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  • GILBERTO FREIRE | MARÇO, 1980

    Playboy Entrevista Uma conversa franca com o autor de Casa Grande & Senzala, que, aos 80 anos, tem idéias surpreendentes sobre sexo, infidelidade, política... As homenagens ao ainda rijo senhor começaram em dezembro passado e se prolongarão por todo esse ano, mas só atingirão o seu ponto máximo no dia 15 deste mês, quando o sociólogo, antropólogo, pintor — ou sobretudo escritor, como ele prefere — Gilberto de Mello Freyre completa 80 anos de idade. Desses 80 anos, vividos intensamente, amigos e inimigos tudo poderão dizer — menos que ele não os viveu sempre em evidência. Foi sempre a notoriedade que Gilberto Freyre perseguiu e saboreia até hoje — seja se adiantando à sua época na formulação de idéias ousadas, seja contestando modernismos e assumindo posições tidas como reacionárias. Crítico feroz da ditadura do Estado Novo, apoiou entusiasticamente o movimento militar de 1964 e hoje o critica. Não tem — nem nunca deu a impressão de ter — qualquer acanhamento em parecer contraditório. Filho de um juiz e professor de direito e de uma senhora da aristocracia da cana-de-açúcar em Pernambuco, Gilberto Freyre estudou nos Estados Unidos e na Europa dos 18 aos 24 anos. Seu retorno coincidiu com a revolução provocada pela Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo — e, de pronto, ele se declarou um tradicionalista e regionalista. Para exprimir essas posições, ele se permitiu requintes como o de, certa vez, de fraque e cartola, ir a uma festa transportado por um tílburi. Conta-se também — e ele desmente — que chegou a promover, no Recife dos anos 20, uma caça à raposa em moldes rigidamente britânicos. Mas as idéias que ele defendia com tanta petulância ganhariam corpo e notoriedade só em 1933, quando lançou sua obra mais importante, Casa Grande & Senzala, que já tem 21 edições no Brasil e três em Portugal, e foi traduzida para o inglês, o alemão, o francês, o russo, o italiano, o iugoslavo, o polonês e o espanhol. Desde então, além de produzir dezenas de livros e opúsculos, Gilberto Freyre tem se dedicado a colecionar lauréis — e hoje, certamente, é o brasileiro mais homenageado por universidades européias e norte-americanas. Tem, inclusive, o título de sir, conferido pela rainha Elisabeth II da Inglaterra. A glória, como costuma acontecer, tornou-o um homem vaidoso — muito vaidoso mesmo, sempre a lembrar as homenagens que obteve e a cobrar outras. Nem por isso é um homem antipático. Pelo contrário: informal, acessível, apreciador de uma boa conversa, de uma boa peixada e de vinhos e licores importados, ele recebe sem cerimônia, em seu antigo casarão no bairro de Apipucos, em Recife, gente famosa e mortais comuns. Sempre assessorado por sua mulher, dona Madalena, mais de vinte anos mais nova que ele, e vez ou outra interrompido pelos três netos que lhe deu Fernando, um de seus dois filhos, que mora numa casa vizinha. O repórter Ricardo Noblat, chefe da sucursal da revista Veja em Salvador, foi a Recife entrevistar Gilberto Freyre para PLAYBOY e descreve assim a casa do sociólogo (que ele, Gilberto, chama de "Solar de Apipucos": "Povoam-na antiquíssimos e pesados móveis de jacarandá, telas das melhores fases de Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Pancetti, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. E também uma preciosa coleção de objetos arasticos de diversos países que Gilberto já visitou. Esse magnífico acervo já foi visto e tocado por visitantes como AIdous Huxley, John dos Passos, Roberto Rosselini, Robert Kennedy, Albert Camus e Arnold Toynbee, entre outros. Foi nesse cenário, ora comodamente sentado numa cadeira de balanço, ora displicentemente deitado num marquesão, que Gilberto Freyre falou a PLAYBOY durante três dias. Gentil o tempo todo, ele serviu sucos de frutas do Nordeste e cafezinhos, mas dessa vez esqueceu um de seus hábitos mais festejados pelos amigos: não ofereceu a batida de pitanga a que atribui poderes afrodisíacos e cuja receita não ensina por dinheiro algum". PLAYBOY — Quer seus adversários queiram ou não, o senhor é uma personalidade de dimensão internacional. Em que medida isso o atinge? GILBERTO FREYRE — Isso me dá um senso muito agudo de responsabilidade. Por exemplo: você é um jornalista idôneo, representa uma revista de peso, que forma opinião no Brasil, de modo que cada pergunta sua exige de mim, dada essa minha dimensão internacional, respostas responsáveis, não levianas, não apenas para satisfazer a sua curiosidade, de modo superficial. PLAYBOY — As vantagens do sucesso são óbvias: o reconhecimento, os lauréis, os títulos. E as desvantagens? FREYRE — A desvantagem é que você fica muito exposto ao chato [risadas]. Essa é a desvantagem principal, porque o chato existe e não é só brasileiro: o chato é internacional... E você tem de se defender sem magoar aquilo que o chato bem-intencionado representa. Porque o chato por vezes é bem-intencionado. Ele não é chato porque quer ser: ele é chato porque é chato. PLAYBOY — Cite alguns chatos. FREYRE — O Oscar Niemeyer, meu amigo — que é um arquiteto genial —, é muito ignorante. É difícil você manter uma conversa interessante com ele. É que ele, como o Arraes, não sendo um homem de inteligência muito abrangente, repete muito os chavões que aprendeu. Como você sabe, um dos sucessos do comunismo marxista russo-soviético é dispensar seus adeptos do esforço de pensar: eles não precisam pensar, têm apenas de repetir slogans e chavões. Mas há pessoas que são muitíssimo mais interessantes escrevendo do que falando. Rubem Braga é assim: conversando ele é quase um chato. Já o Ariano Suassuna é o contrário. Mas há chatos que você tem de respeitar e admirar, por sua integridade... "Um chato? O Oscar Niemeyer, que é um arquiteto genial, mas é muito ignorante" PLAYBOY — Por exemplo. FREYRE — O general Castello Branco. PLAYBOY — O senhor citou também Miguel Arraes. FREYRE — O Arraes eu diria que é um misto. Ele pode se tornar não só chato como chatíssimo, quando repete aqueles chavões marxistas, louvadas chatices. Mas quando ele era ainda o Arraes cearense, um Arraes quase analfabeto, era até de convívio agradável. PLAYBOY — O senhor acha mesmo que Arraes é comunista? FREYRE — Acho, acho. Em certa época ele freqüentou muito esta casa, mas é um homem que tem agido muito sob disfarces, nunca revelando sua verdadeira atitude, suas verdadeiras idéias. Parece uma coisa sendo outra, e isso não me agrada. Agora, tem qualidades que não vou negar a ele. PLAYBOY — Voltando ainda à sua vida e sua obra: o senhor se considera sobretudo um sociólogo, um antropólogo ou um escritor? FREYRE — Principalmente escritor, porque escrever é o meu veículo, é a minha forma de expressão. Vaidosamente ou não, considero-me um escritor literário, com uma forma literária de expressão. PLAYBOY — O senhor disse certa vez que na formação de seu estilo literário devia muito a uma negrinha chamada Isabel. O que deve a ela realmente? FREYRE — Bem, Isabel foi uma dessas empregadas domésticas que acabam se tornando pessoas da família. Ela se tomou de uma simpatia especial por mim. E eu, que na época era bem menino, sentia o mesmo por ela. Tanto que já admiti que Isabel talvez tenha sido o meu primeiro amor... PLAYBOY — Qual era a diferença de idade entre vocês? FREYRE — Eu era menino e ela já era uma mocinha, pretinha, dentes muito bonitos, olhos muito bonitos... e era uma grande contadora de histórias que me empolgavam. Sabe, a grande influência que ela teve sobre mim está ligada ao fato de que custei muito a aprender a ler e escrever. Só aprendi aos oito anos. As histórias que ela me contava — lendas e mitos, a Bela Adormecida do bosque, anões e gigantes... Tudo isso contado de uma maneira que revelava nela uma artista anônima, porque sabia dar valor às palavras... Tudo isso, repito, supriu em mim a falta de leitura. Eu não sentia necessidade de aprender a ler e repelia todos os esforços para me ensinarem. De modo que foi grande a influência de Isabel sobre mim, sobre o meu estilo, porque ela me deu gosto pela oralidade, pelo escrever falado, pela palavra viva. PLAYBOY — O senhor admite que ela foi o seu primeiro amor. Um amor platônico, ou foi mais além? FREYRE — Bom, houve carícias que, interpretadas hoje, eram carícias amorosas, mas sem chegarem a uma completa iniciação ao amor físico. Vamos dizer, eram carícias circunvizinhas do ato sexual, carícias parassexuais. PLAYBOY — Até os oito anos o senhor tinha dificuldade para aprender a ler e escrever. No entanto, aos dezesseis já era um conferencista e se definia como um socialista cristão. Como chegou a isso? FREYRE — Houve a influência do colégio protestante americano, onde estudei, no Recife. O colégio dizia que não fazia propaganda religiosa, e por isso tinha como alunos os filhos das famílias católicas mais importantes de Recife... Talvez os pais se impressionassem com as inovações nos métodos de ensino. Mas nesse colégio havia, no início das aulas, uma reunião de todos os alunos, durante a qual o diretor lia versículos da Bíblia e fazia comentários sobre eles. Nesses comentários, a figura de Cristo sempre aparecia sob um aspecto que me impressionou na época: o aspecto de um renovador social. Isso me levou a uma visão do cristianismo diferente da católica, embora não anticatólica... Isso, enfim, é o que me teria conduzido ao socialismo cristão. Isso e minhas muitas leituras na época. Aos 16 anos, minha principal leitura foi Tolstói... Creio que até hoje nenhum escritor me impressionou tanto como Tolstói. Também lia muito as revistas francesas e inglesas que meu pai assinava, e me impressionei muito com uma série de artigos sobre Tolstói e sua nova forma de ser cristão, que era a de ser um cristão social. PLAYBOY — Nessa época o senhor já havia tido uma iniciação sexual? FREYRE — Escrevi sobre isso em meu livro Tempos Bons de Outros Tempos. Nele registro a primeira experiência que tive com uma mulher. Eu teria 15 anos, mais ou menos; e ela estava com uns 20. Mas, quando comparo minhas experiências sexuais com a de outros meninos da minha época, vejo que fui um menino relativamente puro. Nunca tive aventuras homossexuais na infância, sabe? PLAYBOY — E depois? FREYRE — Bem, depois eu tive, é claro. Você pode imaginar alguém como eu, interessado em tudo o que é humano... e, portanto, tive a curiosidade de ver o que era o amor não heterossexual; tive umas poucas e não satisfatórias aventuras homossexuais. Mas aí eu já tinha mais de 20 anos... "Nunca tive aventuras homossexuais na infância. Tive depois dos 20, mas foram poucas e não satisfatórias" PLAYBOY — E onde aconteceram? FREYRE — Na Europa. Mas foram experiências pálidas, não satisfatórias. Porque nenhuma delas fez de mim um homossexual. Se tivessem sido satisfatórias eu então provavelmente teria dito: a grande experiência sexual é essa! PLAYBOY — E sua primeira experiência sexual com mulher, aos 15 anos, como foi? FREYRE — É, foi muito brasileiramente, com uma empregada doméstica. Nisso eu fui muito brasileiro, porque segui a experiência de muitos brasileiros, segundo creio... PLAYBOY — Esse relacionamento durou quanto tempo? FREYRE — Um, dois anos. De início no quarto dela, lá em casa, eu pulando o muro depois, para dar a impressão de que vinha de fora quando entrava em casa. Mas depois tive encontros com ela fora de casa, quando ela já era uma espécie de mulher independente. PLAYBOY — Como era o tipo dela? FREYRE — Era uma morena de tipo bem brasileiro, de um moreno claro, delgada de corpo, mãos e pés delicados, olhos muito bonitos. De origem humilde, mas com uma aparência aristocrática, com as graças de uma quase sinhazinha, sendo entretanto uma doméstica. Lembro-me que a beleza dos pés dela me impressionava... e devo dizer que pés bonitos de mulher são uma de minhas fixações sexuais. Quando fui para os Estados Unidos e para a Europa e comecei a ver mulheres de pés grandes, sabe, isso foi um dos contrastes favoráveis ao Brasil que mais me impressionaram, o de não encontrar por lá aqueles pés bonitos, bem torneados, que são uma característica de grande parte das brasileiras. PLAYBOY — E, além de sua fixação por pés femininos, o senhor tem alguma outra? FREYRE — Eu direi que tenho uma fixação pela morenidade, embora já tenha tido experiências com louras. Quando era estudante na Universidade de Columbia, por exemplo, tive uma loura, bem lourinha, mas tão ardente quanto qualquer morena. Mas creio que a morenidade da mulher é uma de minhas fixações sexuais. Daí o meu grande entusiasmo, já velho, por Sônia Braga. PLAYBOY — Na época de sua transa com essa americanazinha loura, o senhor era bem mais avançado que ela, em termos de práticas sexuais? FREYRE — Que ela sim. Creio que meus maiores avanços viriam após meu contato com a Europa, sobretudo com a França, Inglaterra e Alemanha. PLAYBOY — Que avanços foram esses? FREYRE — Bem, várias práticas sexuais que não eram, na época, comuns, nem nos Estados Unidos. Além do coito convencional, há outras práticas que a meu ver são valiosas, inclusive valorizam o coito convencional, porque são uma espécie de aperitivo, tão saborosos quanto a entrée... PLAYBOY — Sem querer ser demasiado indiscreto: o senhor pode indicar algumas dessas práticas que considera tão valiosas? FREYRE — Não. Aconselho você a ler livros de erótica. PLAYBOY — Em Casa Grande & Senzala o senhor descreve as primeiras práticas sexuais dos filhos dos senhores de engenho. O senhor também teve um período em que foi menino de engenho. Nesse período também experimentou tudo aquilo? FREYRE — É, como todo menino de engenho eu tive uma iniciação que não teria tido na cidade. No engenho você vê, por exemplo, os animais, o touro cobrindo a vaca... e também os meninos me contavam coisas que eu não supunha existir... PLAYBOY — Que coisas? FREYRE — Por exemplo, me iniciaram no conhecimento de um orifício em bananeira, como substituto do sexo de mulher para a prática de masturbação. PLAYBOY — E experiências com animais? FREYRE — Sim, além dessa masturbação na bananeira, fui iniciado no uso de uma vaca. Experimentei o contato pecaminoso com uma vaca! [Risadas.] PLAYBOY — O sexo sempre teve uma importância muito grande em sua vida? FREYRE — Sim, sim! PLAYBOY — Sempre foi uma prática constante, ao longo dos seus 80 anos? FREYRE — O sexo sempre esteve presente em minha vida, mas nunca o sexo acanalhado, sempre o sexo com tendência a ser sublimado... PLAYBOY — O que o senhor consideraria um acanalhamento do sexo? FREYRE — Seria você tratar o sexo anedoticamente, falar de um gozo obsceno... Eu acho que o sexo é uma coisa de tal modo importante na vida do homem que deve estar sempre ligado a uma expressão artística, estética, uma expressão de beleza! PLAYBOY — Sendo um homem tão sensual, o senhor já traiu sua mulher? FREYRE — Já, mas com autorização dela, quando viajei sem ela para a África e o Oriente. Nós viajamos muito juntos, mas como dessa vez eu iria sozinho e a viagem seria bastante longa minha mulher me autorizou a ter experiências sexuais durante essa ausência de meses. Foi em 1951, 52... PLAYBOY — E essas experiências acrescentaram muita coisa ao conhecimento que o senhor tinha sobre sexo? FREYRE — Sem dúvida acrescentaram, porque foi com mulheres de tipo exótico, que me interessava conhecer do ponto de vista antropológico. Foram experiências valiosas para mim inclusive desse ponto de vista. Lembro-me de que, em Lourenço Marques [atual Maputo, capital de Moçambique], alguns amigos me ofereceram uma ceia muito amável e que lá conheci algumas mulheres muito refinadas, européias, muito louras. Mas se eu me interessasse por elas seria uma traição à minha esposa. Mas, com a autorização dela, tive experiências com mulheres pretas e mulatas na África; e com uma indiana em Bombaim. PLAYBOY — Mas então, pelo menos nesse caso, o sexo para o senhor foi muito mais um objeto de estudo do que um prazer ou uma necessidade... FREYRE — Nessas minhas experiências escolhi mulheres que me atraíam sexualmente, de modo que havia uma experiência erótica e, paralelamente, uma experiência antropológica. PLAYBOY — Quando o senhor completou 70 anos, deu a entender numa entrevista que ainda era capaz de despertar paixões em muitas Lolitas. E agora, quando está completando 80? FREYRE — Não sei, hoje eu não sei. PLAYBOY — Esses dez anos pesaram muito? FREYRE — Não. É que aos 70 anos eu tinha conhecimento de casos concretos de jovens apaixonadas por mim. Mas atualmente eu não posso apresentar um exemplo concreto. Mas gostaria... "Aos 70 anos eu ainda despertava paixões: sei de casos concretos de jovens apaixonadas por mim" PLAYBOY — Sensual e sempre liberal em questões de sexo, o que pensa o senhor do homossexualismo? FREYRE — Acho que é uma forma de amor. Havendo uma vocação homossexual, ela é tão respeitável quanto as vocações heterossexuais. PLAYBOY — E o que o senhor pensa de práticas sexuais como sexo grupal, troca de casais, em moda atualmente? FREYRE — Eu temo que essas práticas favoreçam muito o acanalhamento, mas acho que são admissíveis. O ménage à trois, por exemplo, quando os três conhecem o assunto e se toleram mutuamente, numa espécie de consórcio, é perfeitamente admissível e é até uma espécie de homenagem. PLAYBOY — O senhor poderia fazer um paralelo entre os costumes sexuais dos tempos, digamos, da casa grande e da senzala, com os de hoje, em termos de progresso ou de decadência? FREYRE — É tão delicado e perigoso falar-se em progresso como falar-se em decadência, em termos absolutos. Estou muito de acordo com o ex-presidente Geisel, quando ele insistiu em falar em democracia relativa. Creio que toda democracia é relativa, creio que toda moral social é relativa, creio também que todo bem e todo mal especificamente sociais são relativos. Em certos bens você encontra aspectos maléficos e em certos males você tem, paradoxalmente, aspectos benéficos. De modo que, na atual situação sexual, eu temo que esteja em perigo um sentimento de família que considero valioso para o equilíbrio social. Refiro-me a um sentimento de família que assegure aos filhos o direito de crescer sob os cuidados paternos e maternos. PLAYBOY — O desnudamento da mulher seria um aspecto positivo da evolução dos costumes sexuais? FREYRE — O mínimo de roupas pode ser saudavelmente higiénico num clima muito quente. Mas há também um aspecto psicológico nesse desnudamento: exibindo demais o corpo da fêmea aos olhos do macho ou o do macho aos olhos da fêmea, você poderá estar subtraindo grande parte da excitação erótica. Estive recentemente na Inglaterra com um grande especialista no assunto, o professor Sargeant, um sexólogo notável, que tem uma clínica de renome internacional onde procuram tratamento muitos jovens com problemas de impotência. O professor Sargeant, que é meu amigo, disse-me que a nudez e a chamada permissividade, esses excessos todos, estão comprometendo a saúde erótica das novas gerações ou, pelo menos, tendem a isso. Note-se que ele não é nenhum puritano, mas sim um cientista. PLAYBOY — Voltando à sua juventude, ao período — dos 18 aos 23 anos — em que o senhor viveu nos Estados Unidos e na Europa: foi lá que o senhor alicerçou sua formação de escritor, sociólogo e antropólogo, não? Por quê? O Brasil não lhe oferecia condições de estudo e pesquisa? FREYRE — Não, de modo algum! Nem o Recife, nem o Rio, nem São Paulo. Não poderia ter me acontecido nada mais favorável do que ter tido essa formação no estrangeiro. Mas não creio que eu seja fruto dessa formação. Sou fruto, principalmente, do meu talento e talvez do meu mais-que-talento. Mas esse talento e esse mais-que-talento foram completados por uma formação adequada que eu não poderia ter tido no Brasil. Eu diria que adquiri, nos Estados Unidos e na Europa, uma visão do ser humano que não teria adquirido se não tivesse saído do Brasil, se não tivesse tido os contatos que tive. Contatos sob a forma de estudos universitários e também extra-universitários, com pessoas do povo, em cafés e até em cabarés. Estudei na Universidade de Columbia, talvez na sua fase de maior esplendor, com mestres como Franz Boas, que foi meu professor de antropologia; ou como John Basset Mohan, de Direito Internacional. Mas também aprendi muito nos teatros e nos restaurantes que freqüentei em Nova York. Fiz escândalo quando, ao voltar para o Brasil, destaquei a importância da culinária como expressão das culturas nacionais. Afirmar isso naquela época foi escandaloso, porque se pensava que esse negócio de arte culinária era uma coisa inteiramente desprezível do ponto de vista científico, estético ou sociológico. PLAYBOY — Ao voltar para Recife em 1923 o senhor também provocou celeuma por outros motivos... FREYRE — Encontrei um Recife onde se valorizava muito a mulher européia, mesmo a prostituta européia, em detrimento da nativa. A minha atitude foi a de valorizar a mulher nativa, morena, e até a mulher negra. E isso teve repercussão, foi talvez uma pequena revolução nativista. PLAYBOY — Mas, além disso, o senhor também foi responsável pela disseminação de práticas sexuais até então desconhecidas no Recife. FREYRE — Bem, é certo que, quando jovem solteiro, usei muito no Recife certas camisas-de-vênus especialmente eróticas. PLAYBOY — Como eram? FREYRE — Eram umas camisas-de-vênus também muito usadas por outro recifense, bem mais velho do que eu, Odilon Nestor, que também tinha grande convivência com a Europa e a sofisticação sexual européia. Essas camisas-de-vênus tinham uma espécie de penacho na extremidade, que as tornava muito excitantes para a mulher. "Quando era jovem, usei certas camisas-de-vênus com um penacho que excitava a mulher" PLAYBOY — O senhor parece sentir satisfação em ser uma pessoa polêmica, discutida e até criticada. FREYRE — Isso me dá uma sensação de vitalidade muito agradável. Eu temo muito ser considerado um bonzinho que agrada a todo mundo, um convencional que não arrepia nenhuma convenção. Tenho muito medo de chegar a ser benquisto por toda gente ao mesmo tempo. Creio que quem tem atitudes precisa se conformar com o fato de desagradar a alguns. PLAYBOY — Isso explicaria certas afirmações suas, como, por exemplo, a de que gostaria de ter sido hippie? FREYRE — Não creio que tenha dito exatamente que gostaria de ser hippie. O que eu disse é que se eu tivesse vivido na época hippie provavelmente teria sido um hippie. PLAYBOY — Por quê? FREYRE — Porque os hippies representavam uma repulsa ao excesso de convenções, que considero prejudicial a qualquer sociedade, a qualquer cultura. É preciso que haja sempre uma repulsa a esse excesso, porque ele leva a um conformismo que pode ser fatal a essa sociedade ou a essa cultura. Creio que naqueles tempos de meu regresso ao Recife eu fui um pouco hippie. PLAYBOY — Na época desse seu regresso, 1923, já havia explodido em São Paulo a Semana de Arte Moderna, e o modernismo estava sendo debatido, polemizado. Mas parece que o senhor nunca levou muito a sério aquele movimento de renovação cultural. O senhor chegou até a espinafrá-lo em vários artigos. Por quê? FREYRE — Porque acho que, no total, a Semana de Arte Moderna representou uma introdução arbitrária, no Brasil, de modernices européias, sobretudo francesas. Sem dúvida, a cultura brasileira em geral e as artes brasileiras em particular precisavam na época de serem modernizadas, revigoradas — mas levando-se em conta a realidade regional brasileira, suas tradições características às quais se poderia adaptar inovações européias. Isso não se fez em São Paulo, mas sim no Recife, num movimento muito menos badalado, como se diria hoje, do que a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Esse movimento foi regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista, ao qual estiveram ligados artistas como Vicente do Rego Monteiro, um renovador da pintura e da escultura. PLAYBOY — Independentemente dessa questão do movimento modernista, o senhor tem uma velha briga com os paulistas, com os sociólogos e antropólogos paulistas, não? FREYRE — Dos sociólogos paulistas, o que eu considero a figura máxima é Fernando Henrique Cardoso, que é até político militante marxista, mas há pouco, num artigo, mostrou-se simpático às minhas atitudes, embora divergindo de mim. Outro marxista, mas este do Rio, o antropólogo Darci Ribeiro, um grande antropólogo, escreveu uma introdução para a edição venezuelana de meu livro Casa Grande & Senzala, que é talvez o que de melhor já se escreveu a respeito, do ponto de vista antropológico e sociológico. Agora, ambos são marxistas eminentes. Mas quando o marxista é um Octavio Ianni, que não é intelectualmente honesto, a meu ver, e um outro que já nem me lembro o nome... PLAYBOY — Florestan Fernandes? FREYRE — Florestan. Que não é desonesto mas que é um fanatizado pelo marxismo. Esses desonestos ou esses fanáticos superiores — eu respeito o Florestan Fernandes, uma cultura real, um talento autêntico, mas fanatizado enfim, eu não os considero como representantes do que há de melhor na sociologia e na antropologia paulista. Mas são os mais ruidosos e os mais badalados por nossa querida imprensa, pelos dois semanários, Veja e Isto É, e pelos jornais, como o Jornal do Brasil. A única exceção é O Estado de S. Paulo, que me parece o jornal mais eticamente orientado da imprensa brasileira... Não estou ligado a ele. O jornal com que tenho ligação é a Folha de S. Paulo, com o qual tenho prazer em colaborar. Mas aí entra um patrulheirismo ideológico, que existe, posso dar meu testemunho de que existe, não só através da deformação das minhas idéias e das minhas atitudes, como através de coisas como essa que você repetiu agora, que sou contrário aos antropólogos e sociólogos paulistas. PLAYBOY — Nossa pergunta foi sobre a briga que o senhor tem com eles. FREYRE — Eu tenho com alguns deles, mas estou em excelentes termos com os que são considerados dentro e fora do Brasil. Como Fernando Henrique Cardoso, que tem trabalhos publicados na Europa e que, dentre eles, é o mais eminente, muito mais até que o Florestan, muito mais! Cardoso, embora seja uma pessoa com grande atividade política, é o máximo entre o que se faz em antropologia e sociologia em São Paulo. PLAYBOY — O senhor se referiu à existência de uma patrulha ideológica. Como explica que isso possa acontecer exatamente na grande imprensa, que é naturalmente conservadora? FREYRE — Sim, mas você que é jornalista sabe que, dentro de um grande jornal, a direção proprietária é uma e a execução jornalística é outra. Enfim, o copydesk [o jornalista que faz o texto final] é muito importante, mais importante até do que aqueles que colhem as notícias, os repórteres. Porque eles as entregam ao copydesk e elas aí sofrem o processo de depuração, aí entra a patrulha, a chamada patrulha ideológica. Essa expressão criada por Cacá Diegues me parece feliz e corresponde a alguma coisa que existe, a uma deformação que existe: as idéias são apresentadas de um modo diferente, a fim de criar uma imagem antipática de certos indivíduos. Mas a grande arma dos patrulheiros não é essa. PLAYBOY — Qual é? FREYRE — A grande arma deles é o silêncio, uma arma que vem agindo há anos! Essa denúncia não é minha, é de alguém que certamente merece respeito por suas denúncias e que é o Nelson Rodrigues. Ninguém mais jornalista do que Nelson Rodrigues. Em vez de ter nascido na literatura ou no teatro, Nelson nasceu no jornal. De modo que ele conhece jornal por dentro e por fora e foi ele quem fez essa denúncia a respeito dos silêncios. Eu não atribuo essa patrulha ao marxismo ou ao comunismo, mas a um submarxismo e a um subcomunismo, que, um ponto a meu ver perigoso, está sobretudo a serviço do que se pode identificar como imperialismo soviético. Um imperialismo em expansão na África e no Oriente, e que naturalmente se projeta também sobre o Brasil, que é um país com uma enorme importância geopolítica. Daí, qualquer ação que você possa ligar a uma presença disfarçada, dissimulada desses soviéticos no Brasil é importante. E eu creio que essa presença está se fazendo sentir não de toda, mas de parte da patrulhagem ideológica. Não é só o meu caso. É também o de outros, mas eu tenho sido denunciado, nos maiores jornais soviéticos, como elemento ultra-reacionário... PLAYBOY — E isso significa... FREYRE — ...que sou uma presença brasileira que incomoda, do ponto de vista russo-soviético. Veja, então: essa preocupação comigo vem de lá refletida nesse silêncio a meu respeito. Você observe, por exemplo, o grande semanário que tanto admiro, a Veja. Admiro na Veja o seu noticiário, as reportagens, as entrevistas... As minhas restrições: nos últimos anos, como aliás em toda a minha vida, minha presença tem sido assinalada pela publicação de livros. Ainda neste último ano apareceram ou inéditos meus ou reedições com vários acréscimos. E foram sistematicamente, ostensivamente ignorados pela seção de literatura da Veja. Mas não é que tenham dado apenas duas ou três linhas sobre eles, não! Não deram nada, nada! Silêncio completo! E isso acontece também em Isto É, que é dirigida por um amigo meu, o Mino Carta! Aí você poderia dizer: são livros que estão fora da atualidade brasileira... Mas não! São livros que tocam em problemas vivos do Brasil, problemas de cultura associada à vida. Ora, eu não posso deixar de acreditar na existência de uma ação patrulheira contra mim, que ora age através de deformações, ora através desses estiletes que são também uma forma efetiva de enfrentar uma presença incômoda. PLAYBOY — Voltando a suas divergências com alguns sociólogos e antropólogos do Sul, teriam sido elas que provocaram a denúncia que o senhor fez, em agosto de 1977, numa palestra em Brasília, de que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência estaria sendo influenciada por ideologias estranhas a serviço de potência estrangeira? FREYRE — Exato, têm a mesma origem. Acontece que, numa sociedade paradoxal, uma Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência... bem, acontece que ela estava em crise, com um grupo indo numa direção, enquanto outro estava a serviço de alguma patrulha ideológica. Entretanto, dentro da SBPC, algumas das figuras tidas como marxistas... ligadas ao marxismo... têm se referido a mim do modo mais simpático. Como o Mário Schemberg e vários outros. Mas, na época em que fiz essa denúncia, havia uma predominância — que já deixou de haver — de elementos patrulheiros. PLAYBOY — Ao fazer tal denúncia o senhor não estaria também fazendo uma forma de patrulhamento? FREYRE — Creio que não, porque o patrulhamento obedece a um fim especificamente não cultural, e eu creio que não há por onde você me ligar a uma corrente política não cultural, nem pró-governo nem antigoverno. PLAYBOY — Mas o senhor apoiou ostensivamente o movimento militar de 1964, que foi um movimento político. FREYRE — Eu me defini a favor desse movimento sem que isso implicasse uma adesão política. Implicou uma adesão nacionalista. PLAYBOY — O senhor conspirou ou pelo menos estava a par do que se tramava em 64? FREYRE — Não estava intimamente a par, mas meu sherloquismo já captava alguma coisa do que se passava. O general Castelo Branco, então comandante do IV Exército, freqüentava muito a minha casa, mas vinha para conversar, não para conspirar. PLAYBOY — Ao assumir a presidência do governo revolucionário, Castelo Branco convidou-o para ser o ministro da Educação. Por que o senhor não aceitou? FREYRE — Porque senti que não estava havendo uma revolução, mas sim uma substituição dos quadros governamentais, e isso não me interessava. PLAYBOY — Embora não aceitando ser ministro o senhor ajudou a fazer vários, nestes últimos 16 anos, não é? Por exemplo, o senhor não ajudou na indicação do atual ministro da Educação, Eduardo Portella? FREYRE — Ajudei. PLAYBOY — Como o senhor explica o fato de que, com exceção de Jorge Amado, do senhor e talvez de uns poucos outros, os escritores brasileiros não conseguem sucesso no exterior? FREYRE — Bom, esse é um problema complexo, que se relaciona com a própria presença brasileira como conjunto, por exemplo, desde 1964. Desde então o Brasil tem, não é novidade nenhuma, uma imagem muito desfavorável no exterior — a imagem de um país militarizado. Supõem alguns meios europeus e norte-americanos que estamos sob um caudilhismo militar, o que não é inteiramente exato. PLAYBOY— Por quê? FREYRE — Porque nenhum desses presidentes militares pretendia ser um caudilho. Mas creio também que vários deles cometeram erros lamentáveis e nenhum foi o presidente ideal para o Brasil. Mesmo assim, repito o que já tenho dito: a meu ver, 1964 era inevitável, tinha de vir, diante do caos a que o Brasil chegara, diante da infiltração russo-soviética no país. De modo que as Forças Armadas prestaram um grande serviço ao Brasil, em 1964. Mas a sua presença no governo talvez tenha se prolongado demais. PLAYBOY — Ainda hoje o senhor acredita que em 1964 existia de fato a ameaça de implantação de um regime comunista no Brasil? FREYRE — Não, não creio que houvesse uma ameaça assim específica. A ameaça que havia era a do caos. Creio que o presidente Goulart, um homem pessoalmente estimável, favoreceu no entanto uma situação caótica, que a União Soviética não deixaria de aproveitar, como aproveitou em Cuba. PLAYBOY — A seu ver, quais foram as principais falhas do movimento de 1964? FREYRE — No plano social, a Revolução teve uma oportunidade única, que não foi aproveitada. E também não soube libertar-se do burocratismo, tanto que só agora nomeou um ministro da desburocratização, o Hélio Beltrão, que aliás foi meu aluno de antropologia na Universidade do Distrito Federal, um brilhante aluno meu. Também vejo com apreensão, nesse período de governos, não direi militares, mas de militares que o Brasil tem tido, a tendência de certos assessores da Presidência para estabelecer um dirigismo da cultura. "No plano social, a Revolução de 64 teve uma oportunidade única, que não aproveitou. E não soube se livrar do burocratismo" PLAYBOY — O ministro Eduardo Portella seria um deles? FREYRE — Não, ao contrário! Não posso citar os nomes desses assessores, não porque não queira ser indiscreto, mas simplesmente porque ignoro seus nomes. PLAYBOY — A política de direitos humanos dos chamados governos da Revolução não teria sido uma de suas principais falhas? FREYRE — Esse é um ponto delicado para se opinar, porque, você sabe, ainda não está bem revelado o que houve no interior do Brasil, as guerrilhas... Nem está bem revelado quem sustentava essas guerrilhas que colocaram em perigo a unidade brasileira e que obrigaram o governo a uma presença tão dura. Não está ainda bem esclarecido como foi a origem desse movimento, sua sustentação, mas sabe-se que foi grande a presença de estrangeiros nele. Esse movimento pode ter provocado sérios rasgões no respeito aos direitos humanos. Rasgões inevitáveis... PLAYBOY — Mas, o que o senhor diz da prática de torturas em presos políticos? FREYRE — A prática da tortura é sempre uma coisa abominável. PLAYBOY — Mas o senhor admite que, em determinadas circunstâncias, a tortura é pelo menos compreensível? FREYRE — Compreensível, sim; justificável, eu nunca diria que sim. PLAYBOY — Por que então o senhor nunca teve uma palavra contra essa prática de torturas? FREYRE — Não é um assunto que eu estivesse jornalisticamente obrigado a comentar mas creio que fica bem claro, em minha atitude geral, que eu não poderia ser simpatizante de torturas ou de excessos de repressão policial. PLAYBOY — Em 64 dizia-se que o Nordeste era um barril de pólvora, pelas tensões sociais que abrigava. Essa imagem continua válida? FREYRE — Não, já não é tão válida como era naquela época, em que havia, partindo de Recife, que é tão importante para todo o Nordeste, duas lideranças que favoreciam a criação do barril de pólvora: a do governador Miguel Arraes e a de Francisco Julião, entre os camponeses... PLAYBOY — Que estão de volta. FREYRE — Estão de volta mas não estão atuando como antes. Você vê a atuação de Arraes e nota que ela está bem diferente do que foi. Dizem que ele está rico e há um ditado no Rio Grande do Sul que diz: "Caudilho rico não briga". Será que esse ditado pode ser aplicado hoje ao ex-governador Arraes? É possível. E não tenho elementos para afirmar se ele hoje é mesmo um caudilho rico. Como ele é perspicaz politicamente, pode ser que sua atitude corresponda a novas circunstâncias, às quais ele julga inteligente se adaptar. E talvez se possa dizer o mesmo de Julião, que eu considero um romântico, o que o Arraes não parece ser. Mas não sei até que ponto Julião continua romântico. Ainda não estive com ele após sua volta. PLAYBOY — O senhor é mesmo o reacionário que os seus adversários dizem ser? FREYRE — Não sei. Eu me considero um anarquista construtivo. PLAYBOY — Não conservador? FREYRE — O que eu quero conservar, no Brasil? Valores brasileiros que estão encarnados principalmente nas formas populares de cultura, formas regionais, que dêem um sentido nacional ao Brasil. É, eu sou um conservador por ser um nacionalista, conservador de valores que exprimem uma nação brasileira através de uma cultura popular brasileira. Acentue-se bem que a essa cultura popular eu tenho dado uma valorização máxima, embora não deixe de valorizar também uma cultura de elite, não é? Joaquim Nabuco, que tanto valorizou o povo brasileiro, representado pelo negro escravo que ele quis que se tornasse um novo homem livre, Joaquim Nabuco, repito, foi um misto de conservador e revolucionário, pois, sendo monarquista, não quis aderir à república. PLAYBOY — O que o senhor quer conservar e o que quer revolucionar? FREYRE — A organização social, a relação entre empregados e empregadores, a crescente presença do trabalhador na vida social — tanto a presença política quanto a econômica e a cultural —, tudo isso seria objeto de uma revolução muito de acordo com os princípios gerais anárquico-construtivos. Mas esses princípios eu não poderia pensar em aplicar no momento, porque seria uma loucura o Brasil tornar-se agora anarquista-construtivo, quando pesam sobre ele dois imperialismos poderosos — o russo e o americano. Há certas defesas que não seriam possíveis no sistema anárquico-construtivo. PLAYBOY — E como seria um Brasil anarquista-construtivo? FREYRE — Com um mínimo de governo coordenador, e com o máximo de autonomia para energias diversas, econômicas, culturais, religiosas, políticas. Um pluralismo não só político, mas também social e cultural. Bertrand Russell, o grande filósofo que, com se sabe, foi um anarquista dos que eu classifico como construtivos, tem uma imagem que considero muito expressiva: a do guarda de trânsito, que não manda no trânsito, mas o coordena. O trânsito representa aí as energias que, sem o guarda, se chocariam, uma querendo se sobrepor à outra. PLAYBOY — O senhor insiste muito num modelo de democracia genuinamente brasileiro, mas, segundo o advogado Sobral Pinto, à brasileira só mesmo o peru. FREYRE — Sobral Pinto é um advogado que passa por ser um grande romântico, um grande quixote... Evidentemente ele tem qualidades. Não o conheço pessoalmente, mas sei que não é assim tão romântico e quixotesco. Ele tem agido com coragem em vários casos, mas houve uma ocasião em que eu estava sendo oprimido pelo poder econômico, representado por Augusto Frederico Schmidth, que foi o meu primeiro editor. Depois de lançar a primeira edição de Casa Grande & Senzala, ele lançou, sucessivamente, duas reedições piratas, ignorando totalmente meus direitos de autor. Então, procurei a ajuda de Sobral Pinto como advogado, o grande advogado dos oprimidos. Ele recusou, alegando ser amigo do meu esfolador. De modo que completamente romântico ele não é. PLAYBOY — Na sua opinião, como está caminhando o projeto de abertura política do governo? FREYRE — Bom, acho que o fato de ele caminhar já é alguma coisa. Desejaria que o ritmo fosse menos lento, mas o processo envolve tantos antagonismos que não se pode esperar que seja rápido. Talvez pudesse ser menos lento. PLAYBOY — O senhor crê que haja perigo de um retrocesso? FREYRE — O perigo que poderia surgir seria uma grande resistência de parte de alguns militares ao processo de abertura, mas creio que esse perigo já não existe. O que existe é a falta de bons líderes oposicionistas. A oposição está tão dividida, seus líderes estão tão uns contra os outros que isso pode estar provocando uma excessiva lentidão à abertura. "O que pode retardar a abertura é a falta de bons líderes oposicionistas" PLAYBOY — Dentre os novos partidos que estão se formando, o senhor tem simpatia por algum? FREYRE — Sinto simpatia pessoal pelo Tancredo Neves, mas não diria que sinto o mesmo pelo partido dele. Minhas maiores simpatias seriam para um partido trabalhista. PLAYBOY — A ponto de se filiar a esse partido? FREYRE — Não, não! PLAYBOY — Mas concordaria em dar uma contribuição a ele? FREYRE — Duvido. Para isso eu precisaria estar muito bem informado sobre o programa, sobre a sua atual interpretação do trabalhismo. PLAYBOY — O senhor acha que Leonel Brizola está interpretando corretamente o trabalhismo? FREYRE — Ainda não tenho opinião formada sobre isso, acho que ele ainda não se definiu claramente. PLAYBOY — O senhor é a favor de eleições diretas para governador e presidente da República? FREYRE — Para presidente da República eu duvido que a eleição deva ser direta. Como você sabe, até nos Estados Unidos essa eleição não é direta, e eu creio que o exemplo da democracia americana deve contar muito. Porque há aí um fator sociológico muito importante: numa eleição para presidente da República, o eleitor não fica muito informado sobre os candidatos... PLAYBOY — O senhor já se definiu a favor do pluralismo partidário. Acha que dentro dele haveria lugar até para o Partido Comunista? FREYRE — Acho que sim, se pudéssemos nos assegurar de que seria um partido comunista independente, brasileiro, como parece estar sendo o Partido Comunista Espanhol. PLAYBOY — O senhor se referiu à existência de uma tendência para um dirigismo cultural, por parte dos governos brasileiros. Poderia dizer como tem se manifestado esse dirigismo? FREYRE — Através de uma tendência para se considerar a cultura do mesmo modo que a economia: uma matéria para ser dirigida pelo Estado. Eu sou pela intervenção do Estado em assuntos econômicos, contra o poder econômico absorvente e a favor dos setores economicamente fracos da população, sujeitos aos abusos desse poder econômico. Mas na área cultural não acontece um relacionamento igual. Ela é uma área em que se precisa dar o máximo de criatividade e independência. PLAYBOY — Essa tendência ao dirigismo cultural tem a ver com um menor grau de liberdade democrática? FREYRE — Ah, tem sim, porque todo dirigismo é necessariamente uma restrição à criatividade. E a criatividade importa em liberdade de expressão. PLAYBOY — O senhor poderia dar exemplos concretos de males que o dirigismo cultural tem provocado? FREYRE — Na ação da censura exercida policialmente, esses males são evidentes. Por exemplo, eu prefaciei um trabalho científico, sério, social, que se intitula Dicionário do Palavrão. Trata-se do trabalho de um etimólogo, o Mário Souto Maior. Pois bem, há anos que uma censura policial, fazendo-se passar por censura cultural, vem barrando a publicação desse trabalho. É evidente que isso é uma manifestação de dirigismo que vem privando a cultura brasileira de uma expressão válida. Agora mesmo, no Rio, você assiste à peça Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho, impedida de aparecer, durante anos, vítima do dirigismo cultural. Mas eu reconheço que há uma área, a da televisão, em que é preciso haver uma intervenção do governo... PLAYBOY — Por quê? FREYRE — Porque na televisão você não tem apenas cultura, mas tem também educação. Você tem filmes que podem perturbar de modo realmente lamentável a atitude e o comportamento da mocidade, da infância. Um indivíduo que sai de casa para ir ao teatro ou ao cinema sabe que vai assistir a um determinado tipo de peça ou filme. É diferente da família que está em casa e é surpreendida por certos tipos de programas, nocivos do ponto de vista educacional. PLAYBOY — Uma das teses que o senhor certa vez defendeu e que provocou muitas reações foi a de que a alfabetização em massa da população, tendendo a criar uma educação massificada, só poderia ser desfavorável para o Brasil. O senhor deu a entender que um certo grau de analfabetismo seria até, vamos dizer, positivo. O senhor ainda defende isso? FREYRE — Ainda defendo. Creio que o Brasil, tendo ainda analfabetos, encontra-se numa situação culturalmente mais vantajosa do que, por exemplo, um país como a Suécia, onde não há analfabetos. Porque o analfabeto é um espontâneo, um intuitivo, quase um instintivo, um homem telúrico por excelência. A chamada literatura de cordel e a cerâmica popular são outros exemplos disso. Ora, tais expressões de criatividade seriam impossíveis na Suécia. Sabemos que, desde que se tornou um país completamente alfabetizado, a Suécia se mediocrizou do ponto de vista da criatividade artística, literária. PLAYBOY — O Brasil está livre disso... FREYRE — O Brasil está livre ainda, com suas grandes reservas de espontaneidade, assegurada pelo fato de haver em sua população muitos rústicos, ainda analfabetos. Nós sabemos que, com os atuais meios de comunicação — a televisão, o rádio e outros —, a importância da alfabetização tem diminuído. Você hoje pode viajar e ir exatamente aos lugares que deseja, sem precisar ler: as farmácias têm um sinal que indica farmácia, os sanitários para homens e mulheres são identificados por figuras e não letras. Quer dizer, há uma superação crescente da letra, substituída por sinais e símbolos que vão se tornando uma característica cada vez maior de uma cultura moderna. PLAYBOY — Nesse caso, o senhor recomendaria que se mantivesse analfabeta uma certa fatia da população, a fim de enriquecer o país culturalmente? FREYRE — Bem, sou favorável a que haja, pelo menos, uma certa tolerância para com esses resíduos de analfabetismo no Brasil. Não posso determinar que haja uma defesa sistemática do analfabeto. Não vamos criá-lo em redoma nem impedir que ele se alfabetize. Não, eu não iria a tanto. Mas acho que seria vantajoso tolerar o analfabeto como um valor e não como um peso morto. De modo que não sou um grande entusiasta do Mobral. PLAYBOY — Aos 80 anos, o que o senhor ainda espera da vida? FREYRE — Dado o fato de que a minha saúde é excepcionalmente boa, e também o fato de continuar havendo receptividade para o que escrevo e o que penso, sinto que ainda permaneço válido. De modo que chego aos 80 como se tivesse, digamos, 60 anos. "De fato, tenho uma receita secreta para manter a vitalidade sexual aos 80. E um certo conhaque de pitanga..." PLAYBOY — Comenta-se que inclusive sexualmente o senhor ainda é um homem válido. É verdade que tem uma receita secreta para isso? FREYRE — Olha, de fato tenho uma receita e já tive propostas muito sedutoras para revelá-la [rindo]. Trata-se da receita de um conhaque de pitanga que fabricamos aqui em casa. Mas me recuso a revelar sua fórmula. PLAYBOY — Por quê? FREYRE — Para manter o seu mistério e o seu prestígio. POR RICARDO NOBLAT FOTOS SÍLVIO FERREIRA Publicado em março de 1980, ed. 56. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • IRENE RAVACHE | ABRIL, 1983

    Playboy Entrevista Uma conversa franca com a balzaquiana madura e experimentada que levou os homens de volta à novela, com um corpo roliço, o rosto vivo, bonito, e virou tesão nacional "Eu, musa de verão? Símbolo sexual? Namorada do Brasil? Talvez, no início até que parecia. Acabei me transformando na viuvinha nacional." A novela que a Rede Globo preparou para brindar a temporada de prazer, sol e verão foi driblada pela meteorologia — choveu dois meses seguidos —, pela economia — despencamos abertamente na pior crise da nossa história — e pelos fados — no auge, morreu Jardel Filho, que encarnava o principal papel masculino. A abertura da novela começava com tomadas sensualíssimas — peles bronzeadas e molhadas, mãos esfregando com volúpia corpos sem rosto — e, no entanto, a grande cena no vídeo correu entre os capítulos, em pleno Jornal Nacional, repórter com câmera na mão e uma atriz linda e desgrenhada debulhando-se em lágrimas durante cinco minutos, chorando a morte do parceiro e provocando verdadeira catarse federal: o país reencontrou o direito de chorar. Sol de Verão foi uma história dentro de uma história, tão imprevista e forte que até seu autor, Manoel Carlos, foi ultrapassado pelos eventos. Na verdade, foi um outono. Parece que a era dos scripts rígidos, dos destinos prefixados e da onipotência está vencida. A crise econômica puxou a crise de identidade. A intérprete deste lance foi uma atriz de teatro, balzaquiana, pele alva, cheia de corpo, mais para Diane Keaton do que para Christiane Torloni. O Brasil descobriu a mulher de 30 anos, madura e experimentada. O mito da eterna juventude com tanga, bumbum arrebitado e jeito sonso foi, afinal, espanado. Novidade: a grande tesão nacional tem alma. Além disso, olhos escuros e brilhantes, ligeiramente estrábica — grandes estrelas de Hollywood foram também charmosamente estrábicas — dona de voz modulada e quente, duas covinhas no rosto antecipam um sorriso, dedos compridos de pianista abraçam os braços roliços que milhões de homens gostariam de abraçar. Irene Yolanda Ravache trouxe os homens de volta às telenovelas encarnando Raquel, a mulher forte que gostaríamos de ter, só para nós, para sempre. Casada pela segunda vez (com o jornalista Edson Pais de Mello), tem dois filhos, Hiram Eduardo, 17 anos, do primeiro casamento, e Juliano , 9 anos. Há 13 anos em São Paulo mas foi criada, estudou e estreou no Rio, fala sem sotaque, pura música. Tem nariz fino, deliciosamente adunco e que na certa tirará de Ivo Pitanguy muitas clientes. Os cabelos castanhos, cacheados com permanente já têm milhões de imitadoras. Veste-se com simplicidade, sem griffes, sempre com um toque de classe, jeans largões, camisetas ou camisas soltas, às vezes um vestido largo. Sabe tirar partido do que esconde e do que mostra, usa o corpo para irradiar sensualidade, não a exibe. Jóias, quase invisíveis de tão discretas. Perfume: Roberta di Camerino — só se sente quando se chega muito perto, então é um perigo. Palavrão usa como exclamação, ênfase, de resto é muito articulada, anos de teatro ensinaram-na a dizer frases com princípio, meio e fim o que, neste país de grunhidos, é novidade. Faz dieta, mas não se reprime, quando é o caso solta-se numa boquinha, belisca com gosto. Bebe pouco, tendendo para o doce — sherry, vinho branco gelado, Carpano. Não fuma. Lê muito e sabe das coisas, tem todas as referências mas não faz citações. Atentíssima. Dorme 8 horas regulamentares mas sustenta-se também com 3 ou 4. "O Edson fica espantado como depois de uma orgia estou sem olheiras, pronta para outra." Haja fôlego. Não amarga críticas. Cidinha Campos, recentemente, escreveu que a atriz exagerava: "quando levanta a saia quase mostra o Ego". Irene sabe o que se esconde atrás destas estocadas, sua intensidade de viver incomoda. Palhaça, inclusive no trabalho. Nas cenas de amor de Sol de Verão, ela sempre tinha uma piada engatilhada. Como esta: "Já me acostumei a fazer amor com tanta gente em volta que ontem fui a um motel só com o Jardel e perdi a vontade!" Fala muito de bruxas mas ela própria tem algo de bruxa — atrai, aproxima pessoas, descobre coisas, sempre aprontando alguma. Pura exuberância. Acompanhada por um grande impulso para a ordem: a bolsa é organizadíssima (talão de cheques, crachá da Globo, chaveiro, relógios e a carteira, só). Dona-de-casa caprichosa, sonha posar para Claudia realizando uma maravilhosa receita. No Rio, desde que começou a novela, no apartamento da prima-irmã Noely num 24.° andar no Morro da Viúva, Botafogo, belíssima vista. Em São Paulo vive com Edson e os filhos num apartamento próprio na Augusta, não muito longe da Paulista, espaçoso (eram dois, ela juntou), arrumado e convidativo. Ao visitante Irene procura perturbar apresentando Noely como "a pessoa com quem moro". Com mais intimidade apresenta a prima galhofeiramente como "minha marida". A Jardel dera o apelido de "minha loura". Em São Paulo dorme de camisola, da Amor Perfeito, no Rio, de camiseta. Nos fins de semana voa para São Paulo ou espera a vinda de Edson. Juntos, compõem interessante parceria, sem dominações. Atriz de sucesso — acaba de ganhar o Mambembe paulista pela atuação em Os Filhos do Silêncio — no entanto, ficou nervosíssima como uma estreante antes de interpretar Elis Regina no Especial da TV. Começou a novela ganhando 500 mil mensais, em fevereiro foi aumentada para 1 milhão — depois de muita luta. Está renovando o contrato, o que lhe permitirá ganhar salário enquanto descansa (ou faz teatro) durante 6 meses. Sempre lutou por seus direitos, mesmo antes de entrar para o PT (nas eleições fez boca de urna em favor de Beth Mendes; Edson votou no PMDB). Decididamente uma mulher sedutora. Vejam a prova. Alberto Dines IRENE RAVACHE — Nasci num domingo de Sweepstake, sob o signo do Grande Prêmio, Seis de Agosto, Leão, guerra acabada, 1944, filha da Paz. Não havia Zona Sul, fui criada entre o Cosme Velho, Laranjeiras, Flamengo com a praia. Não fui saideira, ao contrário. Sonhava muito, fantasia a mil. Não se pode comparar uma garota dos anos 40-50 com as de hoje. Minha melhor amiga morava em Volta Redonda, a prima-irmã Noely. Lia muito... Tesouro da Juventude, o Livro dos Porquês; lembra? Eu era muito solitária porque os meus avós paternos tinham uma casa — ainda existe na primeira parada do bondinho do Corcovado, lugar lindíssimo, muito romântico, me marcou muito. É para onde sempre sonho levar as pessoas que amo. Nos sábados e domingos ficava nesta casa sozinha, sem crianças perto, esperando a Noely. Então era uma festa. Ela era tudo o que eu não era, montava cavalo, velejava e eu — meio pata-choca. PLAYBOY — E o nome Ravache? IRENE — Francês mas viemos da Alemanha, perseguição religiosa mas nada a ver com os judeus, huguenotes. Meu avô já era Ravache, nascido aqui, foi para a Alemanha, depois voltou para cá. O pai do meu avô também era Ravache... O negócio de família é muito forte dentro de mim... Vínculo e barra... Minha mãe é viva, mora em São Paulo. Entre mãe e filha o relacionamento em geral é mais difícil. PLAYBOY — Sua mãe aceita você como atriz, a sedutora de um país inteiro? IRENE — Ela não vê a filha sedutora. Ela vê a filha, filha. É aí que a coisa pega... Gostaria muito de ter feito uma mulherzinha, ter tido uma filha, só para experimentar. E que só tive filho, dois homões, não sei como é transar com filha. Acho que na novela exercito isso muito com a Débora. Minha relação com ela em cena, por isso, é muito intensa, acho que é curiosidade... Filha única. Esperavam um Eduardo. Quando nasci, a avó paterna disse: "é uma linda menina!" A avó materna respondeu: "mas que coisa esquisita!" PLAYBOY — E o neném aprendeu a ler, leu, leu, leu, chegou a Shakespeare, fez a Julieta ou a Ofélia e tcham! Transformou-se no sonho nacional. IRENE — Nada, tem um piano antes. Coisa de mãe. Ela achava bonito ver a filha tocando piano. Mas ninguém me perguntou. Eu queria mesmo é fazer balé. Quando minha mãe me levava ao Municipal para ver o balé eu vibrava. A primeira vez que vi alguém num palco, fiquei eletrizada. Pura magia, como as coisas que eu fantasiava no jardim do meu avô. Decidi: vou ser bailarina. Não deu pé porque naquela época era mãe que botava e tirava as filhas dos cursos. Lembro numa das primeiras aulas na Barra, eu disse para mim mesma: tenho que fazer este exercício melhor do que as outras. Me empenhei tanto que não deu outra. O professor, um tal de Dmitri, russo naturalmente, de fato me notou. Mandou as outras pararem, me elogiou. Foi assim que descobri como se faz para ser notada — dando tudo. Mas aí — tragédia — minha mãe me tirou do balé e me botou na Escola Nacional de Música. E apesar de não querer estudar tinha essa coisa de ficar estudando o ano inteiro. Na hora do exame eu passava. E com as melhores notas. Tem muito de pose nisso, jogo de ilusão... Antes de sedutora acho que sou uma grande ilusão de ótica... Outra professora batia com a régua na mão dos alunos que não tocavam na posição correta. Eu a odiava e dizia: "ela nunca vai me bater com a régua!" E ela nunca me tocou. Quando errava eu ficava olhando para ela, a régua nunca baixava. Puro teatro... Fiquei no Conservatório 3 ou 4 anos, puta da vida, porque não tinha feito balé. Para mim mexer com o corpo é uma libertação, a melhor coisa. Posso mentir para você com a palavra, mas com o corpo, não. Sabe aquele negócio "o que meu corpo faz minha cabeça não pensa?" É perfeito. Às vezes como atriz, mesmo num ensaio, o meu corpo aceita ou rejeita a ação antes que eu possa executá-la verbalmente... Especialmente nas cenas de amor. Saí da Escola, uma bruta indecisão em volta de mim. Outra derrota: fui fazer curso de Secretariado na Escola Amaro Cavalcanti, ali no largo do Machado. Desastre. Só ia bem em matemática. "Fiquei no conservatório 3 ou 4 anos, puta da vida por não ter feito balé. Mexer com o corpo é a libertação" PLAYBOY — Explica esse negócio de dar-se bem com a matemática. IRENE — Um desafio. Como é que as coisas podem dar certo? É por aí que ela me seduzia. Dois e dois é quatro, mesmo? Não será uma coisa parecida com quatro? A matemática me desafia por ser contrária aos meus impulsos. Sou cheia de indagações, dúvidas, quero-e-não-quero e a matemática tem todas as respostas, exata. Fiz o madureza, o científico, cursei algumas matérias no Pedro II até que fui assistir a uma peça teatral chamada A Ratoeira, de Agatha Christie, no Teatro do Rio, na rua do Catete. Decretei: "É isso aí. Vou para cima daquele negócio..." PLAYBOY — Do ator ou da ratoeira? IRENE — Não, do palco. Se não me deixaram subir no palco para dançar, vou subir nele para fazer outra coisa. Fui parar na Fundação Brasileira de Teatro. No segundo ano comecei a fazer uma peça no Teatro Jovem, semiprofissional, Aconteceu em Irkutsk. Fui fazer um outro curso, com o Gianni Ratto. A Fernanda Montenegro, que assistiu ao meu teste, me disse no outro dia que se lembra bem. Ela disse para o Ratto: "Deus do céu, mas que coisa descontraída no palco!" PLAYBOY — E aí pegou. IRENE — Pegou. Fui para a televisão levada pelo Sérgio Brito. Mas naquela época, como todos os atores jovens, eu tinha um preconceito com a TV. Queríamos, no mínimo, Shakespeare. Nestas alturas o teu entusiasmo é empurrado por uma enorme pretensão. Estudava feito louca, levando a sério todos os cursos, lendo de tudo, coisa boa e porcaria. Havia o professor Souza Brandão que ensinava teatro grego e eu me sentia íntima dos deuses, tocada por eles. Mas eu não me deixava embalar, sonhando com a glória, metia a cara, mesmo, sabia que tinha que estudar muito. Fui fazer teleteatro vencendo todos os preconceitos contra a arte menor, porque era o Sérgio Brito, porque a moça era pretensiosa, tinha 18 aninhos. PLAYBOY — Foi cantada por alguém, tipo venha-comigo-e-suba-na-vida? IRENE — Eu pensava assim: jamais me passarão uma cantada de trabalho porque vão olhar para mim e reconhecer que eu estou aqui para fazer uma coisa muito importante. PLAYBOY — A predestinada? IRENE — Quando eu tinha uns 17 anos, liguei para a Fernanda Montenegro e perguntei a ela: "A gente sabe quando é atriz?" A Fernanda me disse: "É uma questão de escolha. Se você achar que é uma escolhida dos deuses você deve ficar". Eu era novinha, com o pressentimento íntimo que fora destinada ao Olimpo mas achei a frase muito forte para ser encarada de frente. Resolvi tirar a prova. Neste tipo de desafio a cantada de trabalho não cola. PLAYBOY — A não ser quando é emitida por outro deus. IRENE — Aí é diferente. Fiz vários programas culturais na TV-Rio, um deles não devia dar nenhum Ibope, chamava-se Brasil-Alemanha, nem bisneto de alemã assistia. Então engravidei. Quer dizer, casei antes. PLAYBOY — Como? IRENE — Virgem. PLAYBOY — Virgem OK, mas como você chegou ao casamento assim, de repente? IRENE — Ele era sargento do exército. PLAYBOY — Epa! IRENE — É militar até hoje, é a profissão dele. Aconteceu de eu ir a uma festa. Eu transava muito mal rapazes a quem competia namorar, garotos de 18, 19 ou 20 anos. De repente, esse homem me tira para dançar, quase dez anos mais velho do que eu (eu tinha 16), já vivido, aparência de experiente. Começamos a namorar. E nos casamos, eu sem saber quase nada a respeito de sentimentos. Casei três anos depois com 19, porque tinha que casar — namoro, noivado, aliança, altar. Não havia uma amiga com quem trocar confidências, comentar as bolinações. PLAYBOY — Houve muitas? IRENE — A primeira bolinação comigo foi uma que, hoje, eu teria até vergonha de classificar como tal. Roçar de mão no peito, dentro de um elevador, imagine, um peito com sutiã e uma suéter. Me senti comprometida e até mesmo uma possível puta se não me casasse. Fiquei envergonhadíssima com o gesto, imagine isso acontecer comigo, ou melhor, com a filha da minha mãe que ela imaginava tão pura. PLAYBOY — O fato de ser militar exerceu algum fascínio sobre você, afinal, houve um tempo — muito antes de 64 e, naturalmente, muito antes de 68 — em que os militares garbosos eram os heróis da moçada... IRENE — Não houve o menor fascínio pela farda. Não, mesmo. Ele era militar, mas diferente: fazia o curso de teatro lá na Fundação, era um ano mais adiantado do que eu. Quando ele parou, continuou milico e eu, atriz. Acho que a atração foi a do homem mais velho, experiente... Me separei com um bebê de ano e meio no colo, literalmente da noite para o dia... Discuti com ele até de manhã, sentei e disse para mim: "Está muito feio para mim..." Peguei numa maleta, enfiei as minhas roupas e as do bebê, comprei passagem de trem e, na manhã seguinte, estava em São Paulo. Desagradável falar disso. É muito difícil, e até incorreto, falar de uma pessoa que está longe da imprensa... Em 1967, bem, mas antes da separação, teve a fase do rebolado... PLAYBOY — Quer ser mais explícita? IRENE — Rebolado, sim [mesmo sentada, Irene faz com o corpo o movimento de rebolar], teatro de revista, Carlos Machado. Negócio seguinte: eu fazia o telejornal da TV-Rio, apresentava os textos (Mais tarde fiz a mesma coisa na TV Globo, mas como não havia ainda aquela maquininha para ler, eu, metida a grande atriz, simplesmente decorava os textos do Newton Carlos, do Fernando Leite Mendes, foi um sucesso, especialmente quando dizia uma crônica diária; porque uma coisa é dizer notícias, outra é declamar um texto — todos pensam que foi você quem escreveu). Adorei o telejornalismo. Um dia na TV-Rio mandaram entrevistar o Carlos Machado na boate Fred's. Chego com toda a parafernália, olho o palco e tenho um troço. Lá estava Lennie Dale com um bando de gente dançando bossa nova... Era a primeira vez que entrava numa boate, lembrava o ambiente do balé... Quando o Machado chegou, ao invés de começar a fazer a entrevista, não agüentei: "Quero começar a trabalhar aqui!" "Mas tu não és a moça da TV-Rio que vinha fazer a entrevista?" Eu disse: "Também. Mas quero trabalhar aqui". "O que é que vou fazer contigo? Tu não és vedete..." "Tu ao menos cantas?" Não perdi tempo: "Canto" (No Conservatório de Música fiz um cursinho de canto). Bem, ele mandou que eu voltasse no dia seguinte, voltei. Fui fazendo uma coisa aqui, outra ali, um dia liguei pro Machado e disse "não vou botar biquíni." Ele tentou me convencer: "Mas, Irene, isso aqui é show de boate, as minhas mulheres entram aqui de biquíni..." PLAYBOY — Como você era de corpo? IRENE — Otima, violão, tipo boazuda do Lalau. Mas, ao mesmo tempo, era uma atriz séria: Como é que um dia posso fazer Moliére se estou aqui de biquíni? Venci: criaram uma roupa que se eu tivesse de biquíni era até melhor para mim. Imagine um show onde entra aquele bando de mulheres espetaculares de biquíni e, de repente, vem aquela coisa muito branquinha de negro, com um decote até o umbigo e nas costas um até o começo da bunda. Foi muito pior do que enfiar um biquininho. Você sabe — sugerir é muito pior do que mostrar. Foi uma dureza. Porque no meio ainda pintou uma peça de teatro. Toma nota: eu fazia o telejornal, ia para o teatro fazer Pendura Saia com Graça Mello, depois ia para o Fred's, rebolava, dormia às duas da manhã e às 7 horas já estava com o bebê na praia do Leme apanhando o primeiro sol. Vida apertada de dinheiro, muito espremida... "Imagine um show com mulheres de biquíni e de repente entra uma branquinha com decotes até o umbigo e a bunda" PLAYBOY — Havia tempo para amor? IRENE — Quando há amor, há tempo para tudo... Um dia apareceu para assistir o show o Lalau em pessoa, Sergio Porto, o criador das certinhas. Ele queria escrever um show só para mim... Eu começava a decolar, pressentia, então veio o acidente. Meu marido bateu com o carro, quebrei a clavícula, machuquei o rosto, desisti do show do Lalau, não decolei. Quando sarei nos separamos. PLAYBOY — O Fred's foi Copacabana no auge. Ipanema era província. IRENE — No outro dia, numa externa, logo no início da novela, aproximou-se de mim uma senhora: "Olha, eu tive um cunhado que já morreu e gostava muito de você. Chamava-se Alberto Sued, irmão do Ibrahim". Fiquei contente de saber que ele gostava de mim, vi-o uma vez. Foi impressionante. Eu estava em cena, no Fred's, recitando um monólogo e, de repente, ouço alguém repetindo alto, nas primeiras mesas, as mesmas palavras que eu pronunciava. Primeiro quis descobrir de onde vinha a voz — era preciso localizar o inimigo, não? Achei, ele estava na minha frente e sabia de cor o monólogo inteirinho. Pensei: se paro, ele ganha, se mando calar a boca, posso perder o emprego. Aí, cruzei os braços [Irene se levanta e cruza os braços] e fui caminhando em direção dele, olhando firme enquanto recitava [ela caminha para a frente olhando firme, enquanto fala] e quando parei diante dele, de pé, o Sued sentado, calou-se. Voltei para o palco e continuei o show. PLAYBOY — OK, você venceu, sedutora. IRENE — Não sou sedutora, não senhor. Não é nada assim. Há muita coisa que não consigo. A minha primeira entrada para a Globo foi num golpe de força. Eu havia ficado o dia inteiro para falar com o Rubens Amaral (ele era então o diretor geral) sentada na sala de espera e, quando me levantei para fazer pipi, o homem foi embora. Desci pelo elevador amaldiçoando o xixi e encontrei o homem ao lado do carro, a porta entreaberta, conversando. Cheguei perto e metralhei. "O senhor pensa que está dirigindo uma grande empresa mas não sabe que ela tem falhas enormes!" Ele respondeu muito calmo: "Você pode dizer qual é a falha?" Respirei fundo, pensei "é agora" e disse firme: "Eu não estou nela. Sou ótima: canto, danço, interpreto, leio notícia, apresento programas e não estou nela!" Ele que já estava com metade do corpo dentro do carro, saiu, fechou a porta e disse: "Vem cá". Mandou reabrir a sala, seriíssimo. Eu muda, dentro de um taierzinho cor-de-rosa que já tinha visto dias melhores, taiêr de lua-de-mel, entrei na enorme sala e ouvi: "Muito bem, garota, repita agora tudo o que disse lá fora". Aí a audácia já havia ido pras picas. Mas repeti tudo. Ele apertou um botão e chamou o Paulo de Grammont: "Olha, Paulo, essa moça diz que faz uma porção de coisas e eu quero que você me prove isso numa semana. Se for verdade, tem um emprego, se não vou espalhar por aí que tem uma louca solta". E foi embora. Ficamos os dois, o Paulo e eu. Ele me disse: "Como é, a partir de amanhã?" Eu respondi com voz fúnebre: "A partir de amanhã". Tempos depois estou trabalhando no Machado, de madrugada tem um homem me esperando na saída: "Dona Irene, quero lhe dizer uma coisa. Uma vez eu era garoto, fiz uma viagem ao Amazonas e vi o encontro das águas, o rio se jogando no mar. A senhora é isso, o encontro das águas transformado numa pessoa. Desculpe, boa noite". Entrou no carro e foi-se. Era o Rubens Amaral. PLAYBOY — Muito bem: Irene Ravache desembarca em São Paulo com neném no colo para fazer América. IRENE — Não fui fazer América, fui para São Paulo para me separar mesmo, para criar separação física. Comecei a bater de porta em porta, mostrar currículo, esquentar cadeira em sala de espera. No início não foi nada fácil mas também não foi trágico. Foi em São Paulo que engordei 20 quilos. PLAYBOY — Penalidade para a grande sedutora? IRENE — Acho que engordei justamente porque a sedução não deu certo. A única vez que eu realmente quis conquistar alguém com consciência disso fui muito rejeitada. PLAYBOY — Quem? Quando? Onde? Como? IRENE — Quem? Não importa, um homem... Me apaixonei e ele não se apaixonou. Eu era muito bonita. Ele era feio, mais velho... Comecei a comer de nervoso, ansiedade. Uma angústia me empurrava para a mesa. Punição por uma história muito mal resolvida. Eu lido muito mal com o envolvimento amoroso. Sempre lidei. PLAYBOY — Entrega demais ou de menos? IRENE — Não reconheço muito as coisas, não vejo os limites. Culpo um pouco a profissão. Vivo num ambiente em que a gente utiliza códigos que acabam nos condicionando grande parte do dia. Fera de palco a gente precisa de outros códigos. Explico: a gente senta no colo do colega, a gente beija o colega na boca, a gente deita no colo do colega e até dorme, sem necessariamente estar envolvida com ele. Eu convivi durante algum tempo com esta pessoa, achando divertido. Eu não me sabia apaixonada. Quando descobri, não soube lidar com este fato muito simples. Não sou uma sedutora, não planejo fascinar ninguém, jamais conquistei algo do nível homem-mulher. Nunca me vi na situação tão feminina de dizer "vou pegar aquele homem só para mim". Jamais me vi maquinando seduzir um homem... "A gente senta no colo, beija na boca e até dorme com o colega sem estar envolvida com ele" PLAYBOY — Este caso ainda não está borrado... IRENE — Já tive romances que se esgotaram de um jeito ou de outro. Este não se esgotou, teve o fato de eu ter engordado 20 quilos... Eu tinha 24 anos, era 1968 e isto visto em análise é um caso de autopunição. Tipo "ah, você não quer? Então ninguém vai ter". PLAYBOY — Suicídio por excesso de carboidratos e proteínas. IRENE — O suicida e o suicídio são coisas muito fascinantes. Quando eu tinha uns 11, 12 anos, minha mãe me levou para fazer um teste vocacional e o psicólogo disse para ela — "ponha um pouco de ilusão na vida de sua filha porque, basicamente, ela sabe tudo". "Como ela sabe tudo se é apenas uma menina?" "Ela tem todas as fantasias mas não tem ilusões, inclusive a respeito da morte." De uma certa forma é a pura verdade. Eu queria ter um desafio material que me absorvesse inteiramente, sei lá, um carro esportivo, uma casa na Barra. [Irene tem um fusca 76, gelo, muito arrumado, sem arranhão.] Eu sei que isso é secundário mas conheço pessoas que se ocupam muito com isso e se iludem com fantasias de riqueza. Isso pode encher uma vida! Quando não se tem um sonhozinho bem material para realizar e ao mesmo tempo se é uma faminta como eu, a coisa pega. Engordei porque sou uma faminta, tenho fome. Sempre. Quando não engordo é porque meu apetite está sendo saciado por outro lado, em outra coisa. E, como ainda ache o ser humano a coisa mais fascinante da vida, fica um pouco difícil conter esta fome de contato. Aliada a uma vocação de invasora tenho que ficar me vigiando — "atenção, Irene, você é uma pessoa civilizada, fique quieta em teu canto". Não sou nada civilizada, sou instinto, porra! PLAYBOY — Deusa grega, predestinada. IRENE — Só o nome é grego, quer dizer paz. Imagina uma faminta e invasora vivendo numa sociedade que espera que você não seja nem uma coisa nem outra. PLAYBOY — Que impõe limites e te empurra para quebrá-los. IRENE — Isto é um negócio fudido meu: não sou hábil. Se fosse, que sucesso! Uma jovem secretária tem mais habilidade do que eu para levar as coisas. Essa é uma sociedade em que todos querem ser heróis, de canalha acho que só Fernando Pessoa e eu. Você lembra do Porteiro da Noite? Pois é, eu quase apanhei quando tive a ousadia de dizer, numa roda, que entendia perfeitamente aquele tipo de amor, adorei aquela cumplicidade, aquela parceria do sujinho — "só você sabe o que eu sei, só eu sei o que você sabe..." Eu não acho que a gente tenha que ser sempre herói ou heroína. PLAYBOY — Quando engordou, teve dor e prazer? IRENE — Só dor, nenhum prazer. PLAYBOY — Nem ao sentir as formas voluptuosas, rafaelinas?... Gordurinhas também são eróticas! IRENE — Picas. Às vezes mesmo no ato de comer eu sentia horror. Ainda a respeito da cumplicidade: você encontra uma mulher maravilhosa, aí você quer ter filhos com ela, quer construir uma casa com ela, lindo! Diz para ela: "Olhe, meu bem, como escrevo bonito!" Ela responde: "Veja, querido, como toco bem piano!" Vocês trepam bonito, vocês dançam bonito, um quadro bonitíssimo. O que eu vejo são as pessoas se amparando, se ajudando, se segurando, mas sentindo p-r-a-z-e-r, isso não vejo. Ter prazer em comprar o leite no supermercado e ao mesmo tempo compreender de forma igual o Porteiro da Noite, essa é uma cumplicidade que não existe, nunca vi. Nós não vivemos num século de prazer. Está aí toda a Igreja católica para nos tirar o prazer... PLAYBOY — Como é que você administra esta combinação de dor e prazer? IRENE — Muitas coisas você fala e não faz. O que eu digo, até lamentando, é que estou com 38 anos e chego à conclusão de que as mulheres da minha idade tiveram pouco prazer na vida. Mas, pelo amor de Deus, o prazer a que me refiro é outro, mais amplo. Não é só o orgasmo. Falam do orgasmo como uma receita — agora mistura duas doses disso e uma pitada daquilo. Acho que ninguém pode falar do meu orgasmo, não é uma coisa para se teorizar. Orgasmo é ação, impulso, não se teoriza sobre isso. Você acha que saio pela rua, assim, gritando "Ei, orgasmo, onde está você?" Desde que a gente aprende a se masturbar a gente tem orgasmo. Algumas meninas aprendem, sei lá, com 11, 12 anos, como vocês homens aprendem igualzinho um pouco depois, 13, 14 anos. A gente está cansada de saber que o que muda no orgasmo é a companhia. PLAYBOY — A companhia tem relação com a intensidade? IRENE — Com a qualidade do. Acho que as mulheres deveriam se masturbar mais. Falta liberdade de tocar no próprio corpo. Ninguém diz para a menininha recém-nascida: "Olha que xoxotinha mais engraçada!" Seria muito bom que as pessoas se masturbassem mais, sem o lado pecaminoso e sujo. Olha, quem inventou, inventou muito bem. O teu corpo, como fonte de prazer, é uma coisa incrível. Quando as pessoas começarem a sentir que não precisam da outra para sentir prazer, então, o relacionamento será até mais fácil. Sem dependência afetiva ou mesmo material, sem dependência do poder. Você terá ao seu lado alguém apenas para embelezar sua vida. PLAYBOY — Você não explicou como, finalmente, perdeu os 20 quilos a mais. IRENE — O que dá de gente, principalmente mulher, em cima de mim perguntando "Qual é o teu segredo?", como é que consegui o milagre? Quer saber de uma coisa? Eu teria feito muito sucesso com as dobrinhas e tudo. PLAYBOY — Na Renascença você seria um tesão. IRENE — Eu, gorda, fiz tudo o que as magras faziam e nem sempre as magras conseguiam competir com aquela bolachuda. Conheci homens ótimos... Eu estava muito gorda quando conheci o Edson. E casei com ele. E um dia, porque todos te cobram pela gordura que você resolveu acrescentar por tua conta e risco, fui parar num endocrinologista e, dele, num psicanalista. PLAYBOY — Mas como é que foi a chegada da imigrante com o bebê no colo no eldorado da Paulicéia — tesa, desempregada, tiritando na garoa? IRENE — Fui morar em Santo André... PLAYBOY — Esse contato no coração do operariado brasileiro, em pleno "milagre", salários arrochados, te deu a consciência política? IRENE — Fui ceguinha até uma determinada idade, depois é irreversível. Ainda no Rio havia trabalhado com o Oduvaldo Vianna Filho. Fui assistir a um teste, ele me chamou: "Você poderia chegar aqui e ler isso?" Li e fiquei com o papel. Meu começo em teatro foi no CPC, na periferia, fazendo Eles não usam blacktie. Mas, depois, andar nos trens fez muito bem para minha consciência política, aconselho aqueles trens para quem está longe da vida. O rosto das pessoas, as mãos, a marmita... Comigo foi até engraçado — como sempre — porque no começo eu ia e vinha de carro com os amigos. Um dia resolvi ir de trem e, na estação, vi que havia dado a maior mancada — distraída, eu estava de carioca, minissaia, exuberantíssima (eu ainda estava magra, aquilo ainda não havia acontecido)... Um conflito visual muito forte, quase provocação. Voltei depressa, me troquei e tudo bem. "O rosto das pessoas, as mãos, as marmitas. Andar de trem fez muito bem para minha consciência política" PLAYBOY — Morava sozinha? E o bebê? IRENE — Morava com tios. PLAYBOY — A família te deu força? IRENE — As tias abriram os braços. A família Ravache é um capítulo à parte nesta história, máfia maravilhosa. Aí, além das novelas da Excelsior, começou a pintar teatro, o primeiro papel foi A Cozinha de Arnold Wesker, dirigida por Antunes Filho. Então, comprei um carro do Jofre Soares, um Consul bege. Só que eu não sabia dirigir. Meu Deus, e agora? Tinha um amigo que havia sido piloto de provas e envenenou o Consul, foi uma loucura. PLAYBOY — Nenhum caso amoroso em Santo André? IRENE — Em Santo André não. Meu primeiro amor paulista foi com um colega que trabalhava na Excelsior, pessoa delicada, adoro pessoas delicadas. Acho que sou amiga de todos os meus namorados, ou quase todos. PLAYBOY — Uma forma de elegância. Mas você continua amiga daquele miserável que te fez engordar de paixão? IRENE — Também daquele. Só que fiquei muito... Sei lá, foi diferente, sofri. Saí de Santo André porque não dava para trabalhar em novela e teatro e, de madrugada, voltar para o subúrbio. Fui morar com uma viúva, pessoa que adoro, Madalena Geisselman. Tinha um apartamento na 9 de Julho e me ofereceu para dividir com ela. Ela é uma bruxa, aliás vivo cercada de amigas bruxas — gente de alma jovem, que sabe das coisas, que sabe ficar mexendo no grande caldeirão, fazendo coisas certas e com muita graça. PLAYBOY — Você foi sempre brincalhona? IRENE — Graças a Deus, muito palhaça. A coisa que mais amo num filho é quando ainda é muito inocente, posso contar as histórias mais malucas, ele acredita e se diverte muito. A graça é uma coisa mágica... Eu morava com a Madalena quando fui fazer Beto Rockfeller na Tupi onde eu tinha um romance com o Walter Forster. O Bráulio Pedroso, autor da novela, conta que muita gente torcia pelo casal, forçando situações. Um dia o censor foi lá e deu um esbregue: "Não tem mais cena de amor, não tem mais cena de beijo". O Bráulio sem saber por que foi apertando o censor, foi apertando, até que o homem confessou, trêmulo: "Porque, porque eu tenho ciúmes dela..." "Um dia o censor proibiu beijo e cena de amor. Depois confessou trêmulo que estava apaixonado e tinha ciúmes de mim" PLAYBOY — Foi a sua primeira dupla, o primeiro romance no vídeo? IRENE — Dois: com o irmão e com o Walter Forster. Foi encantador, cenas de amor, olho no olho. Mas o que eu acho lindo numa novela não é o envolvimento amoroso com o teu par — isso é da profissão —, é a descoberta que sempre acontece com relação a alguma pessoa do elenco. Aí conheci um jornalista muito engraçado, pessoa muito louca, muito lúdica também. Eu havia brigado com um namorado e tinha resolvido que nos próximos 200 anos não haveria mais homem em minha vida. Isto posto, vou passar alguns dias no Rio. Pego um ônibus, na viagem adormeço e, quando acordo, estou aninhada nos ombros do cavalheiro ao lado. Mil desculpas, etc. e tal, para retribuir a hospitalidade tomamos café juntos. Era estrangeiro, trabalhava com livros de arte, combinamos almoçar no Museu de Arte Moderna no Rio. Dia do almoço reparo — tenho que fazer o cabelo mas era segunda-feira, salões fechados. Descubro uma espelunca num sala-e-quarto no Leme, a mulher era péssima, em compensação sabia ler a mão. Prevê que vou me ligar a um estrangeiro mas que estará fantasiado, mexe com escrita, vai haver almoço mas ele não vai almoçar, vamos nos conhecer, mas só num segundo encontro a coisa acontecerá, então, me dará um presente simples porém espontâneo. Fui certa que o companheiro de viagem era o príncipe encantado. Neca. Esqueci. Um dia, em São Paulo, o Fernando Barbosa Lima me convida para o lançamento de um disco da Maria Bethânia na boite Vum-Vum com festa à fantasia. Fui de menina pobre, no meio se aproxima um sujeito fantasiado, forte sotaque, trabalhava numa grande revista, tinha me visto no palco. Dias mais tarde vou almoçar numa grande editora e lá está o italiano. "Puxa, que azar, tenho um outro almoço, depois nos vemos". Fui dar um tchau para ele — sou fina —, ele me leva até o elevador, depois tem um estalo, sai correndo até o escritório e me traz uma estatueta do Padre Cícero que tinha na mesa. No elevador tenho um troço: ele! Começou assim, sem jogo amoroso, destino puro... PLAYBOY — Como nas tragédias gregas... IRENE — Terminou igual. Viajou para Paris, fui me encontrar com ele. Ele devia cobrir alguma coisa no Leste europeu, fiquei, e quando voltou eu estava cozinhando batatas, bem prosaico. Olhou e disse: "Acabou. Por favor, menina, nada de cenas..." Então Irene Ravache vira alemã — apaga o fogo, orgulhosamente, arruma a trouxa, pega um táxi e manda tocar para casa de uma amiga, Helene, sogra do Carlos Augusto Strazzer. No táxi, ninguém é de ferro, desandei a chorar. O motorista, bom francês, quis saber o que se passava e com meu vocabulário estropiado contei: tive que segurá-lo porque queria voltar para dar uns sopapos no meu ex. Helene foi fantástica, na casa dela afundei num sofá adamascado azul e, olhando a Torre Eiffel, chorei, chorei, chorei. Depois lembrei que estava em Paris, era a primeira vez, e resolvi deixar para chorar em Santo André. Não voltei para São Paulo, mas para o Rio, porque antes de embarcar para a Europa aquela danada da pessoa que me fez engordar disse que a aventura não ia dar certo e que eu ia voltar de mão estendida, sem emprego. Um adendo: toda vez que eu conseguia namorado ele aparecia como quem não quer nada, enlouquecia a minha vida e sumia. Consegui um lugar num musical da Tupi do Rio e voltei gloriosamente para São Paulo. Quando acabou Beto Rockfeller virei funcionária da Tupi, experiência terrível. Eu fora à Caixa Econômica pedir um empréstimo para comprar uma casa. Paguei a entrada e quando voltava para a Tupi encontrei no corredor três atrizes, colegas minhas, também funcionárias mas há muito tempo. Foi um choque, olhei para a cara das três e percebi como é que eu ia ficar. Fui para a sala de maquiagem e comecei a chorar: "Isso não vai acontecer comigo, vou devolver o empréstimo, vou pedir demissão, vou botar para quebrar, não quero nada disso". Pela primeira vez na vida bati pé, recusei papéis, criei casos, provocava... PLAYBOY — Em outras palavras, virou vedete. IRENE — Virei vedete. Para ser demitida e acabar com o pesadelo de me converter em móveis e pertences. O banheiro das atrizes era uma coisa medonha. As mulheres que iam lá deviam ter uma ducha Corona no lugar do sexo, porque nunca vi mulher bifurcar tanto para fazer xixi, coisa horrorosa. Eu dizia: "Não faço xixi num lugar assim", e ia fazer xixi na sala da diretoria. E isso ficou de tal forma incômodo que mandaram construir um banheiro decente e limpo apenas porque uma pessoa rebelde resolveu quebrar aquela pasmaceira. Acabei ficando de 69 a 77 na Tupi. Fiz 5 novelas apenas porque recusava sempre, batia pé. E eles aceitavam. PLAYBOY — E a casa? IRENE — Comprei um sobrado na Vila Olímpia, no Brooklin. Tive um puta trabalho para tirar o inquilino de lá, por sinal delegado, mas compensou: pela primeira vez eu morava sozinha com meu filho, numa casa que era minha. PLAYBOY — Estava estabelecida, apesar do inconformismo. IRENE — É, mas quando começaram a pintar os tais "dez anos de casa" não agüentei mesmo — bati uma carta de demissão e mandei. Abri mão de indenização mas ganhei em liberdade, em audácia. Ainda fiz duas novelas, mas já não como funcionária, e uma na Bandeirantes. Em teatro fiz A Cozinha, A Ratoeira e Os Inocentes. PLAYBOY — Nenhum romance? IRENE — Coisas esquisitas: arranjo um advogado para resolver problema com o ex-marido, tenho um primeiro encontro, explico tudo, depois outro encontro, explico tudo outra vez, no terceiro o cara diz o seguinte: "Aqui tem o nome de um colega, não posso continuar cuidando do caso, estou muito envolvido..." O outro advogado tratou do meu caso normalmente e... no meio começamos a namorar. Um dia ele chegou na minha casa com uma aliança. Comunicamos às famílias, aquela coisa de sempre. No meio do caminho o Guilherme — esse era o nome dele — disse que não dava mais pé. "Por que, Guilherme?" Ele respondeu: "Olha, Irene, dou muito valor à estética..." "Eu também, mas o que é que aconteceu?" PLAYBOY — Você estava gordinha outra vez... IRENE — Eu continuava gordinha, não tinha ainda emagrecido. O cara levou 6 meses para ver o que se nota nos primeiros 10 minutos. "E, eu fiquei muito envolvido..." PLAYBOY — Chorou no táxi? IRENE — A gente sempre chora. Bobagem você fingir de firme e não derramar uma lágrima. Depois a vida te cobra aquela dureza. Um dia você precisa de um sentimento e cadê o sentimento, minha senhora?... Bem, um dia entro no Gigeto à procura do meu amigo Amandio Silva Filho e ele está na mesa com uma roda de atores e um estranho sujeito que eu não conhecia: terno azul-marinho, gravata vermelha muito certinha, meias brancas. Ele via minhas novelas. Começamos a falar, brinco com todos, dou atenção ao cidadão. E ele começa a fazer a chamada corte. Goiano, fazendeiro, não largou do meu pé. Um dia me telefonou de Goiás para dizer que viria à estréia de A Ratoeira. Não agüentei e disse a ele para não vir porque havia reatado meu noivado. Ficou desoladíssimo mas insistiu em vir para checar se eu estava noiva mesmo. Desesperada ligo para o Jornal da Tarde para pedir ajuda a três amigos recentes, jornalistas. O Edson atendeu e muito gentil. Conto a história do goiano que jamais pegara na minha mão e queria casar comigo para me levar para uma fazenda e peço a ele para fingir de namorado. Depois da estréia o cara ficou nos olhando a noite toda, enquanto eu esquecia que devia ficar namorando e o Edson me dava tapinha na perna para lembrar. Quando acabou a "representação" eu disse pro Edson: "Quando precisar, me telefona, você foi maravilhoso..." Acontece que há antecedentes: quando fui apresentada ao Edson, ele havia pedido à Nena, mãe do Ney Latorraca, para nos aproximar: "Aquela é a mulher que eu quero para mim..." Depois do episódio do namoro fictício saímos várias vezes em grupo, muito amigos e camaradas. Ficávamos papeando até tarde, jornalista é noctívago como ator. Um dia, todos já tinham debandado, o Edson disse para mim: "Estamos namorando". Ele passou, então, a me levar em casa, de táxi, dava um beijo na testa e me dizia: "Boa noite, durma bem". E eu cá comigo: "Acho que vou ao dentista para ver se estou com mau hálito". O Edson me fez passar alguns vexames, tipo fechar o olho na hora da despedida e receber beijo na bochecha ou na testa. Até que um dia me deu um beijo e exclamou: "Como você fica vesguinha!" Começamos a namorar com uma história de cama. PLAYBOY — Isto costuma acontecer. IRENE — Mas esta foi muito engraçada. É que o Edson morava com um colega, o Rubens Ewald Filho, e dormia numa cama de solteiro e o Rubinho, que é enorme, numa de casal. Propus ao Rubinho que passássemos o fim de semana na cama dele e ele na minha casa. Foram fins de semana ótimos. A grande diversão do casal — depois das outras, naturalmente — era levar para a enorme cama um monte de jornais, revistas, livros. Lia-se muito, ouvia-se muita música. O melhor programa de duas pessoas que se amam é ficar juntas. Então, fiz aquela coisa que toda mulher faz e o homem não tem coragem: "Bom, Edson, antes que algum aventureiro o faça de forma canalha, deixa eu contar o que fiz, o que não fiz, onde fiz e como fiz". Ele não deu bola: "Vai contar porque quer, para mim não faz a menor diferença". Aí reparei que havia encontrado um homem que tinha muito a ver com a letra de uma música da Barbra Streisand: "nunca pergunte como aprendi as coisas que faço". Achei ótima a atitude dele mas por via das dúvidas desfiei a biografia que, por sinal, comparada com as histórias de hoje, me faz parecer uma espécie de Madre Tereza de Calcutá. Contei. À medida em que contava eu reparava no Edson impaciente, olhando o relógio até que saiu-se com esta: "Não dá para você apressar o final, se não a gente perde a sessão das dez". Decidi: caso. Tenho que casar com esta pessoa, vai ser divertido. PLAYBOY — Foi? IRENE — Muito. Mas teve coisa séria. Meu filho Eduardo tinha então 6 anos, precisava ser consultado. É que um dia, quando ainda tinha 4, me viu triste andando na sala de um lado para o outro e perguntou por quê. Eu disse — trabalhava muito, tinha muitas contas para pagar. Ele então sentou no meu colo e me consolou: "Não fica triste, um dia você vai conhecer um homem muito bom que vai casar com você". Ora, uma criança que diz uma coisa assim precisa ser consultada, tem que ser conversada. Fizemos uma cerimônia de casamento — com padre e tudo, apesar de eu ser desquitada — para que o Eduardo tivesse a noção de um marco. Rituais são necessários. E fizemos uma espécie de pacto: esta criança tem pai e tem mãe, e agora passa a ter um grande amigo. Portanto, o que for no âmbito do pai e da mãe será decidido pelo pai e pela mãe. Foi maravilhoso, hoje tenho um rapaz de 17 anos que é o melhor amigo do Edson e que se dá muito bem com o pai e com a mãe dele. As estações não estão misturadas. Temos um casamento em estado de alerta. Há momentos em que o radar diz que corremos perigo. Mas temos uma coisa que facilita a nossa vida —são os códigos em comum, as regras de convivência. A Irene é excelente dona-de-casa, a Irene organiza muito bem uma casa, a Irene arruma a roupa do marido por prazer, por carinho, perfuma seus armários, põe as meias em ordem pela cor, camisas classificadas pelos tipos. É a Irene-Gueixa. Mas sinto que há um sinal de perigo, perto do alerta. PLAYBOY — Está faltando alguma coisa ou há coisa em excesso? IRENE — Eu queria aquele estado de paixão de volta. Queria me apaixonar novamente. Pelo Edson, inclusive. Não sei se tenho capacidade, se nós temos capacidade. Todos temos medo. Porque deslavadamente confesso que eu só queria o lado bom da paixão, o lado da chateação não quero, não. PLAYBOY — Sem preço a pagar, você acha que pode? IRENE — Às vezes tenho a fantasia de encontrar uma pessoa, um desconhecido em Veneza — a cidade que mais me marcou até hoje — e viver uma paixão maravilhosa. Um mês, duas semanas, três dias, sei lá, e depois ele iria embora para a Legião Estrangeira enfrentar os tuaregs. PLAYBOY — E depois o que aconteceria? IRENE — Como a maioria dos dramaturgos brasileiros não sei dar um final a esta história — reparou que nossas peças têm finais horrorosos? PLAYBOY — Somos é uma nação em estado de gênese, não dá para perceber onde vamos parar. Você acredita na paixão em qualquer idade, a despeito da idade? IRENE — Estamos na era da sobrevivência, sem paixão não dá. Por exemplo, eu queria que o Delfim Netto tivesse paixão para resolver nossos problemas. Paixão com solenidade e risco. PLAYBOY — Teu lado gueixa como é que combina com esta volúpia, esta inclinação para a paixão? IRENE — Como diz o Edson: "Aí é que é o negócio". Isso é que fica engraçado. As formas de amor são muitas, não se ama sempre do mesmo jeito. Há momentos em que você faz amor porque é você que está com desejo e há momentos em que vou fazer amor em você, que é uma coisa independente do teu desejo. O que dita estes momentos tão diferentes é a necessidade. Você, apenas você, está sabendo o que está sendo necessário naquele instante. Quando você vê teu companheiro muito triste e você sabe que o problema só poderá ser solucionado por ele, sozinho, não adiantam palavras de estímulo porque o nível verbal é muito limitado. Então, acho que você tem que esquentá-lo com teu corpo. Uma coisa quietinha, calada. "Quando você vê teu companheiro triste, você tem que esquentá-lo com teu corpo. Uma coisa quietinha, calada" PLAYBOY — A combinação de atriz com jornalista é uma química que dá certo? Afinal há uma reincidência... IRENE — É uma fórmula muito interessante. Realidade com fantasia. Acho que quem descobre as coisas, o criador, é o intelectual. Mas a gente o antecede com emoção, ou intuição, chegamos lá direitinho. Ele é racional e eu tenho estalos, profecias. Com ator você não conseguiria esta conjugação. São duas fantasias juntas. E você flagra a dele, você sabe como é que aquela máquina está funcionando, "essa eu já vi", sacou? Claro que isso só acontece se você é uma atriz esperta. Então não é legal. PLAYBOY — Você já mencionou várias vezes a questão de premonições, estalos, profecias. Já que é meia-noite, hora de falar em fantasmas, você teve experiências, digamos, especiais? IRENE — Muitas, desde pequena. No bonde eu ficava olhando a nuca de uma pessoa sentada em frente e, em seguida, a pessoa virava para me olhar. Até hoje certos nomes mencionados pela primeira vez despertam alguma coisa que acaba acontecendo. Não ria, levo isto muito a sério. Um dia, já estava casada com o Edson, o Juliano era pequenino, tive um troço. Vi uma revista pendurada numa banca de jornais que Khruschev havia morrido. Com foto e tudo. Dois dias depois, dois dias depois mesmo, os jornais estavam dando a notícia e aquela mesmíssima foto. A revista daquela semana não tinha dado nada, mas eu vi. Tempos depois, tive um troço, comecei a sentir tonteira, enjôo terrível, a empregada me olhou e ficou de cabelo em pé. Liguei para o Edson no jornal e pedi para que viesse correndo — coisa que faço raramente. Eu me sentia dividida — uma parte minha passava mal, outra tinha noção exata do que se passava. O Edson chegou e nos lembramos do padre que nos casou. Me recebeu tranqüilo, ouviu, não se mostrou nada surpreso, paramentou-se todo e rezou em latim, rezou muito. PLAYBOY — Exorcismo? IRENE — Puro e simples. Nunca mais vivi situação semelhante. PLAYBOY — Examinou isso em análise? Freud explica. IRENE — Não deu tempo. Comecei minha análise em 79 com o tal estado de alerta. Cheguei e disse: "Vim aqui porque tenho medo de cachorro". Nunca consegui falar sobre cachorro, jamais dei bom-dia ou tchau para o analista, entrava falando, terminava falando sozinha no elevador. Foi uma análise intensa, aprendizado muito profundo de mim mesma. Era muito caro, por isso eu achava que não devia desperdiçar coisa alguma. A análise não termina quando termina a sessão, continua. Um dia, saio do analista e me bate uma bruta saudade, vontade de ouvir a voz dele. Liguei: "Dr. Otávio, quero dizer que não estou agüentando esperar pela sexta-feira..." Evidente que meia hora depois me deu uma raiva danada: "Vou sair desta análise". Pedi que um amigo fosse ao consultório para pagar o que eu devia, enquanto ficava no carro, esperando. À noite um telefonema: "Recebi um cheque seu e segundo me foi informado você não quer mais continuar. Aceito a sua decisão mas como temos hora marcada para amanhã e, como parece, você não está muito bem dentro da decisão, se quiser, pode vir para discuti-la". Respondi: "Você não me entende. Você estudou, estudou, estudou e ainda não entendeu — quero um abraço, pombas!" Claro que fui no dia seguinte, mais controlada. Desta vez não deitei, sentei, muito defendida. Ele começou a conversar comigo: "No telefone você falou em abraço, você podia me mostrar como é esse abraço? Pegue aquela almofada do divã e mostre". Peguei a almofada e a abraçava muito enquanto falava e ele me disse: "Você percebe que esta é a minha forma de abraçar você. Cada pessoa terá uma forma de abraçar você e você vai saber que uso fazer dos abraços..." Tive mais duas sessões, me despedi de novo, desta vez alegre e feliz, sem agressão. Era daquilo mesmo que precisava... PLAYBOY — Um limite? IRENE — Ele já havia passado um pito, antes, quando disse: "Pára imediatamente de tentar me seduzir e sente-se direito". "Eu não estou tentando te seduzir", protestei. Olhei — estava enrodilhada no sofá, assim [Irene se enrodilha no sofá, tentadora]. Quando me despedi, estava muito bem: "Olha, não estou me dando alta, quero ver como é que vou sozinha, curiosa para saber o que faço com o que eu aprendi". Um ano depois telefonei para dizer que estava bem e que ele como profissional ficaria contente em saber. Adoraria estar em São Paulo para voltar a fazer análise com ele. "Meu analista me disse: pára de tentar me seduzir e senta direito. Eu estava enrodilhada no sofá" PLAYBOY — Esse jogo de sedução você também usa na relação com os filhos? IRENE — Não chamaria de sedução, é algo mais deslavado. Dengo puro, aberto. O meu filho mais velho, este acho um sedutor. Seduz a mim e a muita gente. Não que tenha um monte de namoradas, só tem uma e é muito tranqüilo com relação a ela mas as pessoas se encantam com ele, muito. PLAYBOY — E você baba... IRENE — Me babo toda. Canso de dizer como fui linda quando nasceram, como foi bom, beijo na boca, beijo no pé, pego na pata do mais velho — uma prancha —, digo que é uma graça, como você é lindo, como você está gostoso. Falo para o pequeno "Que corpo bonito você tem". Claro, as brigas, quando há briga, são na mesma intensidade, passionais. PLAYBOY — A relação com os filhos, o equilíbrio familiar não esvaziam um pouco este ímpeto passional? Afinal paixão é desequilíbrio. IRENE — Quando a vida, no seu dia-a-dia, começa a ficar com uma certa mediocridade começam a te ocorrer pensamentos assim: "Daqui até a morte vai ser tudo igual". Então alguma coisa me empurra para dizer "não!" Começo a correr atrás de uma coisa, alguma coisa tem que acontecer. Sabe, sou muito ligada à natureza, mas à natureza brava. Há dias, neste estranhíssimo verão, aconteceu uma tempestade fantástica. Parecia o final dos tempos, me deu força. Quando fiz 30 anos eu acreditava que algo de extraordinário tinha que acontecer na natureza, um eclipse, terremoto. PLAYBOY — A deusa queria sinal do Olimpo. Aconteceu? IRENE — Bulhufas. Na tempestade o bom é saber que ela está ocorrendo, tirar partido dela, porque às vezes a gente não se dá conta, bruta desperdício. PLAYBOY — Até onde Irene foi Raquel e Raquel, Irene? IRENE — Se você me perguntasse, na hora em que eu beijava o Jardel, se estava gostando dele, eu responderia estou. Mas não estava gostando do Jardel, estava gostando do Jardel-Heitor como Irene-Raquel. Se houvesse naquela hora um registro para a intensidade do gostar acho que o ponteiro ficaria bem alto. Depois? Bom, depois depende da história de cada um. Foi um prazer trabalhar com o Jardel. Ele era um parceiro louco, louco pelo jogo. Muito empenhado, dedicava-se com afinco, estudava até a hora de começar a gravação. É bonito ver um ator deste porte dedicando-se como estreante. Porque você pega uma certa meninada que está começando agora que simplesmente tem vergonha de empenhar-se. Tem vergonha de aplicar-se. São todos gênios. Com o Jardel a gente trabalhava os mínimos detalhes, muito enriquecedor. Quando você está ensaiando uma peça ou até em certas novelas o desgaste pode ser terrível. Depois de uma espoliação destas é importante um período de férias, para repor as coisas no lugar. Para mim, o reencontro com casa, marido, filhos, no momento, está oferecendo pouco como reparação para as perdas de emoção. Venho de um trabalho seguido — teve Sara em Os Filhos do Silêncio, uma experiência duplamente desgastante porque havia o jogo normal do ator com seu personagem e o jogo do ator obrigado a integrar-se no mundo do surdo-mudo, do silêncio. Antes fiz Uma Mulher de Negócios. E levei muito tempo para me libertar desta mulher... Custei a admitir a hipótese de uma mulher matar o filho. Levou tempo para que eu aceitasse essa realidade. Hoje penso assim: quantas mulheres matam os filhos apesar de estarem vivendo com eles? Através de um processo muito racional consegui admitir a mãe que mata o filho. Se depois de Uma Mulher de Negócios tivesse tirado férias para expurgar tudo o que vivi na peça, férias como entendo, talvez estivesse melhor. De repente, pego um papel na novela que mexe comigo. Tem que mexer, imagine uma mulher da minha idade, num contexto onde se discute o casamento, relação com filhos, é muito forte. Demais. PLAYBOY — Mexe também com os espectadores. Você recebeu retorno? IRENE — Das mulheres. Tenho sido muito procurada pelas raquéis e pelas anti-raquéis. Cartas aos montes de filhos adolescentes ou jovens que gostariam de ter mães como Raquel. Respondo a todas, pessoalmente. PLAYBOY — E os homens? IRENE — Na TV Globo, outro dia, alguém disse: "Olha, Irene, Sol de Verão marca o retorno do telespectador masculino na telenovela". PLAYBOY — Há pouco você fazia uma cena muito excitante. Raquel beijava Heitor nas costas, no ombro. A cena foi um tesão nacional. Aquilo é técnica ou emoção? IRENE — Tem o lado sensorial aceso mas só ele não dá o barato. E tem o lado técnico onde viver o sensorial é um barato. O fascínio da profissão é que todo ser humano sofre, se apaixona, vibra mas conosco acontece alguma coisa além disso — nós reinventamos isso dentro de nós. Se você tiver pudores com você mesma o resultado em cena será péssimo. Eu e o Jardel fizemos uma cena muito sensual em que eu abria os botões da camisa dele. Há uma cumplicidade nisso. Como você se metesse num avião e o avião chacoalhasse numa tempestade, depois, em terra, você olha para o companheiro de viagem e sente que compartilharam alguma coisa juntos. Uma emoção muito forte ligou vocês, não continuou, mas existiu. Teatro é isso. "O fascínio da profissão é que o ser humano sofre, se apaixona, vibra. Mas nós reinventamos isso dentro de nós" PLAYBOY — E a relação com a Debora Bloch? IRENE — Foi a que mais me mobilizou. Ela foi a filha que não tive. Acho que sou a mãe que ela precisava. Ela é a Irene que fui aos 19 anos. De todos, foi o relacionamento que mais mexeu comigo. A minha vida fora da novela com a Debora é das mais ricas e estimulantes. PLAYBOY — Você já se deu conta de que é a mulher mais desejada do Brasil hoje? IRENE — Não sou eu, a desejada é resultado do meu trabalho no vídeo. Estou sentada aqui em frente a você — cara lavada, mais para redondinha, você acha honestamente que posso ser o símbolo de alguma coisa ligada a sensualidade? PLAYBOY — A era ravacheana pode ser isso. Quem sabe mudou o padrão? O país em crise sonha com uma mulher madura, firme, roliça, voz de veludo e levemente estrábica... IRENE — Estrábica só quando beijo... Não sinto isso, mas algumas pessoas me dizem que Raquel mexeu com as fantasias eróticas e as necessidades emotivas de muito homem. Mas isso é obra da novela das oito... Ou um complô desta cidade. O meu corpo, para mim, é outra coisa. Sou muito fotogênica, sei disso. Mas conheço os pneuzinhos que tenho em algumas partes do corpo. Não sou decididamente a namoradinha do Brasil. PLAYBOY — Mas pode ser a amante do Brasil... IRENE — Sei que gostaria muito que alguém me convidasse para dançar. Às vezes acho que só mulher acha isso gostoso, homem faz, mas não acha. PLAYBOY — Este é o estereótipo do homem, injusto, aliás. Homem não é brutamontes. IRENE — Acho que homem se desapaixona mais depressa do que a mulher. PLAYBOY — Assim como a sociedade estabeleceu papel passivo para a mulher, designou o homem para a missão providencial — ser ativo, fazedor de coisas. No dia seguinte a uma orgia no motel alguém precisa chamar o garçom, ver a conta, tirar o carro da garagem. IRENE — Adoro motéis, vou muito com o Edson, uma farra! Mas ele quer levar escova de dentes, homem é diferente. Não sou habilidosa com eles, apesar de que eu esteja sendo chamada o tempo todo de sedutora. Convivo melhor com mulher. Nunca tive problemas de dizer para uma mulher — você é linda! Não tenho complexo de botar mulher no colo, beijar, cheirar. Uma vez, na mesma peça, eu beijava um ator e uma atriz. Curti mais o beijo na mulher, Lilian Lemmertz. Muito mais gostosa, mais macia. Acho impossível olhar para Debora e não cair morta, fulminada. E linda, saborosa, uma maçã. Mesmo com aquela agressividade que, para mim, é forma de doçura. "Não tenho complexo de botar mulher no colo, beijar, cheirar. Numa peça curti muito um beijo em Lilian Lemmertz" PLAYBOY — No programa em homenagem a Elis Regina você — que a encontrou apenas uma vez — a encarnou de tal forma que parecia terem sido amigas. Aquela forma de rir mostrando as gengivas foi um achado. Trabalho de espelho? IRENE — Nunca fui para frente de um espelho me observar. Esta é uma observação de fora para dentro, elaborada de dentro para dentro e, depois, jogada de dentro para fora. Se o problema fosse ter apenas emoção, experimenta pôr todo mundo que tem emoção no palco — não há espetáculo. Aquela garotada que está procurando uma linguagem nova no teatro, na música e no jornalismo ainda não percebeu que antes de jogar fora alguma coisa é preciso usar muito o que a gente tem. Vi todos os tapes da Elis, trabalhei a Elis dentro de mim. PLAYBOY — No mesmo programa você disse — frase dela — que palco é como cama. IRENE — Palco (ou estúdio) é lugar sagrado — a gente só divide com quem tem muito a ver conosco. Cama sobretudo. Paixão também é coisa sagrada. PLAYBOY — E as paixões que você está despertando por aí — aprendeu a lidar com elas? Tem meio Brasil sonhando com você, esperando o dia em que você desabotoe apaixonadamente suas camisas como aquela cena da novela. IRENE — Sou ligeiramente estrábica, barriga com estria, peitos enormes, bunda grande. Se a blusa de lycra não serve para mim, problema da blusa de lycra. A grande virada que pode estar acontecendo hoje no Brasil, e da qual Sol de Verão pode ter sido até instrumento, é que os padrões de beleza, juventude e mesmo de afeto mudaram. Ser jovem não tem mais nada a ver com idade, ao contrário. Muitos jovens envelheceram. O brasileiro se prepara muito mal para a velhice, com horror até. Acham velhice sinônimo de decrepitude, coisa estragada. Nada disso! Daqui para frente vou ficar cada vez melhor... PLAYBOY — Pobre Brasil, não güenta! IRENE — Güenta sim. Se tem gente sonhando que vou desabotoar sua camisa numa cena de amor deve haver gente com paixão suficiente para saber desabotoar a minha — ou o collant da sua Raquel... PLAYBOY — E a vida sem Jardel? IRENE — Recebi muitos pêsames como se fosse a própria viúva. A última cena que fizemos juntos, na realidade, foi filmada separadamente. Quando vi a montagem, Jardel parecia outra pessoa, cara esquisita. Engraçado quando eu imaginava o fim da novela, via a Holanda, mas Jardel não estava lá... Acho que só agora começo a entender o Jardel, a minha loura maluca. Aquela vitalidade era procura, busca, pura angústia. E a ânsia em mim, com a morte dele, encontrou muitas respostas, muitas mesmo. Se antes eu estava em dúvida se devia montar uma peça no Rio depois da novela, agora estou decidida, vou descansar. Vou reencontrar meu tempo, sabe o que é isso? Preciso redescobrir meu olfato, meu tato, minha sensibilidade. Na pressa não dá pé, não é, Jardel?... Na correria, o amor passa ao nosso lado e não conseguimos distingui-lo, apalpá-lo. Vou reaprender a respirar... Também decretei — não quero ter coisas. Para que acumular? Com este monte de bagulho as decisões ficam difíceis, as coisas começam a te cobrar. Chorei despudoradamente diante do Brasil no Jornal Nacional no dia em que Jardel morreu porque havia compreendido naquele instante um montão de coisas. E o Jardel não estava mais ali para ouvir. Não vou deixar que isso aconteça outra vez. POR ALBERTO DINES FOTOS FERNANDO SEIXAS Publicado em abril de 1983, ed. 93. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • MARIANA KUPFER | ABRIL, 2003

    A garota que trocou a fama de patricinha pela carreira de cantora e apresentadora de rádio diz que gosta da coisa, é safada e boca-suja, mas não transa na primeira noite POR MARCO ANTÔNIO LOPES FOTO PRISCILA PRADE Se tivesse que montar um currículo (não vai mais precisar, já tem trabalho fixo), Mariana Kupfer iria perder um bom tempo procurando se lembrar de tudo. "Já fui vendedora, relações públicas, professora de inglês, modelo, repórter, apresentadora de TV, produtora de moda, atriz..." Hoje, aos 28 anos, ela não muda mais de emprego. Apresenta o Pânico, programa humorístico da rádio Jovem Pan FM, em São Paulo, no qual trabalha com oito caras. "Adoro falar besteira. Tomo até cantadas no ar." Você deve se lembrar dela da segunda edição da Casa dos Artistas, do SBT. Não ganhou o prêmio, mas levou fama. Discutiu com a socialite esquisitona Carola Scarpa, quase saiu no tapa com o rapper Xis (que a chamou de patricinha e racista), tascou um selinho na amiga Syang e viu Silvio Santos anunciar ao vivo que o namoro dela tinha terminado. O namorado ficou com ciúmes de outro participante, Gustavo, um dos gêmeos modelo, e deu entrevista dizendo que não queria mais nada com Mariana. "E nem rolou nada", garante. Ela não reclama. Depois do programa, Mariana teve uma música tocando em rádio, lançou um CD de "pop romântico" e virou figura infalível de colunas sociais (sua irmã, Karen, é colunista do jornal Diário de S. Paulo), festas e revistas de famosos, fora os programas de TV. "Não ligo e não escondo que gosto dessas coisas", afirma. Grana mesmo ainda não entrou. Mariana mora sozinha num belo e amplo apartamento no bairro chique de Higienópolis, em São Paulo, que herdou dos pais. Foi lá que recebeu o editor Marco Antônio Lopes para a entrevista. Ela é bem bonita (usou um decotão), charmosa e cheirosíssima. Fala pelos cotovelos, é debochada, engraçada. "Sou assim mesmo. Falo o que der na telha." 1. Você adora se ver em coluna social? Não... Não mesmo... Você tá falando por causa daquela polêmica do selinho com a Syang? [Ela beijou a loura na Casa dos Artistas 2.] Criaram a maior celeuma. Mas nada a ver. Cara, se eu fosse homossexual, qual seria o problema? Falaria na boa. Mas o caso é justo o contrário. Eu gosto de homem e gosto muuuuuuito. Eu sou uma safada! Eu gosto da coisa, entendeu? 2. É que você sai direto em coluna, está em todas as festas, eventos... Saí na CARAS outro dia por causa do meu disco. Prefiro estar nas revistas por causa do meu trabalho. Agora, adoro a CARAS. Não vou dizer que não tenho essa necessidade. 3. Você é vaidosa até que ponto? Malho quando dá. O que compensa é ser vegetariana. Tudo na minha casa é light, até o sal. Tomo litros e litros de água. Em casa nem tem chocolate, porque se tiver eu como. Tenho tendência a engordar. Mas não sou neurótica, de medir as calorias. Não sou escrava de moda. Tô cagando se tá na moda bermuda rosa. E não gasto mil reais numa roupa, só se valer muito a pena. 4. Você sempre foi de querer chamar a atenção? Queria mesmo ser centro das atenções quando criança. Se tinha 30 amigos dos meus pais em casa, eu subia em cima da mesa e começava a imitar a Madonna. E eu era meio atirada. Meu pai tocava violão e eu, piano. Era muito boa aluna, nerd, mas muito bagunceira. Sempre aprontava, querendo aparecer. Sempre fui assim. 5. E hoje? Para ficar bonita e gostosa, por exemplo, o que você faz? Mostro as pernas. Só não dá pra estar com este peitão [aperta o decote com as mãos] e usar uma coisa curta. Se eu tô de peitão, uso jeans. Gosto de salto, de ficar gigante. Aproveito o que tenho de bom, tipo a boca, que as pessoas comentam muito. E os olhos [castanhos-escuros] também... Quando eu tô bem com meu corpo, magrinha, me acho muito sexy. 6. Quando chamam você de patricinha, você se irrita ou tudo bem? Se patricinha for uma guerreira, que luta pelos sonhos e tal, que trabalha diariamente, que grava CD independente, então sou patricinha. Não tenho vergonha. Sou cheirosa, sou bonita... [mostra uma tatuagem na nuca]. E não sou tímida. Se te encontrar na semana que vem, vou te abraçar, te beijar, é a minha natureza. 7. Você pôs silicone. Ficou feliz? Pus silicone em 2001. Feliz, sim. Se a mulher quiser pôr, tudo bem. Coloquei 190 [mililitros], mas eu já tinha peito grande. Colocaria até uma prótese maior tranqüilamente. mas não precisou. 8. Mulher tem muita inveja de outra com silicone? Percebo logo, porque me dá dor de cabeça quando sinto que tem gente invejando... Às vezes, eu vou num lugar que tem fila e rola de o cara liberar pra mim. Aí vejo uma mulher falando mal de mim. Não digo nada. Engulo sapo. Depois que eu saí da Casa dos Artistas, rolam essas coisas... 9. Como foi o convite para você participar da Casa dos Artistas? O diretor de elenco do SBT [Fernando Rancoleta] já passou por outras emissoras, como a Record. Lá, ele tinha me testado para algumas novelas. Aí assinei o contrato, três meses antes de o programa começar. Eu só imaginava aquela clausura, filmada o tempo todo. Tive pesadelos à noite... 10. Antes da Casa, você fez até terapia. Por quê? Tive de aprender a ser mais tolerante. E também a lidar com a instabilidade de humor das pessoas. Só por isso... E também porque ia ficar trancada um tempão, 24 horas filmada e tal... 11. Com quem você se deu bem? Com a Joana [Prado] eu falo direto, a Suzana [Alves] também... A Syang, o Rafael [Vanucci]... Todos viraram amigos. Agora, não me prendo ao que aconteceu de ruim. Bola pra frente. Teve o lance da Carola [Scarpa, com quem ela discutiu], do Xis [o rapper acusou Mariana de ser racista]... Posso ter todos os defeitos, e não são poucos, mas não sou preconceituosa. Como eu, de origem judaica, posso ter preconceito? O Xis levantou essa de "Periferia contra burguesia"... Ridículo. 12. Na rua ainda comentam sobre a Casa dos Artistas com você? Às vezes, sim. Vou à farmácia aqui no bairro, todo mundo me conhece pelo nome, vou à locadora, mesma coisa. Tem lugares que eu entro e ouço o pessoal cochichando: olha aí a Mariana Kupfer. Mas não fico tentando medir popularidade, nada disso. Tenho fã-clube, que às vezes me segue. 13. Como foi quando você ficou sabendo, pelo Silvio Santos, que seu namorado queria terminar? Surpresa desagradável, sofri muito. Mas a gente é muito amigo hoje. Ele surtou de ciúmes do Gustavo. Esse homem que terminou o namoro comigo durante a Casa foi um dos caras da minha vida. Teve um outro com quem eu morei dos 19 aos 21 anos. Amei muito, mas hoje ele tá casado. Cada relação que eu vivi foi especial, intensa. 14. Lembra do primeiro namorado na vida? Eu tinha 15 anos, ele, 17. Hoje gosto de homem mais velho. Não sei por que... Já me relacionei com um de 50 anos. Foi um banqueiro, que eu amei. Ele me deu maturidade, e eu dei vida pra ele. Mas, pra pagar com a língua, só tô saindo com moleque [risos]. 15. E a primeira vez, como foi? A gente já namorava havia um tempão. Foi na casa dele. E foi com amor, como eu tinha visto nos filmes, como minha mãe tinha explicado. Doeu... [ri]. Depois, eu gostei muito da coisa e não consegui viver sem! [risos]. Minha pele muda, meu humor muda. Preciso... "A primeira vez foi especial, com amor. Depois, eu gostei muito da coisa e não consegui viver sem. Minha pele muda, o humor muda... 16. Você é de transar na mesma noite que conhece um cara? Não. Preciso de flores, estar junto um tempo, quero day after maravilhoso. A coisa que mais me deixa satisfeita é o cara muito carinhoso. Por isso não vou na primeira noite. Não tem clima. Como trepar com um cara que é um Deus, com um pau gigante, se você não admira o cara? Ai, nossa, sou muito boca suja... [ri muito]. Cara que você gosta é quando você muda de posição várias vezes, beija muito na boca, goza várias vezes, dorme abraçadinha. No dia seguinte, gosto que o cara ligue, tipo 10 da manhã, que diga que tá de pau duro pensando em mim, que quer ficar comigo outra vez. 17. Jura que você nunca transou na primeira noite? Nunca... Já dei uns beijos. Mas do mesmo jeito que eu sou fogosa, que eu gosto, provoco, sou muito Poliana, muito Branca de Neve mesmo. Na primeira noite, não dá. Não sei se o cara é cheiroso, do que ele gosta, como ele se comporta, se ele beija, se é cavalheiro. Não gosto do risco. Sou bem tradicional. Embora goste muito da coisa, nunca chamei urna terceira pessoa pra cama. Já fui à sex shop, mas sou superconvencional. Nunca transei em lugar inusitado. Na praia, nunca transei. Só em alto-mar, no barco. 18. Que homem a deixa louca? Cheiroso, dentes bonitos... Ah, vou contar a melhor cantada da minha vida. Eu estava num restaurante. Tinha uma vela na mesa. O cara levantou da mesa dele, pegou a vela da minha, deixou um bilhete: "Você trouxe a luz..." Guardo até hoje o bilhete. 19. Você tem namorado hoje? Estou só, de verdade. Ah, sim. Tô a fim de alguém. Queria muito ficar com ele, mas... Ele nem tá aí comigo. 20. Nunca te deu bola? É... [Pega o telefone. Liga pra esse cara no viva voz.] Deixa eu perguntar pra ele, né? Oi! [fala ao telefone com o cara]. Tô aqui com o Marco, da PLAYBOY. Ele me perguntou se eu tô apaixonada. Disse que sim, por você... Responde pra ele! [risos]. Ih, o cara ficou mudo... Então... [o cara enfim responde: "Não vou falar isso pra você agora, Mariana. Mas na verdade é você, Mariana, quem não me dá bola!"...] Mentira! [Olha pro repórter. Depois volta ao telefone.] Quero saber. Por que você não me dá bola? [Segundos depois, o cara diz: "Depois a gente conversa!"] Ih, desligou! [risos]. Ah, mas eu ainda dou sorte com ele. Depois te conto, tá? PRODUÇÃO LUANA PRADE ASSISTENTE CLÁUDIA TAMBELINI MAQUIAGEM E CABELO JÚNIOR MENDES Publicado em abril de 2003, ed. 333. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • GABRIELA DUARTE

    Mulheres Que Amamos Com saudades de ver na telinha a beleza desta gata que interpretou a meiga Maria Eduarda na novela Por Amor? Ela vai saciar sua vontade nos telões de todo o Brasil a partir de outubro, no filme O Vestido, no qual interpreta cenas tórridas como Bárbara, uma atriz contratada para seduzir um homem casado. Completando 28 anos este mês, ela se revela... em ótima fase! FOTOS PRISCILA PRADE O que achou de fazer essas fotos para a gente? Adorei! Foi meio que um presente de aniversário. Fez um bem pra vaidade... Por falar nisso, o que mudaria em seu corpo? Não vou negar que gostaria de ter seios um pouco maiores... Mas vou resistir bravamente ao silicone! [Risos.] Você tem algo em comum com Bárbara, sua personagem no filme O Vestido? Ela é muito aventureira e sabia que não podia se apaixonar. Não sou assim. Quando gosto, quero me entregar totalmente. O filme tem cenas de sexo e nudez protagonizadas por você. Como foi fazer as cenas? Elas faziam parte da personagem, que é muito sensual, e foram simples e bonitas. Não tenho nada contra a nudez, não. Então, para você posar nua... [Pensativa] Teria que ser um grande personagem. Se eu pudesse passar esse personagem em um ensaio fotográfico, quem sabe... COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO MAINA HELENA FALAVIGNA PRODUÇÃO SUSANNE SASSAKI CABELO E MAQUIAGEM WILSON ELIODORIO ASSISTENTE CLÔ RIBEIRO Publicado em abril de 2002, ed. 321. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • UMA CONFISSÃO SINCERA

    Ficção Ela queria conhecer em detalhes a vida sexual de seu futuro genro. Tinha que conferir se ele poderia ser um bom amante para sua filha tão inocente e pura Por A.MCK.H.* Ao regressar a The Larches, após o baile de noivado de sua amiga Georgina, Victorina sentia-se fatigada. A dança, o prazer de desfilar pela sociedade de braços dados com o noivo, algumas taças de champanhe, todos esses fatores combinaram-se para exauri-la. Embora já passasse de meia-noite, a sra. Hapgood os esperava na sala, sozinha, pois havia muito dispensara os criados. Sobre a mesinha, ela pousara uma bandeja com sanduíches frios cobertos com uma toalha fina de linho, para o caso de o jovem casal desejar comer antes de se recolher. Victorina depositou um beijo de boa-noite na face da mãe, declarou que aquela fora uma noitada magnífica e subiu para seus aposentos. Hedley resolveu ficar para fazer um lanche. — Neste caso ficarei para lhe fazer companhia — ofereceu-se logo a sra. Hapgood, como uma perfeita anfitriã. — A senhora deve estar cansada, não quero que se sacrifique por mim — Hedley objetou. — Não é sacrifício nenhum. Além disso, temos vários assuntos de certa gravidade para discutir. Um tanto apreensivo, Hedley acomodou-se no sofá, enquanto a futura sogra lhe preparava um pratinho de sanduíches. — Se preferir uma xícara de chá, posso providenciar — ela declarou, trazendo uma garrafa de conhaque e um cálice de cristal. — Não é necessário. Um pouco de conhaque será perfeito. A sra. Hapgood serviu-lhe a bebida e, durante cerca de vinte minutos, conversaram sobre a festa. Hedley descreveu-lhe de forma pormenorizada os trajes das damas presentes, sem esquecer de informar-lhe quem dançara com quem, além das últimas novidades sobre a vida pessoal dos convidados, comentadas com discrição nas diversas rodinhas. Enquanto isso, a sra. Hapgood mantinha seu cálice sempre cheio de conhaque, e Hedley perdeu a conta de quanto já bebera naquela noite. Por fim, quando a sra. Hapgood observou que já havia embebedado o futuro genro, desviou o assunto para o tema que realmente a interessava. Com muito tato e maneiras delicadas, em breve lhe indagava sobre seus predicados para tornar-se um marido vigoroso para sua filha. — A senhora pode tranqüilizar-se a esse respeito — Hedley assegurou-lhe, esforçando-se para não enrolar a língua. — Meu equipamento está em ordem, sou um homem saudável e fogoso. — Eu pensava o mesmo de meu marido antes de nos casarmos — ela confessou com amargura. — Todavia, ele acabou por se revelar um triste desapontamento. Hedley fitou a futura sogra, lutando por entender o que ela lhe confidenciava. — A senhora está querendo me dizer que... — O sr. Hapgood não me negava os direitos de esposa, mas apenas duas vezes por mês. Mais do que isso, ele julgava ser prejudicial à saúde. — Deus do céu! — Hedley exclamou, atônito. — Duas vezes por mês! Que absurdo! A sra. Hapgood curvou-se para colocar mais conhaque no cálice dele. — O senhor decerto compreende que, como mãe, eu me sinto na obrigação de me certificar de que minha filha Victorina será poupada das frustrações que sofri em meu casamento. — Naturalmente. — Então, diga-me: com que freqüência pretende procurar minha filha? — Todas as noites — ele respondeu com um sorriso. — Duas vezes, no mínimo. — Caro Hedley, não é de bom-tom brincar assim quando se trata de assunto sério. Eu lhe suplico que seja sincero: o senhor já se deitou com alguma mulher? — Não com vagabundas — ele afiançou-lhe. — Jamais estive com uma mulher que me cobrasse dinheiro. — Está bem. Contudo, é meu dever insistir: com que tipo de mulheres ? Casadas? — Sim, é claro — Hedley admitiu, a mente confusa demais para raciocinar. — Muitas vezes. Mas também já estive com moças solteiras em Londres. — O senhor está se revelando um homem de péssimos hábitos, meu caro! Nunca pensei que fosse capaz de tais infâmias! Com que idade iniciou sua carreira de licenciosidades? — Eu contava dezesseis anos, na época. — Céus! — a sra. Hapgood exclamou. — Minha mãe morreu quando eu nasci, e meu pai entregou-me aos cuidados de babás e criadas. Um dia, em conseqüência de uma de minhas freqüentes travessuras, minha babá resolveu dar-me uma surra. Eu apanhava muito, pois era muito traquinas. Mas, naquele dia, quando ela desabotoou minha calça e abaixou-a para aplicar-me o corretivo, meu órgão endureceu. Fiquei tão embaraçado... Ela parecia nem ter notado a causa do meu constrangimento. Sentou-se numa cadeira da cozinha e prendeu-me entre seus joelhos. Enquanto, com uma das mãos, me dava palmadas no traseiro, com a outra manipulava meu membro enrijecido. Oh, sim, ela havia percebido meu estado e resolvera aproveitar-se disso! Mabel segurava-o bem apertado, a mão indo e vindo num ritmo crescente... até atingir seu objetivo. Uma sensação diferente e muito forte apossou-se de mim... e eu esguichei meu primeiro jato de sêmen no avental dela. — Sua sórdida história demonstra apenas capacidade de entregar-se às mãos de uma fêmea depravada. Entretanto, tudo o que me descreveu está longe da intimidade conjugal. O senhor já teve relações sexuais completas com uma mulher? — Centenas, talvez milhares, de vezes. Na verdade, perdi a conta. Comecei quando ainda era apenas um colegial. — Declaro-me deveras chocada com seus hábitos dissolutos. Como pôde tornar-se tão devasso? — Eu explico. Quando completei dezessete anos, papai enviou-me para passar as férias com uma irmã solteira dele. Ela vivia só, com uma única criada, numa propriedade pequena mas confortável em Potters Bar. — Poupe-me dos detalhes. Já sei que o senhor traiu a confiança de sua tia seduzindo-lhe a criada. — De forma alguma! — Hedley negou, indignado. — Tia Maude foi quem me seduziu. A sra. Hapgood fitou-o com o queixo caído de espanto. E ele continuou: — Recordo-me de que começou certo dia, após o almoço. Nós nos sentamos lado a lado no sofá, conversando. Demorei muito para perceber o que titia desejava, e só o fiz quando ela resolveu excitar-me ostensivamente, pousando a mão sobre a minha coxa, junto à virilha, ao mesmo tempo que encostava o seio em meu braço. Puxa, meu pau ficou desse tamanho! Depois ela conduziu minha mão de forma a apertar-lhe os peitos fartos e depois começou a abrir minha calça, libertando meu pássaro. Nem preciso dizer que este já estava completamente duro quando ela o segurou. Depois, ela conduziu minha mão de modo a apertar-lhe os peitos fartos e começou a abrir minha calça A sra. Hapgood engoliu em seco. — Prossiga. — O que eu podia fazer, além de retribuir as carícias? Enfiei a mão no meio das pernas dela, por baixo da roupa, até encontrar aquela coisinha gostosa, úmida. Aquele foi um instante memorável! Sentir os pelinhos ondulados, finos, e a bocetinha cálida molhando meus dedos... Ah, que êxtase!! Não pude me controlar mais, e esporrei nas mãos que me manipulavam o pau! O semblante tempestuoso da sra. Hapgood traia-lhe a indignação. Sua curiosidade fora castigada com um cruel insulto à sua modéstia. Quando, por fim, ela conseguiu falar, foi com grande dificuldade, pois faltava-lhe o ar. — O que aconteceu entre vocês não foi diferente do episódio com a babá. O que desejo saber é se o senhor já... copulou de verdade. — Já vou chegar lá — Hedley replicou. — Depois ela retirou a roupa de baixo e, completamente nua, mostrou-me como os raios de sol que se filtravam pela janela conferiam um tom dourado a seus pentelhos. Para ser franco, eu já sabia como era uma xoxota, por causa de minhas brincadeiras com Mabel, mas jamais tivera a oportunidade de contemplá-la em plena luz do dia, apreendendo-lhe todos os detalhes e reentrâncias como naquele momento. Foi uma verdadeira revelação! Então, tomou meu pau, que já voltara a endurecer, entre as mãos e guiou-o para dentro de sua vagina. Quase gritei de prazer ao sentir que penetrava uma mulher pela primeira vez em minha vida! Hedley falava enrolando a língua e, ao terminar a história, aproximava-se da inconsciência. Sua voz soava quase inaudível, murmurando palavras incompreensíveis. — O que foi que disse? — a sra. Hapgood perguntou. — Não consegui ouvi-lo. — Maude gemia: "Enfia tudo, meu menino! Quero acabar com sua virgindade, enfia tudo!" Então, Maude me beijou e murmurou: "Eu fiz de você um homem". Tendo encerrado a narrativa, Hedley adormeceu. A sra. Hapgood fitou-o por alguns instantes, as mãos crispadas de horror, a mente convulsionada pelas confissões que arrancara do futuro genro. Por fim, ergueu-se e ajudou-o a sair da poltrona e a subir as escadas, enlaçando-o pela cintura. Podia chamar um criado para colocá-lo na cama, mas não queria que ninguém o visse naquele estado. Hedley, inconsciente do que acontecia, deixou-se guiar e deitar sobre o leito. Com gestos hábeis, a sra. Hapgood despiu-lhe as roupas. — Pode me explicar por que sua ceroula está molhada? — ela indagou. — Devo ter ejaculado. — Eu sei disso! — ela retrucou, sacudindo-o para mantê-lo acordado. — Mas quando, e em que circunstâncias? Nem ouso imaginar se seria na companhia de minha filha, se o senhor se atreveu a abusar da ingenuidade dela! — Claro que não! — Hedley exclamou. — Minha querida noivinha permanece imaculada como a neve! — Nesse caso, como aconteceu essa vergonhosa polução? — Realmente, é intrigante... esporrar e não lembrar quando nem por quê — ele resmungou. — Será que a senhora não me masturbou lá embaixo? — Hedley!!! — a sra. Hapgood explodiu, ultrajada. Todavia, sua indignação não chegou ao conhecimento de Hedley, que adormecera profundamente. Quando despertou, ele se viu deitado de pernas abertas e nu. A sra. Hapgood se achava ao lado dele e parecia examinar o sr. Pinto de perto, pois segurava-o na palma da mão, bem junto ao rosto. Ela também estava quase despida, tendo apenas a roupa de baixo para cobri-la. Hedley piscou várias vezes, sem entender o que ocorria, e voltou a dormir. Ao despertar mais uma vez, sentiu-se invadido por ondas de prazer. A sra. Hapgood ajoelhara-se por cima dele, como se montasse a cavalo. À luz mortiça do lampião, a pele nua dela brilhava, os seios grandes tremiam com o movimento para cima e para baixo. Hedley estendeu as mãos para ampará-los, mas ela empurrou-as, imprensando-lhe os braços contra os travesseiros. Hedley percebeu que a vulva da sra. Hapgood lhe engolia e apertava o pênis com uma habilidade que jamais encontrara em outra mulher. — Puxa vida, como você é... — ele murmurou. — Sou o quê? — ela instigou-o. — Tão desavergonhada com você? Acha que sou depravada como você revelou ser? — Ahn... — Eu o desagrado? Sou velha demais para satisfazer um jovem cavalheiro da capital? Tenho a mesma idade que sua tia na época em que o desvirginou. Contudo, se quiser que eu pare e volte para os meus aposentos, é só dizer, e eu irei. — Não, não! — Hedley arquejou, receoso de que ela se fosse. — Continue... estou gostando muito, não quero que pare! — Então... o que eu sou? Como você me descreveria? Uma vagabunda? — Não! Como uma caixa de surpresas — ele respondeu, movendo o quadril no ritmo dela. — Uma adorável, cálida e úmida caixa de surpresas! Deixe-me sugar esses peitos! A sra. Hapgood mantinha os braços dele firmemente presos sobre os travesseiros, impedindo-o de usar as mãos. Para provocá-lo, balançava o seio diante do rosto dele, quase tocando-o. Hedley lutava para alcançá-lo e ela ria. — Se quer mesmo, peça de novo! — Por favor, eu quero sugar seu seio! — Assim, não! Isso não é hora de ser tão formal! — Tem razão. Olhe, me dá logo esses peitos para eu chupar! Com uma risada rouca, ela introduziu o bico do seio na boca voraz de seu parceiro. Hedley assombrava-se mais e mais com o desempenho de sua futura sogra. Ela soube dosar o ritmo de forma a retardar ao máximo o clímax, que os dois atingiram no mesmo momento e com a mesma intensidade. Hedley teve a impressão de que não pararia mais de jorrar, que sua própria alma se esvairia junto com o sêmen. A sra. Hapgood colou os lábios em sua boca para conter-lhe os gritos, enquanto Hedley a abraçava com força. Ambos pareciam febris quando, por fim, se separaram. A sra. Hapgood suspirou ao passar a mão pela própria vulva e constatar que estava inchada e completamente molhada. ILUSTRAÇÃO BRAD HOLLAND * Uma Confissão Sincera reúne alguns trechos do sexto capítulo do romance Segredos de Alcova, uma tradução do inglês que chega às bancas no final de maio pela editora Montmartre. A identidade do autor não é revelada. Segundo os editores, só o que há dele são as iniciais A.Mck.H. Pouco importa. A narrativa deste A.Mck.H. (ou seja lá quem ele for) é de um erotismo explosivo, à altura da tradição dos melhores textos do gênero. Publicado em abril de 1992, ed. 201. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • LÍVIA LEMOS | ABRIL, 2004

    O FENÔMENO Ela não faz nem duas embaixadinhas. Foi com estas curvas, rostinho provocante e o jeito de moleca que a apresentadora do SPORTV desnorteou Ronaldinho. Na nossa praia, ela é toda sua... FOTOS FABIO HEIZENREDER Para o ensaio da PLAYBOY, Lívia Lemos teve como cenário uma linda praia do Nordeste num dia de céu azul e muito sol. Ela e a equipe da revista ficaram 3 dias do mês de março na Praia de Serrambi, a 30 minutos de Porto de Galinhas, em Pernambuco. As fotos são de Fabio Heizenreder, que assina com este ensaio seu segundo trabalho para a publicação. A praia estava praticamente deserta no primeiro dia, mas já no segundo, apareceram alguns curiosos que foram apreciar a beleza da nossa estrela do mês. O ensaio também teve uma participação inesperada. A produção da revista correu atrás de um rapaz que estava cavalgando pelas areias de Serrambi e ele emprestou seu cavalo para alguns cliques com Lívia. Além da areia da praia, a casa num condomínio fechado de frente para o mar onde todos ficaram hospedados também foi utilizada como locação. Nela, Lívia foi clicada em lugares como o jardim e a piscina. A equipe madrugava para começar a produção e fazer a maquiagem de Lívia, e logo começavam a fotografar, indo até o final do dia. No início das sessões de fotos, Lívia estava um pouquinho nervosa, mas logo foi se soltando. Ela estava com um ótimo astral, querendo fazer o melhor trabalho possível, não queria deixar faltar nada. No total foram 120 filmes utilizados e as melhores imagens estampam 18 páginas da revista. Ela diz ter adorado a experiência: "Foi maravilhoso. A equipe é muito profissional e me deixou bastante segura. Um dia antes das fotos eu estava com um super frio na barriga, mas no dia das fotos me surpreendi. No meio da sessão de fotos eu já estava 100% à vontade". A bela loira de 20 anos, do signo de Aquário, é apontada como namorada do craque Ronaldo. Ele se encantou com seus 55kg muito bem distribuídos em 1,65m. Foram apresentados por amigos numa festa. "É difícil manter uma relação à distancia, mas quando estamos juntos posso dizer que é divertido, a gente se curte bastante, são momento felizes", diz Lívia. Para manter a forma, a torcedora do Vasco procura se alimentar bem, treinar na academia regularmente e surfar sempre que pode. A praia que ela mais frequenta é a de Itaquatiara, em Niterói, cidade em que nasceu e mora até hoje. Tatuagens? Apenas uma floral no pé. Antes de trabalhar na TV, além de estudar, chegou a ser garçonete em Búzios. Com 16 anos fez o teste para o SporTV e passou. Comandando o Rolé, tem a oportunidade de conhecer lugares paradisíacos; entre os preferidos estão Fernando de Noronha e Chapada Diamantina. Sobre o assédio, Lívia diz: "Percebi que agora os homens me observam mais, acho que estão mais curiosos...". Planos para o futuro? Lívia quer aprimorar seu trabalho como apresentadora, que é o que realmente gosta de fazer, e viajar muito com o programa Rolé. EDIÇÃO ARIANI CARNEIRO PRODUÇÃO EXECUTIVA SUSANNE SASSAKI PRODUÇÃO DE MODA FÁBIO PAIVA CABELO E MAQUIAGEM ADALBERTO ALVES TRATAMENTO DE IMAGEM SÉRGIO PICCIARELLE

  • POPÓ | MARÇO, 2002

    Playboy Entrevista O campeão mundial de boxe que dormia no chão até os 23 anos fala de mutretas dos empresários, de seu choro fácil e das porradas que já deu na vida — Popó, queremos produzir uma foto diferente, te vestir como um conquistador latino. — Vocês querem dizer que tenho jeito de veado, né? Isso que você chama de latino eu já vi em Las Vegas, tudo veado... Faltou habilidade em nosso primeiro diálogo com o campeão mundial dos superpenas (até 59 quilos). Tanto que a foto não pôde ser produzida. O irmão Luiz Cláudio, pugilista aposentado, também não gostou: — Cuidado! Essa família é de macho, todo mundo tem a mão pesada. No começo é assustador desagradar a um cara com o currículo do baiano Avelino Freitas, 26 anos, também conhecido por Mão-de-Pedra, 31 lutas invictas, com 29 nocautes, cheio de tatuagens de buldogues, leões e cobras com luvas de boxe. Mas cinco minutos de conversa são suficientes para sentir que ali está uma figura nada amedrontadora fora dos ringues, ainda mais pelos 23 centímetros a menos que tem em relação ao repórter de PLAYBOY André Rizek, que foi a Salvador entrevistá-lo (Popó mede 1,65 metro). De cara, confessa que é chorão. E que nem consegue fazer a famosa cara de mau para o adversário antes das lulas. Pela sala de sua casa passeia uma cadela poodle, branquinha, tratada carinhosamente por Dandara. Achava que ele tinha um pitbull, é? Popó está cheio de cicatrizes na cara, mas faz a sobrancelha, depila os cílios, cuida das unhas dos pés e das mãos. Ele pede ao repórter que enxugue o suor de seu rosto durante as fotos. E, descontente, solta: "Mas que mão de moça, rapaz, enfia aí a mão na minha cara, tô acostumado". É um sujeito tão sem frescura, que, campeão do mundo, rico e famoso, chegou a confundir, ao queixar-se do atraso do seu assessor, quem é que mandava ali: "Que lugar é esse em que o empregado chega antes do patrão?" O assessor então o lembra sem graça que, na verdade, o patrão é ele, Popó. E um patrão que, no dia 12 de janeiro, entrou pela porta da frente na história do esporte brasileiro. Ele já era campeão pela pouco, quase nada, respeitada Organização Mundial de Boxe desde 1999. Existem várias organizações mundo afora e até Maguila já foi campeão de uma delas. Por isso, muita gente dizia, com boa dose de razão, que Popó era um campeão de mentirinha, fabricado pela mídia brasileira. Para você ser um legítimo campeão do mundo, precisa vestir o cinturão da Associação Mundial de Boxe (AMB) — como Popó fez quando derrotou, por pontos, o cubano Joel Casamayor do Conselho (CMB) ou da Federação Internacional (FIB). Só dois brasileiros haviam feito isso antes: Éder Jofre e Miguel de Oliveira. Mas esse baiano que teve uma infância miserável nunca ligou para essa sopa de letrinhas. Popó sobe no ringue e vence suas lutas, nada mais. Nem sabe o nome de seus adversários. Ele diz que, se não fosse lutador, seria jogador de futebol. Sua história é mesmo muito parecida com a de vários boleiros. Gente que sai do nada e, graças as talento natural, se vê de repente rico e famoso. Homens que não sabem administrar a carreira, mas tiram sozinhos uma família inteira da pobreza. Gente que vivia em casebres e hoje mora em condomínio fechado, cheio de casas cinematográficas, como Popó vive hoje em Lauro de Freitas, vizinho de Daniela Mercury e Ivete Sangalo. "O terreno tem 6 mil metros quadrados, mas vocês não são revista de fofoca, né?", diz ele. E, como boa parte dos jogadores, também não esquece o antigo bairro, nem as velhas amizades. A primeira sessão da entrevista foi interrompida porque Popó foi dar 26 presentes (ventiladores, ferros de passar e liquidificadores) na Avenida Gaspar, onde nasceu, no Baixa de Quintas, um dos lugares mais pobres de Salvador. Ele deixou o local só há três anos. Popó também construiu um estereótipo diferente do que se criou em torno de mitos do boxe, como Joe Louis, Rocky Marciano e Mike Tyson. O de que é só aparecer uma mulher na vida deles para que a carreira vá por água abaixo. No caso do baiano, o casamento com a administradora Eliana Guimarães, uma mulher bonita, rica e inteligente, herdeira de uma das maiores construtoras da Bahia, deu novo rumo a sua carreira. Para melhor. Ele tem fama de nocauteador nas conquistas (teve cinco filhos antes do casamento, com quatro mulheres diferentes). Na saída de sua casa, o taxista que nos levava perguntou quanto valeria um flagra do lutador, seu cliente, com alguma atriz/modelo. Mas, ao menos nesta entrevista, o campeão se revela um marido apaixonado e, pasmem, cegamente obediente (na sessão de fotos, pedia cuidado com os móveis, "senão dona Eliana me mata"). PLAYBOY — Já saiu em vários lugares que seu filme preferido é Rocky, porque se identifica com o personagem do Silvester Stalone, que veio do nada e virou campeão cio mundo. Se fizessem um filme do Popó, seria o Rocky? POPÓ — Não. Na verdade eu não gostei do filme Rock porque é muita maquiagem. Aquilo é coisa que não existe no boxe, aquelas porradas, aquelas cenas de luta não têm nada a ver com a realidade. O filme do qual eu gostei mesmo, excelente, foi Hurricane [pugilista interpretado por Denzel Washington, com música tema de Bob Dylan]. Mas o que assistia muito era a algumas lutas de Sugar Ray Leonard, meu ídolo, com Marvin Hagler, Thomas Hearns, Roberto Mano de Piedra Durán. Foram esses caras que me inspiraram muito. Em filme nunca me inspirei, porque sei que ali não é a realidade da vida. PLAYBOY — Você, quando era mole-que, assistia a mais boxe ou futebol? POPÓ — Sempre boxe. Comecei a lutar com 14 anos e nessa idade já conquistei meus primeiros títulos no Brasil. Com 19 anos fui vice-campeão pan-americano. Então, aí, comecei a carreira no profissional. Sempre boxe, boxe, boxe, adorava boxe desde moleque. PLAYBOY — Mas se fizessem um filme do Popó, como seria? POPÓ — Seria um filme verdadeiro. Queria que mostrassem a minha realidade no bairro onde eu nasci e fui criado. Que mostrassem minha infância difícil [surpreendentemente, Popó já se emociona, com olhos marejados e fala alterada]. Pelo menos eu saberia que seria um aprendizado muito grande para as pessoas que querem crescer na vida, mostrar como eu comecei, com todas as dificuldades, passando fome. Hoje eu tenho 26. Até os meus 23 anos eu dormi no chão, numa casa de um cômodo, com mais cinco irmãos. "Se fizessem o meu filme, queria que mostrassem a realidade. Dormi no chão até meus 23 anos. Se não tinha comida, eu recolhia lixo" PLAYBOY— Então pode começar o roteiro. É sabido que seu pai, Niljalma Jones, era anotador de jogo do bicho, bebia e sua mãe sustentava seis filhos como faxineira. Você conseguia ter uma vida feliz, tinha esperança? POPÓ — Foi uma vida dura, mas ao mesmo tempo alegre. Eu tive todas as brincadeiras como criança de bairro, de pega-pega. Não tive era brinquedos. Tudo com o que eu sonhava naquela época, eu não tinha. Cheguei a passar fome várias vezes. Eu era uma pessoa que, quando via que não tinha comida em casa, batia de porta em porta pedindo para recolher o lixo. Se tivesse alguma coisa boa de comer, eu comia, não tenho vergonha de falar isso. Eu carregava bloco, pedia para ajudar em construção. Mas nunca roubei, nunca fumei, nunca bebi e até hoje, graças a Deus, não tenho vício nenhum. O único que eu tenho é lutar boxe e fazer muito amor com minha esposa. PLAYBOY — E nunca te deu raiva, vontade de roubar? POPÓ — Não, nunca. Aquilo me dava vontade de crescer. Hoje, eu agradeço muito a tudo isso. Se não fosse desse jeito a minha história, eu não seria o campeão que sou hoje. Atualmente acho graça das coisas que eu passei. Depois que comecei a lutar e percebi o meu potencial, enxerguei o que poderia fazer dentro do ringue... [com os olhos marejados de novo]. Eu estudei só até a quinta série. Não via futuro na escola porque não tinha material para estudar, ia para o colégio segurando a calça porque não tinha zíper, com um chinelinho caído... Só no boxe eu via a chance de superar isso tudo. PLAYBOY — E como era o problema do seu pai com bebida? POPÓ — Meu pai bebia muito, muito mesmo. Bebida, cigarro e droga são um problema na vida de qualquer um e meu pai era um problema em casa. Hoje superou. Minha mãe foi uma heroína em todos os aspectos, segurando meu pai com bebida, com mulher, com os vagabundos que ele colocava em casa, sabe? Minha mãe é guerreira total, manda em mim até hoje. Me bate quando dou nome feio dentro de casa. Eu e meus irmãos não falamos nem "merda" na frente dela. Sou filho caçula de cinco homens [Popó também tem uma irmã, Jaqueline, de 15 anos] e nenhum teve a mesma sorte que eu. Às vezes eu sinto por eles, por não estarem no mesmo lugar. Mas Deus me colocou no mundo para segurar minha família. Cuido dos meus filhos, meus irmãos, meus sobrinhos e meus pais. PLAYBOY — Você não diz quanto tem de dinheiro. Mas conte o que já conseguiu comprar com o boxe. POPÓ — Consegui dar uma casa para meu irmão mais velho [Paulo Roberto, 36 anos], outra para meu irmão Luiz Cláudio, uma casa para minha mãe, um carro zero para outro irmão, pagar cursos para minha irmã ter uma profissão. Além da minha casa atual, que eu comprei há duas semanas. E todo mês eu seguro a alimentação da família dando cesta básica. [Também deu uma academia aos irmãos, para que pudessem ter uma renda mensal.] PLAYBOY— Tem que dar muita porrada, hein? Você tem quatro filhos [Juan Popó, 2; lago, 3; Igor, 4 e Rafael, 9], uma filha [Ana Carla, 2], cinco irmãos. Mais os pais e os sobrinhos... Você sustenta quantas pessoas? POPÓ — Dá quase 20 pessoas. E estou sem patrocínio há sete meses. O patrocínio é que me ajudaria com um dinheiro mensal. PLAYBOY — Como um campeão mundial não tem patrocinador? POPÓ — É porque eu sou brasileiro. Se fosse americano, eu já teria um. Há algumas coisas em vista, mas não chegaram a minha realidade de campeão do mundo unificado. A gente, quando chega a esse nível de conquista, tem que se valorizar mesmo. Eu quero um patrocínio como campeão, como o Guga tem, o Ayrton Senna já teve. Acho que hoje eu estou nesse patamar. Queria também alguma empresa para fazer meu site, que está desatualizado há sete meses. Isso é Brasil, rapaz, mas vai melhorar. Quando eu tinha meus amigos empresários, até o ano passado, por exemplo, eu só ganhava 25% da grana. Agora eu não tenho mais empresário para roubar meu dinheiro e tenho certeza de que tudo vai ser diferente, melhor para mim. Só falta mesmo um patrocínio para ter uma renda mensal. PLAYBOY — Para falar da briga com seus antigos empresários vamos dar nome aos bois. Sabe-se que em julho você rompeu com seu antigo empresário, Ruy Pontes. E com o técnico que trabalhava com você desde os seus 14 anos, o Luís Dórea. Ladrões por quê? Conte essa história melhor. POPÓ — Tenho processo de perdas e danos contra eles, já houve três instâncias na justiça e eles recorreram, perderam as três. Não quero citar o nome deles porque sei que assim serão lembrados. Prefiro que você nem escreva os nomes. Era gente da minha total confiança. Até eu descobrir que ficavam com 75% de tudo o que eu ganhava na minha carreira, e 75% do dinheiro que eu sabia. Por exemplo, em janeiro do ano passado, lutei em Brasília e foi ao vivo para os Estados Unidos. Eu só fui saber no final do ano. Não recebi um centavo pela transmissão. Por isso que eu digo que eles ficavam com 75% das coisas que eu sabia. Mas a vida é assim mesmo, dei a volta por cima. Porque hoje eu só tenho advogado para cuidar das minhas coisas e um promotor nos Estados Unidos que apenas promove as lutas, não recebe nada das propagandas que eu faço. Agora, sim, vou começar a ganhar o dinheiro sozinho, já conquistei essa liberdade. Meu último patrocinador foi a Globo.com. Ela pagava à empresa dos meus empresários [Oficina de Idéias]. Pagaram dois meses ainda depois que eu rompi com os ladrões e nem me repassaram esse dinheiro, de julho e agosto. Quando chegou setembro, a Globo encerrou o contrato, vendo que eu já não estava bem com meus empresários, que tinha muito roubo lá. Eles roubaram muito. PLAYBOY — Você tem idéia de quanto você está pedindo na Justiça? POPÓ — Não tenho a menor idéia, honestamente. É muito. Eu vi alguns cheques da Globo, me mostraram, de quanto eles pagaram em dois anos de minhas lutas transmitidas. Imagine o quanto dá isso, agora eu nem sei de cabeça, mas é muito. E ficou tudo com eles, porque nunca recebi direito de transmissão, por exemplo, me passavam 25% da bolsa da luta, mas o dinheiro da TV, cadê? Para ser sincero, nem sabia que eu recebia dinheiro da TV para que passassem uma luta minha. Olha, o máximo que eu ganhei numa luta com meus antigos empresários foi 100 mil reais. PLAYBOY — E quanto foi agora na última, pelo título da AMB, já sem empresário para abocanhar comissão? POPÓ — Bem mais, o suficiente mais. [Hoje, como campeão unificado, as lutas valem 400 mil dólares de prêmio para ele. Contra Casamayor, recebeu cerca de 500 mil reais.] PLAYBOY — Como exatamente você percebeu que estava sendo, segundo suas palavras, roubado? POPÓ — Minha esposa foi a pessoa essencial na minha carreira para eu abrir os olhos e mandar esses vagabundos tudo para a... Eu não tinha o meu contrato. Quando a gente começou a namorar, no começo do ano passado, ela me perguntou: "Cadê o seu contrato? Por que você não tem um contrato?" Eu disse: "Ah, não tenho". E ela: "Por quê?" E eu: "Ah, confio muito neles". Mas ela dizia que eu tinha de pedir meu contrato, que era meu direito ver como estava escrito, para eu guardar. Peguei o contrato e a gente foi ler. Foi aí que eu vi as cláusulas que tinha lá, que eu tinha assinado sem ler, porque eu confiava 100% neles. Se eu perdesse no ringue, eles tinham dez dias para me dar um chute na bunda, e eu ficaria com uma mão na frente e outra atrás; que se eu sofresse um acidente sério no ringue, eles me davam um chute, também. Que se eu quisesse rescindir, teria de pagar um dinheiro absurdo, mas que se eles quisessem me deixar, não pagavam nada. Eu não tinha seguro de vida, de saúde, nada. PLAYBOY — Você lutava sem seguro de saúde? Nunca se preocupou com isso? POPÓ — As coisas só vêm quando a gente não espera. Essas pessoas conviveram comigo dos 14 aos 25 anos, como eu ia desconfiar de alguma coisa? Hoje, meu ex-treinador [Luís Dórea, que o descobriu aos 14] diz que me ajudou na vida. Eles estão por aí andando de Pajero, com casa em condomínio fechado, apartamento no Corredor da Vitória [região nobre de Salvador]. Ganharam tudo isso a minha custa e ainda falam mal de mim. Teve um tempo, não sei bem quando, que meu ex-treinador quis deixar de ser técnico para querer ser também meu empresário, aí deve ter começado o roubo, mas a vida é assim. Estou confiante que vou conseguir a vitória não só na Justiça baiana, mas na Federal e na justiça de Deus, também. Sabia que já fui até algemado por causa deles nos Estados Unidos? PLAYBOY — Preso? Pela polícia mesmo? POPÓ — Em 1999, em Las Vegas. Eu tinha contrato nos Estados Unidos com um promotor, o Arthur Pelullo, para promover minhas lutas lá, estou até hoje com ele, desde 1997, esse é de confiança. Aí me fizeram assinar com outro promotor, eu nem sabia de nada do que estava acontecendo e assinei um contrato ilegal. Não poderia assinar tendo contrato com o Pelullo. Me levaram para a corte e o juiz mandou me algemar no tribunal, por duas horas. E anulou o contrato. "Sabia que já fui até algemado nos Estados Unidos por causa dos meus empresários? Me fizeram assinar um contrato ilegal" PLAYBOY — Como sua carreira é administrada hoje? POPÓ — Minha carreira hoje é administrada por mim e meus advogados. Minha esposa é só minha conselheira e minha mulher. Contratei advogados de confiança, que falam inglês, entendeu? São pessoas que, hoje, me dão tudo por escrito, em português, tudo o que eu assino. Temos um tradutor, porque eu não entendo inglês. Hoje eu tenho um contrato com a Showtime nos Estados Unidos [poderosa rede de TV a cabo que negocia lutas por pay-per-view], já recebi direitinho na última luta com Casamayor e já sei o que é isso. Antes, eu nem sabia de nada. Já sei o que foi essa luta e já sei o que será a próxima. Agora, sim, estou entendendo como funcionam as coisas, quem paga a quem, quanto é de dinheiro. PLAYBOY — O boxe tem uma imagem ruim para muita gente porque sempre estouram notícias de mutretas dos empresários. Concorda que o boxe é uma coisa suja muitas vezes? POPÓ — Sempre tem disso. Assisti uma vez a uma reportagem com o Muhammad Ali na TV. Não falo inglês, mas vi em espanhol, falando que o lutador é uma prostituta dos empresários. E é a realidade, somos prostitutas deles, eu fui uma. Você vai lá, dá a sua cara pra bater, arrisca sua vida e os empresários estão sempre lá no bem-bom, com muito dinheiro, mais que os lutadores. PLAYBOY — Você já viu coisas como arranjarem resultados de luta? POPÓ — Isso eu não vi. Mas não duvido. A sujeira no boxe existe, você tem que ficar de olho, porque ela está te rodeando com os empresários. Mas a minha parte é apenas lutar, a parte empresarial é deles e fazem a porcaria que quiserem. PLAYBOY — Já que você citou o Ali, o que você acha dele, considerado por muitos o maior da história? POPÓ — Como lutador eu fui ver luta dele só agora, em teipe, é um grande estilista, sabia a hora de nocautear e, se quisesse ganhar por pontos, ganhava também. Foi um ídolo, mas na época dele, porque hoje o boxe está mais difícil do que era antes, né? Hoje não tem aquele negócio de abaixar a guarda, ficar rodando mão, aquilo tudo o que ele fazia. É mais sério. PLAYBOY — Os lutadores estão mais fortes? Se o Ali ouvisse isso... POPÓ — Não é mais fortes. Estão mais sérios, querem acabar as lutas mais rápido, querem nocautear. Antes, era mais espetáculo e agora a galera quer é ir para o pau. PLAYBOY — Quando está lutando você não se preocupa com o espetáculo? POPÓ — Que nada, meu espetáculo é o nocaute, é aí que todo mundo vibra nas minhas lutas. PLAYBOY — Você deve ser fã do Tyson. POPÓ — Curtia os nocautes dele, mas não a pessoa. É um lutador excelente, só nocaute fulminante, do jeito que eu gosto de fazer também. Mas cada um tem sua cabeça e cada um cava o seu buraco para se enterrar. Ele está fazendo isso. Eu não sei se um dia ele volta a ser o que já foi antes, não. PLAYBOY — Você sente medo antes de alguma luta quando olha para seu adversário, medo de apanhar no ringue? POPÓ — Não. Na verdade eu nunca senti medo. O sentimento que tenho é vontade de vencer. A vontade que tenho é de fazer medo, que eu veja que meu adversário está sentindo medo de mim. A única vez que tive medo numa luta foi na unificação com [o cubano Joel] Casamayor. No nono assalto ele abriu meu supercílio [direito, a cicatriz está lá até hoje]. Eu não sabia como estava. Mas não foi medo do meu adversário, foi de o juiz parar a luta e acabar todo o meu sonho ali. Bote qualquer um da minha categoria no ringue, que não tenho medo de ninguém. PLAYBOY — Sempre tem no boxe aquela história de fazer cara de mau para o rival antes da luta. Quais são seus truques nessa hora? POPÓ — Na verdade não é cara feia, essas coisas. Só o cartel de 31 lutas, 29 nocautes, amedronta qualquer um. E você tem que impor respeito, botar uma mão forte logo no início do primeiro round. É isso aí que intimida o adversário, não uma careta. Eu não consigo ter expressões fortes assim para usar. E mesmo assim eu não tenho uma expressão de lutador mau, cara de mau, nada disso. Mas eu imponho respeito na primeira mão que eu boto. PLAYBOY — O que acha do vale-tudo? POPÓ — Eu gosto. Tenho amigos que lutam. Gosto é quando partem para cima. Não quando estão lá no chão, demorando para finalizar. Mas, quando sai na mão... É porrada, né, quem não gosta de ver porrada bem dada? PLAYBOY — E você lutaria se te chamassem? Teria alguma chance lá? POPÓ — Não, é outro esporte, nada a ver. E acho que nem teria chance. Assim, poderia ganhar urna luta porque eu pego muito duro e, se acertar o cara primeiro, eu derrubo com certeza. Mas isso está fora de cogitação na minha carreira mesmo. Não gosto de praticar aquilo, gosto de assistir. PLAYBOY — Tem gente que acha que boxe não é um esporte legal, saudável, pelas porradas, pelas seqüelas que o lutador pode ter. Quando você ouve isso, o que responde? POPÓ — Quem tem boca fala a merda que quer. PLAYBOY — Mas você não tem nenhum medo de se machucar feio? O boxe já registrou até mortes no ringue. Nunca parou para pensar nisso de manhã, olhando sua cicatriz no supercílio? POPÓ — Isso aqui [apontando a cicatriz] é normal, quem sabe um dia eu não ganho na loto e faço uma plástica. Pára com isso, rapaz, não tem nada a ver. Não me preocupo com essas coisas, não tenho medo de levar porrada, não. O que tiver de acontecer, acontece, estou lá para isso e nunca me preocupei. Pelo que eu soube nos Estados Unidos, o Muhammad Ali tem um tio ou uma prima que já tinha mal de Parkinson, isso é hereditário, é mal de família, apesar de muita gente dizer que é do boxe. [Há controvérsias sobre se o boxe prejudicou ou não a saúde de Ali.] PLAYBOY — Quando você percebeu que era bom mesmo, que poderia ganhar a vida em cima de um ringue? POPÓ — Percebi que eu era bom no boxe aos 14 anos, quando estava começando. Tinha um atleta veterano já, tinha 25, 26. Ele estava para disputar um campeonato baiano. E eu quebrava o cara na academia, dava um pau mesmo. Chamava-se Renê, não sei o sobrenome. É de sangue. Meu irmão Luiz Cláudio já era lutador profissional quando eu tinha 14 anos e meu pai também lutou. "Percebi que eu era bom aos 14, quando eu quebrava um cara de 25, 26 anos. Vem de sangue. Meu pai era lutador de rua" PLAYBOY — Mas seu pai não era lutador profissional. POPÓ — Ele era lutador de rua, de briga de rua. Antigamente tinha o boxe de rua. No ringue, acho que ele só lutou uma vez e mesmo assim não como profissional. O Luiz Cláudio [hoje com 34 anos] lutou como profissional mesmo, disputou título mundial, mas o Paulo Roberto [36] e o Nílton [28], outros dois irmãos, já fizeram lutas também. Sempre foi um irmão incentivando o outro no boxe. PLAYBOY — Você também lutou na rua, como seu pai? POPÓ — Não, nunca. Na rua eu só brigava era na fila da merenda do colégio, porque eu queria sempre repetir duas, três vezes. Se eu voltasse meio-dia para almoçar em casa, sempre podia acontecer de não ter comida. Mas eu não era o mais forte do colégio, não... Acho que eu era o mais abusado. Hoje em dia, só em cima do ringue. Bom, às vezes eu vejo alguma coisa errada e fujo um pouco da realidade, né? PLAYBOY — Quando foi a última vez que você fugiu da realidade? POPÓ — No Carnaval, aqui em Salvador. Sou o tipo de pessoa que pode estar com um inimigo. Se aquele meu inimigo estiver com uma mulher e outro cara começar a bolir com ela, eu piro. Eu quero que respeitem a mulher dos outros! O que mais respeito é mulher dos outros. Boliram com a esposa do meu cunhado, a gente estava em cima do trio. Falei para ele que se não descesse para dar um tapa naquele cara, eu mesmo faria isso. O cara estava fingindo que se masturbava para a mulher. Esqueci quem eu era, pirei e desci para pegá-lo. Mas não foi nada demais, me seguraram [os amigos contam que Popó tentou aplicar um direto nele]. PLAYBOY — Você disse numa entrevista que, quando machucou para valer o russo Anatoly Alexandrov, pelo título da ONIB, em 1999, pensou na mãe dele. Fala sério! Você deixou o cara desacordado, uma cena chocante. E pensou na mãe dele? POPÓ — Minha preocupação era essa mesmo. Não posso ter medo de machucar ninguém porque estou ali para vencer, mas acidentes acontecem. Depois da luta eu fico mais, assim, reparando na mãe do cara mesmo. Porque eu tenho mãe e sei o que ela sofre quando estou em cima do ringue. Minha mãe nunca conseguiu assistir a uma luta minha. Só em teipe. Eu sou presente com minha mãe até hoje, viu? Agora mesmo ela está na minha casa nova, passando duas semanas lá comigo e minha mulher. A gente foi criado todo mundo junto, a família inteira, pais e irmãos, numa casinha de um cômodo. A gente nunca teve o costume de ficar separado, eu sei o que sofro quando estou longe dos meus pais e dos meus irmãos. Se eu apanhasse daquele jeito, minha mãe ia ficar mal. PLAYBOY — Como é ter tantos filhos com mulheres diferentes? POPÓ — Dois com uma, outros dois com duas outras, são três mulheres. A minha obrigação com meus filhos eu cumpro. A relação é essa. Registrei todos os meus quatro filhos e cumpro com meu papel de pai, nunca tive problema com nenhuma delas, nunca fui casado com nenhuma delas e hoje somos amigos. Educação e alimentação para meus filhos não falta. [Popó se esquece da filha Ana Carla, de 2 anos, com outra mulher com quem teve breve romance. Foi reconhecida quando já estava casado e o assunto é tabu em casa.] PLAYBOY — Eram suas namoradas? POPÓ — [Fazendo sinal de que não quer se alongar no assunto.] Eram relacionamentos, né, relacionamentos que a gente tinha. Hoje eu as vejo quando pego meus filhos, nada mais. Elas torcem por mim porque minha vitória é a vitória dos meus filhos. Acaba aí. PLAYBOY — Dá para perceber que não foram planejados... Faltava informação para você se prevenir? POPÓ — Se prevenir, todo mundo sabe como, não é? Mas, na hora, no momento, você nem pensa nisso. Mas não me arrependo, não, tenho muito orgulho dos meus filhos e se puder ter ainda dois, três, eu vou ter. PLAYBOY — Você transou muito sem camisinha? Porque, antes de casar, você aproveitou bastante... POPÓ — Era solteiro, com fama, jovem. Aproveitei tudo o que tinha de aproveitar, paquerei todas que eu tinha que paquerar, mas graças a Deus nunca me aconteceu nada. Aí conheci a pessoa pela qual me apaixonei, a pessoa certa, e mudei esse lado, normal. Eu ficava com uma mulher e o pessoal dizia que era minha namorada, mas não era. Antes da Eliana, meu único compromisso era com meus pais. PLAYBOY — A Helen Ganzarolli, uma gata, dizia que era sua namorada. POPÓ — Aproveitei o meu momento e as pessoas que ficaram comigo aproveitaram também, tenho certeza. Não me importo com isso. Mas pula essa. PLAYBOY — A Eliana faz uma marcação muito cerrada? POPÓ — No começo, o assédio em cima de mim foi muito difícil para ela. Mas com o tempo ela foi percebendo, sabendo o que era tudo isso. Ela sabe que é minha fase, meu momento, vai ter um dia em que tudo isso vai parar, eu sei disso, mas enquanto não parar ela tem que suportar. E ela suporta bem, viu? Eu também me travei depois que casei, não dou mais espaço para as fãs abusadas... Tenho que travar, né? Sou mais preocupado com a minha reação do que com a reação da Eliana, então me travo. PLAYBOY — Muita gente detesta ser reconhecida nas ruas, parada em qualquer lugar por fãs. Você gosta disso? POPÓ — Curto, gosto da minha fama e sei conviver com ela. Gosto quando as pessoas se aproximam de mim para pedir autógrafo, para me abraçar, me valorizar. Eu aproveito porque o público é que me dá ibope e nunca me senti privado de nada. PLAYBOY — Você fez terapia de casal ano passado. Como foi a experiência? A Eliana deve ser boa para te convencer das coisas, hein... Não parece iniciativa de um lutador de boxe... POPÓ — Na verdade fui eu quem a chamei para fazer. Foi num momento em que nosso relacionamento esteve mais turbulento, bem na época em que eu estava brigando com meus antigos empresários, aquelas coisas erradas que ela via e eu ainda não enxergava. Foi ótimo, ajudou muito. Só que ela conversava com uma psicóloga e eu conversava com outra. Eu me abria para uma, ela se abria para outra. Sou um cara esforçado no relacionamento. PLAYBOY — Você cantou música do Fábio Júnior para sua mulher durante o casamento, ano passado. Que outro tipo de loucura romântica você já fez? POPÓ — Não é loucura, não. Eu sou romântico, gosto de cantar para ela, me expor para ela, e que todo mundo perceba isso. As pessoas me parabenizam nas ruas por eu ser esse cara carinhoso, por todos os meus sentimentos que exponho. Não tenho vergonha disso. Não tenho vergonha de chorar. Acho que choro até duas vezes por dia, qual o problema? Tem pessoas que retrancam isso e aí retratam aquela pessoa como um ídolo chato. PLAYBOY — Você disse numa entrevista que chora assistindo ao Domingo Legal do Gugu. Confesso que eu não acreditava nisso... POPÓ — Ao Domingo Legal e a qualquer programa que me emocione, choro mesmo, principalmente se aparecer aquelas pessoas humildes como eu já fui um dia, que de repente conseguem realizar um sonho, ganhar um dinheiro, uma casa, ou um mero passeio com seu ídolo. Com essas coisas eu choro mesmo, vendo TV... PLAYBOY — Você disse que um de seus vícios é fazer sexo com sua esposa. É um vício diário? POPÓ — Opa, todo dia, sim, fortalece. Menos antes de luta, aí eu paro com uns dez dias de antecedência. A gente já faz a primeira vez pensando na segunda. A gente gosta de ficar muito em casa, então, já viu... Com certeza sou um marido exemplar. Ela é o suficiente de mulher para mim. PLAYBOY — Pouca gente acreditava que você ganharia o título da AMB contra o Casamayor. Você concorda que lutou como nunca? POPÓ — Antes, eu lutava para nocautear com medo. Eu perdia muito peso durante a luta, minha carreira era muito mal conduzida com meu ex-treinador. Tinha medo de levar uma luta até o final porque eu não sabia como iria estar meu gás para conduzir isso tudo. Então, eu procurava enfiar logo a mão pesada, acabar logo a luta. Mas nessa última luta eu tirei esse medo. Treinei para fazer os 12 rounds com meu novo treinador, o Ulisses Pereira, um paraense que já foi a duas Olimpíadas, e o Oscar Soares, meu treinador porto-riquenho. Com essa nova equipe, eu tô mudando meu estilo, para melhor, estou ficando mais técnico. Nunca tinha feito 12 rounds e deu tudo certo. PLAYBOY — O que exatamente mudou no seu treinamento? Você pode dar alguns exemplos do que passou a fazer de diferente? POPÓ — Mudou a parte de alimentação toda. Eu nunca tinha tomado vitaminas, suplementos alimentares. Não tinha nutricionista, nada disso. E hoje minha equipe cuida muito da minha nutrição. Eu sempre tive dificuldade para me manter no peso da minha categoria, que é de até 59 quilos. Pesei 58,2 para a luta com Casamayor, e ainda me pesei de short e camiseta, um peso que eu nunca tive na vida. Agora eu sei que é só trabalhar da maneira correta que eu me mantenho no peso. Mudei todos os meus horários também. Meu antigo treinador chegava do trabalho às sete, oito horas da noite, e eu tinha que treinar na hora que ele queria. Era um esquema muito amador mesmo, hoje posso dizer que estava totalmente fora da realidade do boxe mundial. PLAYBOY — Mas como é possível ser campeão, como você foi em 1999, sem um nutricionista? Sua preparação era tão ruim assim? POPÓ — É como diz meu treinador atual, o Ulisses, foi tudo por causa da minha qualidade pessoal. Eu acho que se não tivesse trocado meu treinamento, não teria unificado o título. PLAYBOY — Você era campeão de apenas uma versão, a OMB, que não é respeitada como a Associação Mundial. Muitos dizem que, agora, sim, com a AMB, o Popó é campeão mundial para valer. E você, o que diz? POPÓ — Olhe só... Eu queria unificar para mostrar a mim mesmo que eu posso, que eu tenho condição de ser um campeão mundial das melhores versões do mundo. E eu mostrei isso para mim mesmo. Não queria provar nada para ninguém, não. E já estou muito feliz com essa unificação. Se puder continuar e encerrar minha carreira assim, estou satisfeito. Quem quer demais traz de casa. PLAYBOY — Mas você não tem o sonho de ser um campeão de todas as versões? É um desafio natural no boxe. POPÓ — Não, não. Eu nem tinha o sonho de unificar a OMB com a AMB. Meu maior sonho mesmo era ser campeão mundial. E isso eu consegui há dois anos pela OMB, uma entidade nova, que surgiu em 1988, não me importa se não a respeitavam, no meu cinturão estava escrito campeão do mundo. Aí, surgiu a unificação com a AMB, era um caminho natural, foi legal. Se vierem outras, naturalmente, com as outras versões, tudo bem. Mas não vou correr atrás disso. Na próxima luta, vou colocar só um cinturão em jogo, o da OMB, porque ele é ranqueado pela OMB. É um africano, se não me engano, Daniel... não sei o que lá, Daniel das Quantas. [O nigeriano Daniel Atah.] PLAYBOY — É normal você não saber o nome dos seus adversários, Popó? POPÓ — Para mim é. Não é normal no mundo do boxe, mas para mim é. Minha carreira foi sempre conduzida de maneira incorreta, então, isso se tornou normal. Com meus antigos empresários e treinador eu nunca sabia o adversário com que iria lutar. Já fui para urna luta com um cara, fui olhar para ele de repente era outra pessoa em cima do ringue. PLAYBOY — Em que lutas isso aconteceu? Alguma importante? POPÓ — Ah, algumas vezes já aconteceu isso, umas duas ou três vezes. Não lembro de quem era, são tantas lutas... Diziam que o cara quebrou a mão e veio outro. Ou que teve furacão no país do cara e ele não pôde viajar. Teve uma luta minha na Inglaterra que eu fiz contra Daniel Alicéia, a quem nocauteei no primeiro round. Eu ia lutar com um cara, que seria meu desafiante do título da OMB, e ele quebrou o dedo. De última hora arranjaram esse Daniel Alicéia. Tanto que a luta ia ser ao vivo e não puderam passar, porque ninguém sabia desse adversário. Isso foi em dezembro de 2000. Aliás, ainda estou com três cheques dos meus antigos empresários para receber, a bolsa inteira dessa luta. PLAYBOY — Mas você está querendo dizer que havia mutreta nessa coisa de aparecer adversários de última hora? POPÓ — Não sei... Não sei porque a vida de empresário é uma, a minha vida de lutador é outra. Eu não escolho adversário, treino para qualquer um. Se eu pudesse escolher meus adversários, pegava qualquer um na rua, diria: "Ó, véio, vou te dar uma graninha aí e você vai lutar comigo". Seria fácil, né... Quando eu não era campeão, meus empresários podiam escolher. Agora, tenho que lutar contra quem a OMB e a AMB mandarem. PLAYBOY — Quanto pesa seu soco? POPÓ — Deve pesar uma tonelada... Eu já medi num jogo. No Playland, tem um saco de boxe. Você dá um murro no saco e o brinquedo te dá o peso do soco. Já cheguei a 120 quilos. Mas só medi no Playland, não sei se a máquina está desregulada. Mas a potência do soco não está no braço, está no tronco. Quando você gira o tronco, junto com o braço, a força vai em dobro. "Só medi meu soco no Playland. Você dá um murro no saco e o brinquedo te dá o peso. Já cheguei a 120 quilos" PLAYBOY — Você tem uma carreira invicta até agora. O que vai acontecer se um dia você perder? Como acha que vai ser para voltar ao ringue? POPÓ — Claro que penso nisso. É aí que eu vou saber se sou campeão de verdade. Porque o campeão se mostra na derrota. Acho que se um dia eu perder vai ser porque subi no ringue mal preparado. Mas, quem sabe, posso parar minha carreira invicto, sem uma derrota. Uma coisa tenho certeza que não vai acontecer nunca em minha vida, que é parar sendo escadinha de muita gente. Ser escadinha é você estar aí, sem preparo nenhum, como muitos lutadores que eu já vi. Ficam perdendo luta atrás de luta apenas para promover outros campeões. PLAYBOY — E quem é escadinha hoje em dia no boxe? POPÓ — Respeito muito ele, o [mexicano Júlio Cézar] Chávez. O cara fez quase 100 lutas invictas. Já viu isso? Mas agora está aí, gordo, sem nenhuma agilidade, só perdendo. Me diga para que isso, um campeão daqueles. PLAYBOY — O que acha do Maguila? Para muita gente, é apenas uma figura folclórica, não um lutador de respeito. POPÓ — Eu adoro o Maguila. Foi um empregado do boxe e dedicou a vida dele ao esporte. Para mim, foi um excelente lutador na época dele. Reergueu muito o nosso boxe. Também o admiro muito como o folclórico que é, claro, mas não tiro sarro dele. Não foi uma conquista ele ter lutado com o Holyfield [muitos dizem isso, Maguila caiu no segundo round], porque a conquista é só na vitória, não na derrota. Mas tenho certeza de que essa alegria que ele tentou dar, de ser campeão mundial, e não conseguiu, eu estou dando. Para um cara que carregava cimento, tudo o que ele tem hoje é graças ao boxe. Tem que ser admirado. PLAYBOY — Não é estranho você ter essas cicatrizes no rosto e fazer cabelo, unha e essas coisas? POPÓ — É assim mesmo. É para ficar bonito. Já sou lutador de boxe, vou ser feio? Faço cabelo, unha do pé e da mão, sobrancelha, cílios. Tiro o excesso de pêlo em cima dos olhos, mas não marco, não, só tiro o excesso. "Já sou lutador, vou ser feio? Faço cabelo, unha do pé e da mão, sobrancelha. E tiro o excesso dos cílios" PLAYBOY — Você leva a sério a idéia de ser político, como tem dito por aí? POPÓ — Futuramente eu tenho vontade. Mas isso é para daqui a 10, 15 anos. Não vou parar o boxe para ser político. Vou continuar minha carreira como atleta e quero ser apresentador de programa infantil ou esportivo, para tocar simultaneamente ao boxe. Estou esperando alguém me convidar. Eu vejo na rua, as crianças ficam malucas comigo, e eu adoro criança também. PLAYBOY — Esse negócio de você virar político não foi idéia do ex-governador baiano, Antônio Carlos Magalhães? Você é chegado dele, não é? POPÓ — Eu gosto do ACM. Ele tem short meu, que colocou num quadro e botou na parede dele, tem também a luva que usei numa luta. Mas é coisa minha mesmo. Sei que quando a gente tem o poder fica mais fácil de consertar, impor nossas idéias. Quero fazer projetos sociais de esportes para as crianças pobres. PLAYBOY — O boxe feminino vem crescendo. Você acha que boxe é coisa para homem ou vê futuro nas moças? POPÓ — Quando eu falo que boxe é coisa para homem, quero dizer que, comigo, em cima do ringue, para lutar boxe tem que ser homem mesmo, para trocar porrada, tomar murro e ir para cima. Mas eu acho muito bonito boxe para mulher, eu gosto de assistir porque é bem jogado, você vê a mão entrando certinha, tudo legal. PLAYBOY — Às vezes não é chato ser um esportista, não poder beber uma cervejinha, por exemplo? POPÓ — Bebida, de jeito nenhum. Tenho certeza de que bebida nunca vai me fazer falta porque eu tenho urna lição de vida muito grande com isso graças a meu pai. Bebida, não. Mas sem luta vou poder dormir tarde e acordar a hora que quiser. Eu só começo a me alimentar para uma luta de forma específica três meses antes do combate. No resto faço tudo o que eu quero. PLAYBOY — Já te deu algum tipo de insegurança por você ter uma origem tão diferente da que tem sua mulher? POPÓ — Às vezes se tornam um pouco diferentes as coisas porque ela tem uma autoridade, ela é uma empresária, né, manda na empresa dela. E eu também tenho autoridade por ser homem, um lutador de boxe. Às vezes a gente bate como aqueles lados do ímã que não pegam. Eliana Guimarães Freitas é administradora da André Guimarães, empresa do pai dela, que é uma construtora aqui em Salvador. Meu sogro me curte muito, viajamos juntos para o Rio recentemente. Unimos a minha família e a dela em uma só. PLAYBOY — Quando você foi campeão pela OMB, disse numa festa em sua antiga casa, humilde, que seu sonho era ser convidado para uma festa da Ivete Sangalo. Hoje, ela é sua vizinha. Já realizou o sonho? POPÓ — Ainda não, até agora só ela que veio nas minhas festas, rapaz. Mas a gente se encontra bastante, ela me convida para uns eventos, para shows. A vida muda, né? É engraçado você me lembrar disso, realmente eu tinha esse sonho. PLAYBOY — Você aconselharia seus filhos a serem lutadores? POPÓ — Se eles quiserem, tudo bem. Mas não vou levá-los. Não os aconselharia a serem lutadores nem no Brasil, nem em outro lugar. Gostaria que eles estudassem e tivessem uma profissão, que pelo menos tivessem essa escolha, que eu nunca tive. Se quiser ser lutador, tudo bem. Mas eles terão uma decepção muito grande conhecendo o que eu tive no mundo no boxe. PLAYBOY — Se você não fosse lutador, o que seria da vida hoje? POPÓ — Eu seria jogador de futebol, bato uma bolinha legal. Já joguei em time de bairro. Não sei se é porque o campo é meu, a bola é minha, goleiro é sempre eu que arranjo... [risos] . Mas acho que eu teria futuro. Sou um jogador explosivo, me comparo assim... Sou o homem-Romário. Eu jogava em time de bairro antes de ser lutador profissional. Tenho um carapinho de grama em casa, pequeno, quatro na linha e um no gol. Só para matar a fome mesmo. Uma vez por semana vão lá meus amigos de infância, gente que conheço desde que nasci, e todos os meus irmãos. Só velhas amizades. Os velhos amigos são verdadeiros, gostam de mim pela pessoa que sempre fui. Tenho que ter esperteza para novos amigos. [Popó, torcedor do Vitória, tem uma chuteira no bagageiro de sua Mitsubishi. Chegou a nos convidar para essa pelada, alegando que o repórter tinha cara de goleiro, "e franguista".] POR ANDRÉ RIZEK FOTOS FERNANDO VIVAS Publicado em março de 2002, ed. 320. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • LEANDRA LEAL | MARÇO, 2005

    Na novela ela só usa preto. Aqui, posa de azul claro, fala de sexo, e diz que xingaria meio mundo se ganhasse um Oscar POR JACKSON BEZERRA FOTO NANA MORAES Ela está longe do estereótipo de gostosa. Alguns podem até considerá-la gordinha. Mas o rosto de anjo e os olhos de diabinha da jovem Leandro Leal vêm atraindo a atenção do público masculino na novela Senhora do Destino, a sétima de sua carreira. Aos 22 anos, é um raro rosto bonito das novelas que não foi talhado na Oficina de Atores da Globo. Seu playground foi o Teatro Rival, no centro do Rio de janeiro, pertencente a sua família há 70 anos e hoje foi rebatizado de Rival BR. A convivência com artistas, a começar por sua mãe, a atriz Ângela Leal, proporcionou-lhe momentos ímpares. Segundo conta, já teve um Parabéns a Você cantado por Elza Soares, foi carregada no colo por Grande Otelo e ainda convenceu Dias Gomes a assistir uma pecinha protagonizada e organizada por ela aos 4 anos. Ela acha que a companhia freqüente de adultos e artistas queimou etapas e abreviou a adolescência. "No colégio, eu já sabia o que era maconha antes de a galera conhecer", lembra. Leandra estreou na TV aos 12 anos na série Confissões de Adolescente e um ano depois filmou A Ostra e o Vento, longa de Walter Lima Jr. que acabaria por consagrar a menina prodígio. Ganhou vários prêmios, entre eles o de melhor atriz nos festivais de Biarritz e Miami. "Prêmio é chatice, é pra encher a prateleira.", diz. A carreira decolou a partir daí. No teatro, trabalhou em três peças, sendo uma Impressões do Meu Quarto, de sua autoria em parceria com a amiga Bianca Gismonti. Fez seis filmes, entre eles os sucessos Cazuza, o Tempo Não Pára e O Homem Que Copiava. Leandra cursou faculdade de dança, "Não terminei. Gosto mesmo é de atuar." E conversar. "Gostaria de apresentar um programa de TV para poder falar." Sobre o estouro do novo cinema nacional, é polêmica. Diz que há muitos filmes ruins sendo feitos. Sobre sexo, não enrola: "Sou muito individualista nessa coisa". Quando o assunto são as cenas quentes, diz que, antes, estuda muito, mas na hora de filmar não afina: "Esqueço o pudor e dane-se". Mas só se for com um bom diretor. "Cenas de sexo em geral são muito malfeitas, estereotipadas." Para entrevistar Leandra Leal, PLAYBOY convocou o jornalista Jackson Bezerra, que cumpriu a tarefa em duas horas de conversa no apartamento da atriz, no Rio de Janeiro. 1. Com que diretor você gostaria de filmar uma cena de sexo? Com certeza com o Pedro Almodóvar. O cara é muito louco. Eu tenho inveja daquelas atrizes dele, queria ser que nem elas, estranhas, fortes. E ninguém filma sexo como ele. Você viu Carne Trémula? Aquelas duas bundas pra mim é delírio [cena entre os atores Liberto Rabal e Francesca Neri]. E aquele mergulhador de brinquedo em Ata-me? A Victoria Abril de perna aberta na banheira e o negocinho vem nadando por baixo d'água até se encaixar nela. É lindo. Aliás, todas as imagens de sexo que ele produz funcionam, dão tesão. Com ele, eu faria uma cena dessas sem medo. 2. Por que você não se aproxima do Caetano Veloso, que é muito amigo dele? Aí é fogo. Quando o Almodóvar vem aqui, se enfia lá na casa do Caetano, em Salvador. 3. O Almodóvar é um diretor que tem facilidade em tocar no assunto da homossexualidade. Você também é assim na sua vida pessoal? Claro, tenho muitos amigos gays, convivo muito com eles. Mas na verdade acho que o ser humano é animal. Acredito que tenha homem que só se interesse por homem e mulher que só gosta de mulher. Existem héteros também é óbvio. Agora, tesão já é outra coisa. Não venha me dizer que só sente tesão por homem ou mulher. Ou por planta... 4. Ou por vegetais... [risos] Tesão a pessoa sente por qualquer coisa, tem gente que freia e tem gente que não. "É gay", "não é gay", acho essas definições católicas. Sexo não é procriação, é felicidade. 5. Como foi fazer sua primeira cena de sexo, no filme A Ostra e o Vento, quando você tinha 13 anos? Todas as cenas daquele filme foram difíceis. E essa em que eu transo com o vento não foi mais complicada do que as outras. A gente ensaiou muito ante... já cheguei ao set com tudo resolvido. A única saia-justa aconteceu naquela cena em que eu apareço com o vestido molhado, transparente.. Fiquei muito envergonhada. Mas a da transa foi tranqüila. Nunca fui encanada com sexo. 6. Você ainda ensaia hoje em dia para fazer cenas mais quentes? O importante é conversar antes, pra não ficar com medo. "Não quero que mostre tal parte do meu corpo." Na reunião é preciso um diálogo sem pudor, mais do que durante a cena. 7. Sexo é simples? Sou individualista nessa coisa de sexo, sabe? Importa eu na parada, ser feliz. Acho que a gente desenvolve a sexualidade durante a vida toda, independentemente do parceiro com que se está no momento. Um cara bacana ajuda, mas é a capacidade de cada um que precisa ser aprimorada. 8. Você é segura assim desde o início de sua vida sexual? Começar a transar foi uma decisão consciente minha, apesar de não ter sido racional. Aliás, racional nessas horas é só usar camisinha: tem que ter pelo menos um neurônio que apite na hora H e nos lembre disso. O resto é felicidade. E, se estou com uma pessoa de quem eu gosto mesmo, aí é fenômeno, é sensacional, fogos de artifício. 9. Suas amigas também são como você, descomplicadas? Cara, tenho amigas que eram virgens e enrolaram o namorado um ano, separaram e transaram logo depois com outro cara. Eu ficava indignada: "Coitado, você cozinhou o sujeito um ano!" 10. A maioria das pessoas é preconceituosa? Passa Robocop à tarde na TV, mas pessoas do mesmo sexo se beijando não pode? Sexo é um tabu? Sexo é a solução! Pode matar alguém, não pode beijar? 11. Você gosta de ver TV? Não falo mal. Quando acho ruim, simplesmente não assisto. Adoro o Saia Justa, do GNT. Eu sei que é bem pra mulherzinha, mas eu adoro e gostaria de fazer parte do elenco. E aquela velhinha, a Sue Johanson [do programa Falando de Sexo com Sue Johanson], também do GNT? É muito boa. Alguém liga e diz uma barbaridade qualquer: "Como eu faço pra dar a bunda?" E ela não se abala: "Faça isso", "faça aquilo". Adoraria ter um programa de entrevistas meio trash. 12. E cinema? Você gosta da nova safra de filmes nacionais? Tem quem ache que a gente tem que torcer para o cinema brasileiro, mesmo que seja ruim. Até torço, mas conto nos dedos os bons. Pra mim, é o boom da linguagem televisiva no cinema. Tem muito lixo sendo feito. Amarelo Manga é muito bom. Achei legal O Homem Que Copiava, que eu fiz. Carandiru acho ruim. Gosto mesmo é de documentários, como o 174, Janela da Alma e Edifício Master. Tem quem ache que a gente tem que torcer para o cinema brasileiro, mesmo que seja ruim. Tem muito lixo sendo feito. 13. Você gostaria de ganhar um Oscar? Prêmio é chatice, é pra encher prateleira, mas eu amaria ganhar um Oscar. Eu seria mais heavy do que o Michael Moore [cineasta americano que fez discurso anti-Bush ao receber o Oscar em 2003 por Tiros em Columbine]. Faria um discurso político, mandaria meio mundo se foder. O povo que escolhe os premiados não dá, né? Onde já se viu Fernanda Montenegro perder para a Gwyneth Paltrow, aquele poste? 14. Já tinham me avisado que você é uma garota de opinião. Cresci convivendo com adultos nos teatros. Acho que isso influenciou. Fazia teatro amador com a galera que estudava comigo e era a única que se interessava por Constantin Stanislavsky [russo que criou no século 19 um método de estudo para atores]. 15. Ator que não lê não vai pra frente? Acho que pode ir, sim. Não tem a ver com ler ou não ler. No começo da minha carreira, me apaixonava por grandes atores, mas com a convivência descobria que não eram caras tão interessantes. Apesar de serem bonzaços na profissão, eram muito decepcionantes como pessoa. 16. Quem são os homens que você considera bonitos? Meu namorado, o Lirinha [José Paes Lira, do grupo Cordel do Fogo Encantado], o Chico Buarque, o Gael Garcia Bernal. Este é lindo, mas não gostei dele fazendo o Che Guevara [no filme Diários de Motocicleta]. Lembra daquela cena em que ele atravessa o Amazonas a nado? Com aqueles bracinhos? Teria morrido no meio do caminho. Che era demais, um cara forte, li tudo sobre ele. 17. Como é contracenar com Renata Sorrah na novela Senhora do Destino? É uma pessoa contagiante, encantadora. A personagem dela é fantástica, uma piranha de carteirinha. Pegou motorista de táxi, bicheiro. Não temos cena boba, aquela coisa "Oi, tudo bem?" A história em torno do nosso núcleo é pancada. 18. Você sabe que desde a estréia da novela os homens estão reparando mais em você, inclusive o leitor de PLAYBOY? Será? Mas eu acho que não tenho o perfil. Só se for por causa da roupa preta. A pessoa começa a usar preto e já acham que é "a gostosa" [risos]. 19. A maioria dos homens não repara nessas coisas. Mas que você está uma gata, isso está. Antes que você me convide para posar, já digo que não vou mesmo. E tenho uma boa desculpa: acho que o ensaio da Alessandra Negrini [abril de 2000] é tão lindo que ninguém mais precisa posar nua depois dela... 20. Você nunca teve vontade de posar nua, nem para um namorado? Já fiz. Mas prefiro manter bem guardado. PRODUÇÃO MARIANA SANTIAGO CABELO E MAQUIAGEM SANDRA MOSCATELLY Publicado em março de 2005, ed. 356. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • WALTER CLARK

    Perfil O cavaleiro da audiência desafia a vênus platinada O filho pródigo da televisão brasileira, Walter Clark, vai competir com a Globo mostrando por que vale 3,5 milhões por mês Por GERALDO MAYRINK Se alguém pensou que o rei Midas estava chegando ao prédio da Rede Bandeirantes, naquele dia de janeiro em que Walter Clark desceu sorridente de uma perua da emissora, talvez hoje esteja procurando emprego em outro lugar. Elegantíssimo no seu terno preto e na sua brilhante camisa de seda verde, óculos escuros, ele subiu as escadas que o levariam à sua nova mesa de trabalho e a um desafio tão grande quanto o que enfrentou às vésperas do Natal de 1965, quando deixou o cargo de diretor da hoje falecida TV Rio, tomou um pileque e foi trabalhar numa emissora nova e quase sem público, uma certa TV Globo. Quinze anos depois daquela decisão que mudou os destinos da indústria de comunicação no Brasil, Walter Clark voltou à luta. Rico, famoso, admirado e bajulado, esperava-se que de suas mãos jorrassem poder, influência e, naturalmente, ouro. Delas brotaram, em vez disso, incerteza, angústia, medo — e demissões. Em poucas semanas foi varrido do ar um pacote de programas religiosos e destinados às colônias de São Paulo, os shows de auditório de Dárcio Campos, Moacir Franco e Hebe Camargo. Depois, começaram as baixas humanas. Walter Avancini, que chegara em fevereiro de 1979 para dirigir o departamento de novelas da Bandeirantes, resistiu quarenta dias na sua trincheira. Até pedir demissão. Cláudio Petraglia, superintendente de programação e técnica, em duas semanas fechou sua sala que ficava espremida entre a de João Saad, o dono, e a que Walter Clark passou a ocupar junto com Johnny Saad, o filho do dono. Em mais três semanas, pediu demissão novamente (Petraglia já saiu e voltou à emissora incontáveis vezes). Os resultados dessa razzia foram imediatos — só que não eram exatamente os que se esperavam de um Midas. Como um dos mais ilustres contratados da Bandeirantes, Chacrinha, Walter à primeira vista não veio para esclarecer, mas para confundir. Assim, suas mudanças logo fizeram abaixar o índice de Chacrinha, de 14 pontos nas terças-feiras, para 6 no novo horário dos domingos. O horário da novela das 6 da tarde, onde Meu Pé de Laranja Lima ia garantindo seus 10 pontos diários, foi eliminado — e em seu lugar entrou nada menos que um enlatado, Agente 86. "Eram programas ineficientes", resume Walter sobre essa sua primeira limpeza de área. Além disso, quem se importa com o Ibope de uma emissora que poucos vêem? Walter dispensou os serviços do Ibope. A Bandeirantes não anuncia números. Anuncia Walter Clark. Para muitas pessoas, porém, sua chegada à Bandeirantes foi uma tristeza. Mas a 400 quilômetros do Morumbi, onde a Bandeirantes ergueu sua sede e o sonho de ser uma grande rede nacional, a avaliação era muito diferente. No Jardim Botânico, onde a Globo ergueu sua sede e concretizou o sonho de ser uma grande rede nacional, o clima era de apreensão tão grande quanto entre os candidatos a demissão na Bandeirantes. A maior parte da programação da Globo durante os meses de fevereiro e março respondia fulminantemente à audácia da candidata a concorrente. Era uma programação que tinha como assunto a própria Globo, em chamadas institucionais que começavam com o nascer do dia e nos fins de semana varavam as madrugadas, mostrando tudo que a emissora programou para 1981. A Globo não quer parar de quebrar recordes. No dia 16 de março, quando começou a atual novela das 8, Baila Comigo, o Ibope disparou para 83% de todos os aparelhos ligados — coisa nunca vista na estréia de um programa. "Eu tenho medo do medo que a Globo tem de mim", diz Walter. Na verdade, a Globo subiu tanto que sempre se espera, de uma hora para outra, o momento em que ela vai despencar. Walter Clark, sentado na poltrona que o colocou estrategicamente no centro do poder da Bandeirantes, tem à sua frente, separado por quatro metros de assoalho atapetado, Johnny Saad, de 29 anos, vice-presidente da rede. Às suas costas, separado por duas paredes e a sala vazia de Cláudio Petraglia, está João Jorge Saad, de 61 anos, o presidente. Nos corredores sempre animados da Bandeirantes, comenta-se em voz alta que no começo havia o pai e o filho. Agora, existe também o espírito santo. Walter é esse espírito, ou fantasma, que tira o sono dos diretores da Globo e — como logo demonstrou — também o de alguns diretores da Bandeirantes. Especula-se, na verdade, o que ele foi fazer ali, deixando seu famoso apartamento de cobertura na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, e uma vida de sucessos que parecia não ter fim. Era considerado o maior salário do mundo no dia em que deixou a Globo, em maio de 1977: ganhava algo em torno de Cr$ 1,5 milhão por mês*. Como produtor de cinema (A Guerra Conjugal, A Estrela Sobe, Eu Te Amo), ficou ainda mais rico. Portanto, não veio em busca de fortuna. Há algo de épico na nova empreitada de Walter Clark. "O trabalho", diz ele, "só vale se for agradável e se tiver um sentido de missão." O Rio o aborrecia. "Eu estava de saco cheio, ninguém me levava a sério. Estavam preocupados em saber quem eu comia, com quem eu broxava, onde tomava meus pileques." Por isso, depois de uma única conversa de seis horas com a família Saad, na casa do patriarca João, em janeiro, arrumou as malas e mudou-se para uma suíte duplex no Macksoud Plaza, em São Paulo. Sozinho. Casara-se quatro vezes — duas delas com atrizes — Ilka Soares e Maria do Rosário Nascimento e Silva — e queria recomeçar a vida. Fechou o apartamento da Lagoa Rodrigo de Freitas para reformas. O encontro de Walter com os Saad parece ter sido preparado pela mente fértil de algum escritor de novelas. De um lado, o brilhante criador e criatura da televisão brasileira, o homem que foi diretor da TV Rio aos 21 anos de idade, aos 30 comandava o mais poderoso veículo de comunicação de massas que o país já conheceu — e aos 45 estava desempregado. De outro, a Rede Bandeirantes, há catorze anos lutando por uma fatia melhor do mercado, 4.800 empregados, 22 emissoras de TV, 19 de rádio, 20 milhões de dólares de novos equipamentos chegando este ano — e ainda sem um líder. Assinaram um contrato de dois anos, de cláusulas não reveladas, pelo qual Walter deve estar recebendo um salário calculado em Cr$ 3,5 milhões por mês. Não se sabe. Sabe-se, porém, da euforia do recém-chegado e de sua singular posição dentro da empresa: "Vou agir como dono, sem ser". O fuzilamento sumário de programas e pessoas mostrou a disposição de Walter. Na verdade, ele está começando a armar um cenário quase impensável depois de uma década de soberania absoluta da Globo — a criação de uma outra estação, um outro hábito, um outro estilo de vida. A idéia o persegue há muito tempo, bem antes de deixar a Globo. Em 1975, ele discursara para quatrocentos alunos da Faculdade de Ciências Administrativas de Belo Horizonte: "Essa história de que não há campo para mais uma rede de TV no Brasil é inteiramente desprovida de fundamento". Para prová-lo, Walter está trabalhando doze horas por dia. Um denso mistério envolve a programação futura da emissora, que deverá ir para o ar em setembro. A única informação já conhecida pelo mercado é técnica: o número do canal que identifica a Bandeirantes em São Paulo mudará de 13 para 9. Em todo caso, a fórmula geral a ser implantada é simples: Walter pensa numa televisão que ofereça serviço público, informação e entretenimento e ficção, nesta ordem. Por isso, o raquítico departamento de telejornalismo será reforçado em proporções ainda desconhecidas no país — o plano é transmitir notícias no momento em que os fatos acontecerem, o dia todo. Na hora do noticiário normal, enfim, elas seriam comentadas por jornalistas como Augusto Nunes, Percival de Souza e Joelmir Betting — especialistas em política, polícia e economia, respectivamente. Pelo menos até o final de março, a contratação desses profissionais era tida como certa. O esquema começou a ser acionado logo que Walter entrou no edifício Radiantes, a sede da rede. "Não tenho pressa; é um trabalho a longo prazo", disse. "Ele chegou atropelando todo mundo", rebateu Walter Avancini, agastado com o episódio do seu afastamento. Avancini recebeu um memorando de Walter agradecendo os bons serviços prestados e aceitando sua carta de demissão, que ele não havia escrito. De qualquer forma, é no departamento que pertenceu a Avancini, o de novelas, que se pode encontrar algumas pistas para descobrir o futuro da Bandeirantes. Ali estava sendo preparada, desde abril de 1980, uma novela de proporções monumentais, Os Imigrantes, prevista para durar um ano e cujas gravações já haviam começado no dia em que Avancini foi embora. Escrita por Benedito Ruy Barbosa e Carlos Queirós Telles, a novela vai se passar em quatro fases (1891, 1917, 1929 e 1941/45), contando a história dos imigrantes portugueses, italianos e espanhóis que povoaram São Paulo. A grande atração popular é Paulo Autran, no papel de um espanhol anarquista. A grande atração para a Bandeirantes é falar da formação de um Estado ainda desconhecido das telenovelas. Pode estar aí, também, a última chance das novelas da Bandeirantes, que, como tantos outros programas, correm risco de vida. "A nova Bandeirantes será uma caixa de ressonância de São Paulo", avisa Walter Clark, paulista, carioca desde os 6 anos e agora de volta ao berço para a ambiciosa empreitada de criar o que chama de "televisão brasileira". Para isso vai ter que reformar auditórios e instalações, contratar gente e seduzir os anunciantes, que de resto prestigiaram-no maciçamente e com palmas durante o almoço em que se apresentou a eles. Já tem dois braços fortes para ajudá-lo. Um, Clemente Neto, era o segundo homem da Rede Globo até outubro e está cuidando da programação. O outro, José Ulisses Arce, saiu logo depois que Walter deixou a Globo em 1977 e é o supervisor geral de vendas. "A Globo demorou quatro anos para tomar a liderança", lembra Walter. Quanto à Bandeirantes, não quer prever nada. "Não vim como mago", diz. "Vim como profissional." O duelo entre Walter, com sua "televisão brasileira", e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, com sua avassaladora Rede Globo, promete ser emocionante. De um lado está um homem afável, sorridente, profundamente emotivo mas extremamente controlado nas suas emoções. Aparentemente não tem nada do seu ex-braço direito e hoje sucessor na Globo, que não vacila em proclamar, do alto de sua inegável competência: "Em matéria de televisão, sou dono da verdade mesmo". Walter já rabiscou poemas, considera-se um humanista, gosta de política e de debates e esculpiu sua imagem de ser social na medida exata de seu temperamento. Boni entende de vinhos e queijos, mas não tem outras leituras além dos livros técnicos de eletrônica e de psicologia — somadas, estas duas ciências lhe deram o poder extraordinário de manipular tanto as imagens que manda para o ar quanto os homens que estão sob seu comando. O teatrólogo Paulo Pontes (Gota d'Água) considerava Boni um gênio: "Ele conseguiu dominar à perfeição a técnica do comando pelo terror". No começo da Globo, Walter também mandou para a rua 40% do pessoal, numa véspera de Natal. Nenhuma daquelas pessoas — e nenhum dos que estão sendo desalojados agora do Morumbi — o considera um anjo ou um gênio. Em compensação, a Rede Globo cresceu tanto com a sua chegada (dobrou o faturamento publicitário logo no primeiro mês), que a vida ali dentro passou a ser uma festa. Nasceu com Clark o mito da Vênus Platinada, o lugar de contratações milionárias. Seu barco aportava sempre em coquetéis, faturamento, sucesso. Mas havia um outro barco navegando contra a maré. Quando Walter saiu, o pessoal desse outro barco gritou: "Bem feito!" Esse pessoal da contramão embarcou na canoa do trabalho duro. Era chamada de "nau dos insensatos" e vinha capitaneada pelo próprio Boni, trazendo entre seus passageiros irritados Daniel Filho, Armando Nogueira, Renato Pacote e o diretor de criação da Globo, Borjalo. Poucos dias depois do desenlace, Boni deu uma de suas raríssimas entrevistas e disse à revista Veja que adorava Walter: "Ele é um homem com caráter raramente encontrado, tem uma capacidade de luta incomum e é um excelente vendedor. Mas, na verdade, jamais foi um homem de televisão, no sentido de produção". Boni comparou Walter à rainha da Inglaterra, pois ficou sem função, já que a emissora era tocada pelo pessoal que ele mesmo contratara. E explicou: "Assim, pela honestidade de Walter Clark, perdido entre a ausência de posição política e a desnecessidade profissional, o problema foi fazendo dele uma pessoa muito infeliz". Walter deixou a Globo num processo sumaríssimo. Boni filosofou que ele fora "tragado pelo monstro, como todos nós um dia seremos". Outros disseram que Walter fora tragado durante um jantar em Brasília, onde sentou-se à mesa de dois generais, Danilo Venturini (hoje chefe do Gabinete Militar da Presidência da República) e João Baptista Figueiredo (então chefe do Serviço Nacional de Informações), e falou grosso contra o regime. A maioria, porém, acredita que Walter afundou quando a "nau dos insensatos" finalmente conseguiu fazer um buraco no seu barco. A Globo se deu bem sem Walter, e vice-versa. Na primeira segunda-feira sem ele, porém, baixou no Jardim Botânico uma certa melancolia. Dizia-se: "Agora, gente, todo mundo de terninho da Ducal, Volkswagen na porta e às 9 horas na sala". Depois, as coisas entraram nos eixos. Walter passou por experiências dramáticas. No mesmo dia em que nasceu seu primeiro filho homem, de seu casamento com Fernanda Bruni, morreu a primeira de suas três filhas, Flávia, de 16 anos. Seu barco pegou fogo e uma estrada foi aberta onde estava sua casa de campo, em Itaipava. Animou-se, porém, com o cinema e anunciou, em sociedade com Luiz Carlos Barreto, a sua disposição de produzir 24 filmes em 1978. O cinema brasileiro excitou-se com a notícia — pois Walter sonhava alto, pregando uma campanha a ser desenvolvida junto ao governo para obter incentivos fiscais para quem aplicasse em cinema. Queria, ainda, construir um grande número de pequenas salas de exibição, de até setecentos lugares cada. A contribuição de Clark à hollywoodização do Brasil, no entanto, limitou-se mesmo à Rede Globo. O micróbio da televisão voltava a atacá-lo e em janeiro de 1980 pediu uma audiência ao ministro chefe da Casa Civil da Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva. A audiência saiu em junho, na mesma época em que finalmente desabava, três meses antes de completar 30 anos de idade, a TV Tupi de São Paulo. Walter foi queixar-se a Golbery de que estava cansado de ser chamado de romântico, mostrou planos para televisões educativas e voltou para o Rio. Embarcou, então, durante três meses, no projeto da televisão que o Jornal do Brasil queria pôr no ar. A JBC, tendo como sócios o jornal, Walter e um grupo de associados, acabou para ele antes mesmo que o jornal fosse alijado da concorrência. Walter não gosta de falar no assunto. Diz que "tudo saiu errado" porque a própria direção do JB estava dividida sobre a conveniência ou não do projeto. Nesse momento, o nome de Walter Clark entrou na pauta da família Saad. O patriarca João já havia tomado sua decisão de crescer a qualquer custo. A Bandeirantes começara a ser criada em 1962 e foi inaugurada em. 1967, em instalações que eram o máximo de avanço técnico para a época. Dois anos depois, a Bandeirantes foi, por um único momento, a maior do mundo — no incêndio que consumiu seu prédio à prova de fogo. Filmado de um caminhão plantado do lado de fora do prédio, o incêndio foi apresentado pelo locutor Júlio Lerner. Ele pediu desculpas pela "ocasião imprópria" para entrevistas e advertiu: "Cuidado com o choque!", passando a palavra para João Saad, cuja voz embargada fazia contraponto às nuvens de fumaça: "Estamos aqui consternados assistindo à destruição do prédio que construímos com tanto trabalho. Mas vamos reconstruir. Vamos reconstruir!" A cena do incêndio faz hoje parte de um filme promocional da Rede Bandeirantes, como prova de sua vontade de ir em frente. De fato, a emissora fechara o primeiro e o segundo ano no vermelho quando o incêndio transformou em tragédia o déficit financeiro, já que não havia seguro. Ainda assim, as transmissões continuaram do Teatro Bandeirantes, na rua Augusta, enquanto uma multidão de diretores gerais — treze, antes de Walter Clark — se sucederam na tentativa de melhorar a medíocre atuação da emissora junto aos pontos do Ibope (está abaixo da TV Record, que tem um custo operacional infinitamente menor e praticamente só passa filmes). Com a rede sendo aos poucos formada, o esforço mais ambicioso aconteceu entre julho de 1978 e novembro de 1979, período em que a emissora esteve sob a direção de Carlos Augusto de Oliveira Sobrinho, o Guga, irmão do Boni. Guga é dono de uma produtora de filmes para TV, a Blimp Films, e passara três meses na Tupi, tentando em vão empurrá-la do segundo para o primeiro lugar de audiência, em São Paulo. Em 120 dias, dizia, passaria então a Bandeirantes do terceiro para o segundo. Parecia ter decidido isso em família — mas não a família Saad: "Em conversa com o meu irmão fiquei sabendo que ele se interessa mais do que nunca em ter uma concorrente que estimule a Globo". O interesse foi tanto que Guga acabou saindo incompatibilizado com a família Saad, que recebeu mal suas decisões. Quando Walter Avancini chegou, em fevereiro de 1979, e começou a distribuir memorandos, foi aconselhado a parar com aquilo, pois os Saad ainda estavam traumatizados com o que chamavam de "caudilhismo" de Guga. Uma semana antes de deixar seu posto de diretor geral de novelas, Avancini comentava esses fatos com um certo ressentimento e alguma ironia: "A virgem Bandeirantes havia sido violentada pelo Guga!" Avancini tentou até o último instante salvar suas novelas, mas o naufrágio de Rosa Baiana, de Lauro César Muniz, inteiramente filmada na Bahia e aparentemente sem público em lugar nenhum do país, apressou o desfecho. Saiu raivosamente, dizendo que Walter Clark desde o começo o sabotara. Os ecos dessas tempestades mal são percebidos na sala de João Saad, onde as portas quase sempre estão abertas. E um escritório amplo e simples, enfeitado com uma grande foto de Ademar de Barros, ex-governador de São Paulo e seu sogro. João Saad é um homem calmo e de fala mansa. Usa suspensórios e é tão determinado que, com mais de 50 anos e milionário, foi prestar vestibular de direito em São José dos Campos, a 150 quilômetros de São Paulo. Filho de um comerciante de Damasco que desembarcou no Brasil no começo do século, Saad tem fazendas, uma imobiliária, uma construtora, duas concessionárias Mercedes-Benz e cerca de duzentos terrenos no Morumbi, o bairro mais elegante de São Paulo. "Não temos cuidado das nossas matas", diz ele numa espécie de mea culpa. Saad recentemente reduziu de 160.000 para 30.000 o número de pés de café numa de suas fazendas, e a ausência das plantas acabou provocando grande desequilíbrio na paisagem. No campo das comunicações, porém, quer provocar todo o desequilíbrio possível, mesmo sem o concurso do seu novo contratado. "Se o Walter não quisesse vir, nossa arrancada continuaria do mesmo jeito. Temos a prata da casa." A prata mais vistosa é representada por João Carlos, o Johnny, um dos dois filhos de João trazidos para a emissora (o outro, Ricardo, é diretor administrativo). Johnny também tem na sua sala um retrato de Ademar de Barros (só que vinte anos mais moço que no retrato da sala ao lado) e está na empresa desde 1968, quando tinha 17 anos. Trabalhava nas granjas da família e só foi estudar administração na Fundação Getúlio Vargas por pressão do pai. "Lá me ensinaram uma porção de coisas", ele brinca. Entre estas, que nenhuma empresa pode sobreviver dando prejuízo. Os olhos de Johnny voltam-se para o passado, isto é, para os olhos de Walter Clark, que estão fixos no futuro, isto é, nos olhos de Johnny. Há uma correspondência profunda de olhares — um confirma o que o outro diz. "Precisamos administrar cada centavo como se fosse um milhão", diz o terceiro homem da empresa. "Passamos muito abruptamente do artesanato para a produção industrial", replica o segundo. E anuncia: "Nós tiramos todo o acrílico do ar, os efeitos eletrônicos, o visual asséptico. A nova programação será mais tropical, com madeira, fogo, verde, materiais e formas brasileiros". Walter não diria outra coisa. Para ele, o luxo e a beleza da Globo foram frutos do AI-5, uma reação de sobrevivência, pela forma, ao que o rigor da censura amputava do conteúdo. Johnny, por sua vez, acha que o rádio morreu no dia em que inventaram o gravador. Quanto a Walter, não se cansa de repetir que a liderança da Globo nasceu no dia em que, por falta do que fazer, puseram uma câmara na rua e filmaram a enchente que inundou o Rio no verão de 1966. O acordo entre o espírito santo e o filho do dono é, portanto, total. E o pai garante: "Televisão é um esporte violento", diz ele. Perguntado sobre o que lhe dá mais dinheiro, as fazendas ou as TVs, Saad filosofa: "O Brasil é uma terra maravilhosa; no que trabalhar rende". E compara a TV com a agricultura: "Costuma-se mandar para o mato os coitados, os analfabetos, os jecas. Agricultura é para gente inteligente, preparada, é uma ciência. Televisão é a mesma coisa". Na Bandeirantes havia o dono e o filho do dono. Agora, dizem que há também o espírito santo Colocado providencialmente, pela sua idade, entre o pai e o filho, Walter Clark tem agora nas mãos o destino da Bandeirantes — e de milhões de pessoas que procuram opções quando ligam seus aparelhos. Na Globo, dizem que o gênio de Walter poderá funcionar de novo — e já existe até uma torcida maldosa para que ele embarque outra vez no barco da fama e do faturamento para naufragar inevitavelmente daqui a alguns anos. A festa, no entanto, parece ter acabado para Walter. "A TV Rio e a Globo foram feitas de pileque", ele analisa. "A Bandeirantes não será." Passou os dois primeiros meses em São Paulo num único trajeto, que o levava da Bandeirantes ao hotel. "Tenho que vencer ou vencer", ele diz. "E inaugurar uma coisa a cada dia." Quando finalmente alugou um apartamento, em março, desapareceram as últimas dúvidas de que ele veio para ficar. "A TV Rio e a Rede Globo foram feitas de pileque. A Bandeirantes não será", sentencia Walter Clark Está morando na velha avenida São Luís, no centro da cidade, lugar que já foi chique e hoje anda assolado pelas obras do metrô. "Vai voltar a ser chique", ele garante, "porque estou mudando para lá." Além de derrotar a Globo, Walter Clark agora só pensa numa coisa: reduzir sua jornada de 12 horas. "Trabalhar demais é sinal de incompetência", ele sentencia. ILUSTRAÇÃO GEPP E MATA FOTO JORGE BUTSUEM * Ou seja, 109.000 dólares pela cotação da época. Pela cotação de hoje, Walter ganha na Bandeirantes apenas 47.000 dólares, ou Cr$ 3,5 milhões, Se ainda estivesse na Globo e se seu salário mantivesse igual correspondência, estaria ganhando cerca de 9 milhões de cruzeiros. Publicado em maio de 1981, ed. 70. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • ROBERTA CLOSE | MARÇO, 1990

    O FINAL FELIZ Terminou com um esperado happy end o enigma que há seis anos fascinava milhões de fãs — o mito Roberta Close se transformou numa mulher. E agora, pela primeira vez, ela revela para o leitor de PLAYBOY sua nova e gloriosa intimidade FOTOS BOB WOLFENSON Corpo e alma juntos. Depois de passar nove meses na Europa para realizar sua sonhada operação de mudança de sexo, Roberta Close, 27 anos, garante que entra em outra fase da vida e da carreira. "Estou mais feliz. Consegui juntar meu corpo a minha alma, que era completamente feminina." Daqui para a frente, portanto, ela só pensa em dar um grande impulso ao seu trabalho artístico. Cenas picantes. Para começar, Roberta quer divulgar seu LP, lançado no ano passado. Ainda este mês, ela deve causar um grande auê no filme O Escorpião Escarlate. "Tenho uma participação pequena, mas picante", explica. Em seguida, pretende arrumar as malas para ir trabalhar no exterior: "Vou à Itália e talvez fique por lá". Quem sabe não deixará muitas saudades? REALIZAÇÃO DULCE PICKERSGILL PRODUÇÃO KIKI ROMERO Publicado em março de 1990, ed. 176. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • PATRÍCIA COELHO

    Mulheres Que Amamos Você fez plantão em frente à telinha para flagrar a intimidade desta paulistana na Casa dos Artistas. Patrícia é a coelhinha que amamos FOTO PRISCILA PRADE Como o título do seu CD, você se considera "um pouco maluca"? Sim, é o meu estado de espírito, não é insanidade, é ser divertido! Você prefere cantar ou encantar? [Risos.] Eu canto e encanto! Quando canto, passo a minha verdadeira emoção ao público. Como é o assédio dos seus fãs, você é muito cantada? Tem muita mulher no meu show, não rola xaveco! As meninas se identificam com as letras, e o assédio é para ser minha amiga, pedir conselho, coisas de mulher. Você tem alguma mania? Comprar CD. Uma vez fui a uma loja e comprei o meu! Você posaria nua? Não tenho coragem, tenho muito vergonha da exposição! PRODUÇÃO KIKA PAGNOT ASSISTENTE NADIA SESTARI CABELO E MAQUIAGEM JUNIOR MENDES Publicado em março de 2003, ed. 332. Editora Abril, São Paulo - SP.

  • AS BRUXAS DO VER-O-PESO

    Ficção Ervas, receitas e mandingas para garantir duas por noite Por SÍLVIO FERRAZ Broxei pela primeira vez aos 15 anos. Mas broxar aos 15 anos não é nada. As circunstâncias eram tão atenuadoras que o fracasso seria mesmo motivo de orgulho. Vejam só. Cenário: rendez-vous da Maria Boiadeira, em Caxambu, Minas. Parceira: uma desdentada prostituta que fumava enquanto eu me esfalfava. Saí encolhido. A Boiadeira gritava inconformada: "Freguês meu não broxa!" E me propunha, a título de indenização, uma jovem recém-chegada de Baependi, desvirginada naquelas semanas por um tio tarado. Os caipiras que aguardavam a vez ouviam de olhos arregalados, e sentiam o peso da responsabilidade à medida em que Boiadeira repetia, sempre aos gritos: "Freguês meu não broxa!" (Adelaide, minha mulher, acaba de passar por aqui e olhou por cima dos meus ombros. Não resistiu e leu as primeiras linhas. Colocou as mãos nas cadeiras, realçou as coxas grossas com a roda do vestido e sapecou: "Ô, Valdeco, se vai escrever tuas broxadas, vai estourar a memória do computador". Virou as costas, silenciosa como chegou. Maldição. Broxei mesmo. Parei de escrever.) Continuando. Vou abreviar. Não que Adelaide tenha razão (ela também já deu suas rateadas). Eu ia contar uma, aos 24 anos, engraçadíssima. Outra, aos 33, meio deprimente. Outra... deixa pra lá. Vamos à última. Não à broxada, mas às minhas providências. Homero, colega lá do hospital, médico que acredita em mandinga, vendo-me há dias cabisbaixo, esperou o turno da noite, ninguém na sala, e foi direto ao assunto: "Valdeco, isso acontece. Quer um conselho? Pega três dias, saca um empréstimo de emergência aqui na caixa de socorro e dá entrada numa passagem para Belém. Toma o cuidado de mandar enviar o carnê pra cá, para Adelaide não perceber. Chegando, vá direto do aeroporto para o Mercado Ver-o-Peso. Procure as minhas bruxas. Eliete, Maria de Lourdes, a Cheirosa, e Maria Marinho. Não precisa contar o caso com detalhes. Elas sacam. Deixa o resto por conta delas". Sacudi a cabeça, ainda cabisbaixo, mas, não sei por quê, com um fiapo de ânimo. E me mandei para Belém. Pego o táxi e mando tocar para o mercado. O motorista tenta puxar papo. Programa para a noite etc. e tal. Descarto. Meu negócio são as bruxas. Ele, diante da minha indiferença, saca logo: "O que é isso, companheiro? Não desanime. Já passei pela mesma coisa e me curei lá no mercado". Solidário, cobra o preço justo. Mergulho naquele mundo colorido, barulhento e de incrível beleza plástica. Um mercado fundado no século XVIII e onde se compra e vende quase de tudo. Gente amável, sorridente. Em algumas barracas, fogo aceso, panelas destampadas deixam nos ares perfumes dos pratos típicos da região, tucupi, maniçoba, tacacá, o peixe tucunaré com castanha-do-pará, frutos como açaí, graviola, cupuaçu, bacuri, pupunha, biribá e a manga que se esparrama por toda a cidade... Inebriantes. Vou andando pelas atéias do mercado e, estranho, sem que pergunte pelas bruxas, vendedores e passantes vão logo indicando: "É por ali, dobre à direita..." Parece que o mercado é todo populado por videntes — ou por broxas recuperados. E eu não tenho nenhum carimbo de broxa estampado na testa. Chego às bruxas. Reverência da minha parte, esculhambação natural por parte de Eliete, a primeira delas. Gordinha, baixa, peitos grandes, camiseta Coke, bermudas justas, sandálias Rider. Antiimagem de bruxa. (Aviso: não as chame de bruxas, nem de feiticeiras nem de mandingueiras. Ficam ofendidas.) — Deixa comigo, meu amigo. Há quanto tempo você não... (e, com o punho fechado, num movimento sincronizado de vaivém, acompanhado por um assobio que marca o ritmo, deixa incompleta a pergunta). Sem dar tempo para a resposta, Eliete Barros Teles, 33 anos, dezoito no mercado, vira-se para a banca cheia de ervas, galhos e beberagens e começa seu trabalho. Enquanto manipula um canivete e corta ervas diversas, garante: "Com isso você vai dar pelo menos uma todos os dias". De soslaio, verifica na minha cara o impacto da perspectiva. "Ou duas", acrescenta, reforçando seu marketing sexual. Eliete, neta da Dona Cheirosa, nascida na Ilha das Onças, em Benfica, tem suas especialidades: Banho de Descarrego, Quebra Barreira, Quebra Feitiço, Vence Tudo, Desatrapalha, Desempata e... Broxura. "Esse é o meu forte", anuncia. E manda sua prescrição: "Olha, pra levantar mesmo tem que juntar catuaba, marapuanã, pinto de quati em pedacinhos, esporão de galo ralado, bico de pica-pau (também ralado), jucá, moleque seco, xixuás, tudo isso mergulhado numa garrafa de vinho moscatel. Toma três vezes ao dia. Levanta até defunto". Passa-me o embrulho de ervas e a recomendação: dar talhos inclinados nos galhos e, na garrafa de vinho, deixar descansar três dias. Começar a tomar duas colheres pela manhã. A cada dia, aumentar meia colher antes de deitar até completar quatro — duas de manhã e duas à noite. "Em dias de maior animação podes ir a cinco colheradas, mas mais nada, hein?" A bruxa, que sabe das coisas, confessa sua experiência: "Os homi tão broxando, meu filho. Muita bebida e maconha". Pede 20 reais. Regateio (instruções do Homero, que não confessara, mas que a cada momento eu me convenço já ter freqüentado aquelas bandas). Baixa para 18. Pechincho mais. Quinze. Choro de novo. Quase levo uma esculhambação. Fica pelos 15 mesmo. De brinde. Eliete dá receita especial para mulher que busca homem: "Um vidro de colônia, qualquer uma serve, juntar com as ervas carrapatinho, agarradinho, faz-quem-quer. Derramar num vidro de mel de abelha. Misturar bem e aplicar no local antes de ir para cama. Se o cara não ficar doidão, pode trazer aqui que eu dou o dinheiro em dobro". Na barraca de Maria de Lourdes das Mercedes, a mais antiga do mercado, conhecida por todo o Pará como a Cheirosa do Ver-o-Peso — 82 anos de idade, desde os 3 no mercado ajudando a mãe, Ramira Gonçalves —, a consulta é cerimoniosa. Nada dos risos quase debochados da Eliete. Isso coloca-me à vontade. Conto tintim por tintim. Chamo Adelaide pelo nome verdadeiro, descrevo suas coxas — seu ponto forte —, seus peitos e, apesar de tudo, minha falta de interesse e minha descrença de que, algum dia, recupere o tesão. Mãos pequenas, delicadas e ágeis começam a se movimentar nos tufos de ervas que têm ao lado. Cheirosa fala com conhecimento de causa: já enterrou quatro maridos. "E tô aqui, inteirona". Seleciona e separa montinhos. Passa para a galharia. Corta pedaços. Depois pega um negócio fininho, seco, corta em pedacinhos. "Sabe o que é?", pergunta. "Vergalho de quati", responde ela própria, em linguagem refinada. Sua receita imbatível: "Um litro de vinho moscatel, amarapuama, catuaba, moleque seco, caroço de abacate ralado, chifre de boi lascado. Guardar a garrafa do vinho no sereno e na chuva. Começar a beber três semanas depois". Vira-se, solene, e recomenda: "Tome três colheradas ao deitar. No dia seguinte, já começa o efeito. Mas cuidado. Se o efeito for muito forte, pare de tomar por cinco dias". Preço: 20 reais. Não tenho coragem de pechinchar. Cheirosa olha os costumes de hoje, sentencia: "As mulheres estão muito mais atrás de homem. Homem é mais liberto. Vai e volta. A sabedoria é esperar a volta com calma, perfumada". As consultas têm vasta assistência. Os vendedores de açaí, cupuaçu, pupunha encostam-se nas barracas ao lado ouvindo a troca de confidências do "estrangeiro". Falta de educação? Que nada. Naturalidade. O vendedor de bilhetes de loteria, a menina que perdera o noivo e a coroa que quer mais "animação" estão na fila para as próximas consultas e já sabem, de antemão, que terão suas confidências não só ouvidas como comentadas. E não estão nem aí. Faz parte do jogo, do cenário do Ver-o-Peso, um mercado sem igual. Todos, algum dia, já compartilharam aflições e frustrações. O grupo fala com desinibição, dá testemunhos. Só não dá palpite para não atrapalhar as bruxas. "Depois que passei a tomar isso, com uma cachaça de manhã, dou três por noite", disse, para me encorajar, o homem do açaí, pele curtida pelo sol, aparentando mais idade do que eu. Sua companheira ao lado, desdentada (lembra a prostituta de Caxambu), ri orgulhosa do macho enquanto balança a cabeça passando atestado. Fico animado. Acho que bastam duas consultas. Mas Maria Marinho de Farias, 28 anos, me vê. Não escapo. É a terceira das bruxas do Homero. Mais jovem, mais desbocada, mais moderna se quiser, vai logo dizendo: "Aqui broxura não é problema". Canta loas às ervas. Só falta dizer que paraense não broxa, como a Boiadeira. Toda hora, Caxambu vem à cabeça. "Quer dar quantas?", pergunta, entre risadas do povaréu. Exijo respeito e que me deixem a sós com a moça. Maria já sabe o nome da Adelaide, o que está acontecendo e tudo o mais. Para minha surpresa, é a única que diz, peremptória: "O problema é a Adelaide." Quase rolo de satisfação. Meu gozo começa ali. "Não, não pode ser a Adelaide", defendo a cara-metade só para constar. E mais não digo. "Mas é, insiste. E eu vou cuidar dela." Pega várias partes de carne que parecem filés de peixe cortados em fatias grossas. Olha para eles, olha para mim. "A Adelaide bate onde?" Eu coloco a mão à altura do queixo. Ela escolhe um dos filés. Pendura os outros com cuidado para não parti-los. Numa pequena tábua, começa a picar em quadradinhos. Quando acaba, enfia os pedaços num vidro de álcool junto com os outros galhos e ervas e pós. Sua recomendação: "Convença a Adelaide a passar nos lá embaixo dela, antes de ir pra cama com você". "Mas o quê que é isso?" "É chibiu de bota. É batata. Minha mãe diz que eu nasci por causa disso." Nem discuto. Quanto é? 20? Tá bom. Vou embora confiante, deixo as bruxas ocupadas com outros clientes. No hotel, ouço que a clientela vem do Brasil todo. "Brasil só, não. Tem até alemão nessa, meu amigo", garante o chofer. "Nessa e em outras. É pena o senhor tá indo embora", lamenta. Epílogo: hoje escrevo de cuecas. Adelaide vive sorrindo. Comprou um computador novo pra eu não sair de casa. Deu pra andar sem calcinha. E o Homero? Andou meio tristonho. Demorou a abrir o jogo. Dei meio litro da beberagem da Cheirosa para ele. É outro homem. E não paro de encomendar. Mando o cheque e recebo pelo Sedex a galharia, as ervas e tudo o mais, todo mês. Estou na fase do aperfeiçoamento enológico: sapeco tudo em vinhos franceses, Bordeaux, safra 86. Vale. Yo no creo en brujas, pero... ILUSTRAÇÃO PATRÍCIA MAGANO Publicado em março de 1997, ed. 260. Editora Abril, São Paulo - SP.

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