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AS BRUXAS DO VER-O-PESO


Ficção


Ervas, receitas e mandingas para garantir duas por noite


Por SÍLVIO FERRAZ


Broxei pela primeira vez aos 15 anos. Mas broxar aos 15 anos não é nada. As circunstâncias eram tão atenuadoras que o fracasso seria mesmo motivo de orgulho. Vejam só. Cenário: rendez-vous da Maria Boiadeira, em Caxambu, Minas. Parceira: uma desdentada prostituta que fumava enquanto eu me esfalfava. Saí encolhido. A Boiadeira gritava inconformada: "Freguês meu não broxa!" E me propunha, a título de indenização, uma jovem recém-chegada de Baependi, desvirginada naquelas semanas por um tio tarado. Os caipiras que aguardavam a vez ouviam de olhos arregalados, e sentiam o peso da responsabilidade à medida em que Boiadeira repetia, sempre aos gritos: "Freguês meu não broxa!"


(Adelaide, minha mulher, acaba de passar por aqui e olhou por cima dos meus ombros. Não resistiu e leu as primeiras linhas. Colocou as mãos nas cadeiras, realçou as coxas grossas com a roda do vestido e sapecou: "Ô, Valdeco, se vai escrever tuas broxadas, vai estourar a memória do computador". Virou as costas, silenciosa como chegou. Maldição. Broxei mesmo. Parei de escrever.)


Continuando. Vou abreviar. Não que Adelaide tenha razão (ela também já deu suas rateadas). Eu ia contar uma, aos 24 anos, engraçadíssima. Outra, aos 33, meio deprimente. Outra... deixa pra lá. Vamos à última. Não à broxada, mas às minhas providências. Homero, colega lá do hospital, médico que acredita em mandinga, vendo-me há dias cabisbaixo, esperou o turno da noite, ninguém na sala, e foi direto ao assunto: "Valdeco, isso acontece. Quer um conselho? Pega três dias, saca um empréstimo de emergência aqui na caixa de socorro e dá entrada numa passagem para Belém. Toma o cuidado de mandar enviar o carnê pra cá, para Adelaide não perceber. Chegando, vá direto do aeroporto para o Mercado Ver-o-Peso. Procure as minhas bruxas. Eliete, Maria de Lourdes, a Cheirosa, e Maria Marinho. Não precisa contar o caso com detalhes. Elas sacam. Deixa o resto por conta delas". Sacudi a cabeça, ainda cabisbaixo, mas, não sei por quê, com um fiapo de ânimo. E me mandei para Belém.


Pego o táxi e mando tocar para o mercado. O motorista tenta puxar papo. Programa para a noite etc. e tal. Descarto. Meu negócio são as bruxas. Ele, diante da minha indiferença, saca logo: "O que é isso, companheiro? Não desanime. Já passei pela mesma coisa e me curei lá no mercado". Solidário, cobra o preço justo. Mergulho naquele mundo colorido, barulhento e de incrível beleza plástica. Um mercado fundado no século XVIII e onde se compra e vende quase de tudo. Gente amável, sorridente. Em algumas barracas, fogo aceso, panelas destampadas deixam nos ares perfumes dos pratos típicos da região, tucupi, maniçoba, tacacá, o peixe tucunaré com castanha-do-pará, frutos como açaí, graviola, cupuaçu, bacuri, pupunha, biribá e a manga que se esparrama por toda a cidade... Inebriantes. Vou andando pelas atéias do mercado e, estranho, sem que pergunte pelas bruxas, vendedores e passantes vão logo indicando: "É por ali, dobre à direita..." Parece que o mercado é todo populado por videntes — ou por broxas recuperados. E eu não tenho nenhum carimbo de broxa estampado na testa. Chego às bruxas. Reverência da minha parte, esculhambação natural por parte de Eliete, a primeira delas. Gordinha, baixa, peitos grandes, camiseta Coke, bermudas justas, sandálias Rider. Antiimagem de bruxa. (Aviso: não as chame de bruxas, nem de feiticeiras nem de mandingueiras. Ficam ofendidas.)


— Deixa comigo, meu amigo. Há quanto tempo você não... (e, com o punho fechado, num movimento sincronizado de vaivém, acompanhado por um assobio que marca o ritmo, deixa incompleta a pergunta).


Sem dar tempo para a resposta, Eliete Barros Teles, 33 anos, dezoito no mercado, vira-se para a banca cheia de ervas, galhos e beberagens e começa seu trabalho. Enquanto manipula um canivete e corta ervas diversas, garante: "Com isso você vai dar pelo menos uma todos os dias". De soslaio, verifica na minha cara o impacto da perspectiva. "Ou duas", acrescenta, reforçando seu marketing sexual. Eliete, neta da Dona Cheirosa, nascida na Ilha das Onças, em Benfica, tem suas especialidades: Banho de Descarrego, Quebra Barreira, Quebra Feitiço, Vence Tudo, Desatrapalha, Desempata e... Broxura. "Esse é o meu forte", anuncia. E manda sua prescrição: "Olha, pra levantar mesmo tem que juntar catuaba, marapuanã, pinto de quati em pedacinhos, esporão de galo ralado, bico de pica-pau (também ralado), jucá, moleque seco, xixuás, tudo isso mergulhado numa garrafa de vinho moscatel. Toma três vezes ao dia. Levanta até defunto".


Passa-me o embrulho de ervas e a recomendação: dar talhos inclinados nos galhos e, na garrafa de vinho, deixar descansar três dias. Começar a tomar duas colheres pela manhã. A cada dia, aumentar meia colher antes de deitar até completar quatro — duas de manhã e duas à noite. "Em dias de maior animação podes ir a cinco colheradas, mas mais nada, hein?" A bruxa, que sabe das coisas, confessa sua experiência: "Os homi tão broxando, meu filho. Muita bebida e maconha". Pede 20 reais. Regateio (instruções do Homero, que não confessara, mas que a cada momento eu me convenço já ter freqüentado aquelas bandas). Baixa para 18. Pechincho mais. Quinze. Choro de novo. Quase levo uma esculhambação. Fica pelos 15 mesmo. De brinde. Eliete dá receita especial para mulher que busca homem: "Um vidro de colônia, qualquer uma serve, juntar com as ervas carrapatinho, agarradinho, faz-quem-quer. Derramar num vidro de mel de abelha. Misturar bem e aplicar no local antes de ir para cama. Se o cara não ficar doidão, pode trazer aqui que eu dou o dinheiro em dobro".


Na barraca de Maria de Lourdes das Mercedes, a mais antiga do mercado, conhecida por todo o Pará como a Cheirosa do Ver-o-Peso — 82 anos de idade, desde os 3 no mercado ajudando a mãe, Ramira Gonçalves —, a consulta é cerimoniosa. Nada dos risos quase debochados da Eliete. Isso coloca-me à vontade. Conto tintim por tintim. Chamo Adelaide pelo nome verdadeiro, descrevo suas coxas — seu ponto forte —, seus peitos e, apesar de tudo, minha falta de interesse e minha descrença de que, algum dia, recupere o tesão.


Mãos pequenas, delicadas e ágeis começam a se movimentar nos tufos de ervas que têm ao lado. Cheirosa fala com conhecimento de causa: já enterrou quatro maridos. "E tô aqui, inteirona". Seleciona e separa montinhos. Passa para a galharia. Corta pedaços. Depois pega um negócio fininho, seco, corta em pedacinhos. "Sabe o que é?", pergunta. "Vergalho de quati", responde ela própria, em linguagem refinada. Sua receita imbatível: "Um litro de vinho moscatel, amarapuama, catuaba, moleque seco, caroço de abacate ralado, chifre de boi lascado. Guardar a garrafa do vinho no sereno e na chuva. Começar a beber três semanas depois". Vira-se, solene, e recomenda: "Tome três colheradas ao deitar. No dia seguinte, já começa o efeito. Mas cuidado. Se o efeito for muito forte, pare de tomar por cinco dias". Preço: 20 reais. Não tenho coragem de pechinchar. Cheirosa olha os costumes de hoje, sentencia: "As mulheres estão muito mais atrás de homem. Homem é mais liberto. Vai e volta. A sabedoria é esperar a volta com calma, perfumada".


As consultas têm vasta assistência. Os vendedores de açaí, cupuaçu, pupunha encostam-se nas barracas ao lado ouvindo a troca de confidências do "estrangeiro". Falta de educação? Que nada. Naturalidade. O vendedor de bilhetes de loteria, a menina que perdera o noivo e a coroa que quer mais "animação" estão na fila para as próximas consultas e já sabem, de antemão, que terão suas confidências não só ouvidas como comentadas. E não estão nem aí. Faz parte do jogo, do cenário do Ver-o-Peso, um mercado sem igual. Todos, algum dia, já compartilharam aflições e frustrações. O grupo fala com desinibição, dá testemunhos. Só não dá palpite para não atrapalhar as bruxas. "Depois que passei a tomar isso, com uma cachaça de manhã, dou três por noite", disse, para me encorajar, o homem do açaí, pele curtida pelo sol, aparentando mais idade do que eu. Sua companheira ao lado, desdentada (lembra a prostituta de Caxambu), ri orgulhosa do macho enquanto balança a cabeça passando atestado. Fico animado. Acho que bastam duas consultas. Mas Maria Marinho de Farias, 28 anos, me vê. Não escapo. É a terceira das bruxas do Homero.


Mais jovem, mais desbocada, mais moderna se quiser, vai logo dizendo: "Aqui broxura não é problema". Canta loas às ervas. Só falta dizer que paraense não broxa, como a Boiadeira. Toda hora, Caxambu vem à cabeça.


"Quer dar quantas?", pergunta, entre risadas do povaréu.


Exijo respeito e que me deixem a sós com a moça. Maria já sabe o nome da Adelaide, o que está acontecendo e tudo o mais. Para minha surpresa, é a única que diz, peremptória:


"O problema é a Adelaide."


Quase rolo de satisfação. Meu gozo começa ali. "Não, não pode ser a Adelaide", defendo a cara-metade só para constar. E mais não digo.


"Mas é, insiste. E eu vou cuidar dela."


Pega várias partes de carne que parecem filés de peixe cortados em fatias grossas. Olha para eles, olha para mim. "A Adelaide bate onde?" Eu coloco a mão à altura do queixo. Ela escolhe um dos filés. Pendura os outros com cuidado para não parti-los. Numa pequena tábua, começa a picar em quadradinhos. Quando acaba, enfia os pedaços num vidro de álcool junto com os outros galhos e ervas e pós. Sua recomendação: "Convença a Adelaide a passar nos lá embaixo dela, antes de ir pra cama com você".


"Mas o quê que é isso?"


"É chibiu de bota. É batata. Minha mãe diz que eu nasci por causa disso."


Nem discuto. Quanto é? 20? Tá bom. Vou embora confiante, deixo as bruxas ocupadas com outros clientes. No hotel, ouço que a clientela vem do Brasil todo. "Brasil só, não. Tem até alemão nessa, meu amigo", garante o chofer. "Nessa e em outras. É pena o senhor tá indo embora", lamenta.


Epílogo: hoje escrevo de cuecas. Adelaide vive sorrindo. Comprou um computador novo pra eu não sair de casa. Deu pra andar sem calcinha. E o Homero? Andou meio tristonho. Demorou a abrir o jogo. Dei meio litro da beberagem da Cheirosa para ele. É outro homem. E não paro de encomendar. Mando o cheque e recebo pelo Sedex a galharia, as ervas e tudo o mais, todo mês. Estou na fase do aperfeiçoamento enológico: sapeco tudo em vinhos franceses, Bordeaux, safra 86. Vale. Yo no creo en brujas, pero...


ILUSTRAÇÃO PATRÍCIA MAGANO


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