um amigo eu levo dez, quin­ze anos para fazer. O público vai levar dez, quinze anos para me conhecer. Na­turalmente, sem que eu precise verbalizar demais a minha intimidade. As pessoas vão descobrir as minhas preferências. Tem gente que acha que revelar as prefe­rências enfeita a personalidade de uma fi­gura pública. Acho que dilui. Cantar já diz muito de mim. Se alguém reparar bem no jeito de eu canto, vai descobrir muita coisa. Fica muito clara minha posi­ção afetiva, minha posição ética, minha posição estética, minha posição política...

PLAYBOY — A propósito, seu candidato a presidente... Você não disse que votaria no mesmo candidato do Romário?

MARISA — É, eu disse. Mas ele mudou de ideia, não é? [Romário disse que ia votar em Lula, depois desmentiu.] A questão não é declarar voto. Eu pensei muito: digo, não digo? Vou influenciar? Será que devo? Ou será que é a chance de eu provocar uma reflexão nas pessoas? Não fiz e não faço campanha. Porque não confio em ninguém desse meio. Nada impede esse cara de me trair. Voto mais por falta de opção. Voto na condição de cidadã. Faço política na minha música.

PLAYBOY — E outro tipo de militância, ti­po campanha do Betinho?

MARISA — Isso faço. Contra a fome, a Aids... Causas nobres. O show que fiz com o Gil no exterior foi em benefício das crianças do Brasil. Betinho é como­vente como cidadão, é não é candidato a nada.

PLAYBOY — E sobre essa questão da ju­ventude e da droga?

MARISA — Eu não me drogo, mas, afinal, estamos na América Latina, o continente é a América, é onde mais se consome droga no mundo. Pelo menos cocaína, eu imagino.

PLAYBOY — Faria algum tipo de campa­nha contra a droga?

MARISA — Contra, não. Não sou contra. Sou a favor da informação. Cada pessoa faz o que quiser. Mas as pessoas preci­sam ter informação sobre o álcool, o ci­garro, sobre Aids. Não sou a favor da condenação — "não pode" —, da proibi­ção, cadeia, marginalização.

PLAYBOY — Você não fuma?

MARISA — O quê?

PLAYBOY — Cigarro.

MARISA — Não. Não gosto. Como diria minha mãe, certas coisas não se come­çam.

PLAYBOY — Por que cita tanto sua mãe?

MARISA — Ela é uma pessoa maravilhosa. Fina, alto estral, nunca a vi deprimida. Qualquer coisa que me aconteça, sei que posso contar com ela.

PLAYBOY — Você vive aquele dilema: a carreira ou filhos?

MARISA — Tenho muita vontade de ter fi­lhos. Vou ter. Já pensou, velhinha, sem filhos, sem netos? Tenho 27 anos. Pode ser um plano para depois dos 30.

PLAYBOY — Religião, tem alguma?

MARISA — Em que sentido? Frequentar igreja, seita, misticismo? Não. Se sou reli­giosa? Sou e não sou. Tenho códigos meus de relacionamento com o desco­nhecido, o inexplicável, o fora de con­trole. Respeito e aceito. Cientificamente, concordo que não conhecemos tudo. Nosso espectro de frequência de som e visão, por exemplo, é muito pequeno. Existe, portanto, muito mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. E, pessoalmente, não sou po­tente em toda e qualquer situação. De vez em quando, entrego os pontos.

PLAYBOY — Veste branco no réveillon?

MARISA — Visto e não visto. Dependendo só de ter ou não vontade. Mas não tenho pai-de-santo, não tenho padre, não te­nho tarólogo, não tenho astrólogo.

PLAYBOY — Você teria como morar fora do Brasil. Não tem vontade?

MARISA — Nenhuma. Tenho um grande afeto pelo Brasil, sem demagogia, e mais até pelas pessoas do Brasil. A mú­sica aqui é um fenômeno bonito, cultu­ralmente fortíssimo, senão não teria so­brevivido — como aconteceu com o ci­nema. E música popular é popular mesmo. Nossa cultura musical é forte, todo mundo canta, batuca, ouve rádio. A música sobreviveu à crise, mais do que isso: reflete a crise. Temos muita coisa que fazer aqui, pois há um lado do Brasil maravilhoso assim como há um lado tenebroso. Vi na televisão, uma noite dessas, uma cantora como a Carmem Costa na fila do INSS. No Bra­sil, tudo é possível. Agora, tem uma coisa: não dou a menor garantia de que o que eu quero hoje seja o que eu vou querer amanhã. Ao contrário, es­pero que não. Princípios, eu tenho. Mas os meus quereres, eu me permito revê-los.

PLAYBOY — Sua cidade do coração qual é? Londres, Nova York?

MARISA — Rio de Janeiro, total. Urca, Santa Teresa, conheço cada beco, cada ruazinha de paralelepípedo com casi­nha antiga, onde sei achar tudo o que quero, onde tem aquela água de coco le­gal. Esta é a minha cidade. Minha cida­de é aqui.

PLAYBOY — Você anda na rua, vai ao ci­nema, tem uma vida normal?

MARISA — Claro. Ando sozinha, sem problema. Não quero ter uma vida artística que me impeça um dia de ir ao cinema. Ter uma montanha de seguranças e ver videozinho em casa, nunca. Gosto tam­bém de ficar em casa, com os mesmos amigos de quinze anos atrás. Dou muito valor à palavra amigo. O problema com o cinema, que tenho, é que a memória que eu tenho para a música não tenho para o cinema. Confundo os nomes todos.

PLAYBOY — E a crítica, o que você acha?

MARISA — Leio rasteiramente.

PLAYBOY — Rasteiramente?

MARISA — Quero dizer rápido e rasteiro.

PLAYBOY — Mas você não fica ansiosa quando vai lançar um disco, por exem­plo? Saber o que vão escrever?

MARISA — No caso deste último disco, não estava ansiosa. Porque eu acho o disco ótimo, estava segura, tranquila.

PLAYBOY — A maioria da crítica gostou. Antes, como você se comportava?

MARISA — Também no caso do segundo, o Mais, estava tranquila. Mesmo sabendo daquela coisa do sucesso do primeiro, a expectativa do seguinte.

PLAYBOY — Aquilo que as pessoas cha­mam de "síndrome da segunda obra"?

MARISA — Bem, na verdade era a primei­ra, já que o outro não era de estúdio, era palco. Aí eu fiquei ávida.

PLAYBOY — Tem alguma bronca específica com a crítica?

MARISA — Não, nenhuma — é que tenho péssima memória.

PLAYBOY — Por que você quase não apa­rece na TV?

MARISA — Vou dentro de alguns crité­rios. A TV faz muito playback, por exem­plo. Respeito quem faz, mas eu não fa­ço. Prefiro cantar ao vivo, mesmo cor­rendo o risco de errar. Errar faz parte da vida. E tem programa que, mesmo ao vivo, não tem som, aí fica aquela coisa da platéia: "Mais som." Você sabe como sou criteriosa com meu trabalho. Mas gostei de fazer o Serginho Groissman e o Jô Soares, por exemplo. Não me senti como se estivesse no meio de uma feira livre. São poucos. O programa da Hebe Camargo também tem um som e um cli­ma legais.

PLAYBOY — Já foi lá?

MARISA — Não, mas gosto muito da He­be. E estou muito a fim de ir. Devia ter mais programas de auditório, com músi­ca ao vivo, ou especiais, como na época do rádio, gênero Rainhas do Rádio.

PLAYBOY — E a indústria fonográfica? É uma máfia, como dizem?

MARISA — Tenho pouquíssimo contato, uma vez de dois em dois anos eu vou lá com o Léo [Leonardo Netto, empresário] para discutir contrato. De vez em quan­do, um deles aparece para ver meu show. Mas, no meu caso, não tem essa história de trabalhar a imagem, jogada de marke­ting, o slogan "agora, a notícia mais espe­rada dos últimos três anos". Não pode mentir. Não pode dizer compre o disco, e sim escute o disco. É mais gentil e me­nos arrogante. Tenho isso sob contrato. Todo material de marketing meu tem de ser autorizado por mim e pelo Léo. Sei que é assim porque eu vendo disco. Gra­vadora é uma indústria, não é um mece­nato. Mas eu posso até não querer disco. Como o Paulinho da Viola, que faz um de seis em seis anos. É uma opção, fazer ou não fazer. Quero ter a minha liberda­de. Faço? Não faço? Muito simples. Sou tão sem marketing que as pessoas chega­ram a confundir isso com uma grande ta­cada de marketing.

PLAYBOY — É duro ser bonita?

MARISA — Eu não me acho bonita. Exóti­ca, talvez. Interessante, talvez. Mas me acho quase feia.

PLAYBOY — Será que não tem espelho na sua casa?

MARISA — Eu sei que tem gente que vai dizer: "Pô, maluca." E que tem gente que me acha bonita. É uma boa in­formação.


POR NIRLANDO BEIRÃO

FOTOS FERNANDO SEIXAS E CACALO KFOURI


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