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IRENE RAVACHE | ABRIL, 1983

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com a balzaquiana madura e experimentada que levou os homens de volta à novela, com um corpo roliço, o rosto vivo, bonito, e virou tesão nacional


"Eu, musa de verão? Símbolo sexual? Namorada do Brasil? Talvez, no início até que parecia. Acabei me transformando na viuvinha nacional." A novela que a Rede Globo preparou para brindar a temporada de prazer, sol e verão foi driblada pela meteorologia — choveu dois meses seguidos —, pela economia — despencamos abertamente na pior crise da nossa história — e pelos fados — no auge, morreu Jardel Filho, que encarnava o principal papel masculino. A abertura da novela começava com tomadas sensualíssimas — peles bronzeadas e molhadas, mãos esfregando com volúpia corpos sem rosto — e, no entanto, a grande cena no vídeo correu entre os capítulos, em pleno Jornal Nacional, repórter com câmera na mão e uma atriz linda e desgrenhada debulhando-se em lágrimas durante cinco minutos, chorando a morte do parceiro e provocando verdadeira catarse federal: o país reencontrou o direito de chorar.


Sol de Verão foi uma história dentro de uma história, tão imprevista e forte que até seu autor, Manoel Carlos, foi ultrapassado pelos eventos. Na verdade, foi um outono. Parece que a era dos scripts rígidos, dos destinos prefixados e da onipotência está vencida. A crise econômica puxou a crise de identidade. A intérprete deste lance foi uma atriz de teatro, balzaquiana, pele alva, cheia de corpo, mais para Diane Keaton do que para Christiane Torloni.


O Brasil descobriu a mulher de 30 anos, madura e experimentada. O mito da eterna juventude com tanga, bumbum arrebitado e jeito sonso foi, afinal, espanado.

Novidade: a grande tesão nacional tem alma. Além disso, olhos escuros e brilhantes, ligeiramente estrábica — grandes estrelas de Hollywood foram também charmosamente estrábicas — dona de voz modulada e quente, duas covinhas no rosto antecipam um sorriso, dedos compridos de pianista abraçam os braços roliços que milhões de homens gostariam de abraçar. Irene Yolanda Ravache trouxe os homens de volta às telenovelas encarnando Raquel, a mulher forte que gostaríamos de ter, só para nós, para sempre.


Casada pela segunda vez (com o jornalista Edson Pais de Mello), tem dois filhos, Hiram Eduardo, 17 anos, do primeiro casamento, e Juliano , 9 anos. Há 13 anos em São Paulo mas foi criada, estudou e estreou no Rio, fala sem sotaque, pura música.


Tem nariz fino, deliciosamente adunco e que na certa tirará de Ivo Pitanguy muitas clientes. Os cabelos castanhos, cacheados com permanente já têm milhões de imitadoras. Veste-se com simplicidade, sem griffes, sempre com um toque de classe, jeans largões, camisetas ou camisas soltas, às vezes um vestido largo. Sabe tirar partido do que esconde e do que mostra, usa o corpo para irradiar sensualidade, não a exibe. Jóias, quase invisíveis de tão discretas. Perfume: Roberta di Camerino — só se sente quando se chega muito perto, então é um perigo.


Palavrão usa como exclamação, ênfase, de resto é muito articulada, anos de teatro ensinaram-na a dizer frases com princípio, meio e fim o que, neste país de grunhidos, é novidade. Faz dieta, mas não se reprime, quando é o caso solta-se numa boquinha, belisca com gosto. Bebe pouco, tendendo para o doce — sherry, vinho branco gelado, Carpano. Não fuma. Lê muito e sabe das coisas, tem todas as referências mas não faz citações. Atentíssima.


Dorme 8 horas regulamentares mas sustenta-se também com 3 ou 4. "O Edson fica espantado como depois de uma orgia estou sem olheiras, pronta para outra." Haja fôlego. Não amarga críticas. Cidinha Campos, recentemente, escreveu que a atriz exagerava: "quando levanta a saia quase mostra o Ego". Irene sabe o que se esconde atrás destas estocadas, sua intensidade de viver incomoda.


Palhaça, inclusive no trabalho. Nas cenas de amor de Sol de Verão, ela sempre tinha uma piada engatilhada. Como esta: "Já me acostumei a fazer amor com tanta gente em volta que ontem fui a um motel só com o Jardel e perdi a vontade!"


Fala muito de bruxas mas ela própria tem algo de bruxa — atrai, aproxima pessoas, descobre coisas, sempre aprontando alguma. Pura exuberância. Acompanhada por um grande impulso para a ordem: a bolsa é organizadíssima (talão de cheques, crachá da Globo, chaveiro, relógios e a carteira, só). Dona-de-casa caprichosa, sonha posar para Claudia realizando uma maravilhosa receita.


No Rio, desde que começou a novela, no apartamento da prima-irmã Noely num 24.° andar no Morro da Viúva, Botafogo, belíssima vista. Em São Paulo vive com Edson e os filhos num apartamento próprio na Augusta, não muito longe da Paulista, espaçoso (eram dois, ela juntou), arrumado e convidativo.


Ao visitante Irene procura perturbar apresentando Noely como "a pessoa com quem moro". Com mais intimidade apresenta a prima galhofeiramente como "minha marida". A Jardel dera o apelido de "minha loura". Em São Paulo dorme de camisola, da Amor Perfeito, no Rio, de camiseta. Nos fins de semana voa para São Paulo ou espera a vinda de Edson. Juntos, compõem interessante parceria, sem dominações.


Atriz de sucesso — acaba de ganhar o Mambembe paulista pela atuação em Os Filhos do Silêncio — no entanto, ficou nervosíssima como uma estreante antes de interpretar Elis Regina no Especial da TV. Começou a novela ganhando 500 mil mensais, em fevereiro foi aumentada para 1 milhão — depois de muita luta. Está renovando o contrato, o que lhe permitirá ganhar salário enquanto descansa (ou faz teatro) durante 6 meses. Sempre lutou por seus direitos, mesmo antes de entrar para o PT (nas eleições fez boca de urna em favor de Beth Mendes; Edson votou no PMDB).


Decididamente uma mulher sedutora. Vejam a prova.


Alberto Dines


IRENE RAVACHE — Nasci num domingo de Sweepstake, sob o signo do Grande Prêmio, Seis de Agosto, Leão, guerra acabada, 1944, filha da Paz. Não havia Zona Sul, fui criada entre o Cosme Velho, Laranjeiras, Flamengo com a praia. Não fui saideira, ao contrário. Sonhava muito, fantasia a mil. Não se pode comparar uma garota dos anos 40-50 com as de hoje. Minha melhor amiga morava em Volta Redonda, a prima-irmã Noely. Lia muito... Tesouro da Juventude, o Livro dos Porquês; lembra? Eu era muito solitária porque os meus avós paternos tinham uma casa — ainda existe na primeira parada do bondinho do Corcovado, lugar lindíssimo, muito romântico, me marcou muito. É para onde sempre sonho levar as pessoas que amo. Nos sábados e domingos ficava nesta casa sozinha, sem crianças perto, esperando a Noely. Então era uma festa. Ela era tudo o que eu não era, montava cavalo, velejava e eu — meio pata-choca.


PLAYBOY — E o nome Ravache?


IRENE — Francês mas viemos da Alemanha, perseguição religiosa mas nada a ver com os judeus, huguenotes. Meu avô já era Ravache, nascido aqui, foi para a Alemanha, depois voltou para cá. O pai do meu avô também era Ravache... O negócio de família é muito forte dentro de mim... Vínculo e barra... Minha mãe é viva, mora em São Paulo. Entre mãe e filha o relacionamento em geral é mais difícil.


PLAYBOY — Sua mãe aceita você como atriz, a sedutora de um país inteiro?


IRENE — Ela não vê a filha sedutora. Ela vê a filha, filha. É aí que a coisa pega... Gostaria muito de ter feito uma mulherzinha, ter tido uma filha, só para experimentar. E que só tive filho, dois homões, não sei como é transar com filha. Acho que na novela exercito isso muito com a Débora. Minha relação com ela em cena, por isso, é muito intensa, acho que é curiosidade... Filha única. Esperavam um Eduardo. Quando nasci, a avó paterna disse: "é uma linda menina!" A avó materna respondeu: "mas que coisa esquisita!"


PLAYBOY — E o neném aprendeu a ler, leu, leu, leu, chegou a Shakespeare, fez a Julieta ou a Ofélia e tcham! Transformou-se no sonho nacional.


IRENE — Nada, tem um piano antes. Coisa de mãe. Ela achava bonito ver a filha tocando piano. Mas ninguém me perguntou. Eu queria mesmo é fazer balé. Quando minha mãe me levava ao Municipal para ver o balé eu vibrava. A primeira vez que vi alguém num palco, fiquei eletrizada. Pura magia, como as coisas que eu fantasiava no jardim do meu avô. Decidi: vou ser bailarina. Não deu pé porque naquela época era mãe que botava e tirava as filhas dos cursos. Lembro numa das primeiras aulas na Barra, eu disse para mim mesma: tenho que fazer este exercício melhor do que as outras. Me empenhei tanto que não deu outra. O professor, um tal de Dmitri, russo naturalmente, de fato me notou. Mandou as outras pararem, me elogiou. Foi assim que descobri como se faz para ser notada — dando tudo. Mas aí — tragédia — minha mãe me tirou do balé e me botou na Escola Nacional de Música. E apesar de não querer estudar tinha essa coisa de ficar estudando o ano inteiro. Na hora do exame eu passava. E com as melhores notas. Tem muito de pose nisso, jogo de ilusão... Antes de sedutora acho que sou uma grande ilusão de ótica... Outra professora batia com a régua na mão dos alunos que não tocavam na posição correta. Eu a odiava e dizia: "ela nunca vai me bater com a régua!" E ela nunca me tocou. Quando errava eu ficava olhando para ela, a régua nunca baixava. Puro teatro... Fiquei no Conservatório 3 ou 4 anos, puta da vida, porque não tinha feito balé. Para mim mexer com o corpo é uma libertação, a melhor coisa. Posso mentir para você com a palavra, mas com o corpo, não. Sabe aquele negócio "o que meu corpo faz minha cabeça não pensa?" É perfeito. Às vezes como atriz, mesmo num ensaio, o meu corpo aceita ou rejeita a ação antes que eu possa executá-la verbalmente... Especialmente nas cenas de amor. Saí da Escola, uma bruta indecisão em volta de mim. Outra derrota: fui fazer curso de Secretariado na Escola Amaro Cavalcanti, ali no largo do Machado. Desastre. Só ia bem em matemática.


"Fiquei no conservatório 3 ou 4 anos, puta da vida por não ter feito balé. Mexer com o corpo é a libertação"

PLAYBOY — Explica esse negócio de dar-se bem com a matemática.


IRENE — Um desafio. Como é que as coisas podem dar certo? É por aí que ela me seduzia. Dois e dois é quatro, mesmo? Não será uma coisa parecida com quatro? A matemática me desafia por ser contrária aos meus impulsos. Sou cheia de indagações, dúvidas, quero-e-não-quero e a matemática tem todas as respostas, exata. Fiz o madureza, o científico, cursei algumas matérias no Pedro II até que fui assistir a uma peça teatral chamada A Ratoeira, de Agatha Christie, no Teatro do Rio, na rua do Catete. Decretei: "É isso aí. Vou para cima daquele negócio..."


PLAYBOY — Do ator ou da ratoeira?


IRENE — Não, do palco. Se não me deixaram subir no palco para dançar, vou subir nele para fazer outra coisa. Fui parar na Fundação Brasileira de Teatro. No segundo ano comecei a fazer uma peça no Teatro Jovem, semiprofissional, Aconteceu em Irkutsk. Fui fazer um outro curso, com o Gianni Ratto. A Fernanda Montenegro, que assistiu ao meu teste, me disse no outro dia que se lembra bem. Ela disse para o Ratto: "Deus do céu, mas que coisa descontraída no palco!"


PLAYBOY — E aí pegou.


IRENE — Pegou. Fui para a televisão levada pelo Sérgio Brito. Mas naquela época, como todos os atores jovens, eu tinha um preconceito com a TV. Queríamos, no mínimo, Shakespeare. Nestas alturas o teu entusiasmo é empurrado por uma enorme pretensão. Estudava feito louca, levando a sério todos os cursos, lendo de tudo, coisa boa e porcaria. Havia o professor Souza Brandão que ensinava teatro grego e eu me sentia íntima dos deuses, tocada por eles. Mas eu não me deixava embalar, sonhando com a glória, metia a cara, mesmo, sabia que tinha que estudar muito. Fui fazer teleteatro vencendo todos os preconceitos contra a arte menor, porque era o Sérgio Brito, porque a moça era pretensiosa, tinha 18 aninhos.


PLAYBOY — Foi cantada por alguém, tipo venha-comigo-e-suba-na-vida?


IRENE — Eu pensava assim: jamais me passarão uma cantada de trabalho porque vão olhar para mim e reconhecer que eu estou aqui para fazer uma coisa muito importante.


PLAYBOY — A predestinada?


IRENE — Quando eu tinha uns 17 anos, liguei para a Fernanda Montenegro e perguntei a ela: "A gente sabe quando é atriz?" A Fernanda me disse: "É uma questão de escolha. Se você achar que é uma escolhida dos deuses você deve ficar". Eu era novinha, com o pressentimento íntimo que fora destinada ao Olimpo mas achei a frase muito forte para ser encarada de frente. Resolvi tirar a prova. Neste tipo de desafio a cantada de trabalho não cola.


PLAYBOY — A não ser quando é emitida por outro deus.


IRENE — Aí é diferente. Fiz vários programas culturais na TV-Rio, um deles não devia dar nenhum Ibope, chamava-se Brasil-Alemanha, nem bisneto de alemã assistia. Então engravidei. Quer dizer, casei antes.


PLAYBOY — Como?


IRENE — Virgem.


PLAYBOY — Virgem OK, mas como você chegou ao casamento assim, de repente?


IRENE — Ele era sargento do exército.


PLAYBOY — Epa!


IRENE — É militar até hoje, é a profissão dele. Aconteceu de eu ir a uma festa. Eu transava muito mal rapazes a quem competia namorar, garotos de 18, 19 ou 20 anos. De repente, esse homem me tira para dançar, quase dez anos mais velho do que eu (eu tinha 16), já vivido, aparência de experiente. Começamos a namorar. E nos casamos, eu sem saber quase nada a respeito de sentimentos. Casei três anos depois com 19, porque tinha que casar — namoro, noivado, aliança, altar. Não havia uma amiga com quem trocar confidências, comentar as bolinações.


PLAYBOY — Houve muitas?


IRENE — A primeira bolinação comigo foi uma que, hoje, eu teria até vergonha de classificar como tal. Roçar de mão no peito, dentro de um elevador, imagine, um peito com sutiã e uma suéter. Me senti comprometida e até mesmo uma possível puta se não me casasse. Fiquei envergonhadíssima com o gesto, imagine isso acontecer comigo, ou melhor, com a filha da minha mãe que ela imaginava tão pura.


PLAYBOY — O fato de ser militar exerceu algum fascínio sobre você, afinal, houve um tempo — muito antes de 64 e, naturalmente, muito antes de 68 — em que os militares garbosos eram os heróis da moçada...


IRENE — Não houve o menor fascínio pela farda. Não, mesmo. Ele era militar, mas diferente: fazia o curso de teatro lá na Fundação, era um ano mais adiantado do que eu. Quando ele parou, continuou milico e eu, atriz. Acho que a atração foi a do homem mais velho, experiente... Me separei com um bebê de ano e meio no colo, literalmente da noite para o dia... Discuti com ele até de manhã, sentei e disse para mim: "Está muito feio para mim..." Peguei numa maleta, enfiei as minhas roupas e as do bebê, comprei passagem de trem e, na manhã seguinte, estava em São Paulo. Desagradável falar disso. É muito difícil, e até incorreto, falar de uma pessoa que está longe da imprensa... Em 1967, bem, mas antes da separação, teve a fase do rebolado...


PLAYBOY — Quer ser mais explícita?


IRENE — Rebolado, sim [mesmo sentada, Irene faz com o corpo o movimento de rebolar], teatro de revista, Carlos Machado. Negócio seguinte: eu fazia o telejornal da TV-Rio, apresentava os textos (Mais tarde fiz a mesma coisa na TV Globo, mas como não havia ainda aquela maquininha para ler, eu, metida a grande atriz, simplesmente decorava os textos do Newton Carlos, do Fernando Leite Mendes, foi um sucesso, especialmente quando dizia uma crônica diária; porque uma coisa é dizer notícias, outra é declamar um texto — todos pensam que foi você quem escreveu). Adorei o telejornalismo. Um dia na TV-Rio mandaram entrevistar o Carlos Machado na boate Fred's. Chego com toda a parafernália, olho o palco e tenho um troço. Lá estava Lennie Dale com um bando de gente dançando bossa nova... Era a primeira vez que entrava numa boate, lembrava o ambiente do balé... Quando o Machado chegou, ao invés de começar a fazer a entrevista, não agüentei: "Quero começar a trabalhar aqui!" "Mas tu não és a moça da TV-Rio que vinha fazer a entrevista?" Eu disse: "Também. Mas quero trabalhar aqui". "O que é que vou fazer contigo? Tu não és vedete..." "Tu ao menos cantas?" Não perdi tempo: "Canto" (No Conservatório de Música fiz um cursinho de canto). Bem, ele mandou que eu voltasse no dia seguinte, voltei. Fui fazendo uma coisa aqui, outra ali, um dia liguei pro Machado e disse "não vou botar biquíni." Ele tentou me convencer: "Mas, Irene, isso aqui é show de boate, as minhas mulheres entram aqui de biquíni..."


PLAYBOY — Como você era de corpo?


IRENE — Otima, violão, tipo boazuda do Lalau. Mas, ao mesmo tempo, era uma atriz séria: Como é que um dia posso fazer Moliére se estou aqui de biquíni? Venci: criaram uma roupa que se eu tivesse de biquíni era até melhor para mim. Imagine um show onde entra aquele bando de mulheres espetaculares de biquíni e, de repente, vem aquela coisa muito branquinha de negro, com um decote até o umbigo e nas costas um até o começo da bunda. Foi muito pior do que enfiar um biquininho. Você sabe — sugerir é muito pior do que mostrar. Foi uma dureza. Porque no meio ainda pintou uma peça de teatro. Toma nota: eu fazia o telejornal, ia para o teatro fazer Pendura Saia com Graça Mello, depois ia para o Fred's, rebolava, dormia às duas da manhã e às 7 horas já estava com o bebê na praia do Leme apanhando o primeiro sol. Vida apertada de dinheiro, muito espremida...


"Imagine um show com mulheres de biquíni e de repente entra uma branquinha com decotes até o umbigo e a bunda"

PLAYBOY — Havia tempo para amor?


IRENE — Quando há amor, há tempo para tudo... Um dia apareceu para assistir o show o Lalau em pessoa, Sergio Porto, o criador das certinhas. Ele queria escrever um show só para mim... Eu começava a decolar, pressentia, então veio o acidente. Meu marido bateu com o carro, quebrei a clavícula, machuquei o rosto, desisti do show do Lalau, não decolei. Quando sarei nos separamos.


PLAYBOY — O Fred's foi Copacabana no auge. Ipanema era província.


IRENE — No outro dia, numa externa, logo no início da novela, aproximou-se de mim uma senhora: "Olha, eu tive um cunhado que já morreu e gostava muito de você. Chamava-se Alberto Sued, irmão do Ibrahim". Fiquei contente de saber que ele gostava de mim, vi-o uma vez. Foi impressionante. Eu estava em cena, no Fred's, recitando um monólogo e, de repente, ouço alguém repetindo alto, nas primeiras mesas, as mesmas palavras que eu pronunciava. Primeiro quis descobrir de onde vinha a voz — era preciso localizar o inimigo, não? Achei, ele estava na minha frente e sabia de cor o monólogo inteirinho. Pensei: se paro, ele ganha, se mando calar a boca, posso perder o emprego. Aí, cruzei os braços [Irene se levanta e cruza os braços] e fui caminhando em direção dele, olhando firme enquanto recitava [ela caminha para a frente olhando firme, enquanto fala] e quando parei diante dele, de pé, o Sued sentado, calou-se. Voltei para o palco e continuei o show.


PLAYBOY — OK, você venceu, sedutora.


IRENE — Não sou sedutora, não senhor. Não é nada assim. Há muita coisa que não consigo. A minha primeira entrada para a Globo foi num golpe de força. Eu havia ficado o dia inteiro para falar com o Rubens Amaral (ele era então o diretor geral) sentada na sala de espera e, quando me levantei para fazer pipi, o homem foi embora. Desci pelo elevador amaldiçoando o xixi e encontrei o homem ao lado do carro, a porta entreaberta, conversando. Cheguei perto e metralhei. "O senhor pensa que está dirigindo uma grande empresa mas não sabe que ela tem falhas enormes!" Ele respondeu muito calmo: "Você pode dizer qual é a falha?" Respirei fundo, pensei "é agora" e disse firme: "Eu não estou nela. Sou ótima: canto, danço, interpreto, leio notícia, apresento programas e não estou nela!" Ele que já estava com metade do corpo dentro do carro, saiu, fechou a porta e disse: "Vem cá". Mandou reabrir a sala, seriíssimo. Eu muda, dentro de um taierzinho cor-de-rosa que já tinha visto dias melhores, taiêr de lua-de-mel, entrei na enorme sala e ouvi: "Muito bem, garota, repita agora tudo o que disse lá fora". Aí a audácia já havia ido pras picas. Mas repeti tudo. Ele apertou um botão e chamou o Paulo de Grammont: "Olha, Paulo, essa moça diz que faz uma porção de coisas e eu quero que você me prove isso numa semana. Se for verdade, tem um emprego, se não vou espalhar por aí que tem uma louca solta". E foi embora. Ficamos os dois, o Paulo e eu. Ele me disse: "Como é, a partir de amanhã?" Eu respondi com voz fúnebre: "A partir de amanhã". Tempos depois estou trabalhando no Machado, de madrugada tem um homem me esperando na saída: "Dona Irene, quero lhe dizer uma coisa. Uma vez eu era garoto, fiz uma viagem ao Amazonas e vi o encontro das águas, o rio se jogando no mar. A senhora é isso, o encontro das águas transformado numa pessoa. Desculpe, boa noite". Entrou no carro e foi-se. Era o Rubens Amaral.


PLAYBOY — Muito bem: Irene Ravache desembarca em São Paulo com neném no colo para fazer América.


IRENE — Não fui fazer América, fui para São Paulo para me separar mesmo, para criar separação física. Comecei a bater de porta em porta, mostrar currículo, esquentar cadeira em sala de espera. No início não foi nada fácil mas também não foi trágico. Foi em São Paulo que engordei 20 quilos.


PLAYBOY — Penalidade para a grande sedutora?


IRENE — Acho que engordei justamente porque a sedução não deu certo. A única vez que eu realmente quis conquistar alguém com consciência disso fui muito rejeitada.


PLAYBOY — Quem? Quando? Onde? Como?


IRENE — Quem? Não importa, um homem... Me apaixonei e ele não se apaixonou. Eu era muito bonita. Ele era feio, mais velho... Comecei a comer de nervoso, ansiedade. Uma angústia me empurrava para a mesa. Punição por uma história muito mal resolvida. Eu lido muito mal com o envolvimento amoroso. Sempre lidei.


PLAYBOY — Entrega demais ou de menos?


IRENE — Não reconheço muito as coisas, não vejo os limites. Culpo um pouco a profissão. Vivo num ambiente em que a gente utiliza códigos que acabam nos condicionando grande parte do dia. Fera de palco a gente precisa de outros códigos. Explico: a gente senta no colo do colega, a gente beija o colega na boca, a gente deita no colo do colega e até dorme, sem necessariamente estar envolvida com ele. Eu convivi durante algum tempo com esta pessoa, achando divertido. Eu não me sabia apaixonada. Quando descobri, não soube lidar com este fato muito simples. Não sou uma sedutora, não planejo fascinar ninguém, jamais conquistei algo do nível homem-mulher. Nunca me vi na situação tão feminina de dizer "vou pegar aquele homem só para mim". Jamais me vi maquinando seduzir um homem...


"A gente senta no colo, beija na boca e até dorme com o colega sem estar envolvida com ele"

PLAYBOY — Este caso ainda não está borrado...


IRENE — Já tive romances que se esgotaram de um jeito ou de outro. Este não se esgotou, teve o fato de eu ter engordado 20 quilos... Eu tinha 24 anos, era 1968 e isto visto em análise é um caso de autopunição. Tipo "ah, você não quer? Então ninguém vai ter".


PLAYBOY — Suicídio por excesso de carboidratos e proteínas.


IRENE — O suicida e o suicídio são coisas muito fascinantes. Quando eu tinha uns 11, 12 anos, minha mãe me levou para fazer um teste vocacional e o psicólogo disse para ela — "ponha um pouco de ilusão na vida de sua filha porque, basicamente, ela sabe tudo". "Como ela sabe tudo se é apenas uma menina?" "Ela tem todas as fantasias mas não tem ilusões, inclusive a respeito da morte." De uma certa forma é a pura verdade. Eu queria ter um desafio material que me absorvesse inteiramente, sei lá, um carro esportivo, uma casa na Barra. [Irene tem um fusca 76, gelo, muito arrumado, sem arranhão.] Eu sei que isso é secundário mas conheço pessoas que se ocupam muito com isso e se iludem com fantasias de riqueza. Isso pode encher uma vida! Quando não se tem um sonhozinho bem material para realizar e ao mesmo tempo se é uma faminta como eu, a coisa pega. Engordei porque sou uma faminta, tenho fome. Sempre. Quando não engordo é porque meu apetite está sendo saciado por outro lado, em outra coisa. E, como ainda ache o ser humano a coisa mais fascinante da vida, fica um pouco difícil conter esta fome de contato. Aliada a uma vocação de invasora tenho que ficar me vigiando — "atenção, Irene, você é uma pessoa civilizada, fique quieta em teu canto". Não sou nada civilizada, sou instinto, porra!


PLAYBOY — Deusa grega, predestinada.


IRENE — Só o nome é grego, quer dizer paz. Imagina uma faminta e invasora vivendo numa sociedade que espera que você não seja nem uma coisa nem outra.


PLAYBOY — Que impõe limites e te empurra para quebrá-los.


IRENE — Isto é um negócio fudido meu: não sou hábil. Se fosse, que sucesso! Uma jovem secretária tem mais habilidade do que eu para levar as coisas. Essa é uma sociedade em que todos querem ser heróis, de canalha acho que só Fernando Pessoa e eu. Você lembra do Porteiro da Noite? Pois é, eu quase apanhei quando tive a ousadia de dizer, numa roda, que entendia perfeitamente aquele tipo de amor, adorei aquela cumplicidade, aquela parceria do sujinho — "só você sabe o que eu sei, só eu sei o que você sabe..." Eu não acho que a gente tenha que ser sempre herói ou heroína.


PLAYBOY — Quando engordou, teve dor e prazer?


IRENE — Só dor, nenhum prazer.


PLAYBOY — Nem ao sentir as formas voluptuosas, rafaelinas?... Gordurinhas também são eróticas!


IRENE — Picas. Às vezes mesmo no ato de comer eu sentia horror. Ainda a respeito da cumplicidade: você encontra uma mulher maravilhosa, aí você quer ter filhos com ela, quer construir uma casa com ela, lindo! Diz para ela: "Olhe, meu bem, como escrevo bonito!" Ela responde: "Veja, querido, como toco bem piano!" Vocês trepam bonito, vocês dançam bonito, um quadro bonitíssimo. O que eu vejo são as pessoas se amparando, se ajudando, se segurando, mas sentindo p-r-a-z-e-r, isso não vejo. Ter prazer em comprar o leite no supermercado e ao mesmo tempo compreender de forma igual o Porteiro da Noite, essa é uma cumplicidade que não existe, nunca vi. Nós não vivemos num século de prazer. Está aí toda a Igreja católica para nos tirar o prazer...


PLAYBOY — Como é que você administra esta combinação de dor e prazer?


IRENE — Muitas coisas você fala e não faz. O que eu digo, até lamentando, é que estou com 38 anos e chego à conclusão de que as mulheres da minha idade tiveram pouco prazer na vida. Mas, pelo amor de Deus, o prazer a que me refiro é outro, mais amplo. Não é só o orgasmo. Falam do orgasmo como uma receita — agora mistura duas doses disso e uma pitada daquilo. Acho que ninguém pode falar do meu orgasmo, não é uma coisa para se teorizar. Orgasmo é ação, impulso, não se teoriza sobre isso. Você acha que saio pela rua, assim, gritando "Ei, orgasmo, onde está você?" Desde que a gente aprende a se masturbar a gente tem orgasmo. Algumas meninas aprendem, sei lá, com 11, 12 anos, como vocês homens aprendem igualzinho um pouco depois, 13, 14 anos. A gente está cansada de saber que o que muda no orgasmo é a companhia.


PLAYBOY — A companhia tem relação com a intensidade?


IRENE — Com a qualidade do. Acho que as mulheres deveriam se masturbar mais. Falta liberdade de tocar no próprio corpo. Ninguém diz para a menininha recém-nascida: "Olha que xoxotinha mais engraçada!" Seria muito bom que as pessoas se masturbassem mais, sem o lado pecaminoso e sujo. Olha, quem inventou, inventou muito bem. O teu corpo, como fonte de prazer, é uma coisa incrível. Quando as pessoas começarem a sentir que não precisam da outra para sentir prazer, então, o relacionamento será até mais fácil. Sem dependência afetiva ou mesmo material, sem dependência do poder. Você terá ao seu lado alguém apenas para embelezar sua vida.


PLAYBOY — Você não explicou como, finalmente, perdeu os 20 quilos a mais.


IRENE — O que dá de gente, principalmente mulher, em cima de mim perguntando "Qual é o teu segredo?", como é que consegui o milagre? Quer saber de uma coisa? Eu teria feito muito sucesso com as dobrinhas e tudo.


PLAYBOY — Na Renascença você seria um tesão.


IRENE — Eu, gorda, fiz tudo o que as magras faziam e nem sempre as magras conseguiam competir com aquela bolachuda. Conheci homens ótimos... Eu estava muito gorda quando conheci o Edson. E casei com ele. E um dia, porque todos te cobram pela gordura que você resolveu acrescentar por tua conta e risco, fui parar num endocrinologista e, dele, num psicanalista.

PLAYBOY — Mas como é que foi a chegada da imigrante com o bebê no colo no eldorado da Paulicéia — tesa, desempregada, tiritando na garoa?


IRENE — Fui morar em Santo André...


PLAYBOY — Esse contato no coração do operariado brasileiro, em pleno "milagre", salários arrochados, te deu a consciência política?


IRENE — Fui ceguinha até uma determinada idade, depois é irreversível. Ainda no Rio havia trabalhado com o Oduvaldo Vianna Filho. Fui assistir a um teste, ele me chamou: "Você poderia chegar aqui e ler isso?" Li e fiquei com o papel. Meu começo em teatro foi no CPC, na periferia, fazendo Eles não usam blacktie. Mas, depois, andar nos trens fez muito bem para minha consciência política, aconselho aqueles trens para quem está longe da vida. O rosto das pessoas, as mãos, a marmita... Comigo foi até engraçado — como sempre — porque no começo eu ia e vinha de carro com os amigos. Um dia resolvi ir de trem e, na estação, vi que havia dado a maior mancada — distraída, eu estava de carioca, minissaia, exuberantíssima (eu ainda estava magra, aquilo ainda não havia acontecido)... Um conflito visual muito forte, quase provocação. Voltei depressa, me troquei e tudo bem.


"O rosto das pessoas, as mãos, as marmitas. Andar de trem fez muito bem para minha consciência política"

PLAYBOY — Morava sozinha? E o bebê?


IRENE — Morava com tios.


PLAYBOY — A família te deu força?


IRENE — As tias abriram os braços. A família Ravache é um capítulo à parte nesta história, máfia maravilhosa. Aí, além das novelas da Excelsior, começou a pintar teatro, o primeiro papel foi A Cozinha de Arnold Wesker, dirigida por Antunes Filho. Então, comprei um carro do Jofre Soares, um Consul bege. Só que eu não sabia dirigir. Meu Deus, e agora? Tinha um amigo que havia sido piloto de provas e envenenou o Consul, foi uma loucura.


PLAYBOY — Nenhum caso amoroso em Santo André?


IRENE — Em Santo André não. Meu primeiro amor paulista foi com um colega que trabalhava na Excelsior, pessoa delicada, adoro pessoas delicadas. Acho que sou amiga de todos os meus namorados, ou quase todos.


PLAYBOY — Uma forma de elegância. Mas você continua amiga daquele miserável que te fez engordar de paixão?


IRENE — Também daquele. Só que fiquei muito... Sei lá, foi diferente, sofri. Saí de Santo André porque não dava para trabalhar em novela e teatro e, de madrugada, voltar para o subúrbio. Fui morar com uma viúva, pessoa que adoro, Madalena Geisselman. Tinha um apartamento na 9 de Julho e me ofereceu para dividir com ela. Ela é uma bruxa, aliás vivo cercada de amigas bruxas — gente de alma jovem, que sabe das coisas, que sabe ficar mexendo no grande caldeirão, fazendo coisas certas e com muita graça.


PLAYBOY — Você foi sempre brincalhona?


IRENE — Graças a Deus, muito palhaça. A coisa que mais amo num filho é quando ainda é muito inocente, posso contar as histórias mais malucas, ele acredita e se diverte muito. A graça é uma coisa mágica... Eu morava com a Madalena quando fui fazer Beto Rockfeller na Tupi onde eu tinha um romance com o Walter Forster. O Bráulio Pedroso, autor da novela, conta que muita gente torcia pelo casal, forçando situações. Um dia o censor foi lá e deu um esbregue: "Não tem mais cena de amor, não tem mais cena de beijo". O Bráulio sem saber por que foi apertando o censor, foi apertando, até que o homem confessou, trêmulo: "Porque, porque eu tenho ciúmes dela..."


"Um dia o censor proibiu beijo e cena de amor. Depois confessou trêmulo que estava apaixonado e tinha ciúmes de mim"

PLAYBOY — Foi a sua primeira dupla, o primeiro romance no vídeo?


IRENE — Dois: com o irmão e com o Walter Forster. Foi encantador, cenas de amor, olho no olho. Mas o que eu acho lindo numa novela não é o envolvimento amoroso com o teu par — isso é da profissão —, é a descoberta que sempre acontece com relação a alguma pessoa do elenco. Aí conheci um jornalista muito engraçado, pessoa muito louca, muito lúdica também. Eu havia brigado com um namorado e tinha resolvido que nos próximos 200 anos não haveria mais homem em minha vida. Isto posto, vou passar alguns dias no Rio. Pego um ônibus, na viagem adormeço e, quando acordo, estou aninhada nos ombros do cavalheiro ao lado. Mil desculpas, etc. e tal, para retribuir a hospitalidade tomamos café juntos. Era estrangeiro, trabalhava com livros de arte, combinamos almoçar no Museu de Arte Moderna no Rio. Dia do almoço reparo — tenho que fazer o cabelo mas era segunda-feira, salões fechados. Descubro uma espelunca num sala-e-quarto no Leme, a mulher era péssima, em compensação sabia ler a mão. Prevê que vou me ligar a um estrangeiro mas que estará fantasiado, mexe com escrita, vai haver almoço mas ele não vai almoçar, vamos nos conhecer, mas só num segundo encontro a coisa acontecerá, então, me dará um presente simples porém espontâneo. Fui certa que o companheiro de viagem era o príncipe encantado. Neca. Esqueci. Um dia, em São Paulo, o Fernando Barbosa Lima me convida para o lançamento de um disco da Maria Bethânia na boite Vum-Vum com festa à fantasia. Fui de menina pobre, no meio se aproxima um sujeito fantasiado, forte sotaque, trabalhava numa grande revista, tinha me visto no palco. Dias mais tarde vou almoçar numa grande editora e lá está o italiano. "Puxa, que azar, tenho um outro almoço, depois nos vemos". Fui dar um tchau para ele — sou fina —, ele me leva até o elevador, depois tem um estalo, sai correndo até o escritório e me traz uma estatueta do Padre Cícero que tinha na mesa. No elevador tenho um troço: ele! Começou assim, sem jogo amoroso, destino puro...


PLAYBOY — Como nas tragédias gregas...


IRENE — Terminou igual. Viajou para Paris, fui me encontrar com ele. Ele devia cobrir alguma coisa no Leste europeu, fiquei, e quando voltou eu estava cozinhando batatas, bem prosaico. Olhou e disse: "Acabou. Por favor, menina, nada de cenas..." Então Irene Ravache vira alemã — apaga o fogo, orgulhosamente, arruma a trouxa, pega um táxi e manda tocar para casa de uma amiga, Helene, sogra do Carlos Augusto Strazzer. No táxi, ninguém é de ferro, desandei a chorar. O motorista, bom francês, quis saber o que se passava e com meu vocabulário estropiado contei: tive que segurá-lo porque queria voltar para dar uns sopapos no meu ex. Helene foi fantástica, na casa dela afundei num sofá adamascado azul e, olhando a Torre Eiffel, chorei, chorei, chorei. Depois lembrei que estava em Paris, era a primeira vez, e resolvi deixar para chorar em Santo André. Não voltei para São Paulo, mas para o Rio, porque antes de embarcar para a Europa aquela danada da pessoa que me fez engordar disse que a aventura não ia dar certo e que eu ia voltar de mão estendida, sem emprego. Um adendo: toda vez que eu conseguia namorado ele aparecia como quem não quer nada, enlouquecia a minha vida e sumia. Consegui um lugar num musical da Tupi do Rio e voltei gloriosamente para São Paulo. Quando acabou Beto Rockfeller virei funcionária da Tupi, experiência terrível. Eu fora à Caixa Econômica pedir um empréstimo para comprar uma casa. Paguei a entrada e quando voltava para a Tupi encontrei no corredor três atrizes, colegas minhas, também funcionárias mas há muito tempo. Foi um choque, olhei para a cara das três e percebi como é que eu ia ficar. Fui para a sala de maquiagem e comecei a chorar: "Isso não vai acontecer comigo, vou devolver o empréstimo, vou pedir demissão, vou botar para quebrar, não quero nada disso". Pela primeira vez na vida bati pé, recusei papéis, criei casos, provocava...


PLAYBOY — Em outras palavras, virou vedete.


IRENE — Virei vedete. Para ser demitida e acabar com o pesadelo de me converter em móveis e pertences. O banheiro das atrizes era uma coisa medonha. As mulheres que iam lá deviam ter uma ducha Corona no lugar do sexo, porque nunca vi mulher bifurcar tanto para fazer xixi, coisa horrorosa. Eu dizia: "Não faço xixi num lugar assim", e ia fazer xixi na sala da diretoria. E isso ficou de tal forma incômodo que mandaram construir um banheiro decente e limpo apenas porque uma pessoa rebelde resolveu quebrar aquela pasmaceira. Acabei ficando de 69 a 77 na Tupi. Fiz 5 novelas apenas porque recusava sempre, batia pé. E eles aceitavam.


PLAYBOY — E a casa?


IRENE — Comprei um sobrado na Vila Olímpia, no Brooklin. Tive um puta trabalho para tirar o inquilino de lá, por sinal delegado, mas compensou: pela primeira vez eu morava sozinha com meu filho, numa casa que era minha.


PLAYBOY — Estava estabelecida, apesar do inconformismo.


IRENE — É, mas quando começaram a pintar os tais "dez anos de casa" não agüentei mesmo — bati uma carta de demissão e mandei. Abri mão de indenização mas ganhei em liberdade, em audácia. Ainda fiz duas novelas, mas já não como funcionária, e uma na Bandeirantes. Em teatro fiz A Cozinha, A Ratoeira e Os Inocentes.


PLAYBOY — Nenhum romance?


IRENE — Coisas esquisitas: arranjo um advogado para resolver problema com o ex-marido, tenho um primeiro encontro, explico tudo, depois outro encontro, explico tudo outra vez, no terceiro o cara diz o seguinte: "Aqui tem o nome de um colega, não posso continuar cuidando do caso, estou muito envolvido..." O outro advogado tratou do meu caso normalmente e... no meio começamos a namorar. Um dia ele chegou na minha casa com uma aliança. Comunicamos às famílias, aquela coisa de sempre. No meio do caminho o Guilherme — esse era o nome dele — disse que não dava mais pé. "Por que, Guilherme?" Ele respondeu: "Olha, Irene, dou muito valor à estética..." "Eu também, mas o que é que aconteceu?"


PLAYBOY — Você estava gordinha outra vez...


IRENE — Eu continuava gordinha, não tinha ainda emagrecido. O cara levou 6 meses para ver o que se nota nos primeiros 10 minutos. "E, eu fiquei muito envolvido..."


PLAYBOY — Chorou no táxi?


IRENE — A gente sempre chora. Bobagem você fingir de firme e não derramar uma lágrima. Depois a vida te cobra aquela dureza. Um dia você precisa de um sentimento e cadê o sentimento, minha senhora?... Bem, um dia entro no Gigeto à procura do meu amigo Amandio Silva Filho e ele está na mesa com uma roda de atores e um estranho sujeito que eu não conhecia: terno azul-marinho, gravata vermelha muito certinha, meias brancas. Ele via minhas novelas. Começamos a falar, brinco com todos, dou atenção ao cidadão. E ele começa a fazer a chamada corte. Goiano, fazendeiro, não largou do meu pé. Um dia me telefonou de Goiás para dizer que viria à estréia de A Ratoeira. Não agüentei e disse a ele para não vir porque havia reatado meu noivado. Ficou desoladíssimo mas insistiu em vir para checar se eu estava noiva mesmo. Desesperada ligo para o Jornal da Tarde para pedir ajuda a três amigos recentes, jornalistas. O Edson atendeu e muito gentil. Conto a história do goiano que jamais pegara na minha mão e queria casar comigo para me levar para uma fazenda e peço a ele para fingir de namorado. Depois da estréia o cara ficou nos olhando a noite toda, enquanto eu esquecia que devia ficar namorando e o Edson me dava tapinha na perna para lembrar. Quando acabou a "representação" eu disse pro Edson: "Quando precisar, me telefona, você foi maravilhoso..." Acontece que há antecedentes: quando fui apresentada ao Edson, ele havia pedido à Nena, mãe do Ney Latorraca, para nos aproximar: "Aquela é a mulher que eu quero para mim..." Depois do episódio do namoro fictício saímos várias vezes em grupo, muito amigos e camaradas. Ficávamos papeando até tarde, jornalista é noctívago como ator. Um dia, todos já tinham debandado, o Edson disse para mim: "Estamos namorando". Ele passou, então, a me levar em casa, de táxi, dava um beijo na testa e me dizia: "Boa noite, durma bem". E eu cá comigo: "Acho que vou ao dentista para ver se estou com mau hálito". O Edson me fez passar alguns vexames, tipo fechar o olho na hora da despedida e receber beijo na bochecha ou na testa. Até que um dia me deu um beijo e exclamou: "Como você fica vesguinha!" Começamos a namorar com uma história de cama.


PLAYBOY — Isto costuma acontecer.


IRENE — Mas esta foi muito engraçada. É que o Edson morava com um colega, o Rubens Ewald Filho, e dormia numa cama de solteiro e o Rubinho, que é enorme, numa de casal. Propus ao Rubinho que passássemos o fim de semana na cama dele e ele na minha casa. Foram fins de semana ótimos. A grande diversão do casal — depois das outras, naturalmente — era levar para a enorme cama um monte de jornais, revistas, livros. Lia-se muito, ouvia-se muita música. O melhor programa de duas pessoas que se amam é ficar juntas. Então, fiz aquela coisa que toda mulher faz e o homem não tem coragem: "Bom, Edson, antes que algum aventureiro o faça de forma canalha, deixa eu contar o que fiz, o que não fiz, onde fiz e como fiz". Ele não deu bola: "Vai contar porque quer, para mim não faz a menor diferença". Aí reparei que havia encontrado um homem que tinha muito a ver com a letra de uma música da Barbra Streisand: "nunca pergunte como aprendi as coisas que faço". Achei ótima a atitude dele mas por via das dúvidas desfiei a biografia que, por sinal, comparada com as histórias de hoje, me faz parecer uma espécie de Madre Tereza de Calcutá. Contei. À medida em que contava eu reparava no Edson impaciente, olhando o relógio até que saiu-se com esta: "Não dá para você apressar o final, se não a gente perde a sessão das dez". Decidi: caso. Tenho que casar com esta pessoa, vai ser divertido.


PLAYBOY — Foi?


IRENE — Muito. Mas teve coisa séria. Meu filho Eduardo tinha então 6 anos, precisava ser consultado. É que um dia, quando ainda tinha 4, me viu triste andando na sala de um lado para o outro e perguntou por quê. Eu disse — trabalhava muito, tinha muitas contas para pagar. Ele então sentou no meu colo e me consolou: "Não fica triste, um dia você vai conhecer um homem muito bom que vai casar com você". Ora, uma criança que diz uma coisa assim precisa ser consultada, tem que ser conversada. Fizemos uma cerimônia de casamento — com padre e tudo, apesar de eu ser desquitada — para que o Eduardo tivesse a noção de um marco. Rituais são necessários. E fizemos uma espécie de pacto: esta criança tem pai e tem mãe, e agora passa a ter um grande amigo. Portanto, o que for no âmbito do pai e da mãe será decidido pelo pai e pela mãe. Foi maravilhoso, hoje tenho um rapaz de 17 anos que é o melhor amigo do Edson e que se dá muito bem com o pai e com a mãe dele. As estações não estão misturadas. Temos um casamento em estado de alerta. Há momentos em que o radar diz que corremos perigo. Mas temos uma coisa que facilita a nossa vida —são os códigos em comum, as regras de convivência. A Irene é excelente dona-de-casa, a Irene organiza muito bem uma casa, a Irene arruma a roupa do marido por prazer, por carinho, perfuma seus armários, põe as meias em ordem pela cor, camisas classificadas pelos tipos. É a Irene-Gueixa. Mas sinto que há um sinal de perigo, perto do alerta.


PLAYBOY — Está faltando alguma coisa ou há coisa em excesso?


IRENE — Eu queria aquele estado de paixão de volta. Queria me apaixonar novamente. Pelo Edson, inclusive. Não sei se tenho capacidade, se nós temos capacidade. Todos temos medo. Porque deslavadamente confesso que eu só queria o lado bom da paixão, o lado da chateação não quero, não.


PLAYBOY — Sem preço a pagar, você acha que pode?


IRENE — Às vezes tenho a fantasia de encontrar uma pessoa, um desconhecido em Veneza — a cidade que mais me marcou até hoje — e viver uma paixão maravilhosa. Um mês, duas semanas, três dias, sei lá, e depois ele iria embora para a Legião Estrangeira enfrentar os tuaregs.


PLAYBOY — E depois o que aconteceria?


IRENE — Como a maioria dos dramaturgos brasileiros não sei dar um final a esta história — reparou que nossas peças têm finais horrorosos?


PLAYBOY — Somos é uma nação em estado de gênese, não dá para perceber onde vamos parar. Você acredita na paixão em qualquer idade, a despeito da idade?


IRENE — Estamos na era da sobrevivência, sem paixão não dá. Por exemplo, eu queria que o Delfim Netto tivesse paixão para resolver nossos problemas. Paixão com solenidade e risco.


PLAYBOY — Teu lado gueixa como é que combina com esta volúpia, esta inclinação para a paixão?


IRENE — Como diz o Edson: "Aí é que é o negócio". Isso é que fica engraçado. As formas de amor são muitas, não se ama sempre do mesmo jeito. Há momentos em que você faz amor porque é você que está com desejo e há momentos em que vou fazer amor em você, que é uma coisa independente do teu desejo. O que dita estes momentos tão diferentes é a necessidade. Você, apenas você, está sabendo o que está sendo necessário naquele instante. Quando você vê teu companheiro muito triste e você sabe que o problema só poderá ser solucionado por ele, sozinho, não adiantam palavras de estímulo porque o nível verbal é muito limitado. Então, acho que você tem que esquentá-lo com teu corpo. Uma coisa quietinha, calada.


"Quando você vê teu companheiro triste, você tem que esquentá-lo com teu corpo. Uma coisa quietinha, calada"

PLAYBOY — A combinação de atriz com jornalista é uma química que dá certo? Afinal há uma reincidência...


IRENE — É uma fórmula muito interessante. Realidade com fantasia. Acho que quem descobre as coisas, o criador, é o intelectual. Mas a gente o antecede com emoção, ou intuição, chegamos lá direitinho. Ele é racional e eu tenho estalos, profecias. Com ator você não conseguiria esta conjugação. São duas fantasias juntas. E você flagra a dele, você sabe como é que aquela máquina está funcionando, "essa eu já vi", sacou? Claro que isso só acontece se você é uma atriz esperta. Então não é legal.


PLAYBOY — Você já mencionou várias vezes a questão de premonições, estalos, profecias. Já que é meia-noite, hora de falar em fantasmas, você teve experiências, digamos, especiais?


IRENE — Muitas, desde pequena. No bonde eu ficava olhando a nuca de uma pessoa sentada em frente e, em seguida, a pessoa virava para me olhar. Até hoje certos nomes mencionados pela primeira vez despertam alguma coisa que acaba acontecendo. Não ria, levo isto muito a sério. Um dia, já estava casada com o Edson, o Juliano era pequenino, tive um troço. Vi uma revista pendurada numa banca de jornais que Khruschev havia morrido. Com foto e tudo. Dois dias depois, dois dias depois mesmo, os jornais estavam dando a notícia e aquela mesmíssima foto. A revista daquela semana não tinha dado nada, mas eu vi. Tempos depois, tive um troço, comecei a sentir tonteira, enjôo terrível, a empregada me olhou e ficou de cabelo em pé. Liguei para o Edson no jornal e pedi para que viesse correndo — coisa que faço raramente. Eu me sentia dividida — uma parte minha passava mal, outra tinha noção exata do que se passava. O Edson chegou e nos lembramos do padre que nos casou. Me recebeu tranqüilo, ouviu, não se mostrou nada surpreso, paramentou-se todo e rezou em latim, rezou muito.


PLAYBOY — Exorcismo?


IRENE — Puro e simples. Nunca mais vivi situação semelhante.


PLAYBOY — Examinou isso em análise? Freud explica.


IRENE — Não deu tempo. Comecei minha análise em 79 com o tal estado de alerta. Cheguei e disse: "Vim aqui porque tenho medo de cachorro". Nunca consegui falar sobre cachorro, jamais dei bom-dia ou tchau para o analista, entrava falando, terminava falando sozinha no elevador. Foi uma análise intensa, aprendizado muito profundo de mim mesma. Era muito caro, por isso eu achava que não devia desperdiçar coisa alguma. A análise não termina quando termina a sessão, continua. Um dia, saio do analista e me bate uma bruta saudade, vontade de ouvir a voz dele. Liguei: "Dr. Otávio, quero dizer que não estou agüentando esperar pela sexta-feira..." Evidente que meia hora depois me deu uma raiva danada: "Vou sair desta análise". Pedi que um amigo fosse ao consultório para pagar o que eu devia, enquanto ficava no carro, esperando. À noite um telefonema: "Recebi um cheque seu e segundo me foi informado você não quer mais continuar. Aceito a sua decisão mas como temos hora marcada para amanhã e, como parece, você não está muito bem dentro da decisão, se quiser, pode vir para discuti-la". Respondi: "Você não me entende. Você estudou, estudou, estudou e ainda não entendeu — quero um abraço, pombas!" Claro que fui no dia seguinte, mais controlada. Desta vez não deitei, sentei, muito defendida. Ele começou a conversar comigo: "No telefone você falou em abraço, você podia me mostrar como é esse abraço? Pegue aquela almofada do divã e mostre". Peguei a almofada e a abraçava muito enquanto falava e ele me disse: "Você percebe que esta é a minha forma de abraçar você. Cada pessoa terá uma forma de abraçar você e você vai saber que uso fazer dos abraços..." Tive mais duas sessões, me despedi de novo, desta vez alegre e feliz, sem agressão. Era daquilo mesmo que precisava...


PLAYBOY — Um limite?


IRENE — Ele já havia passado um pito, antes, quando disse: "Pára imediatamente de tentar me seduzir e sente-se direito". "Eu não estou tentando te seduzir", protestei. Olhei — estava enrodilhada no sofá, assim [Irene se enrodilha no sofá, tentadora]. Quando me despedi, estava muito bem: "Olha, não estou me dando alta, quero ver como é que vou sozinha, curiosa para saber o que faço com o que eu aprendi". Um ano depois telefonei para dizer que estava bem e que ele como profissional ficaria contente em saber. Adoraria estar em São Paulo para voltar a fazer análise com ele.


"Meu analista me disse: pára de tentar me seduzir e senta direito. Eu estava enrodilhada no sofá"

PLAYBOY — Esse jogo de sedução você também usa na relação com os filhos?


IRENE — Não chamaria de sedução, é algo mais deslavado. Dengo puro, aberto. O meu filho mais velho, este acho um sedutor. Seduz a mim e a muita gente. Não que tenha um monte de namoradas, só tem uma e é muito tranqüilo com relação a ela mas as pessoas se encantam com ele, muito.


PLAYBOY — E você baba...


IRENE — Me babo toda. Canso de dizer como fui linda quando nasceram, como foi bom, beijo na boca, beijo no pé, pego na pata do mais velho — uma prancha —, digo que é uma graça, como você é lindo, como você está gostoso. Falo para o pequeno "Que corpo bonito você tem". Claro, as brigas, quando há briga, são na mesma intensidade, passionais.


PLAYBOY — A relação com os filhos, o equilíbrio familiar não esvaziam um pouco este ímpeto passional? Afinal paixão é desequilíbrio.


IRENE — Quando a vida, no seu dia-a-dia, começa a ficar com uma certa mediocridade começam a te ocorrer pensamentos assim: "Daqui até a morte vai ser tudo igual". Então alguma coisa me empurra para dizer "não!" Começo a correr atrás de uma coisa, alguma coisa tem que acontecer. Sabe, sou muito ligada à natureza, mas à natureza brava. Há dias, neste estranhíssimo verão, aconteceu uma tempestade fantástica. Parecia o final dos tempos, me deu força. Quando fiz 30 anos eu acreditava que algo de extraordinário tinha que acontecer na natureza, um eclipse, terremoto.


PLAYBOY — A deusa queria sinal do Olimpo. Aconteceu?


IRENE — Bulhufas. Na tempestade o bom é saber que ela está ocorrendo, tirar partido dela, porque às vezes a gente não se dá conta, bruta desperdício.


PLAYBOY — Até onde Irene foi Raquel e Raquel, Irene?


IRENE — Se você me perguntasse, na hora em que eu beijava o Jardel, se estava gostando dele, eu responderia estou. Mas não estava gostando do Jardel, estava gostando do Jardel-Heitor como Irene-Raquel. Se houvesse naquela hora um registro para a intensidade do gostar acho que o ponteiro ficaria bem alto. Depois? Bom, depois depende da história de cada um. Foi um prazer trabalhar com o Jardel. Ele era um parceiro louco, louco pelo jogo. Muito empenhado, dedicava-se com afinco, estudava até a hora de começar a gravação. É bonito ver um ator deste porte dedicando-se como estreante. Porque você pega uma certa meninada que está começando agora que simplesmente tem vergonha de empenhar-se. Tem vergonha de aplicar-se. São todos gênios. Com o Jardel a gente trabalhava os mínimos detalhes, muito enriquecedor. Quando você está ensaiando uma peça ou até em certas novelas o desgaste pode ser terrível. Depois de uma espoliação destas é importante um período de férias, para repor as coisas no lugar. Para mim, o reencontro com casa, marido, filhos, no momento, está oferecendo pouco como reparação para as perdas de emoção. Venho de um trabalho seguido — teve Sara em Os Filhos do Silêncio, uma experiência duplamente desgastante porque havia o jogo normal do ator com seu personagem e o jogo do ator obrigado a integrar-se no mundo do surdo-mudo, do silêncio. Antes fiz Uma Mulher de Negócios. E levei muito tempo para me libertar desta mulher... Custei a admitir a hipótese de uma mulher matar o filho. Levou tempo para que eu aceitasse essa realidade. Hoje penso assim: quantas mulheres matam os filhos apesar de estarem vivendo com eles? Através de um processo muito racional consegui admitir a mãe que mata o filho. Se depois de Uma Mulher de Negócios tivesse tirado férias para expurgar tudo o que vivi na peça, férias como entendo, talvez estivesse melhor. De repente, pego um papel na novela que mexe comigo. Tem que mexer, imagine uma mulher da minha idade, num contexto onde se discute o casamento, relação com filhos, é muito forte. Demais.


PLAYBOY — Mexe também com os espectadores. Você recebeu retorno?


IRENE — Das mulheres. Tenho sido muito procurada pelas raquéis e pelas anti-raquéis. Cartas aos montes de filhos adolescentes ou jovens que gostariam de ter mães como Raquel. Respondo a todas, pessoalmente.


PLAYBOY — E os homens?


IRENE — Na TV Globo, outro dia, alguém disse: "Olha, Irene, Sol de Verão marca o retorno do telespectador masculino na telenovela".


PLAYBOY — Há pouco você fazia uma cena muito excitante. Raquel beijava Heitor nas costas, no ombro. A cena foi um tesão nacional. Aquilo é técnica ou emoção?


IRENE — Tem o lado sensorial aceso mas só ele não dá o barato. E tem o lado técnico onde viver o sensorial é um barato. O fascínio da profissão é que todo ser humano sofre, se apaixona, vibra mas conosco acontece alguma coisa além disso — nós reinventamos isso dentro de nós. Se você tiver pudores com você mesma o resultado em cena será péssimo. Eu e o Jardel fizemos uma cena muito sensual em que eu abria os botões da camisa dele. Há uma cumplicidade nisso. Como você se metesse num avião e o avião chacoalhasse numa tempestade, depois, em terra, você olha para o companheiro de viagem e sente que compartilharam alguma coisa juntos. Uma emoção muito forte ligou vocês, não continuou, mas existiu. Teatro é isso.


"O fascínio da profissão é que o ser humano sofre, se apaixona, vibra. Mas nós reinventamos isso dentro de nós"

PLAYBOY — E a relação com a Debora Bloch?


IRENE — Foi a que mais me mobilizou. Ela foi a filha que não tive. Acho que sou a mãe que ela precisava. Ela é a Irene que fui aos 19 anos. De todos, foi o relacionamento que mais mexeu comigo. A minha vida fora da novela com a Debora é das mais ricas e estimulantes.


PLAYBOY — Você já se deu conta de que é a mulher mais desejada do Brasil hoje?


IRENE — Não sou eu, a desejada é resultado do meu trabalho no vídeo. Estou sentada aqui em frente a você — cara lavada, mais para redondinha, você acha honestamente que posso ser o símbolo de alguma coisa ligada a sensualidade?


PLAYBOY — A era ravacheana pode ser isso. Quem sabe mudou o padrão? O país em crise sonha com uma mulher madura, firme, roliça, voz de veludo e levemente estrábica...


IRENE — Estrábica só quando beijo... Não sinto isso, mas algumas pessoas me dizem que Raquel mexeu com as fantasias eróticas e as necessidades emotivas de muito homem. Mas isso é obra da novela das oito... Ou um complô desta cidade. O meu corpo, para mim, é outra coisa. Sou muito fotogênica, sei disso. Mas conheço os pneuzinhos que tenho em algumas partes do corpo. Não sou decididamente a namoradinha do Brasil.


PLAYBOY — Mas pode ser a amante do Brasil...


IRENE — Sei que gostaria muito que alguém me convidasse para dançar. Às vezes acho que só mulher acha isso gostoso, homem faz, mas não acha.


PLAYBOY — Este é o estereótipo do homem, injusto, aliás. Homem não é brutamontes.


IRENE — Acho que homem se desapaixona mais depressa do que a mulher.


PLAYBOY — Assim como a sociedade estabeleceu papel passivo para a mulher, designou o homem para a missão providencial — ser ativo, fazedor de coisas. No dia seguinte a uma orgia no motel alguém precisa chamar o garçom, ver a conta, tirar o carro da garagem.


IRENE — Adoro motéis, vou muito com o Edson, uma farra! Mas ele quer levar escova de dentes, homem é diferente. Não sou habilidosa com eles, apesar de que eu esteja sendo chamada o tempo todo de sedutora. Convivo melhor com mulher. Nunca tive problemas de dizer para uma mulher — você é linda! Não tenho complexo de botar mulher no colo, beijar, cheirar. Uma vez, na mesma peça, eu beijava um ator e uma atriz. Curti mais o beijo na mulher, Lilian Lemmertz. Muito mais gostosa, mais macia. Acho impossível olhar para Debora e não cair morta, fulminada. E linda, saborosa, uma maçã. Mesmo com aquela agressividade que, para mim, é forma de doçura.


"Não tenho complexo de botar mulher no colo, beijar, cheirar. Numa peça curti muito um beijo em Lilian Lemmertz"

PLAYBOY — No programa em homenagem a Elis Regina você — que a encontrou apenas uma vez — a encarnou de tal forma que parecia terem sido amigas. Aquela forma de rir mostrando as gengivas foi um achado. Trabalho de espelho?


IRENE — Nunca fui para frente de um espelho me observar. Esta é uma observação de fora para dentro, elaborada de dentro para dentro e, depois, jogada de dentro para fora. Se o problema fosse ter apenas emoção, experimenta pôr todo mundo que tem emoção no palco — não há espetáculo. Aquela garotada que está procurando uma linguagem nova no teatro, na música e no jornalismo ainda não percebeu que antes de jogar fora alguma coisa é preciso usar muito o que a gente tem. Vi todos os tapes da Elis, trabalhei a Elis dentro de mim.


PLAYBOY — No mesmo programa você disse — frase dela — que palco é como cama.


IRENE — Palco (ou estúdio) é lugar sagrado — a gente só divide com quem tem muito a ver conosco. Cama sobretudo. Paixão também é coisa sagrada.


PLAYBOY — E as paixões que você está despertando por aí — aprendeu a lidar com elas? Tem meio Brasil sonhando com você, esperando o dia em que você desabotoe apaixonadamente suas camisas como aquela cena da novela.


IRENE — Sou ligeiramente estrábica, barriga com estria, peitos enormes, bunda grande. Se a blusa de lycra não serve para mim, problema da blusa de lycra. A grande virada que pode estar acontecendo hoje no Brasil, e da qual Sol de Verão pode ter sido até instrumento, é que os padrões de beleza, juventude e mesmo de afeto mudaram. Ser jovem não tem mais nada a ver com idade, ao contrário. Muitos jovens envelheceram. O brasileiro se prepara muito mal para a velhice, com horror até. Acham velhice sinônimo de decrepitude, coisa estragada. Nada disso! Daqui para frente vou ficar cada vez melhor...


PLAYBOY — Pobre Brasil, não güenta!


IRENE — Güenta sim. Se tem gente sonhando que vou desabotoar sua camisa numa cena de amor deve haver gente com paixão suficiente para saber desabotoar a minha — ou o collant da sua Raquel...


PLAYBOY — E a vida sem Jardel?


IRENE — Recebi muitos pêsames como se fosse a própria viúva. A última cena que fizemos juntos, na realidade, foi filmada separadamente. Quando vi a montagem, Jardel parecia outra pessoa, cara esquisita. Engraçado quando eu imaginava o fim da novela, via a Holanda, mas Jardel não estava lá... Acho que só agora começo a entender o Jardel, a minha loura maluca. Aquela vitalidade era procura, busca, pura angústia. E a ânsia em mim, com a morte dele, encontrou muitas respostas, muitas mesmo. Se antes eu estava em dúvida se devia montar uma peça no Rio depois da novela, agora estou decidida, vou descansar. Vou reencontrar meu tempo, sabe o que é isso? Preciso redescobrir meu olfato, meu tato, minha sensibilidade. Na pressa não dá pé, não é, Jardel?... Na correria, o amor passa ao nosso lado e não conseguimos distingui-lo, apalpá-lo. Vou reaprender a respirar... Também decretei — não quero ter coisas. Para que acumular? Com este monte de bagulho as decisões ficam difíceis, as coisas começam a te cobrar. Chorei despudoradamente diante do Brasil no Jornal Nacional no dia em que Jardel morreu porque havia compreendido naquele instante um montão de coisas. E o Jardel não estava mais ali para ouvir. Não vou deixar que isso aconteça outra vez.


POR ALBERTO DINES

FOTOS FERNANDO SEIXAS


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