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A NOITE DOS DESAPARECIDOS NA ARGENTINA

Reportagem



A luz da cidadezinha de 1.600 habitantes foi cortada. Gritos e fachos de lanternas eram os únicos sinais de vida. Quatro horas depois, 200 pessoas haviam sumido


Por JOSÉ MEIRELLES PASSOS


Quando o juiz lhe perguntou onde vivia, dona Eulogia de Garnica, uma mulher robusta, de tez escura e cabelos ainda negros aos 60 anos, admite que sentiu vontade de dizer: "Lá no fim do mundo, doutor". Qualquer habitante de Calilégua, como ela, teria dito isso. É um velho costume. Só que, na hora de responder diante de tanta gente, a costureira sentiu uma ponta de vergonha. E ali, no Tribunal de Justiça de Buenos Aires, corno uma das 833 testemunhas de acusação no histórico julgamento dos crimes das três primeiras juntas militares da ditadura que sufocou a Argentina de 1976 a 1983, dona Eulogia titubeou e acabou dando apenas o nome do lugarejo maldito.


Maldito sobretudo depois daquela noite trágica, quando quase quinze por cento da população desapareceu misteriosamente de suas casas, como se tivessem todos sido tragados pelas trevas. Ninguém, em Calilégua, pode ainda hoje se esquecer. Quando o último boteco fechou, pouco depois das dez da noite, só cães vadios perambulavam pelas ruas de terra mal iluminadas. Os 1.600 habitantes já se haviam recolhido. Os insones, que ouviam o nostálgico programa de tangos da Rádio Libertador, a estação da cidade vizinha de Libertador San Martins é ente foram surpreendidos por um inesperado corte de luz — tão longo que não houve outro jeito senão pegar no sono. Na manhã seguinte, o pânico varreria o povoado ao correr a notícia: faltavam 200 pessoas.


O primeiro rumor chegou com o vento, espalhando-se em frases cifradas:


— Foi ele! Só pode ter sido ele outra vez! — arriscavam alguns.


El Familiar... El Familiar voltou! — sussurravam outros, fazendo o sinal da cruz.


Aos poucos, porém, a versão foi se desfazendo:


— Não foi o capeta, não — garantiu o primeiro a duvidar de que o demônio, conhecido na região, ninguém sabe exatamente por que, como El Familiar tivesse reaparecido, como dezenas de outras vezes, para cobrar a dívida anual. Diz a lenda que, ao final de cada safra de cana-de-açúcar, ele vem buscar duas ou três vidas. É. o preço que cobra para garantir uma boa colheita. Só que, desta vez, haviam sumido 200 pessoas.


— Se fosse ele, teria deixado recibo: os cadáveres já teriam aparecido... — argumentou a mesma voz.


Esse raciocínio convenceu a multidão assustada que, a essa altura, já percebera uma intrigante e aterradora coincidência: nas casas de onde havia desaparecido alguém, surgira uma marca idêntica. Um sinal demasiadamente humano para ter sido coisa do diabo: uma mão aberta, feita com tinta negra, impressa sobre dezenas e dezenas de portas. A verdade não tardaria a surgir para a população local. A história, porém, ficou sepultada por anos nos porões da ditadura militar argentina. Com o regime democrático do presidente Raul Alfonsín, o caso foi à Justiça mas permaneceu inédito na imprensa, soterrado entre as mais de 3 toneladas que pesam as 400 mil folhas dos processos iniciados em abril do ano passado para julgar os crimes das juntas militares. Agora, contando o drama da família Garnica, PLAYBOY recupera, pela primeira vez, o drama de Calilégua.


PATRÃO TODO-PODEROSO


Calilégua é uma cidadezinha poeirenta, cercada por imensos canaviais de um verde intenso. É um pontinho negro, minúsculo, perdido no mapa da Argentina — bem ao norte, na província de Jujuy, a apenas 120 quilômetros da fronteira com a Bolívia. As casas são muito simples, de madeira, cobertas por folhas de zinco ou de flandres. Buenos Aires está muito longe: são 3.000 quilômetros de distância, três dias a bordo de um trenzinho lerdo e incômodo da Ferrocarriles General Belgrano.


O calor é sempre intenso, e quase nunca chove — só no verão, quando os rios renascem e voltam a tocar as margens, deixando de ser silenciosos fiapos de água que serpenteiam entre pedras brancas. Nessa época, então, a diversão é caçar javalis ou perdizes. E apreciar partidas de futebol aos domingos, e encharcar-se de cerveja nos botequins ou à sombra das frondosas mangueiras que enfeitam a cidade. De vez em quando, um circo mambembe aparece, e por algum tempo diminui então o número de passageiros do velho ônibus que leva à vizinha Libertador San Martín, onde há um cinema, fliperamas, bilhares e senhoritas que não cobram caro para fazer um homem feliz.


Durante a semana o trabalho é duro. Acorda-se muito cedo para ir ganhar a vida nos canaviais. Em Calilégua todos têm um mesmo patrão: o todo-poderoso Engenho Ledesma, cabeça de um império que se estende por 75 quilômetros de terras cultivadas com cana e que produz açúcar, álcool e papel.


OS ESPIÕES DO ENGENHO


É o Engenho que faz a lei na região, e a mantém com a ajuda dos cinco postos policiais encravados dentro de seus domínios. De suas entranhas foi que saiu, há muitos anos, a conveniente lenda de El Familiar, figura mitológica que até hoje apavora a vida de seus funcionários mais humildes. El Familiar, curiosamente, vem demonstrando ao longo dos anos uma particular predileção por operários que teimam em ser assíduos, e ativos, nas reuniões do Sindicato de Obreros y Empleados del Azúcar de Calilégua.


— Conversa fiada! — diz Agustín Donato Garnica, 67 anos, um homem grisalho de pele cor de bronze, olhos escuros e úmidos, que trabalhou 35 anos na empresa. — São eles mesmos que se encarregam de "sacrificar" os trabalhadores, inventando acidentes fatais. São os capangas da fábrica que dão fim a essa gente, com a ajuda da polícia. Todo mundo sabe disso, só que o terror os cega e emudece.


Agustín Donato, marido da costureira Eulogia, pagou caro por sua rebeldia — entre outros tributos, perdeu dois filhos. A perseguição começou por ele mesmo, vítima de um dos centenas de espiões do Engenho. É um esquadrão anônimo e maltrapilho, formado por alguns de seus operários, que cooperam com a administração em troca de prêmios. Denunciar um colega que rouba uma ferramenta ou um punhado de açúcar, ou que trama uma reunião para discutir salários ou criticar más condições de trabalho, dá direito a recompensas como ter um banheiro em seus casebres, uma mão de pintura num cômodo, talvez uma mureta rente à rua — tudo patrocinado pelo Engenho. Outra missão desses olheiros é denunciar os contrabandistas de açúcar, que têm freguesia certa no povoado. No comércio local, controlado pelo Engenho, o produto custa muito mais caro que o mesmo açúcar exportado pela empresa para a vizinha Bolívia. Cruzada a fronteira de volta, contrabandeado, ele passa a ser vendido por um terço do preço da praça. Quando, porém, essa atividade extra de espionagem é descoberta pelos companheiros de trabalho, os dedo-duros caem em desgraça e são demitidos.


— Nós os chamamos de "camisinhas" — diz um funcionário do Engenho. — Porque a empresa os usa e, depois, joga fora.


Zeferino Zanabria, um trabalhador do Engenho, foi quem "entregou" o velho Agustín Donato, anos atrás. Agustín era diretor do sindicato, do qual fora um dos fundadores, e criava problemas para o Engenho. Era preciso encontrar um pretexto para livrar-se dele — quem sabe uma suposta simpatia pelos Montoneros, que nessa época já haviam lançado a luta armada na Argentina.


Agustín Donato teria de ser vigiado 24 horas por dia. E foi aí que Zeferino Lanabria entrou em ação. Convincente, ele conseguiu que o próprio irmão e vizinho de Agustín Donato — o carpinteiro Ángel Antonio — lhe permitisse passar o dia todo em sua casa para espionar a do sindicalista. Como compensação, Ángel, que já se aposentara do Engenho, receberia regularmente serviços extras da empresa para complementar a pensão minguada.


Zeferino passou vários dias ali espionando, anotando todos os movimentos, fiscalizando as visitas, remexendo livros e gavetas quando a casa estava vazia. O turno da noite ficava por conta de um policial do povoado.


— Apesar dessa colaboração do Judas — diz Agustín Donato —, não conseguiram encontrar nada de errado comigo. Unta noite, porém, ele acordou com vários policiais dentro de sua casa. Foi espancado diante da mulher e dos filhos e arrastado até a cadeia. Acusaram-no de um vago "atentado à ordem pública" — delito que não chega a acarretar um ano de prisão), quando comprovado judicialmente. No caso de Agustín Donato, contudo, nada foi comprovado — e, mesmo assim, ele amargou sete anos numa cela.


O IRMÃO DESAPARECEU


Naquela noite em que sumiram 200 pessoas, a suspeita inicial de que o demônio havia voltado se dissipou de vez quando alguém lembrou um detalhe: apesar de tudo, o diabo jamais havia roubado as famílias de suas vítimas. Agora, porém, todas as casas marcadas com a mão negra na porta tinham sido saqueadas — e o que não fora carregado havia sido destruído.


Oscar Garnica, filho de Agustín Donato e de dona Eulogia, então um garoto de 11 anos, foi uma das primeiras testemunhas a desvendar o mistério:


— Eu vi! — dizia ele, aos prantos, para os vizinhos. — Eram soldados do Exército. Uma porção deles, com capacete e tudo. Havia policiais também. E gente vestida de civil. Tinham metralhadoras, pistolas e fuzis. Carregavam lanternas e uma lista com nomes e endereços.


"Eu vi", dizia o garoto, tremendo. "Eram soldados, tinham metralhadoras e pistolas e carregavam uma lista de nomes"

A casa dos Garnica fora completamente destroçada.


— Todos contra a parede! — berrava o oficial que liderava o grupo invasor.


O menino tremia ao ouvir os gritos da mãe e de um irmão, Domingo Horácio, de 20 anos, sendo espancados na sala. Depois, quando os soldados vendaram os olhos dos dois e ataram suas mãos às costas, o garoto foi mantido contra a parede, com uma arma apontada para a sua cabeça. No fim, ele ainda conseguiu ver a mãe e o irmão serem empurrados para dentro de uma grande carreta branca. A escuridão da cidade sem energia era cortada apenas pelo movimento dos homens com as suas lanternas.


Mas, por entre ordens gritadas aqui e ali e o som de botas golpeando o chão, o menino pôde ver pela janela quando um facho de luz correu sobre uma das portas da carreta. Nela, estava o símbolo do Engenho Ledesma.


— Agora toda a família baderneira já está no papo! — comentou um dos seqüestradores, em voz alta, antes que a carreta partisse.


Naquela tarde, um outro irmão do garoto, Miguel Ángel Garnica, 24 anos, já havia desaparecido. Ele fora chamado à delegacia de polícia para buscar, segundo lhe disseram, uma carta que seu pai Agustín Donato havia enviado da prisão de Jujuy, a capital da província — e nunca mais voltou. Viúvo, Miguel deixara a sua única filha, um bebê de 8 meses, na casa da mãe.


O menino Oscar e o bebê choraram aquela noite inteira, abraçados entre os móveis e utensílios arrebentados pela tropa.


"OPERACIÓN APAGÓN"


A estratégia do ataque fora minuciosamente planejada. Uma parte dos soldados foi à estação de energia elétrica da Prefeitura, que sustentava apenas a rede urbana, enquanto outro grupo dirigiu-se ao Engenho, cujo gigantesco gerador central fornecia luz também às casas dos povoados. Os relógios estavam sincronizados: às 22h15, exatamente, os dois equipamentos foram desligados. A partir de então, grupos bem armados partiram levando as carretas e alguns "espiões" do Engenho, para colaborar na localização dos endereços — todos tirados do fichário da empresa. Habitualmente destinadas ao transporte de cana-de-açúcar, as carretas seriam usadas para levar os "subversivos" a um campo de prisioneiros a 150 quilômetros dali, perto da cidade de Guerrero. Tratava-se de um conjunto de edifícios outrora tranqüilo e bem arborizado, cercado por rebanhos de cabras e ovelhas, que a Igreja Católica costumava utilizar para os retiros espirituais dos padres da região e que foi convertido em prisão clandestina pela ditadura do general Jorge Rafael Videla.


Ali, num descampado não muito distante do prédio principal, os caminhões despejaram os troféus de guerra arrebatados durante a Operación Apagón, para mais tarde serem repartidos entre os soldados. Era o habitual pagamento por mais um serviço prestado à pátria: móveis, rádios de pilha, colchões, sapatos, utensílios domésticos e roupas dos trabalhadores. Gananciosos, alguns seqüestradores chegaram a se apropriar de lâmpadas, maçanetas e até escovas de dentes.


A FILA DE ENCAPUÇADOS


No campo de prisioneiros, encapuçados, os seqüestrados de Calilégua caminhavam vagarosamente, em fila indiana, para os calabouços. A porta, depois que lhes tiravam as vendas, um carcereiro — com uma lista nas mãos — ia identificando um por um, e anotando um número ao lado de cada nome.


— Esqueçam que têm um nome — gritava o homem. — De hoje em diante, vocês são apenas números, e devem responder, quando forem chamados, por seu número.


Logo depois, a primeira chamada no corredor entre as celas:


— Cinqüenta e dois, trinta e cinco, vinte e sete e cento e treze. Formem fila para ir à festa!


O ferreiro Hector Narváez, hoje com 50 anos, era o número cinqüenta e dois, e conta, hoje, o que era a "festa":


— Havia música, sim, muito alta. Eles batiam, davam choques, voltavam a bater. E pediam nomes de outras pessoas. E gritavam: "Calilégua é um antro de extremistas!"


Baixo, forte, Narváez levou choques elétricos nas gengivas, nos lábios e nos órgãos genitais. Foi espancado a pontapés e queimado com pontas de cigarro nas costas e nos braços. Seu crime: ser delegado sindical junto ao Engenho.


Gabino Valle, hoje com 71 anos, operário aposentado, teve um tratamento especial — o que, no dialeto do campo de prisioneiros, significava castigo em dobro e com requinte maior. Os torturadores diziam que ele era peixe graúdo:


— Vamos abrindo o bico! — gritavam. Você é o ideólogo. Vai cantar logo ou não vai?


O velho Gabino, de fala mansa e normalmente caudalosa, não tinha o que dizer. Tudo o que podia revelar era que os freqüentadores analfabetos de seu pequeno bar, um cubículo que também é papelaria e banca de jornais, gostavam de ouvi-lo contar histórias que ele lia em seus livros de cabeceira. As provas que os militares haviam reunido para interrogá-lo eram uma modesta enciclopédia ilustrada e meia dúzia de livros inocentes — fascículos sobre a II Guerra Mundial que ele mandara encadernar e biografias de homens como Churchill, Gandhi, Stálin e Emiliano Zapata.


Enquanto Gabino era torturado como se fosse um estrategista montonero — um dos militares lhe intimava a "contar logo os planos de sua guerra" —, dona Eulogia Garnica teve uma experiência particularmente desalentadora. Ela já estava com o corpo coberto de queimaduras e hematomas quando o bispo de Jujuy, monsenhor José Miguel Medina, entrou subitamente em sua cela uma tarde. A surpreendente visita encheu seu coração de esperança — mas ela durou pouco. Dona Eulogia, hoje, se lembra:


— Ele se aproximou de mim, colocou uma mão sobre meu ombro e disse que eu devia me confessar. Mas nessa hora eu só pensava era em sair daquele inferno com meus filhos, e o bispo insistia em que me confessasse, como se estivéssemos numa igreja. Foi então que eu percebi que estava perdida. Ele falou assim: "Vamos, minha filha, diga-me de uma vez por todas em que é que você e seus filhos andavam metidos..."


"O bispo entrou na minha cela e me disse para confessar logo o que fizera. Aí percebi que eu estava perdida"

O professor de matemática Carlos Melián, hoje com 46 anos, também foi visitado pelo mesmo bispo — que hoje é capelão militar — no campo de prisioneiros. E perguntou-lhe pela sorte de cinco amigos que haviam sido retirados de suas celas, há dias, e não mais voltado. A resposta do bispo aterrorizou-o:


— Ele me disse — recorda o professor —, sem mover um músculo da face, que todos haviam sido "julgados" e fuzilados em Tucumán. E, diante do meu espanto e dor, comentou ao sair da cela: "O país está vivendo uma guerra suja, meu filho".


O MEDO DOS VIZINHOS


Em Calilégua, as feridas abertas pelo desaparecimento coletivo começaram a cicatrizar-se de uma forma cruel. Os operários do Engenho, dias depois daquela noite, tornaram-se calados, desconfiados. As reuniões acabaram. Poucos ousavam aproximar-se das famílias dos desaparecidos. O menino Oscar passou três dias sozinho dentro de casa com a sobrinha Norma Beatriz, o bebê de oito meses. Sem dinheiro ou alimentos na casa depredada, ele viu várias portas se fecharem atemorizadas a seus pedidos de ajuda antes que um vizinho, às escondidas e altas horas da noite, começasse a lhe passar comida, fraldas limpas e leite para o bebê.


Depois de três dias, chegou uma irmã de Oscar, casada, que não tinha idéia do que havia ocorrido com a família. Ela acabou se instalando na casa com o marido, e passaram os dois a cuidar das duas crianças. A volta às ruas, porém, foi um doloroso aprendizado para o garoto sobre o que o pavor é capaz de fazer às pessoas:


— Na escola, quando eu pedia emprestado um lápis ou uma borracha a alguém — lembra-se agora Oscar —, me diziam: "Não falo com subversivo". Um dos vizinhos costumava me chamar de "guerrilheiro sem-vergonha".


Hoje, Oscar é um jovem sapateiro franzino, mas de gênio violento, que não sai de casa sem um soco inglês num bolso e uma corrente de metal no outro. É para, como diz, "lavar a honra da família", que, como muitas outras, ficou com um estigma. Há pouco tempo, um senhor da cidade, numa conversa que chegou aos ouvidos de Oscar por acaso, referiu-se a seu pai, Agustín Donato — que, com o governo Alfonsín, deixou a prisão —, como "esse subversivo que andava espalhando idéias comunistas pelo sindicato". Interpelado por Oscar à saída de sua casa, o homem teve o rosto quase desfigurado pelo soco inglês.


Quando serviu o Exército, dois anos atrás, o rapaz revelou-se um bom atirador, habilidade que levou alguns oficiais a encaminhá-lo à Escola de Sargentos para iniciar-se na carreira militar. Oscar não quis se inscrever:


— Depois do que vocês fizeram com meus irmãos — ele disse aos oficiais, surpreendentemente sem conseqüências disciplinares —, eu quero que os militares se fodam!


Só após alguns meses sem notícias, depois daquela trágica noite de 20 de julho de 1976, é que os primeiros desaparecidos começaram a voltar. Alguns levaram seis meses, outros um ano, um ano e meio, dois anos — e onze deles, inclusive Miguel Ángel e Domingo Horácio, os dois irmãos de Oscar Garnica, nunca mais voltaram nem tiveram seus corpos localizados. A mãe, dona Eulogia, conseguiu sobreviver ao campo de prisioneiros e foi solta oito meses depois. No dia em que a libertaram, um delegado de polícia que comandava os carcereiros lhe disse:


— A senhora nos desculpe, mas sua prisão foi um engano.


Dona Eulogia foi torturada e ficou presa durante oito meses. Ao ser solta lhe disseram: "Foi um engano"

• • •


A modesta costureira de olhos tristes guardaria por mais oito anos um intragável nó na garganta. Até que, numa recente quinta-feira, ela surpreenderia e comoveria o Tribunal de Justiça de Buenos Aires, depois de acomodar-se na cadeira reservada às testemunhas de acusação no julgamento dos chefes das juntas militares, responsabilizados pelo seqüestro de pelo menos 8.961 pessoas que até hoje não apareceram. Ao iniciar a tomada do depoimento, o juiz Jorge Edwin Torlasco, que presidia a audiência, perguntou-lhe — como é de praxe e manda a lei — se ela era "parente, amiga ou inimiga dos militares processados, membros das três juntas militares do denominado Processo de Reorganização Nacional" [nome oficial da ditadura]. E ouviu-se, então, pela primeira vez, uma resposta cheia de indignada honestidade:


— Sou inimiga, doutor!


ILUSTRAÇÃO MATT NAHURIN



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