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BONI | JANEIRO, 1991

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o homem mais poderoso da televisão brasileira sobre a Globo, Roberto Marinho, política, vinhos, sexo e o dia, próximo, em que largará tudo


O verdadeiro Boni está morto. Quem dirige a Rede Globo, de uma ampla sala no nono andar da Vênus Platinada, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, é um falso Boni. O original morreu há quase cinqüenta anos, num dia ensolarado, quando foi dar um mergulho no Rio Tietê, então de águas perfeitamente potáveis, embora turvas. O tio travesso, que se afogou aos 10 anos, deixou como herança para o primogênito do dentista Orlando de Oliveira um nome prosaico (José Bonifácio), um aposto incomum (Sobrinho) e até um apelido que viraria sinônimo de poder, glória e audiência: Boni.


Cinqüenta e seis anos mais tarde, Boni é nome e marca registrada. A ponto de com ele, como sobrenome, sua ex-mulher Regina agitar o mercado das artes e seu filho mais velho assinar videoclips bem realizados. Com um simples diminutivo.


No mundo da comunicação, Boni provoca as mais variadas reações. Deflagra reminiscências divertidas ou nem tanto, beira o mito, excita a imaginação. Para os 10.000 funcionários da Rede Globo a assinatura J.B. Oliveira Sobrinho no final de um memorando em que um deles seja o destinatário causa, no mínimo, arrepios. Boni não costuma usar memorandos rara alisar o ego de seus comandados. Eles são a versão moderna e bem escrita do chicote do capataz.


Boni não ganhou essa fama toda de mão beijada. Nem chegou a vice-presidente de Operações da quarta maior rede de televisão do mundo, em termos de espectadores, graças à genética ou a um golpe de sorte. Ano que vem, faz quarenta anos de televisão e completará 25 anos de Rede Globo — uma efeméride que não espera festejar ali. Boni está de saída da Globo. Não tem data marcada, mas resolveu e já chegou a tratar do assunto por diversas vezes com a direção da empresa (leia-se doutor Roberto Marinho e seus filhos Roberto Irineu e João Roberto, os ungidos na linha direta da sucessão familiar da Globo). Ele pretende fazer algo seu. Uma produtora independente, talvez melhor que isso: uma rede de televisão por cabo, só para jornalismo. E tem seus motivos: não quer que os filhos passem os melhores anos de suas vidas trabalhando para os outros, ainda que em cargos de destaque.


Mas enquanto o Dia D não chega, Boni continua pilotando a Globo com mão de ferro. Traçou os rumos da emissora para 1991, ano em que a Globo vai apostar no público masculino e em algum tipo de segmentação, aumentando o espaço do jornalismo, das séries mais fortes, diminuindo as novelas.


Na sua sala em L, onde fica pouco (costuma dar incertas pela emissora), se definiu também o contra-ataque do império diante de jacarés e belos corpos nus que a Manchete misturou em Pantanal, conquistando uma audiência e um sucesso comercial inesperados. Ali ele despacha numa grande mesa de cristal quadrada, com pés cromados e seis cadeiras ao redor. Na parede em frente, quatro pequenos monitores que exibem as emissoras do Rio e um grande aparelho de TV, normalmente apresentando a programação jornalística da CNN americana. Em suas costas, um aparador com revistas americanas, os jornais do dia, um exemplar do Wine's Spectator e outra publicação com as melhores cartas de vinho do mundo. Boni é um colecionador, um conhecedor e um bebedor de vinhos, e sua adega é considerada das mais completas do país. Ele não passa sem um bom bordeaux. Nem sem meia dúzia de comprimidos. É tão fissurado pelas novidades da eletrônica quanto pelos últimos avanços da medicina preventiva. E se prepara para enfrentar um tratamento à base do hormônio do crescimento, que, espera, o rejuvenescerá vinte anos.


Foi nessa sala e no restaurante do 11.º andar da Vênus que ele recebeu o editor-contribuinte de PLAYBOY Paulo Markun, para longas conversas. Não foi uma conquista fácil: há mais de dez anos a revista tentava uma entrevista do todo-poderoso global. Dessa vez, ele terminou admitindo examinar apenas um questionário preliminar. No primeiro papo, que se estendeu por quase cinco horas, abriu a guarda. A entrevista rolou sem problemas, revelando um homem distante do mito de chefão truculento, embora confirme a imagem de alguém que tem os controles da emissora na mão e os exerça sem a menor complacência.


Boni passeou por assuntos técnicos e políticos, falou até mesmo de temas que não gosta de abordar, como o assalto que sofreu há alguns anos. Só fez questão de uma coisa: que fosse deixado de lado o tratamento usualmente adotado por PLAYBOY com seus entrevistados: "Senhor, comigo, só depois do ano 2000", argumentou, sorrindo.


Sua hipocondria o faz ter três aparelhos portáteis e eletrônicos de medir pressão. Com um deles, constatou uma arritmia que o editor de PLAYBOY já tinha identificado no médico e isso desviou o rumo da conversa por um bom tempo para os mistérios do coração.


Casado pela terceira vez, pai de quatro filhos ("dos 30 aos 3 anos, uma escada de degraus espaçados", comenta), cozinheiro de mão cheia, autor de mais de 300 jingles, letrista de muitas músicas, criador de centenas de programas, duas agências de propaganda, uma produtora de comerciais para TV, um restaurante (o Giardino, experiência que não gosta de lembrar), esse paulista de Osasco confessa: está cansado de tanta responsabilidade e quer deixar o posto mais alto da televisão brasileira, onde glória, poder, audiência e dinheiro têm um sinônimo de quatro letras. Veja a seguir o que pensa José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.


PLAYBOY — Quando você entrou na Globo, ela estava bem longe de ser o que é hoje. Como foi que tudo aconteceu?


JOSÉ BONIFÁCIO DE OLIVEIRA SOBRINHO — Eu cheguei em março de 1967 e a emissora tinha alguma presença na faixa das 10 da noite, com a Sessão das Dez, filmes que o Walter Clark tinha colocado, com sucesso. E já começava a crescer com as novelas. Quem dirigia era a Glória Magadan, uma estrela, um nome de projeção, mas com uma mentalidade muito cucaracha. Em 1968, eu trouxe o Daniel Filho, que já tinha trabalhado comigo na Tupi, para a Globo, onde começou a mudar esse esquema. A Glória não gostou, acabou saindo, e o Daniel assumiu. Foi nessa época, mais ou menos, que o Walter resolveu entregar para mim a responsabilidade também pela engenharia e pelo jornalismo. As mudanças começaram a surtir efeito, mas tínhamos problemas graves em São Paulo. Na cobertura da primeira viagem à Lua, nós conseguimos destaque, porque tínhamos condições de abrir mais espaço na programação do que as concorrentes. E a novela Rosa Rebelde, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, completou a arrancada. A Globo pulou do terceiro para o primeiro lugar em São Paulo. Aqui dentro o Luís Guimarães, hoje diretor da TV Gazeta de São Paulo, falava: "O penico começou a voar!" Penico era como nos referíamos à emissora de São Paulo, tremendamente mal instalada na Rua das Palmeiras. Partimos então para a consolidação do conceito de rede, misturando no elenco paulistas e cariocas e procurando quebrar as barreiras do bairrismo. Até então, o pessoal de TV garantia que isso era impossível, porque, até nos filmes, São Paulo tinha um gosto e o Rio, outro. O segundo passo nessa mudança foi o Jornal Nacional.


PLAYBOY — Foi idéia sua?


BONI — Não. A idéia é da televisão americana, mas no Brasil o projeto saiu da área comercial, que achava importante ter um veículo realmente nacional. Foi imaginado um jornal ao vivo, cortado para as diversas praças. Atrasamos quinze dias tentando achar a solução, mas não foi possível. E o JN estreou com o formato que tem até hoje. Matérias de interesse nacional, que eram enviadas para o Rio e aqui finalizadas e colocadas no ar. Foi o primeiro passo para a unificação da rede toda. Nesse ano, ganhei mais espaço: fui nomeado superintendente de Programação e Produção.


"O Jornal Nacional nasceu na área comercial. Foi o primeiro passo para a unificação da rede toda. E nunca mudou de formato"

PLAYBOY — O cargo atual, vice-presidente de Operações, é de quando?


BONI — É de 1978. Um ano depois da saída do Walter.


PLAYBOY — Costuma-se usar a TV americana como termo de comparação para a nossa TV. Mas elas são diferentes na origem...


BONI — Muito. Os americanos montaram a televisão a partir da indústria cinematográfica. Nós, a partir do rádio e do teatro. Talvez isso explique a importância das novelas aqui, dos programas humorísticos de quadros... Na pré-história da nossa televisão tínhamos teatro mesmo na TV, com ligeiras adaptações: TV de Vanguarda, Teleteatro Tupi... tudo feito ao vivo, sem recursos, mas programas excepcionais. Muitas vezes, com intervalos de meia hora, quarenta minutos, entre um ato e outro, para troca de cenários e figurinos. A trilha sonora de ...E o Vento Levou ficou famosa no Brasil porque tocava, inteirinha, nos intervalos do Teleteatro Tupi [risos]. E os principais autores do início da nossa TV vieram do rádio... Túlio de Lemos, Walter Durst, Janete Clair, Oduvaldo Vianna pai, Dias Gomes, Amaral Gurgel, Oswaldo Molles. Eles exercitaram, no rádio, a imaginação sem limites e, de certo modo, isso ficou na TV, nas nossas novelas.


PLAYBOY — Mas, hoje, o rádio tem futuro?


BONI — Só como fundo musical. Com a quantidade de recursos da TV, sua instantaneidade e agilidade, o rádio perde seu diferencial. No mundo inteiro, o rádio informativo está desaparecendo. E as próprias estações de AM buscam melhor qualidade de som, para funcionar como caixas de música.


PLAYBOY — A TV também está mudando rapidamente...


BONI — Está. Ela é hoje um instrumento, um terminal onde as pessoas podem ver várias coisas, não importa como cheguem a esse terminal — TV, vídeo, circuito fechado, satélite...


PLAYBOY — Qual a sua visão sobre a televisão brasileira? Ela cumpre o papel de informar, educar e entreter?


BONI — Essa história de educar pela TV foi importante num certo momento. Hoje, sua função é de informar e entreter. A educação é um projeto que a televisão tem que tratar não como veículo, mas como um recurso. A televisão no Brasil poderia exercer um papel extraordinário para a educação, desde que fosse usada para difundir aulas gravadas previamente ou ao vivo para milhares de salas de aula em circuito fechado, com monitores capazes de acompanhar o estudo. Podia ainda auxiliar na formação e reciclagem de professores. Pelo satélite, podemos colocar a educação em milhares de salas de aula de todo o Brasil, e o videocassete permite reproduzir quantas vezes for preciso a mesma aula ou trecho. É a teledidática. Isso a televisão pode e deve fazer. Não acredito na educação pela TV em canal aberto, da forma como já se pretendeu fazer. Só acredito na TV educativa na sala de aula, com currículo e, principalmente, com aferição.


PLAYBOY — Mas a informação está sendo corretamente tratada pela TV brasileira?


BONI — Ela tem que ampliar a qualidade e o volume de informação. E eu estou pessoalmente empenhado nisso. Fizemos algumas coisa, tímida ainda, como o SP-Já [programa restrito a São Paulo, com entradas curtas ao vivo durante a tarde, trazendo flashes das notícias do dia, apresentado por Carlos Nascimento]. Agora ele será estendido a outros Estados. Mas acho que muita coisa precisa ser feita ainda.


PLAYBOY — A Jovem Pan, uma emissora de rádio especializada em jornalismo, está para inaugurar uma emissora em UHF na mesma linha em São Paulo. Vai funcionar?


BONI — O projeto é muito bom. O Brasil tem lugar para uma CNN [Cable News Network, a emissora de TV a cabo implantada nos Estados Unidos e que só transmite notícias, 24 horas por dia, o grande sucesso do mercado americano de comunicação, criada por Ted Turner]. É possível atingir um público pequeno, mas de alto poder aquisitivo, formando uma rede nacional com audiência na faixa dos 2 a 3%. Mesmo que seja uma rede de consulta, pode dar certo...


PLAYBOY — Em 1976, numa de suas raríssimas entrevistas, para a revista VEJA, você dizia que a televisão brasileira era um produto híbrido, já que, como concessionária de serviço público, estava sujeita à ingerência do Estado e, como empresa privada, tinha sua dinâmica. Bem, a ingerência diminuiu, a dinâmica se reforçou, mas, até agora, não houve uma mudança radical. Qual o futuro?


BONI — É, a TV não se liberou da ingerência do Estado. Existe ainda uma dependência política, embora a econômica tenha se reduzido muito. Naquela época, 30 ou 40% da massa de propaganda das nossas emissoras vinha do governo federal ou dos estaduais. Hoje, esse índice não chega a 7%. E, no governo Collor, houve mais um avanço: a mídia passou a ser programada segundo critérios técnicos e não políticos. Quer dizer, do ponto de vista comercial, a televisão conseguiu se distanciar do Estado. Do ponto de vista político, a portaria do ministro Jarbas Passarinho repete os erros da censura de 1946. Naquela época, o Departamento de Censura e Diversões Públicas definia as faixas etárias para estabelecimentos de diversões públicas. E isso agora foi novamente estendido para a TV. É uma infantilidade imaginar que se possa fazer censura por horário na televisão. Isso só daria certo se todas as crianças de 8 anos fossem dormir no mesmo horário, as de 12 em outro e assim por diante. Além do mais, boa parte das crianças possui televisor no quarto. Essa portaria nos obriga, na prática, a restabelecer a idade mental da TV brasileira na faixa dos 14 anos.


PLAYBOY — Mas não deve haver limites então para o que a TV pode e não pode mostrar?


BONI — O próprio e o impróprio na televisão podem ser definidos assim: tudo que é bem tratado, com respeito, dignidade, é próprio. Sexo explícito não, violência, sob alguns aspectos, também não. Mas não podemos esquecer que a família tem a última palavra: basta desligar o botão ou mudar de canal, que ela determina o que se vê e o que não se vê, o que é próprio ou impróprio naquele momento, para aquele público. A TV deve ser responsável e digna, mas acho que a responsabilidade deve ser dos concessionários. TVs mais livres, só no cabo, onde há um contrato entre quem recebe e quem emite.


PLAYBOY — O que levou as emissoras a aumentar a dose de sexo e de nus? A guerra pela audiência?


BONI — Não. E constatamos também que a violência não tem se mostrado um grande competidor. A nossa sociedade já é violenta demais e rejeita naturalmente toda violência excessiva apresentada pela telinha. É bom registrar que a Globo tem um processo de censura interna. Aqui se censura pelo menos duas vezes: no script e antes de ir para o vídeo. E o nosso critério não poderia ser mais claro: sempre que encontramos alguma coisa que não é pertinente, tiramos. Agora quem faz essa censura não são censores. É gente com sensibilidade, cultura, bom senso. Aceitamos ou não o que a censura interna propõe. O controle está na nossa mão. O problema é que, toda vez que a censura passa a ser feita de fora para dentro, voltamos a ficar pendurados no medo, nos favores, nas pressões...


PLAYBOY — Como é a história dos palavrões proibidos?


BONI — Temos aqui uma revisão de texto que não é a censura clássica, porque discute com o autor e não tem poder de dizer o que vai ou hão ser feito. Ela trabalha quatro pontos: sexo, linguagem, violência e costumes. Nesse negócio do linguajar foi feita uma estatística, para saber as vinte palavras vulgares ou chulas mais usadas. Há muito tempo o doutor Roberto Marinho reclamava disso, há até um documento antigo dele chamado Sensibilidade e Responsabilidade, uma coisa assim. O doutor Roberto olhou os vinte termos, aceitou uns cinco mais infantis e mandou proibir os outros quinze. Não vai mandar proibir nenhum outro. O que determinou a proibição foi a freqüência de uso, não a qualidade do palavrão.


"O que determinou a proibição dos palavrões foi a freqüência do uso, não a qualidade deles. Tem que haver controle"

PLAYBOY — Mas não fica antinatural o sujeito dar uma martelada no dedo numa novela e dizer: "Droga!"


BONI — Seria antinatural um personagem dar uma martelada no dedo [risos]. Se algum autor escrever essa cena, eu boto ele na rua [risos]. Mas um "Vá à merda" tem diversas maneiras de se dizer. "Essa merda de cadeira" pode ser substituída por outra expressão, tranqüilamente. O memorando diz claramente que os palavrões estão proibidos desde que fora do contexto da dramaturgia. Em certos casos, não há outra maneira de dizer "Filho da puta". Essa avaliação não é simplista, mas como os autores trabalham isoladamente você encontra um merda aqui, outro lá, e durante o dia acabam se avolumando os palavrões. Então, você tem uma inflação de palavrões que fica estranha. Tem que haver um controle. Quando é necessário, eu leio o texto e avalio. E o memorando surtiu tanto efeito que depois dele não precisei cortar mais nada. E eles continuam usando. Com parcimônia, quando é realmente necessário.


PLAYBOY — Em 1976, na sua última grande entrevista, havia Globo e Tupi. Hoje é Globo e quem? Qual será a segunda? E por que não se consegue quebrar a hegemonia global?


BONI — Pois é, hoje não tem Globo e quem. O fato é que a Globo, no seu avanço, teve que passar pela Tupi, que tinha tradição em São Paulo. Hoje dá impressão que o Sílvio Santos perdeu um pouco o rumo e Pantanal não é, certamente, a revolução que parte da imprensa imagina que seja. Sob certo aspecto, é uma reedição do Direito de Nascer, com aquela história de pai e filho. Pantanal é a novela mais convencional possível, num bom cenário, com excelente tratamento visual e um ritmo mais calmo, mais relaxaste. E, mesmo se considerarmos em termos de audiência, dá para contar nos dedos os dias em que Pantanal ganhou cia Globo...


PLAYBOY — Mas espera aí, o Ibope que tem sido publicado pelos jornais diz o contrário...


BONI — Bem, acontece que, para o mercado, a audiência é medida pelo AudiTV. O Datalbope ainda está em implantação. Em São Paulo, por exemplo, ele atinge apenas 190 residências de um projeto que precisa abranger entre 220 e 250 residências. Está inflacionado na classe A e B e tem variações por bairro também. Algumas áreas de cobertura importantes nem sequer são medidas pelo Datalbope, como o interior de São Paulo, onde a Manchete atinge apenas 30% e nós 95% da área geográfica. No ABC, onde a Globo tem 70%, 80% da audiência, o Ibope não está implantado. Agora, ainda assim, Pantanal foi muito importante para nós.


PLAYBOY — Por quê?


BONI — Por dois motivos: primeiro, tirou o pessoal da Globo da acomodação. Segundo, cortou uma certa auto-suficiência da Globo em relação a novas pessoas e acabou com a ilusão de imaginar que o importante é a Globo e não as pessoas que trabalham nela. Fui eu que liberei o Jaiminho [Jayme Monjardim, diretor de Pantanal e ex-funcionário da Globo] para a Manchete. Ele é uma pessoa muito sensível e extremamente cordata. Pois Pantanal mudou essa cultura na Globo. Hoje, temos certeza que é melhor deixar sair um medalhão do que perder uma pessoa que está começando. Para nós, o sangue novo é vital. O trabalho de televisão depende de continuidade, demora tempo e você não forma as pessoas da noite para o dia. Em televisão, dinheiro é fundamental, mas paciência também é.


PLAYBOY — E quem tem esses dois ingredientes no mercado brasileiro, além da Globo?


BONI — Ouvi dizer que o SBT tem hoje problemas de dinheiro. Além disso, tem uma paciência curta. A Manchete deixou o caminho que me parecia mais prudente e eficiente, o de buscar o pessoal de renda mais alta, de melhor padrão cultural, e tateou muito. A Bandeirantes parece que agora está se firmando num caminho próprio. Mas acho que a disputa pelo segundo lugar vai se definir a partir da postura das duas concorrentes logo no começo deste ano. Aí vamos saber quem é o nosso competidor [risos]... De qualquer forma não se pode negar que a concorrência está mais ativa e que ainda com o advento de novas opções a Globo terá mesmo que ceder algum terreno.


PLAYBOY — E já não está cedendo?


BONI — Nada disso. Primeiro, não se pode fazer nenhuma análise através do Datalbope. Como já disse, o sistema não está implantado. Segundo, é necessário olhar para trás. Há dois anos, todos os domingos, nós perdíamos de meio-dia às 7 para o Sílvio. Agora isso só acontece esporadicamente. Na realidade, nós assumimos o domínio do domingo e com um público mais qualificado que o do SBT. Pantanal beliscou uma fatia da nossa audiência, mas nada grave, já tomamos beliscões maiores e reagimos. Se em um dia ou em um horário perdemos para alguém, isso é absolutamente normal. Agora, ficar preocupado se o Telecurso deu 1% de audiência e alguém deu 2%, é ridículo. Pura desinformação de quem age de má-fé ou que não sabe coisa nenhuma de televisão.


PLAYBOY — O que muda na tela da Globo em 1991?


BONI — Muita coisa. Nós vamos rever a política que vigorou em 1990, de excesso de dramaturgia. E acho que as outras emissoras vão seguir essa tendência, porque o volume de telenovelas é demasiado.


PLAYBOY — Isso tem a ver com a perspectiva de recessão e a necessidade de enxugar custos?


BONI — Ao contrário. A recessão se combate com uma programação agressiva e com mais oferta de produto. A novela se dirige a um só público, ó feminino e adulto, e em caso de recessão você precisa procurar verbas em setores mais definidos.


PLAYBOY — Em 1990 o mercado publicitário já mudou bastante. Aumentou a verba do varejo, os bancos fugiram da propaganda logo depois do plano, e mais tarde voltaram. Existe uma idéia do que será 1991?


BONI — Temos. O cenário que está se descortinando é o pior possível. Estamos imaginando um quadro recessivo. Em 1990, tivemos um aumento no registro de devedores duvidosos. Em compensação, aumentou o número de anunciantes. Mas as previsões a longo prazo são muito difíceis de serem feitas no Brasil [risos].


PLAYBOY — E quais as mudanças?


BONI — Vamos reforçar o jornalismo. A experiência do São Paulo já será levada a todas as praças Globo. Teremos um novo jornal da Globo, que vai começar na primeira semana de abril. Ele terá mais entrevistas, mais seções e vai se aproximar mais de um show.


PLAYBOY — Tipo Nightline?


BONI — Exatamente. Tanto que estamos pensando em não usar o título jornal, porque é realmente um show, onde a notícia é a vedete.


PLAYBOY — Um talk-show, programa de entrevistas como o Jô 11 e meia, com hard-news, ou seja, notícias quentes?


BONI — Misturado, mais cobertura ao vivo. Vamos entrar com praças ao vivo no Brasil e duas internacionais também... O Augusto Nunes [diretor de redação do jornal O Estado de S.Paulo] será um dos participantes e pretendemos trazer para cá o Pedro Bial, que está em Londres, para ancorar o programa. O Paulo Henrique Amorim entra direto, ao vivo de Nova York, e estamos fazendo uma outra experiência com Antonio Fagundes e algumas mulheres que sejam personalidades. Vai ter música também.


PLAYBOY— Essa idéia surge de que objetivo?


BONI — O de tornar a noite mais viva. Nos Estados Unidos, quando eles criaram o Tonight, fizeram uma pesquisa de profundidade e pintou que o sono era a coisa mais parecida com a morte. Então, aquele filme melancólico com artistas que já morreram ou a dramaturgia sobre a qual o telespectador não interfere, o telejornal, isso é meio morto.


PLAYBOY — Seria parecido com o Fantástico?


BONI — Mais solto. Se pudesse comparar com alguma coisa, seria um Fantástico mais informal. É isso aí.


PLAYBOY — E o que mais?


BONI — No passado tivemos o Globinho, um jornal para criança. Mas ele virou uma coisa didática, que não dava informações de atualidade. Vamos criar um jornal diário de 15 minutos, com atualidade, feito com crianças, preparando a garotada para a notícia, traduzindo para eles a crise do Golfo Pérsico, o noticiário do dia. Irá ao ar às 17h45. Um jornalzinho nacional para criança.


PLAYBOY — O horário infantil continua sendo basicamente Xuxa...


BONI — É. E pode ser que a Escolinha do Professor Raimundo ultrapasse seu prazo fatal, que era março, em virtude do sucesso que o programa faz em termos de audiência e de anúncios. Durante o horário eleitoral, quando o programa de sábado passava muito tarde, a criançada enchia de telefonemas o nosso Centro de Atendimento ao Telespectador. A Escolinha é uma fórmula muito antiga, mas que sempre dá certo, se o texto for atual, como é, e o elenco for bom. Hoje há em média, arredondando, três espectadores por aparelho. E um deles é sempre uma criança! O que queremos é rever o horário infantil para que as 21h30 possa ser um horário adulto. Porque as crianças estavam invadindo esse horário. Tela Quente, por exemplo, só tinha filmes com apelo infantil.


"As crianças invadiram o horário das 21h30. Vamos devolvê-lo aos adultos, com filmes e novas séries brasileiras"

PLAYBOY — Nesse horário das nove e meia da noite, o que vai ter?


BONI — Vamos manter longas-metragens dois dias por semana, mas com filmes voltados para o público adulto, masculino. Fazer duas séries brasileiras — uma para a mulher, ou sobre a mulher, e outra policial. Na sexta ou sábado à noite estamos pretendendo dar um programa com auditório para o Faustão, mais solto, mais irreverente. E exibir uma série adulta americana, Twin Peakes, de grande sucesso por lá.


PLAYBOY — Como vão ser as séries brasileiras?


BONI — O policial vai se basear numa série antiga, escrita pelo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, chamada Matador, que foi ao ar duas vezes. Urna mistura de policial com western, que já fez sucesso. É a história de um pistoleiro. No caso da mulher, o tema será o sexo hoje, depois da liberação da mulher.


PLAYBOY — Uma nova Malu?


BONI — Mas sem as preocupações feministas, que não têm mais sentido. Uma história com muita ação, onde a mulher tenha papel preponderante e discuta sua liberdade sexual, seus relacionamentos, sua postura diante da sociedade.


PLAYBOY — Isso tem a ver com Delegacia de Mulheres?


BONI — Mais ou menos. A Delegacia demonstrou que a comédia de situação que nós imaginávamos não funcionou. O público não se interessa pelo dia-a-dia das policiais e delegadas. Mas, quando o programa partiu para ação, deu certo. Daí o Matador. E o programa de mulheres, que não vai ser nem um teatrinho, nem uma comedinha. Enfim, a tônica das 21h30 será a ação...


PLAYBOY — Aqui mesmo na Globo, quando alguém falava em talk-show costumava-se usar uma frase atribuída ao Boni, que teria dito: "Não tem ninguém interessante para entrevistar no Brasil"...


BONI — Isso não é verdade. Mas o próprio Jô provou, na prática, que não se consegue três bons entrevistados todos os dias. Um pode ser, mas três... O problema é o que falar para televisão. Conseguir uma declaração boa para o Jornal Nacional de 20 segundos já é difícil, o que dizer de uma entrevista de 10 minutos...


PLAYBOY — Por falar no JN, ele muda?


BONI — Não. Já estamos ampliando suas fontes de informação, reforçando o caráter de hard-news. Mas ele vai continuar do jeito que está. Estamos contratando novas agências de notícia, somos compradores de informação — do cinegrafista amador ao noticiário internacional.


PLAYBOY — A intenção dessas mudanças é também a de reagir à concorrência?


BONI — As formas alternativas de televisão vão se tornar realidade muito rapidamente. E vão mexer na estrutura de audiência. A Globo tem dois caminhos para enfrentar essa situação: entrar nos novos negócios ou buscar algum tipo de atendimento aos públicos segmentados, nas pontas de sua programação. É isso que pretendemos. Em 1991 queremos fazer duas coisas: desenhar uma programação mais próxima dos interesses do comercial, tentando, mesmo com o sacrifício de uma parcela de audiência, manter o mesmo nível de faturamento. Não é uma segmentação, mas estamos definindo alvos mais específicos. O target do comercial vai prevalecer sobre o target da audiência.


PLAYBOY — E o famoso padrão global de qualidade se mantém? Custa muito caro?


BONI — Padrão global é um apelido. Procuramos aqui fazer uma TV popular bem-feita. Nossa vigilância pretende garantir um produto de massa, sem ser popularesco, que atinja a maioria das pessoas, sem concessões extremas. Nosso padrão formal é do Primeiro Mundo, mas com um conteúdo adequado ao mercado brasileiro.


PLAYBOY — É verdade que esse padrão global funciona à base dos famosos memorandos do Boni, que espalham o terror e críticas a torto e a direito?


BONI — Quando vim para a TV Globo havia aqui um certo jeito carioca de se ir levando. Foi uma briga muito grande, mas hoje isso acabou. Como não tínhamos a base da indústria cinematográfica, como nos Estados Unidos, tivemos de começar do zero. É como se uma montadora de automóveis precisasse, ela mesma, instalar toda a indústria de autopeças. Os memorandos eram o único instrumento para impor a disciplina. Não tinham, nem têm, a intenção de espalhar o terror, mas foi — confesso — uma tarefa extremamente dura. Você implanta a disciplina, a busca da qualidade, o respeito ao telespectador. De repente, a coisa relaxa. É a tendência do brasileiro para a acomodação. E enquanto não cutucavam lá de fora, como aconteceu com Pantanal, eu cutucava aqui de dentro [risos]. Além disso, há sempre muita gente nova entrando. A rede tem 10.000 funcionários e, todo ano, há umas 1.000, 1.300 caras novas, gente que nunca viu TV. Outro dia, aconteceu um desses absurdos: em São Paulo, simplesmente não foi exibido um capítulo da novela das 6!


PLAYBOY — Como assim?


BONI — É que no sábado tinha havido um jogo de vôlei que se prolongou e o capítulo normal não foi ao ar. Na segunda, deveria ser apresentado um condensado, com a história de sábado e de segunda. Mas o pessoal da coordenação de programação era novo e, por azar, escalaram três pessoas inexperientes no mesmo dia. Eles simplesmente esqueceram do condensado.


PLAYBOY — E os três levaram um memorando... e demissão?


BONI — Exatamente. Isso é uma nave da Nasa que vai embora! É inconcebível! Foi a segunda vez que aconteceu algo assim, mas a primeira com um capítulo de novela.


PLAYBOY — Quantos memorandos você escreve por dia?


BONI — Meia dúzia. Mas tem dia que faço vinte. E eu faço questão de escrevê-los pessoalmente, porque quero cobrança. Mando cópia para todo mundo, mesmo que o principal destinatário fique meio ofendido. É que o memorando tem uma função didática. Se for secreto, não funciona.


PLAYBOY — E memorando de elogio?


BONI — É raro, mas tem [risos]. Quando alguém faz um bom trabalho, mando um cartão com flores para sua casa. Quando faz o padrão, o sujeito está fazendo apenas a sua obrigação. Muito do mito "esporro" se deve a um boy chamado Nonato, que trabalhou comigo. Ele adorava se fazer de importante. Era um crioulinho supersimpático, bem falante, bem vestido. Costumava me pedir garrafas vazias de vinho francês, que ele enchia com vinho nacional, comprava queijo-de-minas, e promovia entre os boys um solene "queijo e vinho" semanal, alegando que era presente meu. Com essa mesma postura, ele entregava meus memorandos. Na época, os diretores, quase todos, trabalhavam na mesma sala. O Nonato entrava, exibia o memo como se fosse um troféu e gozava o pessoal: "Olha aí... tá saindo esporro fresquinho... Adivinhem pra quem..." [risos]. Em seguida, entregava o documento para a vítima na frente de todo mundo, tornando a coisa pública. Ele foi demitido após provocar atritos, choros e até brigas. De qualquer forma, a brincadeira foi engraçada por muito tempo. Bastava o Nonato aparecer que o suspense era geral.


PLAYBOY — Quer dizer que televisão, neurose e adrenalina são realmente parceiras?


BONI — A neurose é grande. A. adrenalina é total. Você acaba se envolvendo demais. Porque ou se preocupa com tudo mesmo ou então sai. O meu expediente não fecha [risos]. O fato é que, se você quiser se libertar da televisão, tem que sair dela...


PLAYBOY — Nos grandes eventos, você ainda vai para o switcher? [A sala de controle da emissora, onde se pode definir a imagem que vai entrar no ar, ver o que as outras câmeras estão focalizando e ter contato verbal com a equipe envolvida na operação.]


BONI — Vou. Qualquer evento ao vivo é imprevisto. Não tem como ensaiar. Por isso, os câmeras e o pessoal que está no comando têm que estar quentes na hora em que o evento começa. Então, entro no switcher e vou testando todo mundo, vendo quem está atento, quem não está. É um treino de atenção, para ver se as pessoas estão ligadas. Todo evento ao vivo, sobre o qual não se tem controle, é difícil. Tenho pavor de todo evento sobre o qual você não manda. E há outros problemas: nos Estados Unidos, o esporte é feito para a televisão. Aqui, é feito contra a televisão. Aquela experiência da Copa União nós não conseguimos repetir, por falta de entendimento dos dirigentes.


PLAYBOY — Você não gosta de futebol?


BONI — Não é isso. Mas em função dos dirigentes, o futebol virou uma coisa burra. Eu gosto tanto de futebol que fui conselheiro do Corinthians. E é preciso gostar muito do esporte para ser corintiano [risos]. Mas veja a Fórmula 1. O cara pode estar em último, mas acelera até o fundo, luta até o último minuto, em nome do espetáculo. Não tem essa de segurar o resultado, buscar o empate... Todo mundo larga e só pára se o carro quebra. No Brasil, o futebol se dissociou do seu principal veículo, que é a televisão, e do seu principal público, que são os torcedores. Ele assim não cria ídolos, não dá motivação à torcida... Se perdeu o veículo e o mercado, o que vai acontecer com ele? Já teve jogo do Botafogo com 549 espectadores. E não foi culpa da televisão! Eles não perceberam ainda que precisam se unir e promover um espetáculo capaz de se vender para a televisão, de atrair público, etc... Falam muito em mudança nas regras. Mas as regras na Itália são as mesmas e o futebol funciona!


PLAYBOY — Alguns esportes não são muito chatos na TV? O tênis, por exemplo...


BONI — É chato e difícil de ver. Só melhora se aumentar a raquete e a bolinha [risos]. Mas, de qualquer modo, tem interesse. Vamos dar resumos das partidas mais importantes. E vamos transmitir 24 lutas internacionais de boxe em 1991.


PLAYBOY — O telejornalismo brasileiro é bom? O padrão americano deve ser a nossa meta?


BONI — É muito bom. Os repórteres brasileiros têm vontade de fazer e excelente nível. Acontece que ele foi cortado por vinte anos de censura e por uma administração castrada, sempre pressionada por muitos lados. Mas o nosso telejornalismo vai crescer porque é ousado, ágil e sempre, de qualquer forma, inteligente. Quanto ao padrão americano, acho muito frio. Tem correção, tem precisão, mas é um pouco distanciado demais.


PLAYBOY — E os shows, estão morrendo, assassinados pela indústria do videoclip?


BONI — Exatamente. Vão resistir os grandes eventos, justamente por essa razão — são eventos. A tendência de toda televisão é se dividir entre o evento, uma grande massa de informação e uma grande massa de teledramaturgia. O Brasil tem pouco evento, pouca informação e um excesso de dramaturgia.


PLAYBOY — E os programas de humor?


BONI — Os humorísticos são uma cópia do rádio, já cansaram. A comédia de situação, o grande sucesso no resto do mundo, ainda não funcionou aqui, talvez porque ela dependa muito da informação cinematográfica, cultural. Os Trapalhões mesmo estão indo por esse caminho com o Trapa-Hotel. E o Chico Anysio decidiu rever completamente seu programa, quem sabe fazer um outro tipo. O Jô simplesmente desistiu.


PLAYBOY — Por que não se fazem filmes para TV no Brasil?


BONI — O cinema brasileiro desenvolveu-se em duas pontas: de um lado, à revelia do mercado, com filmes herméticos. De outro, extremamente complacente com ele — as pornochanchadas. Não se montou a indústria cinematográfica no Brasil. Para fazer um longa-metragem, a televisão também não tem cultura para isso. A estrutura de roteiro no Brasil está mal resolvida. A TV padece da falta de bons roteiristas, embora tenhamos ótimos autores, extremamente criativos. Além disso, com o que a televisão brasileira paga por um longa-metragem, você não faz nada. Uma produção classe C lá fora sai por 4 milhões de dólares. Aqui pagamos 50.000, 60.000 dólares por um filme. É tudo o que o mercado agüenta. Fazer filme com esse dinheiro é impossível para a televisão.


PLAYBOY — A produção independente tem futuro?


BONI — Difícil. Só a Globo põe dinheiro. As outras tratam os produtores, que são fornecedores, como sócios. E a Globo compra pouco. A produção independente vai crescer mesmo é com a ampliação de canais.


PLAYBOY — Qual o melhor programa que você já criou? E já teve algum fracasso?


BONI — [Rindo] Fracasso? Quantos! O Fantástico talvez seja o melhor programa... bem, é um formato que precisa de reciclagem, mas é muito interessante — entretenimento e informação muito bem casados.


"O Fantástico talvez seja o melhor programa que já fiz. Informação e muito entretenimento bem casados, um formato interessante"

PLAYBOY — Que coisas você ainda não realizou profissionalmente?


BONI — Tudo. A TV de massa está sempre sujeita a alteração. É preciso criar sempre, mudar sempre...


PLAYBOY — E fora da TV o que você quer fazer?


BONI — É na TV mesmo: uma rede de jornalismo, uma CNN brasileira. A TV de massa é impessoal, acima de tudo. Isso é cansativo, você não deixa a sua marca.


PLAYBOY — Uma vez, um repórter de TV meio pirado, o Ernesto Varela, perguntou ao Nelson Piquet atrás do que ele corria tanto. E o Piquet respondeu, curto e grosso: "Da grana, meu amigo". E o Boni, corre atrás de quê?


BONI — Atrás da grana nunca corri. Olho para trás e acho que fiz uma besteira agindo assim. A verdade é que sempre deixei transparecer tão claramente minha vontade de fazer aquele trabalho para o qual estava sendo chamado que a grana ficou em segundo plano. Se tivesse ganho realmente bem, estaria hoje realizando esse meu sonho, uma TV só de jornalismo: Isso se eu tivesse condições de abrir mão do que ganho na Globo. Como nunca tive salário aqui, só participação, não posso levantar meu Fundo de Garantia e sair.


PLAYBOY — Você ganha bem?


BONI — Isso é meio difícil de explicar. O fato é que aceitei um contrato de risco, com salário zero e participação nos lucros, quando vim para cá. Na hora em que o Walter saiu isso era para ter sido mudado, mas acabou ficando desse jeito. É verdade que depois de inúmeras reivindicações consegui que me dessem participação na emissora de Sorocaba. Era pouco, mas simbólico. Mesmo assim acabei não aceitando porque ficou parecendo que me faziam um favor. O fato é que tem alguns artistas que ganham mais do que o Boni. A Xuxa, por exemplo, queria me contratar outro dia para dirigir o programa internacional que ela vai fazer. Quando me falou o salário, percebi que ela realmente teria condição de me contratar na hora [risos]. O problema é que sempre gastei tudo que ganhei. Por isso, se eu parar um mês, no mês seguinte vai faltar. Se fizer seis novelas, do jeito que está no contrato, o Walter Avancini é capaz de ganhar mais do que a Xuxa. Na verdade, em geral, a Globo paga pouco a seus funcionários, a seus artistas. E nem acho que ela possa pagar mais, porque tem um elenco enorme, uma estrutura muito grande. Quem ganha mesmo dinheiro em TV são os camelôs eletrônicos, os apresentadores que vendem produtos como o Sílvio Santos, Gugu, Faustão e a própria Xuxa, sem contar os programas religiosos que vendem a salvação...


"Alguns artistas faturam mais do que o Boni. A Xuxa até quis me contratar — e o Walter Avancini pode ganhar mais do que ela"

PLAYBOY — Mas e seu patrimônio? E a ilha em Angra?


BONI — Você vê como é o mito... Tenho uma casa numa ilha, onde há muitas outras casas. Tenho uma lancha boa, mas nada excepcional, uma Cigarrette 36. Tenho um bom apartamento no Rio. E ponto.


PLAYBOY — Você está vendendo a casa por 2 milhões de dólares?


BONI — Estou pedindo. Não achei quem pague. Quero baixar o meu padrão de vida. Quero fazer outra coisa qualquer, não agüento mais ficar fazendo novela. Quero fazer alguma coisa para mim e para os meus filhos. Se eu vender a casa vou virar produtor independente, em sociedade com o Boninho.


PLAYBOY — Você só vê televisão profissionalmente?


BONI — Bem, eu sou viciado em informação, vejo o tempo todo. Mas não consigo olhar para TV como mero telespectador, tenho o vício profissional.


PLAYBOY — Qual a sua rotina de trabalho?


BONI — Não tenho. Posso estar aqui muito cedo ou mais à tarde. E fico diretamente envolvido pelo menos doze horas por dia. Numa estréia de novela, num grande evento, aí viro redondo. Não tenho férias e quando viajo a primeira coisa que faço lá fora é ligar a TV para ver o que está acontecendo.


PLAYBOY — Suas roupas são importadas?


BONI — [Risos.] Não, mas custam caríssimo. Ganho todas do Faustão. Não ligo para roupa, desde que seja confortável. Só tenho história com sapato, tenho um pé desgraçado, uso o suíço Bally. Sem meia. Não uso meia, gravata nem paletó. E, em 90% dos casos, ando de jeans.


PLAYBOY — E não usa relógio, também.


BONI — Nunca usei. Não consigo ficar com nada me apertando. Nem pulseira, nem colar, nada. Nem aliança [risos]. E, por não usar relógio, sou o rei de ganhá-los. O próprio doutor Roberto já me deu uns três, pensando que não tenho nenhum.


PLAYBOY — Carro?


BONI — Não dou importância.


PLAYBOY — Mas tem uma Mercedes...


BONI — Tenho. Gosto mesmo é de perua, jipe, Bonanza, Camper...


PLAYBOY — E bebe?


BONI — Vinho e cerveja. Gosto muito de vinho, há muito tempo. Hoje conheço bastante. Gosto também de comer bem, não sou glutão, mas adoro comer um pouquinho disso e daquilo.


PLAYBOY — Cor?


BONI — Azul.


PLAYBOY — Alguma cor proscrita?


BONI — Não tenho superstição de nenhum tipo. Não acredito em nada também.


PLAYBOY — Vinhos?


BONI — Franceses, italianos e espanhóis.


PLAYBOY — Quais os melhores vinhos do mundo?


BONI — Os franceses. O Latour, o Lafitte, o Pomerol e Petrus, todos bordeaux. Borgonha você tem o Romaneé Conti e tem o branco Montrachet, todos eles extraordinários. Safra 61, 66...


PLAYBOY — A 61 é a safra do século...


BONI — É. As outras são muito recentes para se comparar com ela. A safra 61 seria 20 pontos em 20; a 64, 18 por 20; a 66, 19 por 20; a 70, nessa mesma base, como 75, e de novo volta a ser 20 por 20 em 82, 85 e a excepcional de 89, que muitos enólogos acham que vai bater, no futuro, a de 61. Mas o vinho evoluiu muito no mundo inteiro, além da França.


PLAYBOY — No Brasil também?


BONI — Já temos alguma coisa, mas a região escolhida para a implantação das uvas tem chuva demais. Um solo mais bem irrigado no Vale do São Francisco pode garantir um bom vinho brasileiro... Eu gosto muito de vinho. E nasci lá em Osasco, você sabe. Mas meu avô era espanhol, Isaias Fernandes Prado, dono de um cinema, o primeiro Cine Gonzaga em Santos, e foi um pequeno importador de vinho para o pessoal do Guarujá. Eu não sou um conhecedor de vinho como coisa esnobe ou cultural. Gosto mesmo. Garoto, separava vinho por garrafa, fazia as caixas, colocava na cabeça e ia entregar para defender uns trocados. Bebo hoje o que já carreguei na cabeça... [risos]


PLAYBOY — E uísque?


BONI — Não gosto.


PLAYBOY — Comida?


BONI — De mortadela (boa) ao melhor caviar. Cozinha francesa, italiana, e gosto da nouvelle cuisine. É bobagem pensar que ela é um modismo que vai acabar. Pode é mudar o nome, mas uma cozinha mais leve é uma exigência da vida moderna.


PLAYBOY — E então gasta dinheiro como? Não é em roupas, em patrimônio, em carros, só em comida e bebida?


BONI — Não. Gosto de viajar e minhas viagens saem caras. Me dou muitos presentes. Não posso ver uma bugiganga eletrônica, que eu compro. Veja só [apanha um pequeno aparelho sobre sua mesa], esse é o telefone celular. Mal saiu, já comprei um.


PLAYBOY — Você nunca fumou?


BONI — Não. E sou implicante com quem fuma.


PLAYBOY — Qual o seu signo?


BONI — Sagitário. Mas não acredito. Sou um bom calculista, faço o ascendente de qualquer um de cabeça, mas para uso alheio.


PLAYBOY — Você é ou foi um grande paquerador?


BONI — [Pausa.] Não.... eu sempre fui urna pessoa muito romântica [risos]. Não, fui sim. Agora estou casado, mais quietinho. Adoro a Lu e sou muito feliz com ela e com os meus filhos.


PLAYBOY — Mas o mundo da TV é tido como meio mágico, cheio de belas mulheres...


BONI — É uma ilusão. Não quero desprezar as mulheres da televisão, mas o artista representa um personagem. Os personagens são belos e há um certo cuidado de luz, de maquiagem... Eu nunca misturei...


PLAYBOY — Quer dizer que nada?


BONI — Jamais. Meus casamentos, meus namoros sempre surgiram de uma identidade de propósitos, de afinidades... Essa ilusão de que a televisão é um mundo de mulheres bonitas é uma das coisas mais simplistas que ela vende. Do ponto de vista estético, tem gente muito mais bonita lá fora. O artista, de maneira geral, precisa ter algo mais na parte emocional, criativa. As pessoas que fazem teatro, televisão têm, de alguma maneira, algum conteúdo especial.


PLAYBOY — E aquele personagem comum nos programas humorísticos, que é o diretor de TV tipo Bozó, não existe?


BONI — O Bozó existe. Eu sempre alerto as atrizes para que façam a carreira sem esse expediente. Até porque o cara lá embaixo diz que vai apresentá-la ao diretor... e ela chega ao diretor de segunda mão [risos]. Isso é uma coisa muito antiga, mas, sinceramente, não conheço ninguém que tenha feito carreira por essa via. Eu sou mais rigoroso com os meus amigos e parentes do que com o resto do pessoal.


PLAYBOY — Mas boa parte das mulheres de PLAYBOY saem da tela da Globo. Essa curiosidade é permanente?


BONI — É. Acho o sexo uma coisa extremamente bonita e todos nós temos que nos alimentar de um pouco de erotismo. Fazer vista grossa para o erotismo é idiota. Do ponto de vista psicológico, ver seu ídolo nu já é um apelo. Agora, ver sua ídola, gostosa, nua, é melhor ainda [risos]. E vale para homens e mulheres. Um galã de novela nu também vai chamar atenção e fazer sucesso...


"Fazer vista grossa para o erotismo é idiota. Ver seu ídolo nu já é um apelo. Agora, ver sua ídola nua, gostosa, é melhor ainda"

PLAYBOY — O interesse aqui no Brasil pelos ídolos da TV é maior que nos Estados Unidos?


BONI — Não, é igual. Por motivos econômicos, a televisão aqui tem uma penetração maior que em todos os outros países. Se não fosse o volume de audiência, a Rede Globo não seria a quarta rede do mundo. Isso é a única coisa que explica o interesse da mídia, páginas e mais páginas sobre televisão. Mas, lá fora, os ídolos são mais permanentes. Aqui, na década de 50, o pessoal do rádio era mais assediado que a turma da televisão de hoje. Acho que o brasileiro esnoba um pouco seus ídolos, como um Tom Jobim, um Caetano Veloso, um Gilberto Gil. Essas pessoas seriam cultuadas de outra forma lá fora.


PLAYBOY — Julgar as pessoas, principalmente em duas, três frases, é muito difícil e há o risco de se cometer injustiça. Mas vamos falar alguns nomes para que você dê uma definição sobre cada um deles. Daniel Filho...


BONI — Está comigo desde os tempos da Tupi. Temos uma afinidade muito grande de idéias. Ele é o responsável por toda a transformação da novela brasileira, mesmo sem ter sido um pioneiro.


PLAYBOY — Walter Avancini.


BONI — Um inovador. Sempre pensando no que ninguém fez. Grande vocação para o risco, devido a sua coragem.


PLAYBOY — Guga de Oliveira, seu irmão.


BONI — Um poeta. Muito criativo, é um antiautoritário por natureza. Compreensivo demais. Conhece televisão muito bem e, quando a produção independente conquistar seu espaço, vai dar uma enorme contribuição.


PLAYBOY — Walter Clark.


BONI — Sem ele não teria existido a TV Globo. Teve paciência de reunir e manter pessoas, além de uma paixão muito grande pela TV.


PLAYBOY — Jô Soares.


BONI — Criativo, muito bem-informado, engraçado como pessoa. Escolheu o caminho certo. Eu prefiro a figura do Jô Soares aos tipos que ele criou.


PLAYBOY — Chico Anysio.


BONI — Misto de gênio e anjo da guarda da classe dos humoristas e comediantes. Mais pai do que amigo dessa turma.


PLAYBOY — Xuxa.


BONI — Brilhante. Vai fazer sucesso internacional, acima de qualquer expectativa. Está prestes a dar um pulo em sua carreira.


PLAYBOY — Regina Duarte.


BONI — Uma pessoa extraordinária. Coerente, clara, uma atriz nata, comparável às melhores do mundo.


PLAYBOY — Cristiana Oliveira.


BONI — Foi a revelação do ano, uma mulher bonita e uma atriz de futuro.


PLAYBOY — Marília Gabriela.


BONI — Muito inteligente, informada. É uma entrevistadora hábil que arranca confissões dos seus entrevistados sem ser impertinente.


PLAYBOY — Alice-Maria.


BONI — Uma máquina de trabalhar.


PLAYBOY — Armando Nogueira.


BONI — Um ser humano fora de série, agradável, inteligente, um fantástico companheiro de trabalho.


PLAYBOY — Joelmir Beting.


BONI — Muito engraçado, extraordinário. Não sei por que nunca usou esse lado histriônico na TV. Tem tudo para fazê-lo.


PLAYBOY — Cid Moreira.


BONI — Correto, um profissional leal, disciplinado, aplicado, com competência para leitura e uma voz extremamente bonita.


PLAYBOY — Sergio Chapelin.


BONI — O Sergio é muito ligado na informação. Um dia, além de apresentador, será um excelente editor pela noção de timming que tem.


PLAYBOY — Fernando Collor.


BONI — Tive poucos contatos. Sempre achei uma pessoa brilhante, com muita vida. Acho que o estilo Collor precisa ser um pouco mais contido. De resto, continuo torcendo, pois acho que o caminho é por aí mesmo.


PLAYBOY — Leonel Brizola.


BONI — Embora tenha briga com a Globo, pessoalmente foi muito correto, muito cordato. Em todos os contatos com ele, jamais saí sem a solução para o problema. Admiro a sua preocupação com a educação.


PLAYBOY — Você fez jingles. Foram muitos?


BONI — Perdi a conta. Mais de 300. A maior parte das vezes sou o idealizador, o letrista, com parceiros. Entre eles, o da Varig...


PLAYBOY — Aquele do Varig, Varig, Varig...?


BONI — Exatamente. E do Sabonete Lever, Omo, Rinso, Gessy, Caldo Knorr, produtos Cica, Detefon, Aero-Willys, Renault-Dauphine, Volkswagen, Kellog's, as vinhetas da TV Excelsior de São Paulo, o tigrinho da Record, as da TV Rio, detergente Viva...produtos Nestlé, GE, Dulcora, Clay bon. Salão da Criança, Fenit, cobertores Parayba, Ponte Aérea, Conhaque Napoleón.


PLAYBOY — Teve também a letra da música da abertura do Fantástico, da Tieta...


BONI — Não faço isso para tirar o lugar de nenhum compositor ou letrista, eles são especialistas nisso. Faço como publicitário, para atender às exigências da programação e, muitas vezes, para adequar o áudio ao vídeo, eu ainda mexo na letra dos outros.


PLAYBOY — Qual é o seu passatempo?


BONI — Jantar, beber vinho, viajar e ler.


PLAYBOY — Ler o quê?


BONI — Literatura técnica e médica. Sou um hipocondríaco convicto.


PLAYBOY — [Apontando para um pires na mesa com meia dúzia de comprimidos de todas as cores.] Quantos você toma por dia?


BONI — Uns vinte [risos]. São vitaminas. A, B, C, D, E. Fibras vegetais, como psilium, celenium, zinco, aminoácidos, que preservam a juventude e prolongam a vida. Antac, para acidez. Não vivo sem isso!


PLAYBOY — Mudando de assunto: quando o Castor de Andrade foi preso, você foi visitá-lo... Vocês são amigos?


BONI — Conheci o Castor de Andrade brigando para fazer o Carnaval bem-feito. O samba tem pessoas fantásticas, como o Castor, o Capitão Guimarães, o Anysio, o Joãozinho Trinta, que sempre foram muito leais comigo, discutiram negócios de maneira clara e correta. Melhor que muita gente — alguns políticos, governadores...


PLAYBOY — Para eles vale o escrito...


BONI — Vale. O Castor nos ajudava, em termos de televisão, a fazer uma aproximação com o Carnaval. Quando ele foi preso, fui visitá-lo. Como visitaria qualquer artista ou funcionário meu, qualquer amigo, nessas circunstâncias.


PLAYBOY — E a história de que o Naji Nahas teria se escondido em sua casa em Angra?


BONI — Não é verdade. Eu o conheci num jantar em casa ao qual ele foi levado pelo Miguel Pires Gonçalves [superintendente executivo da Globo e filho do ex-ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves]. E nós fomos assaltados nesse dia. Até por esse aspecto desagradável, nunca mais nos vimos. Não queria nem bem nem mal a ele, não o conhecia direito. Nunca apliquei na Bolsa... porque caixão não tem gaveta. Soube, depois, que ele efetivamente estava em Angra. Mas em que casa, não sei.


PLAYBOY — E esse assalto, por que você nunca fala dele?


BONI — Vamos lá.


PLAYBOY — O que sobrou dessa experiência?


BONI — Foi uma experiência amarga. Ah... Eu fiz toda a minha carreira através da argumentação, do diálogo. E de repente me vi numa situação em que não podia usar nenhum argumento, não podia ter idéia nenhuma, não podia me ajudar. Na realidade, não tinha nada contra o assalto, mas não havia possibilidade de argumentar. A dificuldade básica era minha situação emocional — eu fiquei muito chocado. Disse a eles que se quisessem me amarrar teriam de me matar, porque estava lutando para controlar a adrenalina, a circulação periférica, etc. Eu fiquei preto! Naquele momento achei que era melhor morrer...


"Então, eu disse aos assaltantes que, se eles quisessem me amarrar, teriam de me matar. Foi uma experiência terrível"

PLAYBOY — Eles entraram com o clássico: "Isto é um assalto"?


BONI — Usaram um expediente simples. O motorista do Naji Nahas, que era de uma locadora, ficou na rua, contrariando a regra da casa. Nós morávamos numa casa no Joá, sem segurança — havia dois caseiros que faziam esse papel, com mais de 60 anos... Os ladrões dominaram o motorista, que foi forçado a pedir para entrar na casa. E todos entraram. Nós ficamos na mão de três pessoas armadas, com uma sensação de não saber o que fazer.


PLAYBOY — E eles ficaram histéricos?


BONI — No começo, sim, e depois se agravou porque não acharam dólares — não sabiam que tem inflação nos Estados Unidos... Levaram eletrodomésticos e jóias. Quem fez toda a mediação foi a minha mulher. E a coisa transcorreu sem outro tipo de violência, a não ser a psicológica de quatro horas com armas na cabeça. Acabamos todos presos na adega. Eu levei um chute na coluna, o Miguel, uma coronhada, mas ficou por aí. Foi uma experiência terrível. Liguei para os jornais do Rio, consegui sustar a notícia, mas a revista VEJA publicou uma página sobre o assalto. Até entendo os motivos, mas com isso a 18.º Delegacia resolveu abrir um inquérito. Eu mesmo não estava interessado em saber. Essa é uma experiência da qual você não se livra... Sempre imaginei que resolveria um caso assim de maneira inteligente, até elegante. E, quando você não consegue, fica a lição de que não adianta ter razão, soluções, idéias diante da violência. Você não tem o menor, o mais remoto controle sobre ela. A única coisa que eu lamento é que a polícia tenha prosseguido nisso.


PLAYBOY — Os ladrões foram presos, morreram?


BONI — Não sei o que aconteceu com eles.


PLAYBOY — Como você encara a morte?


BONI — Como uma necessidade. A gente sabe que biologicamente vai morrer...


PLAYBOY — Necessidade ou inevitabilidade?


BONI — Necessidade. Se as pessoas fossem eternas, a humanidade se estagnaria.


PLAYBOY — Isso não combina com a sua hipocondria.


BONI — Pelo contrário. Estou com 56, mas me considero um criança. Gostaria de chegar a uma idade um pouco mais avançada para poder encarar esse negócio [risos]. Agora vou começar um tratamento com o doutor Eduardo Azevedo, um tratamento com o hormônio do crescimento que, dizem, rejuvenesce a gente cerca de vinte anos. Vão ter que me agüentar mais tempo [risos].


PLAYBOY — O que você acha do doutor Roberto Marinho?


BONI — Uma pessoa fascinante. Absolutamente sensível, emotiva, com uma vantagem extraordinária em relação a todos os empresários com os quais eu trabalhei: é capaz de ouvir sua opinião e, se ela for consistente, adotá-la. Não tem o menor resquício de teimosia. Assim como jamais irá seguir seu ponto de vista, ainda que ache acertado, se estiver realmente disposto a fazer o contrário. As dificuldades que às vezes a gente tem são puramente de percurso — ele não cultiva uma relação desgastante, procura recuperar qualquer atrito. As discussões sobre o que eu deveria ou não ter, se deveria ou não ser sócio da Globo, nada têm a ver com a nossa relação pessoal. Mas o doutor Roberto é extremamente habilidoso: não só não gostaria que eu fosse sócio da Globo, como gostaria que eu fosse propriedade dele. E eu acho que do ponto de vista dele, isso é legítimo. Da parte dele, demonstra uma extraordinária inteligência, enquanto da minha, comprova uma extraordinária burrice... [risos].


PLAYBOY — Por não ter aceito isso...


BONI — Ao contrário, por ter aceito tantos anos... [risos]. Mas ele é uma pessoa culta, informada, não é ranzinza, tem um humor muito grande. E uma imensa capacidade de levar as pessoas a fazerem exatamente aquilo que ele quer.


PLAYBOY — Ele não é um homem de televisão.


BONI — Mas tem uma vantagem: aprendeu na prática. Seu ingrediente básico é a sensibilidade, que é a matéria-prima da televisão. Essa sensibilidade faz com que ele pegue muito rápido qualquer assunto.


PLAYBOY — Muitas empresas brasileiras sofrem muito na sucessão, por serem empresas familiares. A Globo é uma delas. Isso pode acontecer?


BONI — Acho que já passamos essa fase. O Roberto Irineu e o João Roberto, os filhos dele que estão na empresa, de alguma forma há algum tempo estão bem por dentro dos problemas da empresa. O doutor Roberto não é homem de passar o bastão e ir para casa, mas está preparando o terreno. Já passamos por fases de acomodação, hoje a coisa está tranqüila. E eu tenho certeza de que essa sucessão passa ao largo dos profissionais da Globo, totalmente. É uma decisão de família.


PLAYBOY — E a sucessão do Boni?


BONI — Passa pela sucessão familiar. A sucessão, que certamente mudará a estrutura da empresa, não é apenas uma substituição de pessoas. Acho que ter um só executivo cuidando de engenharia, produção, jornalismo, programação não convém à empresa. Se pudesse dar um conselho — e não pretendo indicar meu sucessor —, seria o de fracionar esse cargo, reestruturá-lo, Não tem sentido o mesmo comandante diante de urna empresa de produção e outra de exibição. lima reestruturação inteligente, racional da empresa, passa pela extinção do meu cargo.


PLAYBOY — O horizonte da sua saída não passa de dois anos...


BONI — Um, dois anos, ainda. Não tendo a possibilidade de ter uma coisa minha, de montar uma estrutura em que tenha liberdade para viajar, para formar meus filhos, então eu prefiro ter uma coisa menor. Para quem veio de Osasco, eu não tenho necessariamente de ser o Roberto Marinho — nem tenho essa pretensão.


PLAYBOY — O Boni já está bom?


BONI — Ou um pouco menos. Estou disposto a ser um pouco menos, desde que com mais liberdade. Sou muito curioso, não li tudo que quero ler, nem vi o que quero ver. Até por uma questão psicológica, facilmente compreensível, eu quero isso: como eu perdi meu pai muito cedo, aos 7 anos, tenho um sentimento de resgate em relação a meus filhos que eu não consegui realizar. Não gostaria de ficar além de 25 anos de Globo já tenho 23. E nesses dois anos gostaria de propor uma saída inteligente. E, se não sair da Globo, ocupar nela um outro cargo. O que eu estou fazendo agora é muita coisa.


PLAYBOY — É excesso de poder?


BONI — Não, o poder é nenhum. É excesso de responsabilidade! Excesso de poder tem o empresário. Eu só tenho a tarefa. Sou um carregador de batata quente! Chega, estou com a mão queimada...


PLAYBOY — Essa entrevista demole algumas imagens do Boni — a metralhadora giratória, o supersalário, o todo-poderoso...


BONI — Não são imagens, são mitos. Quem trabalha na Globo há 23 anos e ajudou a criar um império desse tamanho, se não tiver um tamanho proporcional a esse império, é porque tem alguma coisa errada [risos]. Ou da empresa em relação a mim, ou de mim em relação a ela...


PLAYBOY — Você se sente um paulista?


BONI — Virei carioca. No bom sentido... Mas, quando vou a São Paulo, me sinto em casa.


PLAYBOY — Quando sair da Globo, volta para São Paulo?


BONI — Ah, eu gostaria! Por dois traumas básicos: primeiro, porque trabalhei muito no Rio e ganhei menos do que merecia. Segundo, porque a gente aqui convive mais de perto com a violência. A minha casa no Joá eu tive de vender, quase dar. Acho difícil mudar logo. Mas o cargo de diretor regional da Globo em São Paulo está vago. Se não for preenchido nos próximos dois anos, até que seria urna boa...


POR PAULO MARKUN

FOTOS FERNANDO SEIXAS



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