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ZIRALDO | ABRIL, 1980

Playboy Entrevista


Uma conversa franca com o cartunista, editor do Pasquim, apresentador de TV, teatrólogo, futuro deputado e, sobretudo, um macho inteligente.


Os amigos dizem que Ziraldo acorda uma hora mais cedo para poder trabalhar 25 horas por dia — e não exageram. Um rápido apanhado de suas atividades atuais é de deixar sem fôlego o próprio leitor. Apertem os cintos: ele desenha uma charge, dia sim, dia não, para o Jornal do Brasil; edita semanalmente o Pasquim, para o qual ainda contribui com um número incontável de cartuns e dicas; faz uma página mensal da "Supermãe" para Claudia e outra do "Mineirinho" para PLAYBOY, no qual também comparece regularmente com diversas ilustrações; cria cartazes de publicidade para empresas, filmes, shows e capas de livros e discos; escreve livros infantis, como Flicts (que está sendo adaptado para uma comédia musical, com canções de Sérgio Ricardo), e o recente Planeta Lilás; neste momento, está escrevendo outro, O Menino Mais Bonito do Mundo, em parceria com o artista plástico, Sami Mattar; apresenta-se semanalmente no programa Abertura, da TV Tupi, de cujo festival de MPB foi o mestre-de-cerimônias, em novembro do ano passado; sua peça Esse Banheiro é Pequeno Demais para Nós Dois voltou ao cartaz no Rio, e ele está escrevendo peças novas, que pretende ver encenadas ainda este ano: uma infantil, Casa de Boneca; a outra para adultos, Bar Lagoa. Não se surpreenda também se, um dia desses, os jornais derem que ele pulou da Pedra da Gávea numa asa-delta ou que acabou de ser lançado candidato a deputado federal pelo PMDB. E o mais incrível é que, apesar disso tudo, ele ainda encontra tempo para agitar, divertir-se e freqüentar a noite carioca, da qual é um dos mais coloridos personagens.


"Eu não caibo na minha vida, rapaz", diz Ziraldo, rindo, embora não trocasse a sua vida pela de mais ninguém. Essa ânsia de fazer tudo está alterando ultimamente a sua imagem, fazendo com que ele deixe de ser visto apenas como o cartunista mais bem-sucedido do país para transformá-lo numa onipresente figura pública, empenhada nas mais variadas causas a maioria das quais nada tem a ver com o humor e nem tem graça nenhuma. Uma delas foi a da anistia, em 1979, da qual ele participou fazendo cartazes, travando debates e visitando presos políticos em greve de fome. Nada mau para quem saiu de Caratinga, Minas, aos 18 anos, em 1950, com a idéia de se tornar, simplesmente, o maior desenhista do mundo. "Guardem bem este nome", escreveu a seu respeito o padre Juquinha no jornal local. "Vocês ainda vão ouvir falar muito dele!" E não deu outra. Na realidade, Ziraldo saiu apenas fisicamente de Caratinga ("cidade de 1 milhão de habitantes — em toda a sua história", segundo Millôr). O próprio Ziraldo admite que, no fundo, continua o provinciano que acabou de chegar à cidade grande e ainda tido perdeu a capacidade de espantar-se, comover-se, indignar-se e tomar violento partido sobre tudo que o cerca — mesmo que, depois, exerça a sua irresistível tendência mineira à conciliação...


Mas não nesta entrevista. Pela primeira vez, Ziraldo foi apanhado sem defesas; sem saídas e, praticamente, com as calças na mão. (Epa!) Para isso, tivemos de trazê-lo a São Paulo, onde, longe dos telefones e da prancheta, trancou-se com o editor Ruy Castro numa casa no Pacaembu e, durante 8 horas, falou sem censura nem autocensura sobre humor, sexo, política, religião, feminismo, Ipanema, afetos e desafetos. Esta é a menos mineira de todas as suas entrevistas.


Ao mesmo tempo que deixa de ser exclusivamente um desenhista de humor para cobrir um espectro muito mais amplo de atividades, Ziraldo deixa também de ser unanimemente admirado (como sempre foi) para começar a ser discutido. A abertura decretou o fim das unanimidades, e ele sabe disso. Afinal, foi um dos que mais batalharam para que ela acontecesse.


PLAYBOY Você afirmou recentemente no programa Abertura que uma das coisas mais importantes e criativas da década de 70 no Brasil foi o humor. E, no entanto, foi uma das décadas mais tristes da história do Brasil. Como se explica isso?


ZIRALDO Acho que é porque o humor floresce na hora do lixo, ou, principalmente, na hora da repressão. O humor é a flor do lodo. Ele surge na hora difícil, na hora das trevas. Os anos 70 foram uma década prodigiosa de humor, mas não se fez porra nenhuma para divulgar isso...


PLAYBOY Por quê?


ZIRALDO Porque o humor incomoda. O humor não interessa. Quem faz a História? Como sempre, são os poderosos, e por isso o humor nunca vai ter realce.


PLAYBOY A abertura tem feito muitas vítimas no Pasquim?


ZIRALDO Eu próprio sou uma vítima da abertura. Era muito mais fácil fazer charge no tempo da repressão do que agora, com a abertura. Outro dia saiu uma carta de leitor no Jornal do Brasil dizendo que eu estou em declínio. Eu não estou em declínio, pó! Eu não estou é satisfeito com o que o Jornal do Brasil e esse leitor estão. Acontece que, na época da barra pesada mesmo, o Jornal do Brasil bancava todas as minhas charges, as mais violentas, porque a nossa causa era comum, a gente queria reconquistar a liberdade de expressão. Então, gozar o Armando Falcão, gozar o fato de que todos os presidentes vinham do Sul e que todos eram generais, gozar a prepotência do Geisel, tudo isso se resumia numa frase: "Queremos liberdade". Mas, com a abertura, o Jornal do Brasil conquistou o que queria. Mas eu não conquistei. Não é isso que eu quero. Quero é mudar o país. Então, agora está uma barra fazer charge no Jornal do Brasil. O fato é que não consegui ainda descobrir o meu limite nessa nova fase. Na época da barra pesada eu sabia exatamente a piada que o Jornal do Brasil não bancava. Agora não sei mais. Tenho tido mais piadas vetadas depois da abertura, numa proporção muitíssimo maior. E vou dizer por quê: porque eles estão com muito mais medo do que deveriam estar, estão com muito mais cuidado. Acho até que, se os homens não virarem a mesa e a abertura continuar, a gente vai ficar devendo muito disso à grande imprensa. Porque o que ela está com panos quentes, o que ela paparica, o que ela segura para não precipitar os acontecimentos...


PLAYBOY Aqui caberia um exemplo claro disso.


ZIRALDO Aquele famoso incidente de Florianópolis com o Figueiredo. Nenhum jornal publicou o que se falava nas redações. O que deveriam ter publicado era "Grosseiro, casca grossa, despreparado". Mas ninguém teve coragem de publicar isso.


PLAYBOY O Jornal da República, de São Paulo, afirmou na época que "o decoro presidencial precisa ser respeitado. Inclusive pelo presidente".


ZIRALDO Mas está errado. Decoro presidencial tem de ser respeitado só pelo presidente. Povo não tem de respeitar decoro presidencial. Em primeiro lugar porque o presidente não foi eleito; em segundo porque o povo tem o direito de expressar o seu desagrado. Agora, quando o povo xinga o presidente, não está querendo ofender a mãe dele: "filho da puta" é um código, significa "estou com muita raiva de você". Qualquer um sabe que se trata de um código. Só os idiotas acham que a mãe está sendo xingada e levam a coisa para o terreno pessoal.


PLAYBOY Por falar em terreno pessoal, o que representa para você ter 47 anos?


ZIRALDO Certa vez, há uns dez anos, o Paulo Francis disse na redação do Pasquim: "Estou no fim da minha vida. Estou com 39 anos, logo estarei fazendo 40, que é o final da vida para qualquer homem que não está se enganando". Eu falei: "Pare com isso, Francis. 39 anos é uma idade do cacete, uma idade maravilhosa!" Eu descobri que essa obsessão em achar que os 40 anos são o começo do fim em geral acontece quando se chega aos 39. Depois, eu mesmo fiquei assustadíssimo aos 39 anos. Assustadíssimo! Porque o sujeito fica achando que já viveu pra cacete e ainda não fez coisa alguma. Então vem aquela sensação de que está acabado. O cara pensa: "Daqui a vinte anos estarei com 60, um sexagenário!" Mas aí ele sai dos 39, faz os 40 e, seis meses depois, já nem se lixa mais para o que virá daí a vinte anos. Tem sete anos que fiz 40 e nunca penso nesse negócio de "Ih, faltam só treze pra eu fazer 60, faltam só três pros 50..." — que é uma idade que, até tempos atrás, eu achava provecta.


PLAYBOY E agora, o que você acha?


ZIRALDO Descobri que velho é o cara vinte anos mais velho do que eu. Então, hoje, pra mim, velho é quem tem 67, 70 anos. Quando eu tiver 60, velhos vão ser os de 80. Mas a verdade é que, na faixa dos 40 anos, a gente se comporta com uma certa avidez.


PLAYBOY Com relação a sexo, por exemplo?


ZIRALDO Também. Eu conheço pouquíssimas moças de 25, 26 ou 27 anos que não estão envolvidas ou já não se envolveram com um quarentão, e conheço pouquíssimos quarentões que não tiveram ou têm um envolvimento com meninas de vinte e poucos anos. Elas, eu sei porque se metem nisso: os caras de 20 anos são muito babacas, muito imaturos, enquanto o quarentão tem um certo charme, porque ainda está sem barriga, cheio de vida, além de ter a chamada experiência. E o quarentão, porque se renova através da menina... e inclusive leva cada banho delas que até dá pena! Mas, na verdade, essa avidez é também um pouco de medo do fim — a chamada menopausa masculina. Então vem aquela necessidade de mostrar performance, de provar que é o bom.


PLAYBOY Melhor do que os rapazes de vinte anos?


ZIRALDO Esses garotos de hoje estão fazendo surf demais, vivem cansados, quando não estão numa de heavy trip. Já o cara experimentadão não se conforma com a primeira — dá duas, e está sempre querendo partir para a terceira... Na verdade ele quer é provar que está inteirão...


PLAYBOY E você está nessa?


ZIRALDO Olhe aqui, eu não sou nada original, sou um quarentão. Mas a gente pode dar a volta por cima nessa questão e não ficar vivendo em função do cazzo, não virar um cara falocêntrico. Acho que dá, mas não é muito fácil, principalmente para um sujeito como eu, carregado de marcas de uma formação provinciana, mineira.


PLAYBOY Mas sem medo de ficar velho.


ZIRALDO A velhice é uma coisa inexorável e só tenho duas opções: ou morro ou fico velho. Como diz o Millôr, eu gostaria de morrer aos 96 anos, com um tiro no peito, dado por um garotão de 20 que me surpreendeu dentro do guarda-roupa de sua namoradinha. Eu acho que vou ser um velho do cacete. Quem viver, verá!


PLAYBOY Nunca uma geração de 40 anos teve uma legião tão gigantesca de garotas de 20 a seu dispor. Como você vê essa oferta tão farta e barata?


ZIRALDO É assustador! Há pouco tempo o Carlos Drummond de Andrade estava me dizendo que tem uma inveja incrível da minha geração, porque, na juventude dele, era uma dificuldade você conseguir encostar a mão na coxa de uma mulher, enquanto agora é essa liberalização toda. Eu falei: "Mas o prazer do cara que come quarenta mulheres hoje é proporcionalmente o mesmo que o que você sentia quando conseguia encostar a mão na coxa de uma. É a relatividade do prazer..." E ele: "Não vem com essa conversa, Ziraldo. Aqui pra você, ó! O bom mesmo é comer quarenta mulheres!"


PLAYBOY E não é isso aí?


ZIRALDO Claro! O bom mesmo é comer quarenta mulheres. Para os caras da minha geração, toda mulher é um troféu. Quando eu era menino, eu pensava: "Pô, como é que eu vou me arranjar quando crescer, se não tenho nenhuma irmã da minha idade pra me apresentar às garotas?" Naquele tempo, mulher era uma coisa a ser alcançada. Então, toda vez que um cara da minha geração come uma mulher, ele está abatendo essa mulher, está matando a caça, conquistando um troféu. E isso estrepa todo o relacionamento da minha geração com as meninas de hoje, porque elas levam um grande susto quando percebem que os caras estão achando que venceram alguma batalha quando as tiveram. Aí elas ficam muito irritadas e perplexas: "Porra, pára com isso, cara! A gente está trocando uma coisa!" Enquanto o cara está pensando: "Puxa! Jamais imaginei que teria essa mulher aos meus pés!" Estou falando do provinciano, do cara que casou com mulher virgem, do cara que vem de uma geração que dançava no clube e se esfregava na moça, depois levava ela para casa e ia para a zona. E com mais um pequeno detalhe: o sujeito fazia questão de não comer a mulher com quem ia casar.


PLAYBOY Esse era o comportamento vigente na sua geração?


ZIRALDO Era. Lá em Caratinga há aquela famosa história do noivo que comeu a noiva e depois procurou o pai dela para dizer: "Olha, eu não posso mais casar com sua filha porque ela deu pra mim". E o pai concordou: "Perfeito, perfeito". Parece aquela piada do Groucho Marx: "Não caso com uma mulher que dá para um tipo como eu" [risos]. Mas a história é verdadeira: conheci várias moças, contemporâneas minhas, que os pais mandaram para a zona. O namorado comia, o pai expulsava de casa e ela ia direto para a zona. E não foi há tanto tempo assim.


PLAYBOY Incrível! E hoje?


ZIRALDO Hoje não existe mais o verbo dar. Agora elas também comem. E por que essa coisa machista do homem usar um verbo de voz ativa e a mulher um verbo de voz passiva? Eu acho que as feministas deveriam exigir que os homens também conjugassem o verbo dar. O sexo só é bom quando é uma doação de ambos os lados e não um ato de possessão. Então, passando a conjugar o verbo comer, a mulher veio disputar com o homem na base da posse, o que é uma merda!


PLAYBOY Isso incomoda os homens da sua geração? A você, particularmente?


ZIRALDO Sabe, minha vida não daria um bom romance, porque falta tragédia, falta drama na minha existência. Por exemplo: eu nunca brochei. É uma coisa fantástica. Mas, a propósito de brochar, a transa entre homem e mulher na nossa sociedade é tão machista que até nisso o homem consegue enganar a mulher. Toda vez que o cara brocha a mulher se sente grandemente homenageada, o que é uma canalhice do homem. Ele convenceu a mulher de que brochou de emoção: "Brochei porque você me comove!" Acontece que a mulher quer duas coisas: ou fazer o homem gozar muito ou comovê-lo. Então ela fica gratificadíssima quando o cara brocha. O que é mais uma vigarice masculina, não é?


PLAYBOY Você se acha um machão primitivo?


ZIRALDO Não, eu sou um cara sensível. Ou não sou? Não sei, rapaz, mas acho que a causa de eu nunca ter brochado é uma coisa meio ligada ao meu fascínio pela performance. Eu sou um cara ligado à performance. Na verdade, sou o Errol Flynn da minha vida. Vou sempre ganhar no final, nunca tenho dúvida sobre isso! Fico tão assustado quando perco que sempre penso: "Isso vai foder o roteiro do filme!" Admito até que eu não chegue a tirar todo o prazer que poderia tirar do sexo por estar sempre tão preocupado com a performance que não me entregue totalmente. É possível, é possível, mas não acredito, não.


PLAYBOY Essa sua obsessão pela performance não se restringe a sexo, não é? Você dá a impressão de manifestá-la em tudo que faz. Você sempre faz mil coisas ao mesmo tempo?


ZIRALDO Talvez pelo meu temperamento agitado, pela minha energia vital, não há um só movimento interessante, uma só causa interessante, criativa, nestes últimos vinte anos, no Rio de Janeiro, em que eu não tenha me metido. Isso às vezes incomoda as pessoas: "Pô, esse cara está em todas". Quem não gosta de mim deve ficar puto da vida. Mas, de vez em quando, até um amigo diz: "O Ziraldo, não tenho paciência para o teu estar em todas. Você vá à merda!"


PLAYBOY Esse estar em todas é hoje mais intenso do que, há dez anos, quando o Pasquim começou?


ZIRALDO Não. Também participei intensamente das coisas que aconteceram na década de 60. O ano de 1969, por exemplo, foi para mim um ano de glórias, porque antes de nascer o Pasquim eu havia ganho a Bienal de Humor de Bruxelas, que era a exposição de humor mais importante do mundo naquela época. Em 1969 fiz o cartaz da Unicef, fiz o Flicts e o Jeremias o Bom, fiz um caralhão de coisas. Quando terminou 69 eu dizia: "Se eu não for eleito o homem da década, nunca mais serei. Esta foi a minha última chance" [gargalhada].


PLAYBOY Pois é. Você gozou cedo demais...


ZIRALDO Cedo nada, porque eu já estava com 37 anos. Mas já era conhecido e respeitado. Só não era parado na rua, porque ninguém conhecia minha cara. Mas agora, depois do Abertura, todo mundo me reconhece na rua, no avião... Televisão é uma praga! É divertido, muito divertido.


PLAYBOY Você não acha que todo aquele mito de Ipanema, criado e difundido pelo Pasquim, foi uma leviandade total por ter surgido exatamente quando o Brasil estava na fase mais repressiva de toda a sua história?


ZIRALDO O que o Pasquim fez foi vender a todo o país o charme de Ipanema. Não era um jornal de esquerda, mas sim um jornal sofisticado que vendia a miragem de viver em Ipanema. Vendia a imagem de Leila Diniz, aquela mulher desinibida que ia grávida para a praia e falava palavrões. E juntava a isso festas incríveis do Jaguar e do Albino Pinheiro. Então éramos o que havia de quente. Quando a década de 70 começou, o Pasquim era vanguarda. Neste início da década de 80, a vanguarda é o Fernando Gabeira. Só que ele não tem a força que o Pasquim teve. O Pasquim tem de dar a volta por cima, porque não é um jornal que possa se institucionalizar.


PLAYBOY E como você explica o mito de Ipanema?


ZIRALDO Acontece o seguinte: Ipanema foi, num determinado momento, a cidade mais feliz do mundo. Era um lugar com edifícios de três andares, casas de classe média. Não tinha mansões com jardim, não tinha milionários. Tinha duas pracinhas, a Nossa Senhora da Paz e a General Osório, cheias de babás engomadinhas... Não existia essa onda de assaltos, o Zé da farmácia conhecia todo mundo, o dono do bar Zepellin... Ipanema tinha todo o charme da província, com o conforto de cidade grande.


PLAYBOY De que época você está falando?


ZIRALDO Das décadas de 40 e 50. Na verdade, o que aconteceu em 70 foi a saudade daquela Ipanema, do que já não existia ou começava a deixar de existir. Porque o Zé da farmácia já estava sendo expulso, o Zepellin estava sendo redecorado pelo Ricardo Amaral, o Veloso passou a se chamar Garota de Ipanema, todas as coisas que eram naturais estavam sendo mudadas... Então o que o Pasquim vendeu foi a nostalgia da Ipanema que já era. Hoje, a velha Ipanema está morta, esmagada sob aqueles edifícios todos. Então, o que o Pasquim vendeu foi uma utopia. Não é que Ipanema fosse feliz quando o Brasil estava uma merda... É que Ipanema tinha uma coisa que as pessoas só começam a valorizar quando ela está acabando.


PLAYBOY Mas não é verdade que até hoje há uma resistência na esquerda brasileira contra a esquerda de Ipanema, a chamada "esquerda festiva"?


ZIRALDO Não percebo essa resistência contra a esquerda de Ipanema.


PLAYBOY Se você vivesse em São Paulo perceberia.


ZIRALDO É que há em São Paulo uma grande inveja de Ipanema, um grande rancor. É um negócio maluco esse sentimento contra Ipanema. Sabe quem batizou a esquerda festiva de esquerda festiva? Foi a própria esquerda festiva. Foi o jornalista Carlos Leonam, num grito de carnaval com discos antigos que eu organizei no Bar Ben, no começo da década de 60, antes do golpe. Santiago Dantas havia dito que existia uma esquerda positiva e uma esquerda negativa. Aí o Leonam falou: "Se existe esquerda positiva e esquerda negativa, esta que está aqui é a esquerda festiva". Porque, na verdade, a esquerda não tem que ser triste...


PLAYBOY Como ela tem de ser?


ZIRALDO Deixe eu tentar fazer a defesa da esquerda festiva: como diz o Millôr, nós convivemos com as melhores pessoas deste país. Por coincidência, são pessoas catalisadoras e cheias de alegria. E são de esquerda porque prefeririam um mundo diferente do que aí está. Mas são pessoas cheias de vida, saudáveis, apartamentos bem decorados, gostam de ouvir boa música, beber, conversar. Então essas pessoas deveriam passar a fumar cigarro barato e a andar de macacão só porque são de esquerda? A gente pode curtir, beber bom uísque na beira da piscina e discutir o destino do país, pô! Para que abrir mão das coisas que a gente conquistou e com as quais está habituado? Acontece que todo sujeito que não tem, essa alegria fica meio puto com a gente, achando que somos irresponsáveis. Não somos, não. Nós podíamos ficar na nossa, pois já temos o mundo melhor. Tomo por mim: eu não sou de esquerda por nenhuma carência neurótica. Até porque deveria achar o establishment ótimo. Afinal, o sistema me deu tudo o que o menino que eu era pediu a Deus. Mas o fato de "o mundo ser bom pra mim" não quer dizer que ele seja justo. E eu quero um mundo justo, acima de tudo. Sem por isso deixar de ter amigos cheirosos e inteligentes e amigas cheirosas, inteligentes e lindas.


PLAYBOY Há quem ache que você é do Partido Comunista, do Partidão.


ZIRALDO Eu não sou do Partidão! Eu sou o Partidão! [Risos].


PLAYBOY Como assim?


ZIRALDO Eu tenho uma cabeça tipo Partidão. Quantas vezes, no Pasquim, eu dei dicas que coincidiam inteiramente com a linha do Partidão. Aquele negócio de anular ou não o voto, por exemplo. Eu publicava a nota e depois encontrava um cara qualquer que me perguntava: "Quem te deu a dica?" E eu: "Que dica? Tá brincando, cara?" Então um dia conheci uns comunistas e perguntei: "Escutem aqui, por que vocês nunca tentaram me arregimentar?" E eles: "Pra quê? Você sempre esteve com a gente!" [Risos]. Então é o seguinte: até sem saber eu sempre fechei com o Partidão, a minha cabeça é o Partidão. E o Partidão tinha razão no Chile, tinha razão em Portugal, o Partidão tem razão sempre, pô! [Risos.] Só não teve razão na invasão da Tchecoslováquia... Aí ele quebrou a cara. E agora, no Afeganistão, também tá ruço.


PLAYBOY Você teria disciplina suficiente para se enquadrar no PC?


ZIRALDO Não sei. Mas sei que jamais me filiarei a qualquer agremiação. Por exemplo: agora eu estou transando com o maior entusiasmo o PMDB. Mas acho que jamais vou entrar para o PMDB, embora às vezes essa idéia me fascine. Olhe, se eu fosse do PC, durante os anos de repressão, eu teria tido muito menos área de manobra para lutar contra ela. Além disso, fui preso quatro vezes em menos de dois anos e não me aconteceu nada. Se eu fosse engajado eu teria dançado. Mas nunca provaram nada contra mim, pois nunca houve nada, meus processos foram todos arquivados.


PLAYBOY Quando foi sua primeira prisão?


ZIRALDO O AI-5 foi quando?


PLAYBOY 13 de dezembro de 1968.


ZIRALDO Fui preso no dia 14.


PLAYBOY Qual foi a sua reação?


ZIRALDO Aquilo me assustou muito porque eu achei tão idiota, tão idiota... Eu tinha vergonha de me achar suficientemente importante para ser preso. Até pouco tempo antes, eu era um sujeito rigorosamente alienado. Na noite do AI-5, eu estava no bar Veloso, quando de repente alguém chegou com a notícia: "Deram o golpe!" E aí foi aquele corre-corre para esconder gente. Passei a noite inteira escondendo amigos. Eles é que precisavam se esconder. Eu não. No dia seguinte, os homens invadiram minha casa. Eu estava em casa, desenhando, quando eles chegaram. Fui levado para o Forte de Copacabana. Uma das reações somáticas que eu tinha naquela época, quando ficava nervoso, era prurido anal. Acho que meus intestinos azedavam e eu ficava com uma coceira desesperada. Precisava então passar uma pomadinha. Pedi ao meu irmão Geraldinho, que ainda era menino naquele tempo, para correr até a farmácia. "Capitão, espera um pouquinho que meu irmão vai buscar um remédio pra mim na farmácia." Aí entrei no carro e ficamos esperando meu irmão voltar com o remédio. Os caras estavam impacientes e já haviam decidido não esperar mais quando meu irmão chegou correndo e me jogou uma latinha de vaselina [risos]. O Geraldinho nunca fazia nada direito! Eu então peguei a vaselina e disse: "Ó sargento, não é pra mim; é pra você. Vê se não bota com areia. Tá aí a vaselina". Aí o sargento falou: "Você é maluco, rapaz ! Eu já peguei uns dez hoje, e todos se cagaram. Mas você é maluco!" E realmente eu não podia levar aquela porra a sério. Aliás eu nunca levo a sério o que está acontecendo comigo. Sempre acho que não é comigo, a tragédia não é comigo.


PLAYBOY E na prisão, como foi?


ZIRALDO No dia seguinte o sargento veio me falar: "Rapaz, contei pra minha mulher que te prendi e ela disse que vai ficar uma semana sem falar comigo". A mulher dele havia sido leitora do Saci Pererê [risos]. Ela achava uma loucura prenderem o cara que fazia o Saci Pererê... Ah, mas aquela prisão foi grotesca. Fiz amigos, um dos carcereiros me convidou para padrinho de casamento. Na Vila Militar eu fiquei preso num lugar chamado Batalhão de Manutenção de Armamentos que, perto dele, o M.A.S.H. era fichinha... Você viu o filme M.A.S.H., não viu? Se eu pudesse fazer um filme no Brasil, uma comédia sobre um acampamento militar naquele clima, eu faria igualzinho ao BMA!


PLAYBOY Você está dando a impressão de que as prisões políticas brasileiras eram uma festa...


ZIRALDO Não, não tem graça nenhuma ficar preso. Mas, visto à distância... O Jaguar diz que quer fazer um livro sobre o ridículo daquela nossa prisão por causa do Pasquim. Que ele acha não ter sido nada heróica. Claro que não foi heróica. Nunca vi nada tão desagradável na minha vida.


PLAYBOY Foram as prisões sucessivas que o tiraram definitivamente da "alienação" que você admitiu?


ZIRALDO Não, isso aconteceu em função dos próprios rumos que o país tomou. Em um único ano, 1969, eu vivi dez. Foi um ano em que eu dei uma tremenda avançada, organizei minha cabeça politicamente, para compreender o que estava acontecendo na porcaria deste mundo. E eu já tinha 37 anos de idade!


PLAYBOY — É verdade que, até então, suas preocupações estavam mais voltadas para o problema da existência ou não de Deus?


ZIRALDO — Não, não foi bem assim. Isso foi muito antes. Parei de rezar quando tinha 26 anos. Meu pai era católico praticante, e minha formação foi toda católica: fui cruzado eucarístico, fui congregado mariano... Depois, quando saí do interior de Minas e vim morar no Rio, eu me tornei um católico meio relaxado. Mas quando não ia à missa eu me sentia culpado. Então, aos poucos fui me afastando de Deus, mas daquele Deus católico, que te cobra, te pune, te perdoa. Mas eu me acho muito favorecido por Deus, muito gratificado — se é que Ele existe. Porque fui atendido por Ele em tudo, sabe? É impressionante! Quando fiz 30 anos li um livrinho que fez a minha cabeça. Uma monografia do Erich Fromm, intitulada O Dogma de Cristo. Esse livro me fez descobrir que Deus não é católico, não tem nada a ver com o catolicismo. Na verdade, continuo sendo um homem que não tem certeza sobre coisa nenhuma. E tenho pavor de quem tem certeza... Aliás, toda pessoa que só tem certezas é má, difícil, complicada.


PLAYBOY — No entanto você tem sido acusado de querer impor suas certezas aos outros. O Pasquim foi acusado disso quando começou a pichar os compositores e cantores baianos.


ZIRALDO — Mas o Pasquim nunca teve uma linha editorial, sempre foi um jornal em que cada um escrevia o que queria. No caso dos baianos, o Millôr, que era muito rigoroso, foi o primeiro a implicar e abrir fogo contra eles. O que provocou a irritação do Millôr foi uma série de artigos do Jorge Mautner no próprio Pasquim, num dos quais ele comparava Caetano Veloso a Jesus Cristo. Aí Millôr publicou uma resposta, dando um pau no Mautner. Quando Millôr briga, sai da frente! Então ele resolveu enquadrar os baianos. Millôr tem implicância com músico. Acha que músico é um artista menor. Ele não tem muita paciência com o sucesso do Chico Buarque, do Caetano... Ele acha que a grande manifestação da inteligência humana é a palavra, e, assim, quem transa bem a palavra é melhor do que quem transa bem o som. É a tese do Millôr, nunca mergulhei nela profundamente, mas o fato é que os baianos fizeram por merecer...


PLAYBOY — Só por causa do artigo do Mautner?


ZIRALDO — Não. Aquela volta deles de Londres, em 1972, foi uma coisa terrível. Estavam enlouquecidos, numa transa péssima. Antes, eles tinham gravado um disco em que homenageavam Marighela. Você botava o disco em 16 rotações e ouvia o Gilberto Gil gritar, nitidamente, "Marighelaaaa!" Quando um cantor faz isso num disco, está assumindo um compromisso. É como se dissesse: "Eu estou com o que há de mais à esquerda no Brasil". Então a gente começou a admirar os baianos como se eles fossem o que havia de mais radical contra a ditadura. Nós admirávamos a coragem deles. Do talento e da qualidade do trabalho dos baianos, nem se fala, isso quero deixar bem claro. Então, quando eles voltaram do exílio e começaram a negar o que haviam feito, negar a sua participação política, a gente ficou irritado, porque estávamos esperando deles uma lenha firme. Isso é que acirrou os ânimos no Pasquim. Eu não exijo que ninguém entre na briga. Não gosto é que o cara bote luvas de boxe e depois diga: "Ah, eu estava só brincando".


PLAYBOY — Mas eles também não se sentiam agredidos?


ZIRALDO — É, eles estavam feridos, e aí os grandes jornais deram espaço para eles. E eles mais acirravam a discussão, mais malhavam. Na verdade, eles eram tangidos pela direita, que aproveita a ingenuidade e a vaidade, principalmente a vaidade, do artista. Todo artista tem um lado de vaidade que é fundamental na obra dele, que é muito mais amplo do que a luta política dele, do que tudo. O ato de criar é um ato muito vaidoso, extremamente vaidoso. Ele exige que sua obra seja admirada pelo grupo de pessoas que ele preza, que ele respeita. Quando uma dessas pessoas nega valor à sua obra, ele fica puto da vida! É isso que a turma do cinema novo, por exemplo, faz. No que você diz "Não gostei do filme do Cacá Diegues", ele providencia logo um artigo de duas páginas no Jornal do Brasil para atacar você. Nenhum deles admite que não se goste da obra deles.


PLAYBOY — Hoje, a briga de vocês com os baianos ainda continua?


ZIRALDO — Sei lá. Outro dia, a Veja publicou que tínhamos feito as pazes lá em Aracaju. O Henfil foi fotografado abraçado ao Gil, um abraço incrível. Gabeira também estava lá. A Veja publicou. Depois, o Henfil deu uma dica no Pasquim dizendo que não era nada disso. As dissensões dele com a chamada patrulha odara continuavam. De minha parte, eu continuo também fazendo muitas restrições às posições políticas assumidas pelos baianos. Não gosto desse jogo duplo e estranho que eles fazem. Mas tem uma coisa: eu admiro a coragem deles. A coragem de desagradar os amigos, de decepcionar a quem achava que eles eram seus guias. Eles são mais eles. Isso eu acho uma coisa incrível, morro de inveja. Agora veja o meu caso: eu acabo desagradando muito mais gente com o meu medo de desagradar.


PLAYBOY — Por que o pessoal da esquerda se desentende tanto?


ZIRALDO — Porque a esquerda é muito imaginativa. Todo cara de esquerda é imaginoso, é criativo; não é um carneiro, um maria-vai-com-as-outras. A direita só tem uma proposta, o espectro dela é muito curto. Ela não tem sequer literatura para desenvolver. Já a esquerda é um amplo leque de opções. Todo pensamento brilhante é arrebentador e a esquerda sempre ficou ao lado da arrebentação. Então é muito difícil você unificar a esquerda, exatamente porque ela só tem pessoas criativas. Criativo é vaidoso; vaidoso é atritante. Então, é muito difícil você juntar vinte deuses numa sala e eles não saírem na porrada. A gente tem respeito pela obra um do outro, mas se atrita paca. E acho que há lugar para todas as propostas na luta pela renovação do mundo.


PLAYBOY — Inclusive a proposta do Fernando Gabeira, de criar novos modelos de comportamento?


ZIRALDO — Não fecho os caminhos do Gabeira, de jeito nenhum! Eu descobri o Gabeira em Paris, em 1978, fiz aquela entrevista com ele, editei o Que é Isso, Companheiro?... Mas eu, usando tanga de crochê? Não dá. Eu nunca vou botar tanga, mas vivo dizendo às pessoas: "Prestem atenção na proposta do Gabeira. Ele não está brincando". Ele está propondo um negócio formidável, porque, a partir do momento em que você luta contra a injustiça social, não pode ser hipócrita. "Pare com a mentira e a hipocrisia, rapaz !" De uma maneira nova, o que ele está propondo é isso. Agora, eu não estou a fim de transar o corpo na mesma medida em que o Gabeira está. Ele disse assim: "Eu acho que o homem tem de alterar a relação de seu corpo com a roupa que o veste". Parece uma frase boboca, mas não é. Por que tenho de usar gravata e paletó? Eu não posso, de repente, enfeitar meu corpo e continuar sendo de esquerda? O executivo não enfeita com as gravatas mais ridículas? Por que não posso botar uma camisa colorida? Gabeira está certo, é evidente. Você tem de se abrir para tudo, você tem que abrir seu coração, seu corpo, sua alma para tudo o que está aí, rapaz ! Agora, só porque descobri isso não vou botar uma tanga para ir à praia amanhã. Não estou acostumado com isso, vou me sentir ridículo.


PLAYBOY — Você se acha infenso, por exemplo, à tentação de se tornar homossexual?


ZIRALDO — Se eu disser que nunca tive fantasias homossexuais estarei mentindo, claro. Mas não tenho medo de enfrentar a hipótese... quer dizer, se alguém me chamar de veado não parto pra cima dele como certo presidente da República. Porque não tenho dúvida de que sou heterossexual mesmo, só me dá prazer a idéia do corpo feminino, a curva do corpo feminino, o cheiro, a textura, o olho... Eu não consigo me imaginar na cama olhando no olho de um amigo meu de quem eu goste muito. E sem eu olhar no olho não tem graça! Tem amigos que eu adoro, que eu gostaria muito de abraçar, mas não vou olhar nos olhos deles como olho nos de uma mulher.


PLAYBOY — Por quê? Tem medo?


ZIRALDO — Não! O meu machismo, a minha transa com a performance, essas coisas todas, estou quase certo de que não são a necessidade de me provar que no fundo, no fundo, sou um veado irrealizado. Ah, não sou, não, de jeito nenhum! Como diria o Freud: nem todo charuto é um símbolo fálico. Quer dizer: nem toda tara sexual, nem toda mania de mulher é vontade de fugir de uma veadagem em potencial.

PLAYBOY — Você tem muitas fantasias heterossexuais?


ZIRALDO — Por exemplo?


PLAYBOY — Por exemplo, transar com três mulheres ao mesmo tempo.


ZIRALDO — Ah, não penso em outra coisa na vida, não tenho feito outra coisa a não ser fantasiar coisas desse tipo. Mas sou um homem de vida sexual modesta, vivo mais da fantasia do que da realização. Eu nunca fui a uma suruba na minha vida.


PLAYBOY — Por quê?


ZIRALDO — Não pintou uma oportunidade. Falando bem claro, eu só iria se fosse levado.


PLAYBOY — Ainda no início desta entrevista você procurou dar uma de antimachista, propondo a substituição do verbo comer pelo verbo dar. Mas você tem fama de ser um terrível machista.


ZIRALDO — Ganhei essa fama em conseqüência de o Pasquim ter se caracterizado como um jornal machista sob todos os aspectos. Aquela brincadeira das cinco mil do Millôr — e ele insiste mesmo em se mostrar machista —, as bundas na capa... o fato é que esse problema do machismo e do feminismo no Brasil está muito malparado, muito mal resolvido. Eu fecho com as feministas, mas elas ainda não descobriram por onde devem se meter, estão meio atabalhoadas. A maioria delas é feminista não por convicção mental, mas por frustração. Ou porque não gozam, ou porque são mal comidas, ou porque são muito inteligentes e mal compreendidas, ou porque são mais bem-dotadas do que um homem, mas foram pedir emprego e viram que o cara ganha o dobro do que elas pelo mesmo trabalho... Enfim, elas partiram de uma frustração pessoal para poder depois organizar a luta na cabeça.


PLAYBOY — E você ainda diz que não é machista?


ZIRALDO — Ora, eu sou machista, todo mundo é machista. Lula, o metalúrgico, é machista.


PLAYBOY — Por que o Lula?


ZIRALDO — O Lula é um cara inteligente, muito vivo, tem grande noção do público para quem está falando. Naquele congresso do Centro Brasileiro Democrático, que o Oscar Niemeyer organizou em Brasília, no ano passado, o Lula subiu na tribuna e começou um discurso. Aí ele viu umas feministas na platéia e mandou ver: "Porque a mulher brasileira isso e aquilo..." Ora, desde quando operário brasileiro, por mais sofisticado que seja, tem que reivindicar igualdade para a mulher? Líder metalúrgico pode ser feminista? Não pode. Eu então aparteei o Lula naquele ponto do discurso: "Pára com isso, Lula! Volta pro teu assunto e pára com essa demagogia!" Ele me olhou, deu um risinho e continuou. Quando acabou de falar, um grupo de mulheres, liderado pela Ruth Escobar, avançou contra mim. O que eu tomei de bolsada foi uma loucura! "Como é que você se atreve a desdizer o maravilhoso Lula?" E eu: "Mas líder operário não pode entender de feminismo!" E elas: "Que é que você está dizendo, seu fascista? Você se acha melhor que ele, mais culto que ele?" Tentei explicar a elas que estava apenas não querendo que o discurso do Lula soasse falso, é isso o que eu queria dizer, que soa falso um discurso feminista na boca do Lula, pois ele não pode entender de feminismo, não há na trajetória existencial de um líder operário nada que o faça compreender as causas do feminismo. Nem que ele fosse gênio.


PLAYBOY — Por que você tem tanta certeza disso?


ZIRALDO — Olhe, eu, que sou um intelectual, que só me preocupo com isso, é um drama na minha cabeça entender o feminismo! Minha mãe, me criou para ser machista, minha noiva me criou para ser machista, meu pai, minha cidade, meu país, minha época, todos me criaram para ser machista. Então, imagine a cabeça de um líder operário... Onde está a mulher do Lula? Por que ele não sai com ela por aí? Por que não arranja trabalho para ela? Ela é a rainha do lar do Lula, pô! Então vamos parar com isso, não vamos deixar o Lula fazer um discurso falso! Mas as mulheres que me cercaram lá no congresso não queriam saber de argumentos. E tome bolsada! Mais tarde, na churrascaria onde fomos jantar, uma moça dizia: "O Lula estava defendendo a operária". Eu então perguntei a ele: "Lula, você estava defendendo alguma operária?" E ele: "Olha aqui, quer saber de uma coisa? Eu estava fazendo meu discurso e avistei aquelas menininhas lá na frente. Então pensei: tenho de agradar essas meninas... Porque não tenho de defender operária, não. Elas têm três faltas abonadas por mês, têm licença remunerada para dar à luz... Elas têm mais direitos que a gente!" Eu então perguntei: "Mas e essas feministas, Lula?" E ele: "O que eu quero das feministas é a bocetinha delas" [risos].


PLAYBOY — E o que você conclui disso tudo?


ZIRALDO — Eu concluo é que as feministas têm de mudar seus métodos de luta se quiserem ter sucesso. Do jeito que está, o feminismo é ótimo, pro meu machismo é maravilhoso! Começou com Simone de Beauvoir. A primeira intelectual que quis dar para mim, há uns vinte anos, era vidrada pelo feminismo da Simone. Eu estava assustadíssimo. Até então nunca tinha comido uma mulher assim, e, de repente, me aparece aquela intelectual... Então fiz este versinho pra ela: "Simone de Beauvoir, Simone de Beauvoir, se não fosse você, o que seria de moi?" [Risos]. Porque a Simone havia liberado ela e ela veio para mim... Assim, o feminismo liberou as mulheres para os machistas deste país, pô! As bobocas estão aí entregando as mulheres para nós, os machistas!


PLAYBOY — E o que elas teriam de fazer?


ZIRALDO — Teriam de ser mais táticas. Ficam furiosas porque o Pasquim faz humor com elas; dizem: "Por que o Pasquim não faz humor com os machistas?" E eu digo: "Ora, porque os machistas não acusam o golpe. Só se faz humor com quem acusa o golpe". Se você xinga um homem de machista, o cara diz: "Tô gossstando". Uma noite tive uma discussão com quatro feministas, todas inteligentíssimas. Mas tudo o que uma dizia olhava pras outras pra ver se aprovavam. Uma delas, a mais bonitinha, era também a mais agressiva. Chegou uma hora em que perdi a paciência. Ela me perguntou: "Por que você publica bunda de mulher na capa do Pasquim?" E eu falei: "Pára com esse discurso, pô! Que coisa mais chata! Boto bunda de mulher na capa porque vende mais Pasquim, só por isso. Em vez de me patrulhar, vocês tratem é de me ganhar!"


PLAYBOY — Através do Pasquim?


ZIRALDO — Por que não? O Gabeira está usando as páginas do Pasquim para a sua briga. Por que essas meninas também não usam as páginas do Pasquim? A primeira vez que usaram, levaram um pau danado e nunca mais voltaram. Mas, se quiserem escrever coisas interessantes, o Pasquim está aberto para elas. Mas essas feministas, não têm demonstrado o menor senso de humor, e sem senso de humor elas não vão ganhar essa briga. Eu posso falar assim porque não sou machista politicamente. Politicamente eu sou feminista, ou seja, sou a favor de que a mulher conquiste o direito de decidir sobre sua própria vida e exigir o respeito do homem. Eu não sou um cara de guardar a filha em casa e de policiar minha mulher. Se ela fosse feminista eu estaria numa boa!


PLAYBOY — Como é que você se vê, quando se olha ao espelho?


ZIRALDO — Olha, eu evidentemente tenho um negócio chamado empatia. Quer dizer, sou uma pessoa comunicativa, em quem as pessoas confiam ao primeiro contato. Mas o engraçado é que, quando me olho ao espelho, eu me pergunto como alguém pode confiar num mulato de cabelo branco, de topete e costeleta! Eu não confiaria num tipo assim, e, no entanto, eu tenho o physique du rôle do cafajeste latino-americano. Se eu botar uma gravata borboleta e um sapato branco, sai de perto!


PLAYBOY — Você se define como mulato?


ZIRALDO — Tenho cara de mouro, de turco, de árabe, mas sou descendente direto de pretos africanos. Meu avô materno já era bem amulatado, mas o pai dele era preto. Meu avô paterno era tão mulato quanto o materno. Meu pai é bastante escuro, bonito como um deus, mas escuro. Mamãe é branca, portuguesa, bisneta do irmão do visconde de Caravelas, Francisco Alves Branco. Eu nunca senti discriminação por causa de minha cor porque venho de uma região onde não havia senzala, o escravo era chamado de "agregado" era criado dentro da casa-grande. Caratinga é uma cidade onde os negros dançam no clube. La ninguém discrimina crioulo.


PLAYBOY — Uma das restrições mais comuns a você, alegada pelos que o acusam de não ser sincero em suas posições políticas, é a de que você ganha muito dinheiro desenhando anúncios para as mesmas multinacionais que você ataca.


ZIRALADO — Eu estabeleci para mim um critério: sei até onde devo ir com meu trabalho. Isto é, se ele não me avilta, eu faço. Por exemplo: faço qualquer negócio para o Pasquim não morrer. A Shell quer anúncio? Eu faço anúncio da Shell pro Pasquim. Sempre fui um artista de publicidade, que só depois virou artista de imprensa e artista político. Mas acontece que eu não vivo de minha arte política, vivo de minha arte publicitária. Mesmo assim estabeleci um critério e só eu é que sei os trabalhos que já rejeitei fazer, as propostas que já tive para ganhar dinheiro nesses quinze anos...


PLAYBOY — Seu personagem Jeremias o Bom vendeu o PIS-Pasep?


ZIRALDO — Não, não vendeu. O PIS-Pasep era o cavalo-de-batalha do Medici, pô, uma coisa sórdida, igual ao Funrural — paliativos para a injustiça da distribuição de renda. Nesse tipo de engodo ninguém usará meu trabalho para ajudar a vender para o povo. Meus inimigos é que continuam insistindo nisso. Acho um saco.


PLAYBOY — Você tem inimigos?


ZIRALDO — Há pessoas que romperam comigo e outras com quem eu rompi. Mas não consigo alimentar sentimento de ódio — por ninguém.


PLAYBOY — Nem pelo Tarso de Castro?


ZIRALDO — [pausa] O Tarso é um sacana. É o sacana padrão. Amoral, não tem o menor respeito pelo próximo. É um cara extremamente vaidoso, que ligou o "foda-se", e sai da frente! Ele investiu em si mesmo e mandou o mundo à puta que o pariu! Eu tenho pavor desse tipo de gente. Mas ele tem uma personalidade tão forte que acabou liderando o Pasquim até que o Pasquim percebeu que não poderia continuar sob a liderança dele. Fez inúmeras sacanagens com as pessoas que queriam bem a ele. Um louco, não respeita ninguém. Aí eu pensei: "Esse cara precisa ser odiado". Mas não consigo ter ódio dele não...


PLAYBOY — Por quê?


ZIRALDO — Por exemplo: eu gosto demais do Antonio's, mas nunca vou lá pra não ter de encontrar o Tarso, porque ele não respeita o ódio que eu deveria sentir por ele. Ele sabe que sou incapaz de ter ódio, então fica me gozando. Mas ele fez mil sacanagens com todos nós do Pasquim.


PLAYBOY — Mas você admite que ele foi responsável pelo sucesso inicial do Pasquim?


ZIRALDO — Ele foi apenas o diretor dos dez gênios que faziam o jornal, e controlava o dinheiro... Controlava e gastava, torrava o dinheiro todo! Tarso é o profissional da fraqueza alheia, da pusilanimidade alheia. Vive em função disso e sabe explorar esse talento como ninguém. É um gênio!


PLAYBOY — Ultimamente você tem se afastado mais da prancheta de desenho para se dedicar a outras atividades, principalmente no terreno político. Aonde isso vai chegar?


ZIRALDO — Não sei, mas o que tem saído de notinha por aí, dizendo que estou sendo lançado candidato a deputado federal em Minas e no Rio pelo PMDB... De vez em quando eu considero a hipótese, mas aí fico pensando: e o meu projeto de ser um dos maiores desenhistas do mundo? Na verdade, tudo o que fiz não chega a alterar o mundo, nem o meu país. No máximo altera o destino de Caratinga... pelo menos o de Caratinga eu alterei. De repente, me aparece um cara e diz: "Ziraldo, você pode alterar a história deste país". Eu olho em volta e penso: "E não é que eu posso?" Aí é capaz de eu assumir essa loucura de ser candidato a deputado. De repente eu vejo um volume de coisas que podem justificar muito mais a minha passagem pela vida do que ter feito apenas uma grande obra gráfica, ou seja, poder alterar a história política deste país, contribuindo para a felicidade do brasileiro. A história do Brasil não é a mesma depois de Juscelino Kubitschek, é? O fato de ele ter existido mudou este país. Eu gostaria, na minha onipotência, de morrer amanhã e poder dizer: "Bom, o mundo já não é o mesmo".


PLAYBOY — Você já havia dito que todo artista é vaidoso. Qual é a medida da sua vaidade?


ZIRALDO — Eu confesso uma coisa: não faço o menor esforço consciente para estar em todas. Tudo o que tive até hoje veio a mim sem que eu tivesse mexido os pauzinhos para conseguir. Nunca fiz como o Josué Montello, que escreveu pro José Sarney pedindo que desse o nome dele a uma rua do Maranhão, porque o José Sarney já havia dado isso ao Odillo Costa, filho. "Sarney, você deu uma rua pro Odillo. Eu, como escritor maranhense, também gostaria, você sabe como é..." Eu jamais faria uma coisa dessas. Nunca fui penetra em festa nenhuma.


POR RUY CASTRO

FOTOS ANTÔNIO CARLOS RODRIGUES


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