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ANÍSIO ABRAÃO DAVID

Perfil



As mil e uma noites do poderoso Anísio

Dos desfiles da Beija-Flor às roletas de Atlantic City


Por NIRLANDO BEIRÃO


A sua silhueta levantina merece, no Carnaval, tantas luzes e tantos olhares quanto o divino umbigo de Monique Evans. Imaginem que desperdício. Mas o fato é que ele é uma atração, e por isso mesmo as câmaras ágeis da TV e dos fotógrafos saem em perseguição daquele nariz adunco projetado sobre o lábio superior estranhamente recortado, figura esquálida com os pêlos abundantes do peito pulando por cima do recorte da invariável camiseta azul de estivador (quando é branca, o short será, na combinação obrigatória, azul), a sandália branca, os passos acompanhados, a distância, por urna discreta capangagem; e, assim, ele desfila seu prestígio na avenida, na noite gloriosa do samba — o tipão oriental, feioso, com aquela deselegância suburbana que só se encontra, por exemplo, nos bicheiros de caricatura.


Ele é um bicheiro de verdade. E não nega, nem na conveniente estética de seus trajes nem nas suas próprias palavras. "Tenho trinta anos de contravenção", confessou, exatamente um ano atrás. "Desses, 23 como dono de meu próprio negócio."


Já se foi o tempo em que as autoridades encarregadas de zelar pelo cumprimento da lei penal, no Rio de Janeiro, davam-se ao trabalho de incomodar alguém por essas ninharias. Ainda mais uma celebridade: no Carnaval, disputando as honras do estrelato da Marquês de Sapucaí com o doutor Castor — Castor de Andrade, da Mocidade Independente de Padre Miguel — e com o Luisinho — Luís Drummond, da Imperatriz Leopoldinense; no resto do ano, convivendo com eles no rateio do meio bilhão de, cruzeiros, sem osso, apurado, em média, a cada dia, de 2.ª feira, só no Estado do Rio, nos 3.500 pontos-de-venda de um dos melhores negócios do país, algo que, no fim de ano, dá mais de 2,2 trilhões de cruzeiros, quase tanto quanto todo o orçamento de 1985 do Estado de Pernambuco (o cálculo é evidentemente aproximado, baseado em palpite de experts, e até possivelmente pessimista).


Aniz Abrahão Davi, 49 anos, presidente de honra da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis ad perenius, brilha por uma noite, na cadência ritmada de 2.500 passistas e bateristas, à sombra refulgente de catedrais góticas de isopor e de cavalos alados e à frente de estrelas da TV e de mulatas desnudas. Mas o nome Anísio tem durabilidade para o ano inteiro, desde que deixou, uma década atrás, a clandestinidade dos pés-de-páginas policiais e dos sussurros que vêm do submundo da contravenção para virar destaque no public relations do samba. Todos sabem da ironia que acompanha a escola e o banqueiro que sustenta, feericamente, com as centenas e milhares de sua fortuna, um carnaval que custa, hoje, por baixo, meio milhão de dólares: o primeiro campeonato que projetou a Beija-Flor e seu patrono promovia, no enredo, a apoteose do jogo (Sonhar com Rei Dá Leão, obra-prima de outra vedete da avenida, Joãozinho Trinta).


PONTARIA CERTEIRA


As vitórias no samba, aliadas à complacência policial, deram a Anísio o direito de extravasar publicamente o seu orgulho carnavalesco e de exibir, sem acanhamento, o seu pedigree profissional. Ele não se envergonha de dizer que está do lado de lá das leis penais — e se envaidece de seu sucesso como empresário do ramo zoológico. "Comerciante", está escrito na sua carteira de trabalho e em sua declaração de imposto de renda (ele faz o que Al Capone não fez). Comerciante diz pouco do que ele, na verdade, mercadeja.


Anísio é, com segurança, um dos cinco capi dei tutti i capi do bicho. Na eventualidade de Castor de Andrade, 59 anos, vir a morrer, ele assumiria, de imediato, a cabeceira da mesa. A loteria clandestina carioca, como, de resto, a de todo o país, funciona nos moldes de uma impecável Cosa Nostra, sociedade por ações em que ninguém, individualmente, detém os 50%. Empresta da máfia siciliana seus cânones feudais: repartem-se os territórios e cada um deles tem seus baronetes, acima de quem reina — e fatura — um suserano. O de Anísio é a Baixada Fluminense, onde manda e desmanda. Mas, assim como em Palermo ou em Caltanisetta, há sempre uma sombra maior que se projeta — às vezes protetora, às vezes intimidadora — sobre todo o negócio, privilégio e respeito adquiridos tanto por antiguidade quanto por via da pontaria certeira das luparas.


CRIME SEM SOLUÇÃO


Por tradição, no Rio o Corleone é o doutor Castor — o doutor Castor do Bangu e da Mocidade Independente, o chefão tropical que se esvai em benesses para uma legião de afilhados. No Carnaval, faz sua exibição de poder em camarotes que fariam a inveja da melhor corte muçulmana — com direito a caviar molossol, champanhe francês, naturalmente contrabandeado, e autoridades federais. No futebol, por coincidência, os prêmios fabulosos para seus atletas já levam o nome de bicho.


Anísio reivindica, discretamente, o direito de figurar na linha direta da sucessão. Às vezes até deixa escapar alguma impaciência. Sócio do doutor Castor na lucrativa criação de águias, avestruzes, borboletas e veados, e talvez em outras atividades mais, como se verá em seguida, Anísio vira e mexe dá sua agulhadinha. Por exemplo: "Esta história de bicheiro andar com capangas é com o Castor. É a vaidade dele. Não tem nada a ver com segurança. Eu ando até de táxi".


Sobre Castor, o único chefão que lhe faz sombra: "Ele só anda com seguranças por vaidade. Eu ando de táxi"

Anísio atropela e vai em frente. 1985 foi um ano do qual ele não pode se queixar. "Tranqüilo, tranqüilo", diz um de seus auxiliares de Nilópolis, saboreando as palavras com um estalar de língua. Não tem, de fato, de que se queixar. A recessão parece ter o dom de estimular a jogatina miúda — e os negócios do bicho foram rendosos como nunca. No mais, Anísio se livrou da guilhotina que, desde 1981, namorava carinhosamente seu pescoço — e sua propalada impunidade. De pânico chegou a perder, na época, "todos os cabelos do corpo". O folião abateu-se em depressões sucessivas. Um médico de confiança diagnosticou "cérebro cansado". Mas, depois de quatro anos e meio de aborrecimentos forenses, Anísio foi declarado inocente, pelo tribunal de Alçada Criminal, confirmando sentença do juiz Paulo Lara, da 2.ª Vara Criminal de Niterói, num veredito que pôs fim ao caso Misaque-Jatobá — o desaparecimento do pintor de paredes e biscateiro Misaque José Marques e do publicitário Luís Carlos Jatobá nas vizinhanças de Piratininga, litoral fluminense, onde o banqueiro dispõe de uma confortável casa de veraneio.


O juiz não encontrou provas para condenar Anísio — que, em janeiro de 1981, passou pelo dissabor de ser recolhido a uma cela comum, numa delegacia de subúrbio (Benfica, Zona Leste do Rio de Janeiro), quando se preparava para viajar para os Estados Unidos — nem os cinco policiais que teriam sido convocados a eliminar os dois homens, ou que teriam tomado a iniciativa de fazê-lo por conta própria. Nunca se saberá a verdade. Não houve condenação porque faltaram , entre as provas, as principais — as próprias vítimas, que jamais apareceram.


De qualquer forma, contemplou-se o arquivo-morto da Justiça carioca, graças ao affair Misaque-Jatobá, com um exemplo consistente do proveitoso conluio que se trava entre a contravenção e a polícia, muito mais consistente do que a feliz coincidência de Anísio e outros capi usarem como motoristas particulares e guarda-costas policiais de meio-expediente ou licenciados. O de Anísio, por exemplo, Paulo Crespo, era detetive na época do escândalo e companheiro de Orlando "Ceguinho", Vitor "Macaco" e "Bizoca", três dos cavalheiros de fino trato que figuraram ao lado de Anísio no processo.


A história exemplar começa com o arrombamento da casa de praia de Anísio e do desaparecimento de Cr$ 500 mil, em dinheiro, e de um cordão de ouro. Por mais que se reconheça o afeto que os novos-ricos do subúrbio devotam a tais balangandãs reluzentes, o certo é que, para Anísio, talvez o valor material do furto fosse o de menos. O que ele não engoliu jamais, suspeitou o promotor Hisachi Kataoka, foi o valor moral da perda. Imaginem: arrombar a casa de um "banqueiro". A polícia excedeu-se, logo, em solicitude, a pedidos ou voluntariamente .


CONEXÃO BICHO-COCAÍNA?


O desaparecimento virou manchete de jornais. Inquérito aberto, Anísio incriminado e tendo de passar pelo vexame de "tocar piano" — lambuzar os dedos de tinta para deixar as suas impressões digitais na ficha criminal — e se deixar fotografar com aquela plaqueta, como se fosse um pé-de-chinelo e não um poderoso dignitário. No desfile daquele ano, um dos heróis da avenida não ganhou palmas e sim a perseguição de um grito que ecoou por toda a arquibancada: " Jatobá, Jatobá ..."


Trágico: o nome do delegado Alamir Pereira de Assunção veio à baila. Ele foi reconhecido, por uma testemunha, como um dos seqüestradores que teriam levado os dois homens. Entre Alamir e Anísio há o máximo de intimidade: eles são compadres. Pior ainda: descobriu-se que Misaque figurava como testemunha do seqüestro e assassinato de um distribuidor de cocaína, em Copacabana, o ex-cabo Júlio Leitão, da PE. De repente, o possível acerto de contas abria uma fresta de suspeita para uma associação muito mais diabólica do que a que existe entre o bicho e a polícia: uma suposta conexão bicho-droga.


Tudo ficou só na suspeita. Três meses depois da eclosão do caso, a polícia de Niterói providenciou a confissão de três assaltantes, presos por acaso: tinham sido eles que roubaram a casa de Anísio. "Misaque e Jatobá pagaram o pato", comentou o então delegado Arnaldo Campana, hoje secretário de Polícia Judiciária e Direitos Civis de Brizola. Além de um crime, teria havido, portanto, um tremendo engano.


Mas, enfim, em agosto passado, Anísio e compadrio se livraram do processo, e 1985 só não foi perfeito, para efeito de sua folha corrida, porque ele incorreu num quase imperceptível descuido. Na noite de 11 de junho, deixou-se ver recostado à janela do salão do 3.º andar do clube Umuarama, no elegante bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, enquanto palestrava com quatro ou cinco senhores de idade madura. Não haveria nenhum inconveniente em se entabular uma animada conversa num clube social desde que, no salão, não estivesse instalada franca jogatina — como pôde apurar a própria polícia, dois dias depois, na pista de uma reportagem publicada pelo jornalista Ricardo Boechat, de O Globo, que foi quem flagrou Anísio. A polícia deu de cara com roleta, fichas e demais instrumental próprio de um cassino clandestino, além de um vale cuja assinatura se reconheceu como sendo a de Castor de Andrade.


"TORCER PELA SELEÇÃO"


Boechat viu Anísio por poucos minutos, quando o jornalista já estava de saída. Anísio não jogava nem bebia — o que lhe valeria pontos entre as ligas de temperança, mas não torna menos suspeita a sua presença no local, onde os freqüentadores vão exatamente para fazer ou uma coisa ou outra. "Não havia nos seus gestos", diz Boechat, "nenhuma atitude de comando. Estava apenas recostado na parede, conversando." No entanto, bastou a denúncia para que se desencadeassem as habituais mandraquices que ocorrem quando há um bicheiro importante envolvido em alguma história e há policiais apurando o envolvimento.


O cassino estava lacrado, quando apareceu por lá um detetive lotado na Delegacia da Gávea comandando uma tropa de uns dez senhores circunspectos. Um soldado aturdido, solitário guardião da fortaleza, viu-os romper o lacre da porta, retirar as fichas de jogo — principal prova de um eventual processo — e percebeu a conveniência definitiva de não reagir quando o capitão da brigada deixou escorrer para dentro de seu bolso a quantia de Cr$ 400 mil. "O que você fez com o dinheiro?", inquiriu, dias depois, o juiz da 28.ª Vara Criminal, Carlos Alberto Sanches. "Está lá em casa", respondeu o PM Carlos Tenório.


As informações, sopradas previamente no ouvido do jornalista por um confidente não revelado, davam conta de que a roleta do Umuarama era administrada por uma joint-venture que reunia Castor, Anísio, Luisinho Drummond e Raul "Capitão" — outro expoente da contravenção. Anísio, que se deixou ver, foi ouvido em juízo e denunciado pela promotora Giselda Leitão Teixeira — junto com Castor, que se comprometeu pela assinatura. Ambos corriam o risco de pegar até catorze anos de cadeia. No bojo das revelações do informante de Boechat vinha ainda a denúncia — não comprovada — de que Cr$ 1 bilhão havia regado a indulgência "de autoridades estaduais", para que o cassino da Gávea funcionasse sem dores de cabeça.


Mais uma vez, Anísio parecia condenado não à prisão, mas apenas a um susto. O processo caminhava para a absolvição — ou para o arquivamento. No espírito da promotora, porém, o caso plantou a certeza bem íntima de que o bicho está bancando, hoje em dia, os giros das roletas que existem no Rio — e até fora do Estado. E que se trata de um empreendimento em franca expansão. A doutora Giselda crê que o processo do Umuarama, independente de seu resultado, levantou a ponta do tapete debaixo do qual se escondem muitos mistérios.


Na defesa que fez de Anísio, o advogado Jair Leite Pereira, que o acompanha "com exclusividade" desde 1980, não entrou no mérito da acusação. Preferiu argumentar que, na noite de 11 de junho, seu cliente se encontrava às voltas com um inocente biribinha no clube Guanabara, em Botafogo, e com os preparativos da viagem que faria, no dia seguinte, para Assunção. Não tirem conclusões precipitadas: embora o Paraguai disponha de belos cassinos, o advogado de Anísio alegou que seu cliente viajava imbuído de patrióticos propósitos, pois ia torcer pela Seleção brasileira de futebol.


Quando foi visto no cassino, alegou-se que Anísio estava a caminho do Paraguai. Enquanto o juiz Sanches ouvia os derradeiros depoimentos do caso Umuarama, em dezembro, antes das férias forenses, Anísio excursionava pelos Estados Unidos. Por acaso, na América, seu paradeiro é sempre conhecido. Anísio e comitiva — levou, dessa vez, dois irmãos, as cunhadas e a mulher, Eliane — são fregueses de caderno) de Atlantic City. Só de vez em quando é que se abalam em mudar de itinerário: vão a Las Vegas. Uma figura próxima do nosso personagem confidencia que "ele tem fissura por jogo de roleta. Leva sempre uns 100 mil dólares para as despesas". Para não fugir à danação de sua origem suburbana, Anísio costuma desfilar em Atlantic City com seus indefectíveis safáris, que são o máximo de luxo que costuma conceder a seu figurino. No inverno, usa safári — e casaco de pele.


Depois de ter sido visto num cassino clandestino do Rio e processado, prefere hoje Atlantic City e Las Vegas

Seja como for, além de pagarem tributo à sua compulsiva paixão pelo pano verde, as viagens americanas de Anísio podem ter também um sentido altamente profissional — o de adquirir know-how. A aposta dele e de outros chefões do bicho parece ser a de que os cassinos serão logo legalizados no Brasil — e, aí, eles já terão toda a "infra" montada. Se não forem legalizados, tanto faz. O único problema é que, no momento em que começam a ampliar os seus negócios no submundo, acabam sendo condenados a taxas de proteção mais extorsivas. A polícia entende desta lei: a da oferta e da procura.


Contra a corrupção policial, o secretário da Justiça do Rio, Vivaldo Barbosa, anima-se a propor a legalização do próprio bicho. Os banqueiros, tradicionalmente dóceis à autoridade, lavam as mãos à frente dela, mas liberaram seus porta-vozes para, pelas costas, levantar algumas dúvidas — e, assim, defender seu ancestral monopólio. O primeiro risco, argumentam, é paradoxalmente ético. "Não existe nada mais honesto que o bicho", diz um deles. "Se o Estado entrar, vira roubalheira." O segundo argumento é operacional: "Quem tem fôlego para fazer uma extração por dia? E para pagar o que deve uma hora depois da apuração?" O terceiro, social: há pelo menos 60 mil funcionários da contravenção no Rio.


Trata-se, portanto, de uma atividade que dá tantos empregos quanto o doutor Antônio Ermírio de Moraes, dono do maior grupo industrial nacional, o Votorantim. Além disso, o bicho dispõe de um sistema de previdência "que funciona melhor do que o da Suécia": com direito a tratamento médico e dentário, pagamento em dobro quando "dá zebra", aposentadoria com 30 anos, assistência às viúvas e até despesas funerárias pagas.


O BICHO NO JOCKEY


Anísio, pessoalmente, tem todo o direito de se sentir escaldado a respeito de negócios feitos dentro do rigor da lei, pois a cada vez que tenta pular para o outro lado da contravenção costuma se machucar. Sua fulminante passagem pelos salões dourados do Jockey Club Brasileiro dá idéia da ironia que persegue o contraventor quando ele quer fazer tudo certinho.


Os cavalos eram, há tempos, a parte mais fotogênica de sua paixão pelo jogo e pelo risco. Recorda sua infância, em Nilópolis, quando montava, em pêlo, periclitantes pangarés e sua instrução militar no campo de Gericinó, vizinho à cidade, "onde, enfim, aprendi a lidar com eles". Orgulha-se de anunciar sua assiduidade nos páreos da Gávea e da Cidade Jardim, em São Paulo. Desde 1953, não perde um Grande Prêmio. Em 1982, aventurou-se: arrematou os 2 alqueires de bom pasto e 22 cocheiras que pertenciam a Osmar Fernandes Lages, o "Vovô" — por acaso, homem do bicho. Logo em seguida, adquiriu trinta puros-sangues. Chegaria a ter quase sessenta.


Credenciado já não apenas pela freqüência aos guichês de aposta mas, agora, por um belo elenco de potrancas e garanhões, apresentou-se como candidato a uma das cocheiras do Jockey carioca. Sobrenomes azinhavrados torceram o nariz, mas o fato é que, na última semana de 1982, Anísio ganhou a corrida pela cocheira 26 e seus 53 boxes. Sem marmelada, é o que parece. Desembolsou, na época, Cr$ 27 milhões cash. Batizou o stud de Aline, em homenagem à filha caçula, escolheu as cores verde — "de esperança" — e branca — "de Oxalá" —, contratou um renomado treinador e em poucos meses já colhia os dividendos do investimento nas patas vitoriosas de duas éguas, Ebenita e Elianísia.


O universo do turfe, como lida com dinheiro, dispõe da mesma eletricidade do mercado financeiro. Assim como a Bolsa de Valores, o Jockey vive de bizus, boatos e informações — literalmente — de cocheira. A estrepitosa irrupção de Anísio causou desconfianças, alimentadas ainda mais pela lembrança de que José Caruso Scafura, o "Piruinha", capo em Madureira, além de outros bicheiros, era habitué do paddock e das cavalariças. De repente, tudo passou a ganhar ares de conspiração. Suspeitou-se de que o bicho estava entrando no ramo para "puxar" os resultados — trapacear, corromper, drogar, o diabo. "O Anísio não agüentou o zunzunzum", narra um amigo. "Ficou desgostoso porque, na verdade, queria fazer um turfe limpo. Dinheiro, ele ganha em outras atividades."


Quis jogar limpo no turfe: quase 60 cavalos e uma cocheira no Jockey. Desconfiaram que ele ia "puxar" os resultados

No início de 1985, quando os resultados da criação só melhoravam, Anísio liquidou stud, cocheira, puros-sangues. Conservou apenas, como nostálgica recordação, as duas éguas campeãs. Estão ambas atualmente exiladas em carreiras não muito dignificantes no prado de São Vicente, litoral de São Paulo.


Assim, Anísio não deixará de legado aos filhos nenhum cavalo. Tampouco quer lhes deixar os outros animais do conhecido espectro zoológico que o enriqueceu. Apesar dos lucros e da notoriedade, o chefão, enrijecido por três décadas de trabalho à sombra da legalidade, confessou, meses atrás, que, "com ou sem legalização", pretende ver os três filhos "bem longe dessa vida dura que eu tive". Para isso, desalojou-os literalmente da mansão de Nilópolis, um daqueles casarões com muita pastilha, azulejo e chapisco no revestimento e apenas um viveiro de pássaros para lhe suavizar a agressividade. Mudou-se, com a família, para Copacabana.


Mas, para Anísio, a história se repete como paródia: comprou, por um preço não inferior a 1 milhão de dólares, um apartamento de 180 graus panorâmicos no que havia de mais high tech de todos os edifícios da Avenida Atlântica, no prédio n.º 2172, esquina da Rua Hilário de Gouveia, recém-terminado, com amplas varandas, vidro fumê e esquadrias metálicas. O aspecto é futurista. Mas as câmaras de circuito interno, a profusão de interfones e luzes intermitentes de alerta, as portas que se abrem automaticamente e a segurança rigorosíssima conferem ao edifício um ar de fortaleza — do século XXI, é verdade, mas fortaleza.


Os filhos parecem de fato estar em outra. Anisinho, o mais velho, de 17 anos, já ganhou molejo de surfista e o teatro como interesse. Pai extremoso, Anísio compareceu a uma apresentação dele, no colégio de rigorosas freiras onde o garoto estuda, no melhor local da Vieira Souto, em Ipanema. O Colégio São Paulo serve também aos outros dois filhos, Anderson, de 16, e Aline, de 8.


O próprio Anísio, ao desembarcar ultimamente em Nilópolis, propicia a seus conterrâneos a estranheza de alguns modos de forasteiro e a suspeita de que é um homem a caminho da aposentadoria. "Ele mesmo não mudou", comenta, cheia de elogios, Iolanda Alvarenga da Silva, decana das baianas da Beija-Flor e guardiã não só das chaves da quadra mas da própria tradição da escola. "Mas ele tem aparecido bem menos." Mesmo para tratar de negócios: duas, três vezes por semana, no máximo. Dizem que foi Nélson, o terceiro dos nove irmãos (Anísio é o segundo), quem herdou não só o casarão da Rua Mena Barreto mas também a administração da B.U. (banca única) de toda a Baixada — São João do Meriti, Nova Iguaçu e, naturalmente, Nilópolis — e da região serrana — Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo. De vez em quando, para regar as raízes, Anísio ainda se confraterniza com velhos camaradas, em torno de uma cervejinha, numa das incontáveis churrascarias da região. Mas, em casa, consta que ele prefere scotch.


A Beija-Flor, como Nilópolis, ainda funciona como se fosse um loteamento privado. Depois que Nélson Abrahão Davi largou a presidência, assumiu Farid Abrahão Davi, o irmão caçula. Nélson virou tesoureiro e Jacob, o mais velho, continua diretor. Também na política, o clã, capitaneado pela matriarca Júlia, desde que faleceu o pai, Jacob, ex-mascate sírio, tirou o pé da clandestinidade. Por anos a fio, o clã arrancou do seu bolso o dinheiro de que o município nunca dispunha, para o hospital, a creche e o asfalto. Resolveu, em 1982, acabar com os intermediários. E lançou Miguel Abrahão Davi, outro dos irmãos, candidato a prefeito.


Miguel fez uma campanha tão discreta como um ensaio de bateria e tão pobre quanto um desfile da Beija-Flor. O PDS, pelo qual concorreu, foi varrido na Baixada pelo furacão Brizola. Em Nilópolis, o poder informal prevaleceu. Seus quase 100 mil eleitores (para 180 mil moradores) descarregaram em Miguel. Depois, a família, que politicamente se estende até o primo Simão Sessim, deputado federal, e Jorge Davi, também primo, deputado estadual, mudou-se de armas e bagagens para a Frente Liberal. Anísio, "que é do contra", como diz "tia" Iolanda, é PMDB — assim como, contra quase toda a família, flamenguista, ele é Fluminense. Ainda agora querem aproveitar seu mecenato para fazê-lo patrono do Mesquita, o primeiro time da Baixada a merecer as honras da primeira divisão do campeonato carioca. Já há quem anuncie que Anísio, a exemplo do que faz Castor no Bangu, fará contratações milionárias. "É só folclore", assegura Jair Leite Pereira, o advogado dele. "O Anísio virou uma lenda."


AVANÇO A FERRO E FOGO


Nesse caso, imprima-se a lenda, recomendava o cronista do faroeste americano — onde também, como aqui, eram tênues os limites entre a virtude e a vileza. Associando-se alegremente ao samba e ao futebol, o bicho fornece, aos grã-finos, o circo; aos miseráveis, o pão. O governo Brizola visivelmente decidiu lhe conceder uma trégua. A polícia vive em lua-de-mel. A Justiça deu uma folga. Mas, se homens como Anísio não são ligados à barra mais pesada da droga — como quis provar, anos atrás, o promotor Eckel de Souza, hoje desterrado para a longínqua Vara Criminal na Ilha do Governador — ou dos cassinos clandestinos — como deixou entrever o processo do Umuarama —, nem por isso sua atividade se pauta apenas pelos propósitos da benemerência.


Em paz com o governo, o bicho ainda briga entre si: de 1983 para cá, a disputa de pontos fez nove mortes

O bicho avança a ferro e fogo. A violência está na sua própria natureza. Só de 1983 para cá, houve nove fuzilamentos relacionados, com certeza, à guerra de gangues. Caíram em ação guarda-costas de chefões, homens de confiança e policiais desviados para a contravenção — e até um antigo capo, Arlindo Rasuck, de São João do Meriti. Territórios são conquistados, vendettas são juradas, desforras são cobradas no melhor estilo de Chicago. No fogo-cerrado das metralhadoras, brilha, com a mesma reluzência de. um desfile da Beija-Flor pelo Sambódromo, a frase lapidar de Anísio: "Na contravenção, somos todos muito unidos".


ILUSTRAÇÃO MIRAN



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