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ANGELI | FEVEREIRO, 1986


O irreverente criador de Rê Bordosa e Bob Cuspe confessa seus fetiches, sua vaidade, as cantadas que recebe e a vontade de beliscar a bunda dos outros


POR ROSANGELA PETTA

FOTO MARCIA MAY


Arnaldo Angeli Filho sempre foi um tremendo gozador. E, desde cedo, fez disso o seu meio de vida: aos 29 anos, quinze de galhofa, Angeli é um dos maiores talentos da nova geração de humoristas, uma das grandes estrelas da página de quadrinhos do Jornal do Brasil e da Folha de S. Paulo. Nascido e criado na periférica Casa Verde (São Paulo), foi office-boy e entregador de supermercado até estrear no Pasquim, aos 15 anos, e de lá seguir publicando charges na Tribuna da Imprensa e na revista underground Patatá. Leandro Konder, no seu livro Barão de Itararé, diz que Angeli é herdeiro do próprio. Jaguar, seu ídolo, virou fã. Muitos gostam dele: com dois livros publicados e um bem-sucedido gibi bimensal lançado há pouco (o Chiclete com Banana), hoje algumas das suas 15 personagens aparecem diariamente em seis jornais do país, de Teresina a Sorocaba. Antes de viajar para França e Itália, a convite de dois eventos que celebram o quadrinho internacional (o Festival de Angoulême e o 9º Convegno di Fumetti), ele recebeu a editora Rosangela Petta para uma animada conversa numa outra Paris — rua do tranqüilo bairro do Sumaré, São Paulo, em que fica o seu estúdio e de onde surgem quilômetros de tiras cheias de sexo, drogas e rockn' roll.





1. Pelas suas tiras, muita gente acha que você é um tarado. Você é? Ah, eu sou sim! Sou meio febril em algumas coisas. Sou fetichista e assumo. Sempre cultivei roupas femininas, gosto de ver mulheres com meias, calcinhas, sutiãs, babydoll, saiote, anágua... Só que eu resolvo tudo isso no meu trabalho. É a maneira pela qual trabalho, no sentido profissional, também é de tarado, uma fixação.


2. E quais foram os seus personagens mais polêmicos até agora? Bom, minhas tiras causaram dois tipos de polêmica: pelo lado político e pelo lado da chamada moral. No primeiro caso, o Bob Cuspe chegou cuspindo na direita e na esquerda, era contra a política profissional. Então, tinha gente chamando o personagem de figura da CIA. O Meia Oito também causou polêmica. Surgiu em 1980, uma época em que ainda havia aquele ranço da esquerda — hoje ela está mais colorida, se transa mais —, e ele se perguntava: como fazer uma revolução sem antes revolucionar a si próprio? Foi logo que o Fernando Gabeira voltou do exílio, e a conversa do Gabeira me ajudou muito a concluir quem era o Meia Oito. Mas o lado sacana mesmo veio com a Rê Bordosa, que trepa adoidado, bebe adoidado e usa drogas. E, se as pessoas acharam imoral, erraram, porque no fundo isso é até moralista. Ela se atrapalha com tudo isso. Eu coloco a personagem contra os exageros de pessoas que tropeçam na própria liberdade.


3. Se você diz que se coloca nas tiras, quer dizer então que esses também são seus problemas? Perfeitamente. A Rê Bordosa, por exemplo, pintou numa fase em que eu e a Márcia, minha mulher, estávamos barbarizando demais. A gente começou a ver como era o dia seguinte de todo mundo que passa a noite curtindo e viu o lado improdutivo: você não trabalha, não pensa direito e só se preocupa em se recuperar daquilo que gastou na noite anterior. Ficamos, então, brincando com o termo "rebordosa" e a Márcia sugeriu repartir a palavra e virar um nome. Foi a personagem que mais fez sucesso.


4. Como você transa as drogas? Sou um cara que convive muito bem com elas, sempre "viajei" com o pé no chão, a droga nunca ganhou de mim. Mas deixei de transar muitas delas porque são imbecis. Cocaína é a pior. Além disso, me lembro de um debate em que todo mundo só perguntava sobre maconha. Pô, a gente tem mil problemas e fica discutindo se deve liberar a maconha? Isso aí está em último plano. Nada contra, mas vamos discutir essa questão quando tudo estiver solucionado, quando tiver gente interessante no poder e estiver todo mundo de barriga cheia.


5. Você procura retratar sua geração? Eu me baseio em mim e nas pessoas que convivem comigo. Porque somos de uma geração que teve poucos horizontes e que, quando conquistou certas coisas, se confundiu. É como fechar um leão, desde que nasceu, num lugar escuro: quando você o solta, brrr, ele não sabe pra onde vai. E faz besteira, come cristão... [risos] Eu acho que a Rê Bordosa representa uma fase que a mulher está vivendo. Essa personagem, já percebi, "bate" em dois tipos de mulher: a de 15 anos, que começa a transar, ou já deu um "esfrega" mais violento com o namorado; e a de 30, que começa a entender seu corpo, que não pode brincar com os seios senão ficam flácidos, nem com as coxas senão ganha estrias, mais aquela coisa de não ficar pra tia. Todo mundo tem isso, por mais careta que seja. As pessoas pensam: por que será que os outros se descolam e só eu não? Aí, essas mulheres partem para a fantasia, como a Rê Bordosa, que transa com um time inteiro de basquete achando que isso pode dar algum prazer.


6. Como os fãs reagem a isso? Ah, recebo muitas cartas dando até idéias. É engraçado porque todas as garotas acham que são a Rê Bordosa. Mas também já recebi carta de gente que mora na Vieira Souto, em Ipanema, falando que não consegue tomar o café da manhã lendo o Bob Cuspe. Acontece que ele representa justamente o fruto dessa sociedade capenga, construída de maneira não-pensada, onde surgiu esse câncer de que o Bob Cuspe é a expressão. Incomoda algumas pessoas da Vieira Souto, mas não sei se incomoda o zelador do prédio delas.


7. Por quem você torce ideologicamente? Não sei... Até hoje não sei o que quero. Me identifiquei por um bom tempo com o PMDB por um motivo simples: as águas rolavam todas pro mesmo lado e todo mundo, dono de jornal e jornalista, era contra a mesma coisa. Agora, tudo mudou. Tem gente que atira numa direção ou outra — eu me colocaria mais como um franco-atirador. O que me chama a atenção é tudo o que coloca em discussão essa sociedade onde cidadão assalta banco e banco assalta cidadão. Meu trabalho é para o ser humano. É beliscar a bunda do sujeito, ver se ele acorda e anda. E ele anda pra onde quiser.


8. Então você concordou com o Millôr quando ele apontou para a questão do "humor a favor", logo no começo da Nova República? Naquela época o Sérgio Augusto fez uma matéria para a Folha dando destaque ao Millôr e a mim, porque éramos quase os únicos que realmente estavam a fim de continuar criticando. Porque acho muito estranho humorista ficar a favor de alguma coisa, assumir cargo no governo e começar a defender uma ideologia com unhas e dentes. Aí ele já não está mais fazendo humor e sim propaganda. Eu estou do lado do ser humano: como é que um animal racional pôde fazer besteiras como a bomba atômica? É uma posição política, mas não é político-partidária.


9. Que experiências você guardou de quando fazia charge política? Olha, eu entrei na Folha em 1974 e inaugurei o espaço fixo de charge na página 2. Mas essa longa fase de chargista político, até 1980, foi meio dolorosa porque, no fundo, não sou um cara que sabe fazer a cabeça de ninguém. Foi importante descobrir quem é mocinho e quem é bandido, mas me sentia mentiroso comigo mesmo: fazia uma charge do Mário Andreazza e ia pra casa ouvir Rolling Stones, esse era o meu papo. Pensei: preciso misturar as duas coisas, continuar sendo humorista e, ao mesmo tempo, ser roqueiro. Eu era velho, chargista às vezes fica com cara de analista político. E trata das pessoas que fazem leis, enquanto prefiro lidar com a vítima dessas leis, o anônimo.


10. Quando foi que você decidiu ser humorista? Ah, essa responsabilidade é toda do Pasquim. Comecei muito cedo, tinha 14 anos, e, quando o Pasquim surgiu, fiquei doido — meu Deus, como é que pode aquele Fradim do Henfil descer num escorregador de gilete e cair numa bacia de álcool? Eu queria fazer alguma coisa daquele tipo, ficava rabiscando em casa, mas meu traço sempre foi mais detalhista. E havia o Robert Crumb — que é o pai do que eu faço agora — saindo muito na revista Grilo. A imprensa paulista para charges quase não existia, o negócio era o Rio. E o Pasquim era tudo o que eu queria ser, só não era rock. Era mais samba e bossa-nova. Era chopinho na praia, e eu sou de tomar conhaque na cidade no meio da madrugada. Bom, aí peguei um ônibus e fui mostrar meus desenhos para o Henfil, o Jaguar, o Millôr (só de ele pegar no papel eu achei o máximo) e o Ziraldo. Até que um desenho foi publicado.


11. Você ganhou dinheiro? O Pasquim só podia pagar um caraminguá que dava para a passagem de volta a São Paulo. Eu comecei a ganhar uma grana fazendo esses cartões de aniversário vendidos nas papelarias. Depois que ganhei o prêmio no Salão de Humor de Piracicaba, em 1974, fui contratado pela Folha. E, hoje, nem tenho muita grana. Não que eu viva mal, mas o que eu ganho, gasto. Compro oito discos de uma vez, roupas caras. Gosto de me embelezar, experimentar camisas, é até uma coisa meio viada minha. [Risos]


12. Você se acha atraente? Faço todo o possível pra ser [risos]. Às vezes me acho bonito... E sabe aquele negócio de Humphrey Bogart, de galã que pega a mulher pelo braço e dá um puta beijo? Isso eu tenho pra cacete, tem vezes que é até ridículo. Tenho um personagem, o Bibelô, que de certa forma tirou um pouco dessa carga violenta de homem em mim. Eu incomodava as mulheres, ia no bar e ficava lançando olhares —"Essa gata tá a fim de mim, ela quer dar pra mim!" —, e tinha mulher que pensava: "Pô, não posso nem ir num bar beber sossegada que o Angeli vem encher o saco..."


13. Você se considera machista? Tenho altos ranços. Brigo pra não ser machista, mas está arraigado em mim, coisa italiana, barra pesada. Às vezes sou ciumento ao extremo, ou fico colocando obstáculos pra Márcia não sair sozinha, digo que aquele lugar não está com nada e tal. E, em certos momentos, só vejo a mulher como objeto. Ora, por que tenho que tentar comer todas as mulheres? Aliás, tenho mais fama do que mereço na realidade.


14. Tem pintado muita cantada? Ultimamente, até por carta. Veio uma do Recife: "Moro num apartamento legal que vai ficar muito melhor se você passar umas noites aqui". Nas festas de lançamento de livro, sempre pintam mulheres que extrapolam, vêm se esfregando e nem sabem que a tua mulher está ali do lado. A Márcia é finíssima, tira de letra — depois é foda! [Risos] Eu me embanano todo. Isso de não querer demonstrar é coisa de machista.


"Levo cantada até por carta. E, nas festas, sempre tem mulheres que extrapolam, vêm se esfregando..."

15. Você pratica a fidelidade? Hã... sim. [Risos] Ah, eu sempre tenho uma eleita, sempre estou apaixonado por uma mulher. Tive uma fase altamente infiel no meu primeiro casamento, talvez porque tenha me casado com 19 anos. Então, com 21, eu queria ir com tudo conhecer esse negócio complicado que é mulher. Comecei a namorar a Márcia assim, ela foi "a outra" por um tempo. Mas não uma "outra" qualquer. Quando vi a Márcia, disse: com essa eu quero casar. Coisa de virginiano.


16. Você é um grande amante? Eu sou italiano, pô! A ansiedade que eu tenho se aplica também ao sexo. De repente, não me contento só com uma transada, quero passar a noite inteira transando, até aborreço. Acho que homem é muito mais burro que mulher.


17. Por que homem é mais burro? Eu me sinto mais burro que as mulheres em termos de sexo, essa ansiedade é burra. É a coisa de querer se satisfazer pela quantidade. E vejo que homem geralmente é isso. Acho que, para se defender, a mulher passou a pensar melhor o sexo, ela é mais criteriosa — apesar das Rê Bordosas da vida —, enquanto o homem comete mais o erro de transar com quem ele nem queria.


18. E existe um novo modelo de homem vindo por aí? Lembra da fase em que o homem transou, ou começou a transar, o seu lado mulher? Eu vi mulheres reclamarem daquele cara certinho que, quando convidava a garota pra ver sua coleção de selos, realmente mostrava sua coleção de selos! [Risos] Por que o Bruce Springsteen faz sucesso entre elas? Porque é macho, meio Rambo até. O homem se confundiu, mas foi bom. Passou por uma fase de discussão interior e, para voltar a atuar novamente, vai ter que entender a mulher, que está diferente; o planeta, que está diferente; tudo.


19. Você é sempre tão crítico? Sempre, e com meus personagens faço autocrítica mesmo. O Walter Ego, por exemplo, resolve um pouco o meu narcisismo. Porque começaram a me dizer assim: "Sabe que você é demais? Teu gibi é demais!" E, aqui dentro, isso foi crescendo, crescendo, e me achei um babaca. Sei que sou o mesmo cara simples da Casa Verde, mas tem hora que eu pergunto pra Márcia: "Será que sou o cara mais bonito deste bar?" [Risos]


20. Como você vê o seu futuro? Bom, vou ser um velhinho tarado que belisca a bunda das sobrinhas... [Risos] Olha, não sei. Minha única preocupação é não virar um idiota e, cada vez mais, passar um recado bem-pensado, coeso. Não quero entrar numa de fazer "calcinhas Rê Bordosa" e "toalhas Meia Oito", entende? Mesmo porque, num circuito supercomercial, que discurso o Meia Oito vai poder ter? A Rê Bordosa vai poder trepar, beber, cheirar? Ah, não! Na hora que eu quiser, mato a Rê Bordosa fazendo ela tomar pílulas para dormir com uma garrafa de vodca em cima. Porque, quando o personagem não te diz mais nada, não tem mais razão para existir. Não quero depender de um compromisso com o público. Nada de tocar em FM — e, se tiver que tocar, espero que seja como aquelas músicas bem especiais.



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