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A NOITE

Ficção


No próximo dia 13 chega às livrarias Fogo nas Entranhas (130 págs., 18 reais, Dantes Editora), do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. PLAYBOY antecipa com exclusividade um dos contos do livro


Por PEDRO ALMODÓVAR


Adriana olhou o relógio. Uma da manhã. Não conseguia dormir. Foi ao banheiro e sem perceber começou a se maquiar. Aliás, muito mal. Não havia tido muita oportunidade para aprender a se maquiar. nem quando era jovem. A última vez que tentou havia sido um ano antes, para uma primeira comunhão. Examinou-se no espelho. Trinta e três anos, ainda era jovem, mas isso só queria dizer que tinha pela frente muitos anos de abnegação e trabalho. As anfetaminas haviam ajudado a conservar sua fina estampa; mas também haviam servido para destroçar seus nervos. Em todo caso, foi graças aos comprimidos de Bustaid que ela conseguiu agüentar a carga de trabalhar 20 horas por dia.


Deu uma olhada nas crianças. Estavam dormindo.


Que paz! E que calor! Seu marido trabalhava como porteiro numa boate. Só voltava às 4 da manhã.


Remexeu no armário. Não tinha nada para vestir. Havia um vestido com um corte ajustado, de croché, que a mãe fez para ela. Costumava usá-lo com alguma coisa por baixo, mas naquela noite botou só o vestido. Dava para ver seus peitos entre a trama do bordado.


Usou traços fortes para maquiar os olhos e a boca. E saiu de casa na ponta dos pés.


Estava esperando o elevador quando encontrou Puri. Ela também estava com vestido de festa. Adriana não recordava havê-la visto assim tão arrumada. As duas levaram um susto com a surpresa. Olharam-se, como quem se pergunta "O que estamos fazendo em plena segunda-feira, à 1 da manhã, pintadas feito monumento e esperando o elevador?"


— Que calor! — comentou Adriana. — Não estava conseguindo dormir. Vou tomar um pouco de ar fresco.


— Eu também — disse Puri, aliviada.


— Pois então me faça companhia, vamos dar uma volta juntas.


Apanharam o último ônibus e foram até a Gran Via. Os olhos delas brilhavam, febris. Naquela hora, a Gran Via era como uma feira livre. Uma não precisou explicar nada para a outra. Seus corpos as conduziam nas sombras da noite.


As calçadas estavam atopetadas de gente, na maioria vendedores ambulantes de sanduíches e bebidas, e cheias também de putas e clientes. Adriana e Puri não eram, naquela noite, as únicas forasteiras. As putas de sempre foram as primeiras a detectar que alguma coisa esquisita estava acontecendo.


— Temos muitas visitas hoje, não é mesmo? — comentava uma clássica com outra veterana.


— Essa crise, menina, vai acabar com a gente. O que a ditadura não conseguiu, essa merda de crise econômica vai conseguir.


Ao seu lado passaram outras tantas donas de casa, pedindo guerra.


— Espere ai, isso aqui não está normal. Olhe só essas duas. Ah, assim não dá. Vou acabar me irritando.


As duas clássicas aproximaram-se das visitantes, como quem quer demonstrar que aquele terreiro tinha dono.


— E aí, buscando novas experiências?


Mas as novatas não eram dessas que mordem a língua e não dizem nada. Na briga pelo mercado, afinal, seriam obrigadas a lidar com gente muito mais ordinária.


— Que te interessa? Meta-se com a sua vida, caralho!


— Ui, que moça refinada! Mas diga lá, sua vadia, como é que você veio parar tão baixo? Será que não existe mais decência nesta. cidade?


— A rua é do povo — cutucou uma das recém-chegadas.


Dois futuros clientes comentavam perto de Adriana e Puri:


— Acho que hoje é dia de desconto. A oferta aumentou muito.


— Que nada, vem com a gente que é de graça — ofereceu Adriana.


— Como é?


— Isso mesmo. A gente gosta de amor livre — confirmou Puri.


As duas vizinhas pegaram os dois homens pelo braço e foram na direção da Rua Valverde. Chegaram a um inferninho, de onde Mara, Katy, Diana e Lupe estavam saindo com vários homens. Dois empregados da limpeza pública regavam a rua. Feito uma menininha, Mara aproximou-se do jorro da mangueira, levantou o vestido, abriu as pernas e, entre gritos de gozo, preparou-se para receber o forte jorro de água na xoxota. O homem da mangueira gostou da brincadeira e fazia movimentos como se estivesse fodendo a moça com aquele jorro descomunal. As outras ficaram com inveja e imediatamente se juntaram a Mara. O empregado municipal colaborava do jeito que podia, regando umas e outras em suas bocetinhas palpitantes. Era uma cena bonita e estimulante. Aquele homem, com toda certeza, não falaria de outra coisa ao longo dos dias seguintes.


ILUSTRAÇÃO HELGA MIETHKE



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