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HOWARD HUGHES

Perfil


O otário cheio da grana

Como um homem de negócios incompetente chamado Howard Hughes virou o mais famoso bilionário da história


Por NEAL GABLER


Desde o instante em que irrompeu na cena americana como um jovem milionário caipira, no final da década de 1920, Howard Hughes parece ter capturado a imaginação de seus conterrâneos e, por mais de meio século, nunca perdeu sua posição como um dos mais lendários excêntricos do país. Hughes não só ocupou as manchetes com suas aventuras amorosas como também inspirou romances e peças de teatro, um filme, Melvin and Howard, e pelo menos meia dúzia de outros que não chegaram à fase de produção, com todo mundo, de Warren Beatty a Jim Carrey, estudando proposta para interpretá-lo. Agora, quase 30 anos após a morte de Hughes, em 1976, o diretor Martin Scorsese traz sua história para a telona no filme O Aviador, comprovando o fascínio que ele ainda exerce sobre os americanos. Dentre as inúmeras questões que giram em torno dele, a persistência de sua lenda talvez seja a mais intrigante. Como alguém tão pouco realizado e desprovido de charme, magnetismo, compaixão e decência conseguiu cativar o país todo e se tornar um de seus mais duradouros ícones culturais?


Uma explicação pode estar nas raízes de Hughes. Quando surgiu corno figura nacional, parte de seu fascínio se devia ao modo como parecia refletir a essência do americano comum e o quanto ele confirmava o potencial do país. Hughes era do povo. Seu pai, Howard Hughes Sr., embora tivesse urna formação privilegiada, chegando a freqüentar Harvard antes de largar os estudos, começou a vida como trabalhador nômade envolvido em prospecção de petróleo antes de fazer fortuna já mais velho, patenteando e fabricando uma broca capaz de esmigalhar rochas e alcançar depósitos de óleo. Essa broca o tornou milionário. Nascido em Houston, onde se concentravam os negócios do pai, Howard Jr. foi um menino neurastênico, tímido e doentio, e um improvável sucessor de seu vigoroso xará. Porém, quando a mãe do jovem Howard faleceu enquanto se recuperava de uma cirurgia e, menos de dois anos depois, um ataque cardíaco levou subitamente seu pai, o jovem de 18 anos se tomou o único herdeiro da Hughes Tool Co. e de toda a fortuna acumulada pelo pai.


A história de Hughes era fascinante. Um jovem órfão com muito dinheiro, ele era um selfmade man de segunda linha e tinha a aparência perfeita para esse papel. Alto — 1,93 metro — e desengonçado, com um ar acanhado, ele exibia uma rudeza sedutora à maneira de Gary Cooper. Não havia nada de dândi nele. Em Houston, era obviamente um bom partido e rapidamente cortejou e conquistou uma bela herdeira local, pertencente à família Rice, uma das mais ilustres da cidade, casando-se com apenas 19 anos. Logo após a cerimônia, bandeou-se com a noiva para Hollywood, onde teve início de fato sua lenda.


Hughes era descrito como tímido, reservado e solitário, um homem que abominava os holofotes. É surpreendente, portanto, que tenha se radicado em Hollywood. Na realidade, apesar da imagem circunspecta cultivada pelo próprio Hughes, sua decisão de ir para Hollywood revelou o graal que perseguiria toda a vida e os artifícios de que lançaria para alcançar seu objetivo. Não bastava a fortuna para colocá-lo no foco das atenções, sobretudo quando associada à imagem e à aparência tão despretensiosas. Ele poderia ter se contentado com o papel do texano ingênuo e abastado, freqüentando as altas-rodas e as colunas sociais, mas logo percebeu que essa seria uma fama pífia. Acima de tudo, Hughes tinha um talento intuitivo para avaliar exatamente o que levava uma pessoa às manchetes e à consciência americana. Assim que completou 20 anos, ele decidiu — talvez como recompensa pela atenção que lhe fora negada pela morte prematura de seus pais — transformar-se numa celebridade e, com isso, estabeleceu um modelo para todos os que acalentavam o mesmo sonho. Aliás, Hughes criou a concepção moderna de celebridade, dedicando toda a sua existência a ela e tornando-se protagonista de uma das mais longas novelas em cartaz nos Estados Unidos.


Hughes criou a concepção moderna de celebridade, dedicando toda a sua existência a ela e tornando-se protagonista de uma das mais longas novelas em cartaz nos Estados Unidos

Ao mudar-se para a Califórnia em 1925, Hughes facilitou seu acesso à maior máquina publicitária do mundo: o cinema. Embora não conhecesse ninguém nos estádios, exceto um tio que era um bem-sucedido roteirista, ele se propôs a ser produtor de filmes — e não apenas um produtor, mas, como viria a confessar, "o mais famoso produtor da indústria cinematográfica". Sua primeira investida foi um fiasco: encurralado por um ator-diretor sem importância chamado Ralph Graves, produziu Swell Hogan, um filme tão ruim que nem sequer chegou a ser lançado. A segunda tentativa, uma comédia intitulada Everybody's Acting, teve um lucro modesto. Mas o terceiro filme, Two Arabian Knights (Dois Cavaleiros Árabes), foi um grande sucesso e proporcionou um Oscar ao seu diretor, Lewis Milestone. Hughes, contudo, continuou no anonimato. "O otário cheio da grana", como o descreveria mais tarde o roteirista Ben Hecht.


No quarto filme, Hughes não mediu esforços para se fazer notar. Como sempre se interessara por aviões, resolveu produzir um filme sobre pilotos da Primeira Guerra Mundial que incluísse deslumbrantes cenas aéreas. Com os recursos da Hughes Tool Co., dinheiro não era problema e disciplina, aparentemente, tampouco. As filmagens de Hell's Angels foram de outubro de 1927 até 1930. Ele chegou a trocar de elenco no meio da produção, pois decidiu fazer um filme sonoro e não havia como aproveitar a atriz principal, cujo sotaque era muito carregado (o novo papel ficou para a então desconhecida Jean Harlow). Quando finalmente concluiu o filme, havia consumido três anos de trabalho, 4 milhões de dólares, uma soma exorbitante na época, e 100 metros de filme para cada metro aproveitado (a proporção usual era de dez para um). A reação ao filme foi morna, embora os críticos tenham ficado maravilhados com as cenas de combate aéreo, mas isso não era o que importava. Hughes tinha plena consciência de que Hell's Angels não era para ser visto, e sim para ser divulgado, para conferir notoriedade a seu produtor — por mais dispendiosa que tivesse sido a produção, era um excelente negócio. Um filme que teria enterrado a carreira de qualquer outro alçou Hughes à condição de um dos luminares de Hollywood — ele era o único que podia bancar Hell's Angels.


A essa altura, sentindo-se abandonada, sua jovem esposa havia retornado a Houston e se divorciado dele, mas Hughes já explorava outro caminho certo para a celebridade: as aventuras amorosas. Seu caso com a atriz Billie Dove, então casada com um diretor estúpido e violento chamado lrwin Willat, logo se tornou público. Mas, em vez de escandalizar, o relacionamento parecia divertir a platéia. A notoriedade que alcançara como jovem milionário ou como produtor extravagante se intensificou graças ao seu novo papel de playboy. No fim das contas, Dove o deixou, mesmo depois que ele pagou a Willat uma bela recompensa para conceder o divórcio. No entanto, casamento, amor e até sexo não pareciam ser fundamentais. O que importava era dar continuidade à sua saga pessoal e manter-se presente na consciência do público.


Hughes poderia ter continuado nessa toada, produzindo filmes e mantendo relacionamentos com belas mulheres, e foi o que fez. Nos 20 anos seguintes, sua lista de conquistas incluiria Gloria Vanderbilt, Ava Gardner. Ginger Rogers, Lana Turner, Linda Darnell e, talvez seu caso mais famoso, Katharine Hepburn, a quem levava em seu hidroavião até Long Island, onde nadavam nus. O problema, Hepburn escreveria mais tarde, era que ambos queriam ser famosos e essa obstinação mútua condenou o relacionamento, tornando impossível qualquer concessão de um para o outro. Na verdade, com seu extraordinário dom para atrair atenção pública, Hughes percebeu que o romance não era uma forma de celebridade mais duradoura que a riqueza. Ele precisava de algo mais.


Se a primeira cena do filme da vida de Hughes foi a do herdeiro ingênuo, a segunda, a do magnata de Hollywood, e a terceira, a do homem dos romances, ainda lhe restava a possibilidade de fazer o papel do aventureiro. Fascinado por aviação desde a infância, Hughes obteve seu brevê com apenas 22 anos e chegou a pilotar nas filmagens de Hell's Angels. No início da década de 1930, fundou a Hughes Aircraft para produzir equipamentos aeronáuticos e passou a reformar aviões a fim de entrar em competições (ele adotou seu famoso bigode para esconder as cicatrizes de um acidente aéreo). Na época, após a travessia solitária do Atlântico por Charles Lindbergh em 1927, os aviadores se tornaram as maiores celebridades, tão famosos quanto atletas ou astros de cinema e mais exaltados. Trocando Hollywood pelos céus sem pestanejar. Hughes empenhou-se em romper recordes.


Hughes em 1937, a bordo do avião em que bateu o recorde mundial de velocidade num vôo entre a Califórnia e Nova Jersey.

Com os recursos de que dispunha, não foi difícil. Em 1935, ele estabeleceu o recorde de velocidade para vôos sobre terra firme. No ano seguinte, bateu outro recorde, desta vez com um vôo transcontinental, percorrendo a distância entre Burbank, na Califórnia, e Newark, em Nova Jersey, em nove horas e meia (um ano depois, reduziria o próprio tempo em duas horas). Mas o que tornou Howard Hughes um nome conhecido, não apenas dos fás de cinema e dos leitores das colunas sociais mas de gente de todos os Estados Unidos, foi a façanha de ter completado — em três dias, 19 horas e 17 minutos — uma volta ao mundo em julho de 1938. Tal como Lindbergh em 1927, Hughes foi recebido em Nova York como um herói, desfilando pela cidade sob os aplausos de 1 milhão de pessoas — a primeira de várias homenagens por todo o país. Os jornais exaltaram sua bravura e também sua modéstia. Ele virou uma espécie de Ulisses nacional, que conseguira incorporar duas qualidades veneradas e cada vez mais divergentes: a celebridade e o heroísmo.


Na condição de novo herói da aviação, Hughes iniciou uma carreira como empresário dos céus, assumindo o controle acionário das empresas aéreas Transcontinental e Western, que depois se fundiriam na TWA. E começou a desenvolver aviões experimentais de uso militar. Quando a Segunda Guerra eclodiu, foi contratado pelo governo para construir três enormes aviões de transporte (só um seria de fato fabricado) e um novo aparelho de reconhecimento. Todas essas atividades assinalaram outra seqüência no filme da vida de Hughes. De celebridade e herói, ele se transfigurou em audacioso empresário. Ou seja, ele se transformou, em pouco tempo, de Don Juan em Charles Lindbergh e depois em Donald Trump.


Hughes, porém, revelou-se aquém de Trump. A maioria de seus projetos deu prejuízo, às vezes catastrófico. Muitos de seus contratos com os militares não foram cumpridos e Hughes foi obrigado a se defender diante de uma comissão de inquérito no Senado. Ao retomar a produção de filmes e adquirir a RKO Pictures em 1948, ele logo levou o estúdio à falência e teve que vendê-lo com imenso prejuízo. No fim da vida, foi fraudado em milhões de dólares por um vigarista, perdeu 90 milhões de dólares ao apresentar um orçamento equivocado para fornecer um helicóptero ao Exército e viu-se obrigado a pagar quase 150 milhões ao perder um processo referente à TWA. Para manter as outras empresas, recorria constantemente à lucrativa indústria de brocas, até que a situação desta também se tornou precária.


Apesar de toda a incompetência, foi sua imagem como empresário que mais se enraizou na consciência dos americanos durante os primeiros anos do pós-guerra. Embora fosse um empresário lamentável, descuidado e desatento, ele encarnou com perfeição a "idéia" de um empresário: intrépido em tempos de cautela, iconoclasta em tempos de conformidade burocrática, exuberante em tempos de homens apagados de ternos cinzentos. Em geral, os ricos, os poderosos e os célebres tornam-se alvos de uma certa projeção, proporcionando às pessoas comuns um triunfo de segunda mão. Nesse sentido, o apelo de Hughes era especialmente intenso, porque ele exercia seu poder de modo absoluto e caprichoso e porque dava a impressão de não estar sujeito a nenhuma regra além das próprias. Tudo estava ao alcance de Hughes: dinheiro, mulheres, poder, contatos importantes e até mesmo uma espécie de coragem viril, que despertava a inveja de todos. Como disse Katharine Hepburn, "ele podia fazer o que quisesse".


Hughes quis construir o maior avião do miando e o construiu, embora fosse tão colossal que mal saía do solo. Decidiu promover a carreira de uma jovem atriz inexperiente de seios generosos chamada Jane Russell e o fez — dando-lhe um papel no filme The Outlaw (O Proscrito), exibindo seu decote no cartaz e divulgando o filme de maneira incessante, à revelia dos censores e críticos. No fim das contas, o grande tema do filme de vida que Hughes criou para si mesmo e aquele que tocava o público era a liberdade absoluta.


A comprovação do quão estimulante esse conceito podia ser veio depois que Hughes, que sempre teve um temperamento frágil, sofreu dois colapsos nervosos, um em 1944 e outro em 1958. O primeiro o forçou a uma reclusão parcial (não há nenhuma foto confirmada dele após 1952). O segundo o transformou definitivamente em eremita. Mesmo assim, por mais errante e imprevisível, Hughes continuou a manipular cordões a partir de sua toca secreta, o que só reforçou a imagem de poder que o tornara tão fabuloso e fascinante para o mundo. Ele comprou e vendeu empresas. Impulsivamente, mudou-se para Las Vegas ocupando a cobertura do hotel Desert Inn e, quando sua presença tornou-se inconveniente e o proprietário tentou despejá-lo. Hughes reagiu comprando o hotel e iniciando uma orgia de gastos que resultou na criação de um império de cassinos. Ele ofereceu 1 milhão de dólares ao presidente Lyndon Johnson para que interrompesse os testes nucleares no estado de Nevada e, depois, na campanha presidencial de 1968, contribuiu com 100 mil dólares cada a Richard Nixon e seu candidato a vice com o mesmo objetivo. Também conspirou com a máfia e até assinou uns contrato com a CIA para fornecer-lhes um navio capaz de recuperar um submarino soviético naufragado.


A diferença entre o novo Hughes e o antigo era que ele não se sentia mais constrangido por nenhum tipo de decoro. Se ele fora o "otário cheio da grana" em seu período hollywoodiano, agora era o louco cheio da grana, ou, pelo menos, era assim que os meios de comunicação o caracterizavam. Boatos davam conta que vivia entupido de codeína, escondia-se atrás de cortinas espessas, estatelava-se, completamente nu, em uma poltrona e assistia aos mesmos filmes antigos várias vezes. Ou ficava sentado na privada por dias inteiros. Ou exigia que tudo que tocasse fosse manuseado com lenços de papel, pois tinha fobia de germes. Ou mandava guardar em garrafas toda a sua urina. Ou simplesmente definhava até ficar com menos de 50 quilos, enquanto suas unhas transformavam-se em garras e seu cabelo chegava aos ombros. Até sua tão alardeada vida amorosa agora estava envolta em mistério. Casara-se com a atriz Jean Peters, em 1957, para impedir, segundo alguns, que os executivos de sua empresa o internassem num hospício, mas ele e Peters só conviveram esporadicamente, e não se sabe se faziam sexo. A única coisa certa é que, no final da década de 1950, Hughes deixou de ser Donald Trump para se tornar Michael Jackson.


No final da década de 1950, Hughes deixou de ser Donald Trump para se tornar Michael Jackson

Embora seja impossível dizer o quão insano estava, se sua intenção era manter sua saga viva e seu nome nos jornais, ele não poderia ter se saído melhor. Tornou-se ainda mais atraente ao afastar-se dos olhos do público, uns dos benefícios da escassez. E continuava a cuidar de sua imagem. Quando um jornal de Las Vegas fez referência a ele como "milionário", Hughes se ofendeu. Fazia questão de ser chamado de bilionário. Do mesmo modo, quando o escritor Clifford Irving alegou ter entrevistado Hughes para uma biografia que lançaria, Hughes concedeu uma entrevista por telefone a fim de contestar Irving. Se alguém fosse controlar a imagem de Howard Hughes, essa pessoa seria o próprio Hughes.


Para alguns, a morte de Hughes foi uma parábola sobre as limitações da riqueza e do poder. Embora fosse bilionário e tivesse um batalhão de empregados, morreu por negligência quando viajava de Acapulco para um hospital em Houston de avião, longe de qualquer amigo ou parente, pois não tinha mais amigos e não se relacionava com o que restara de sua família. Sua morte desencadearia mais uma seqüência no filme de Hughes, pois vários pretendentes se digladiaram para ficar com sua fortuna. Hughes certamente teria apreciado a confusão. Afinal, ele era um mestre do entretenimento — mesmo, pelo visto, após sua morte. Sempre fez questão de proporcionar uns bom espetáculo. Mas também era um mestre da psicologia, que conhecia o verdadeiro sentido do espetáculo. Desde o início, Hughes percebeu que as pessoas queriam partilhar da torrente de poder que o impulsionava e que se identificariam com um homem que podia fazer tudo o que quisesse, especialmente se, em vez de se vangloriar, ele fosse ostensivamente discreto e modesto. Hughes proporcionou uma conexão com aquilo que todo americano desejava: a capacidade de impor a própria vontade ao mundo, por mais que essa vontade exigisse. E é por isso que sua história de onipotência continua a repercutir até hoje. Em Hughes, que circulou por tantas esferas e realizou sua vontade de tantas maneiras, os EUA vislumbram o próprio poderio demente.


ILUSTRAÇÃO OMAR GRASSETI



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