top of page

OS 10 REIS QUE MUDARAM O MUNDO

Reportagem



Eles integram a suprema dinastia do rock


Por Marco Antonio de Lacerda


Em meados da década de 50, quando surgiu, rock'n roll era um escândalo sob medida para as cinturas totalmente sem jogo da época. O ritmo escaldante que vibrava nos quadris de Elvis Presley enfeitiçava adolescentes na mesma medida em que tirava o sono dos pais. Com os Beatles, na década de 60, o rock ficou importante: ganhou o status de força revolucionária. Hoje, rock é uma instituição, uma megaindústria com filiais nos quatro cantos do planeta — de Berlim a Mogi das Cruzes, da Havana-Ainda-Comunista à Varsóvia-Alérgica-a-Marx. É a música que mais se ouve no mundo. É permitido não gostar do rock, mas imperdoável confundi-lo com valsa. Nada impede que alguém atravesse a vida insensível à sofisticação cromática de uma sonata de Beethoven ou à elaborada arquitetura de uma fuga de Bach. Mas só uma pedra resistiria ao balanço incendiário da backbeat dos Rolling Stones ou deixaria de se emocionar diante da força poética de certas canções de Bob Dylan.


Para esta edição que circula simultaneamente à realização do Rock in Rio, PLAYBOY convidou dez dos melhores críticos brasileiros para elegerem os dez nomes mais importantes da história do rock. O resultado está nas páginas seguintes: uma galeria de mitos, estranhos heróis que parecem ter aprendido a cantar e dançar antes mesmo de saber falar e andar. O critério para a seleção baseou-se mais na contribuição de cada um para o desenvolvimento do rock do que no número de discos vendidos ou na duração de sua popularidade. Portanto, não se surpreenda ao constatar a ausência na relação de nomes como Michael Jackson, um garoto que, com um único disco, bateu todos os recordes de vendagem da história da indústria fonográfica. Tampouco se assuste com a presença na mesma lista do Velvet Underground, um grupo cujo primeiro LP, dizem, vendeu apenas três cópias, todas compradas por amigos de Lou Reed. A seleção que apresentamos a seguir certamente comete injustiças. Afinal, não é difícil ser injusto quando se tenta escolher o rei num território onde é grande demais o número dos que têm os dois olhos. Uma coisa é certa: apesar das eventuais omissões, sem as presenças que selecionamos jamais haveria rock'n roll. Mais certo ainda: a verdadeira lista dos dez melhores do rock será sempre aquela que cada um de nós leva gravada na porção-vinil dos nossos corações e mentes. É dela que, às vezes, salta uma canção e a gente se pega cantando sem mais nem por quê.


Elvis Presley

Um lenda escrita com os quadris


Tárik de Souza / Jornal do Brasil


O primeiro Elvis Presley a gente nunca esquece. Aquele que pagou 4 dólares em julho de 1953, no Memphis Recording Service, da Avenida Union 706, e gravou um disquinho de presente de aniversário para mama Gladys, com My Happiness de um lado e When my Heartaches Begin de outro. O rock'n roll, o poder jovem e a mudança de comportamento do planeta começaram nesses vagidos.


Eles seriam aperfeiçoados um ano depois no intervalo de uma gravação formal com Prestey, o guitarrista Scotty Moore e o baixista Bill Black. O candidato a cantor topetudo, ex-caminhoneiro da Crown Electric Co., emburacou num improviso seguido pela dupla, cavalgando o tremolo da voz como num rhythm & blues invertebrado com pitadas country de arrepiar os cabelos de Sam Philips, o dono da gravadora Sun, que apostava num novo astro. Cabreiro de assustar as rádios com aquele mix explosivo de tônus branco em pele negra num país conflagrado pelo racismo, Philips mesmo assim pisou no acelerador. O programa Red, Hot & Blue irradiou That's Alright Mama às 9h30 do dia 10 de julho de 1954 e imediatamente pipocaram pedidos de bis. Começava uma avalanche que transformaria Elvis Presley no maior vendedor de discos do planeta em todos os tempos.


Com um disquinho gravado em 1953, Elvis não apenas fundou a dinastia do rock. Criou também o mais durável bem de consumo americano

O detonador do ritmo que revolucionaria a música pop, pegando de surpresa toda a indústria do entretenimento, além dos pais caretas e das mães possessivas, sofreria um desvio de rota no período em que serviu ao exército num posto avançado na Alemanha Ocidental em Friedburg, em 1958. Seu reino ainda duraria vinte anos, do apogeu rebelde à decadência balofa sob os letreiros de Las Vegas, na vala comum de seu arqui-inimigo Frank Sinatra.


Durante esse trajeto, ele se transformaria num mito santificado post-mortem (sempre aparece quem diga que ele nunca morreu, vide o emblemático filme Mistery Train , de Jim Jarmush) e sua casa em Graceland, num pátio de milagres. Ao mesmo tempo, o rock se instalava como revolução permanente. Do grito de garra de Little Richard, Tutti Frutti em diante, passando por Jailhouse Rock, Hound Dog, King Creole, Heartbreak Hotel, Blue Suede Shoes, Don't Be Cruel e baladas como Love me Tender e o célebre cover de Blue Moon, Elvis alargou os horizontes da música adolescente. Serviu-se ao mesmo tempo do gospel, do rhythm & blues e do country, antes de se transformar num clone de si mesmo, a ponto de ingerir dosagens recordes de pílulas e apresentar-se uma noite na Casa Branca para o presidente Nixon como um soldado voluntário no combate às drogas.



Pior para os fatos. Depois de morto, ele continuou vendendo discos e influenciando pessoas como o pós-punk inglês Declan McManus, que adotou o nome de Elvis Costello. Ou a alucinógena figura de Tortelvis, do Dread Zeppelin, que disse ter recebido do Rei do Rock a missão de transformar em reggae a obra da banda mãe do heavy metal. Mediunidades do cavalo de Tróia da música negra na AmeriKKKa branca.


The Beatles

E o mundo nunca mais foi o mesmo


Ana Maria Bahiana / Correspondente em Los Angeles


Há tantos modos de contar esta história. Enciclopédico/musical: o rock'n roll, falecido a golpes de xarope na ativa América, emigra para a Inglaterra e renasce no mais improvável dos berços, Liverpool.


Sócio/cultural: a Inglaterra do pós-guerra, mortalmente ferida em seu senso de humor, sua economia e suas ambições imperiais, descobre que pode ser jovem como talvez nunca tivesse sido.


Sócio/econômico/musical: a indústria fonográfica, que até os anos 50 considerava o mercado juvenil como virtualmente inexistente, tem seu apetite aguçado por Elvis Presley, Chuck Berry e semelhantes e se reinventa à força de algo que, até então, tinha se provado inócuo — o "conjunto de guitarras".


Estético/sócio/musical: quatro rapazes razoavelmente bem apessoados são empacotados e vendidos como o primeiro produto de massa legitimamente internacional do pop; a meio caminho em sua trajetória juvenil (uma linha reta destinada à autodestruição que, num futuro não muito distante, passaria a ser navegada por grupos como Monkees, Menudos, New Kids on the Block e quejandos), dão uma freada histórica e conseguem renascer como uma das mais influentes, sólidas e permanentes forças motrizes do rock.



Todos esses modos são legítimos. Todos são verdadeiros. Todos explicam e justificam alguma coisa, lançam alguma parcela de luz sobre algo tão vasto e tão profundo que, hoje, mais de duas décadas e muitas dúzias de livros e ensaios depois, ainda permanece misterioso e intrigante: como é que foi gerada essa coisa que hoje chamamos de rock e tomamos como fato consumado, e como e por que os Beatles são parte indissolúvel dela?


Quatro garotos se encontram na rua. Tocam em garagens, quartos, clubinhos, biroscas. E mudam o mundo

Por isso, de todos os modos de contar esta história, eu prefiro o que não é científico, o que não é exato, o que é tão misterioso quanto o fato em si, tão misterioso quanto a vida: quatro garotos se encontram na rua, tocam em garagens, quartos, depois da escola, em clubinhos, algumas biroscas; e mudam o mundo. Não faz sentido.


Faz tanto sentido quanto qualquer uma das outras coisas absurdas (e cruéis) de que a História está repleta e por isso, porque é legítima e absurda mas repleta de outros signos — amizade, lealdade, juventude, esperança, audácia —, eu gosto dela. Gosto de imaginar o quanto desta intimidade foi vivida depois, por outros garotos, em outras garagens, em outros sábados à tarde. Alguns tornaram-se astros milionários. Outros deixaram o sonho de lado para se tornar banqueiros, escriturários, médicos. Mas, porque um dia quatro garotos de Liverpool se tornaram amigos e fizeram barulho até que o mundo os ouvisse, a possibilidade ficará para sempre suspensa no ar, bela e prenha, como um acorde. Para mim, isso é rock'n roll.


Bob Dylan

Palavras com a força de um trovão


Jimi Joe / O Estado de S. Paulo


Entre o impenetrável e o profético, Bob Dylan ocupa um posto permanente no panteão do rock and roll. Por todas as coisas que ele já fez desde que desembarcou em Nova York, no finzinho dos anos 50, Dylan está acima de qualquer crítica, muito além de qualquer suspeita. Sempre inquieto e em constante mutação sonora, Dylan é o homem que conquistou platéias e subverteu o padrão da folk music americana no começo dos anos 60 com suas poesias repletas de sarcasmos.


Bob Dylan, que roubou o sobrenome do poeta Dylan Thomas, nasceu na pequena cidade de Duluth, Estado americano de Minnesota, e foi criado como mais um filho da família judaica dos Zimmerman. Fiel à sua geração, Dylan cresceu embalado pelo rock dos 50, com direito à jaqueta de couro e motocicleta. Mas foi com uma guitarra folk essencialmente acústica e uma harmônica tocada à moda dos velhos bluesmen negros do Mississipi que Dylan invadiu os ouvidos da América com seu primeiro álbum, em 1962.


Dylan é o mais influente poeta de sua geração. Com uma poesia irada, ele ganhou lugar permanente no panteão do rock

A partir daí, Dylan foi deificado por uns e execrado por outros a cada mudança de rumo. O primeiro LP mostrava o rapaz descoberto por John Hammond nos bares do Greenwich Village mais como responsável por uma releitura fundamental da folk music do que como compositor, embora ali já estivessem plantados alguns frutos como a respeitosa Song to Woady, testemunho de sua adoração pelo ídolo folk Woody Guthrie, e a irônica Talkin' New York, uma visão dos primeiros dias de um recém-chegado à tentação paradisíaca que era a Big Apple. O segundo álbum, The Freewheelin' Bob Dylan, exibia um poeta exuberante falando de temas que revestiam-se de novos significados. Blowin' in the Wind estava nesse disco mas seria sucesso nas vozes de Peter, Paul and Mary, um trio folk de concepções tradicionalíssimas em comparação com a poética dylaniana. Na verdade, o que Dylan estava injetando na música americana era um sentimento incomparável de zanga e uma visão crítica que beirava o profético em canções como A Hard Rain's Gonna Fall e dava universalidade gritante a temas como Don't Think Twice, Alright.



O primeiro turning point de Dylan veio em 1965 com Highway 61 Revisited. Bob Dylan recriava aqui o rock and roll com a força de um profeta irado. Like a Rolling Stone era o hino, mas o disco era todo uma obra-prima criada com a ajuda de músicos excelentes como o tecladista Al Kooper. O encontro com os integrantes da futura The Band fortaleceu o aspecto de reinvenção do rock. Os puristas do folk reclamaram e Dylan deu-lhes as costas. A partir de Highwyay 61, a carreira de Dylan tem sido uma mutação eterna, algumas malsucedidas, outras de extrema importância para o rock. Até hoje, Dylan parece estar constantemente redefinindo o rock, mesmo quando canta pela enésima vez clássicos corno Lay Lady Lay ou Knocking on Heaven's Door (recuperada para os ouvidos da nova geração pelo grupo Guns'N'Roses). As canções de Dylan parecem com canteiros de flores de fertilidade infinita: cada vez que ele volta a colher uma dessas canções antigas, ela parece adquirir novos sentidos.


The Rolling Stones

O diabo ganha jogo de cintura


Jean-Yves Neufville / Folha de S. Paulo


Não adianta querer evitar. Para falar dos Rolling Stones, você esbarra numa definição absoluta, totalitária. Algo como "o maior grupo do mundo ainda em atividade em 1990". Depois, considere o rastro de música, sexo, violência, símbolos de rebelião, amor, poder, provocação e morte que essa turma de ex-estudantes de classe média britânica deixou em 27 anos dedicados ao rock'n'roll, e compare. A história da civilização ocidental, nas últimas três décadas, se confunde com a dos Rolling Stones. Nenhum outro grupo chegou a ser tão representativo de uma época, durante tanto tempo.


Com quase trinta anos de estrada, Mick Jagger e os Rolling Stones ainda são a maior banda de rock de todos os tempos

Alexis Korner, amigo e mentor da primeira hora, disse: "As pessoas parecem usar os Rolling Stones como uma espécie de muro chinês, sobre o qual escrevem em segredo as mensagens e os slogans que querem... Mick (Jagger) e Keith (Richards) são muros brancos em que você projeta sua imagem, e, se eles não se comportarem da maneira esperada, você então se queixa de que não são o que deveriam ser..." O mundo quis os Rolling Stones meninos malvados — uma imagem que eles mantêm até hoje, apesar da meia-idade —, em contraposição aos "bonzinhos" Beatles. E Jagger & Richards refletiram esse desejo cantando a violência (Street Fighting Man) — muito antes de John Lennon cair na real e compor Revolution — e o sexo como forma de poder (Satisfaction), o sexo como amor (Lady Jane), o sexo como prazer (Honky Tonky Women), distância, loucura, realização. O mundo quis e os Stones devolveram sua imagem na forma de uma língua puxada estilizada, pronta para chupar ou zombar, como se preferir.



Ao contrário da maioria dos rock stars, os Stones não posaram para a galera. Sempre estiveram um passo à frente dos movimentos de contracultura (pelo menos até o começo dos anos 70), mostrando uma capacidade incrível para arrumar encrencas com a lei e o establishment. Não foi encenação quando Jagger e Richards foram presos em junho de 1967 por porte de drogas. Sofreram um processo de repercussões internacionais. Não foi brincadeira quando Brian Jones se internou num hospital, em dezembro daquele ano, arrasado pela "pop life", os excitantes, as mulheres, a música. E foi definitivamente trágico quando o mesmo Brian Jones deixou o grupo no dia 9 de junho de 1969 e foi encontrado morto três semanas depois, no fundo da piscina de sua casa. Tudo foi muito rápido. Dois dias depois, Jagger leu poemas de Shelley no Hyde Park, em Londres, diante de uma multidão de 40.000 pessoas, em lágrimas. Quatro dias depois, os Rolling Stones voltaram ao n." 1 da parada com Honky Tonk Women. Dezembro do mesmo ano: show em Altamont, Califórnia. Um Hell's Angel encarregado da segurança matou um jovem negro enquanto Jagger cantava Simpathy for The Devil.


Alguns ainda preferem evocar os amores de Mick Jagger: Marianne Faithfull, Bianca Jagger, David Bowie, Jerry Hall. Mas o que fica mesmo, para a eternidade, são os discos deste grupo que é, na opinião de um dos seus integrantes, Keith Richards, "uma imitação branca, londrina e barata do Southside Chicago Blues, e que deu certo".


Velvet Underground

Perversão embrulhada para presente


André Forastieri / Bizz


Se você perguntar a um crítico qual o grupo que mais influenciou o rock pós-1970, prepare-se para uma surpresa. Não são os Beatles, nem os Rolling Stones, nem qualquer outro figurão. Nove entre dez críticos responderão instantaneamente: Velvet Underground.


Fruto do encontro entre o instinto "rocker" suburbano de Lou Reed e a formação erudita do galês John Cale em 1965, o VU é um dos poucos nomes na história do rock que realmente merece o pomposo status de "lenda". A primeira razão para isso é a sua música — parte folk, parte atonal, parte barulho e extremamente intensa — e as letras de Reed, crônicas que passeiam pelo cotidiano da perversão e pela perversão do cotidiano. Entre os temas prediletos, drogas pesadas (como em Heroin, Waiting for My Man, White Light/White Heat e Sister Ray), devassidão (Venus in Furs) e qualquer outra coisa que horrorizasse simultâneamente o establishment e a contracultura paz-e-amor. A combinação de letra e música foi descrita na época como "o resultado do casamento secreto entre Bob Dylan e o marquês de Sade". Faltou citar Leautreamont e as experiências eruditas de John Cage, de quem John Cale se considera discípulo.


Outra razão para o mito: o Velvet foi o primeiro grupo de rock da história que encanou de fazer "grande arte" — e fez. Teve um papel fundamental na Exploding Plastic Inevitable, trupe multimídia chefiada pelo papa pop e mentor do grupo, Andy Warhol. Além do Velvet tocando ao vivo (e extremamente alto), os shows do E. P. 1. incluíam apresentação de filmes, projeção de slides, iluminação psicodélica e dançarinos — e tudo acontecia ao mesmo tempo. Um ataque aos sentidos sem nenhum precedente, cujo objetivo era, segundo Warhol, "não deixar nada para a imaginação".


Finalmente, há a imagem da banda. Reed, Cale, a diva germânica Nico (que só participou do primeiro disco), o guitarrista Sterling Morrison e a baterista unissex Maureen "Mo" Tucker fundaram um modelito imortal. Até hoje tem garoto por aí afetando o look roupa-preta-óculos-escuros-eternos-botinha-bico- fino-atitude-arrogante.



Se você é fã de artistas dos anos 80 como Nick Cave, Cure e Jesus and Mary Chain, conhecer o Velvet é indispensável. Os vinis básicos são os dois primeiros: The Velvet Underground and Nica (o "disco da banana", absolutamente clássico) e White Lighl/White Heat. Eles fizeram outros LPs muito bons, mas a mágica se desfez em 1968, quando John Cale deixou o grupo.


A carreira do Velvet foi breve e explosiva. Reed e Cale reuniram-se há pouco para uma homenagem ao mentor do grupo, Andy Warhol

Vinte anos se passariam até Cale e Lou Reed trabalharem juntos novamente. Foi em Songs for Drella, LP em homenagem a Andy Warhol. Um dos melhores discos do ano passado — e mais combustível para a lenda do Velvet Underground.


Jimi Hendrix

A flor negra que brotou de um sonho


Luis Antonio Giron / Folha de S. Paulo


Jimi Hendrix (1942-1970) foi a morte antecipada da guitarra. O músico de Seattle (EUA), nascido Johnny Allen Hendrix, teve cinco anos para perpetrá-la e se tornar mestre do instrumento. É um paradoxo se transformar no mestre de um objeto destruído. Essa destruição, porém, representou uma espécie de reencarnação da guitarra em algo perpetuamente convulsivo em busca da unidade impraticável — como os "membros espalhados do poeta" (disjecta membrae poetae) de que falava Horácio.


Por contigüidade — e fatalidade —, Hendrix também se converteu em mestre da própria morte. Daí o mito que fascina até hoje quem gosta de rock: o mestre assassinou o próprio conhecimento e pagou com seu fim, sem pacto ou perdão.


O músico morreu aos 28 anos, sufocado no próprio vômito depois de ingerir barbitúricos num apartamento em Londres, em 18 de setembro de 1970. Não teve perdão. Mas, por haver terminado no auge e na juventude, ganhou a impiedosa compensação da eternidade. Seus seis LPs oficiais e as centenas de discos lançados depois de sua morte — gravações piratas e sessões que registrou em seu estúdio nova-iorquino, o Electric Lady — são hoje matéria-prima e fetiche do pop.


Mesmo morto, Hendrix é um dos poucos sobreviventes da geração hippie. Em sua breve carreira, ele redefiniu a guitarra como instrumento

Os cinco anos de Hendrix se iniciaram em 1965, em Nova York. Fundou a banda Jimmy James and the Blue Flames e chegava, depois de quatro anos como acompanhante de vários astros (Little Richard, B. B. King, Ike e Tina Turner), à sua síntese.


Uma síntese utópica: quase pela primeira e última vez, a guitarra pôde ser pesada e complexa. A grosseria dos riffs (refrões instrumentais típicos do rock'n'roll) se somou à sutileza dos solos ao estilo blues e jazz. A síntese estava pronta quando chegou a Londres em 1966 e fundou o Jimi Hendrix Experience, com Noel Redding (baixo) e Mitch Mitchell (bateria).


Em 1967, a banda lançou os singles Hey Joe e Purple Haze, ambas composições de Hendrix, e o disco Are You Experienced? Em junho desse ano, apresentou-se no Monterey Pop Festival, nos Estados Unidos. Começava o mito. O público do festival assistiu, espantado, Hendrix criar a metafísica da guitarra. Ele seviciou as cordas, estuprou sadomasoquistamente o corpo do instrumento para fazer dele uma forma de vida, um jogo perdido de antemão. Finalizou o espetáculo incendiando sua Fender Stratocaster. Outras Fender sofreram em suas mãos em festivais como o de Woodstock, em 1969, quando tocou o hino americano num modo que mais tarde seria chamado de heavy metal.



Nessa procura do foco impossível da pureza, a guitarra sobreviveu ao torturador. Mas teve seqüelas. Nunca mais se libertou do ruído, que saiu do fundo do amplificador para integrar a linguagem do rock. Hendrix arrancou o ruído a fórceps. Hoje, os rappers e DJs fazem o inverso: o ruído é a norma e eles tentam, sem guitarra, tirar melodias e gravações alheias, inclusive de Hendrix. O pai da norma foi um transgressor.


Led Zeppelin

O metal em brasa


Arthur Dapieve / Jornal do Brasil


Reza a lenda que tudo começou por acidente, como convém a um Led Zeppelin. Jimmy Page era um virtuoso músico de estúdio que anonimamente alugava sua guitarra para grupos como o The Who, de Pete Townshend, ou o Them, de Van Morrison. Certo dia, enquanto trabalhava para os Kinks, de Ray Davies, um amplificador escangalhado deu o mote para a abertura rolo-compressor de You Really Got Me. Estava descoberto o rock pesado.


Naturalmente houve muita controvérsia sobre a paternidade de filho tão pródigo. O exame de sangue também acusou Jimi Hendrix. Mas a viagem do americano era outra. Algum tempo se passou, (bem) gasto por Page nos Yardbirds. Mas acabou-se o que era doce e ele, mais o baixista e fotógrafo Chris Dreja, se viu às voltas com um contrato por cumprir. Um anúncio de jornal trouxe aos dois as peças certas: Robert Plant (o vocalista, que marca presença no Rock in Rio II), John Paul Jones (baixo e teclados) e John Bonzo e Bonham (bateria). Peças azeitadas pelo esperto empresário Peter Grant.


Batizada às pressas como New Yardbirds, a trupe partiu para Copenhague, Dinamarca, em 17 de setembro de 1967. Na volta, em outubro, desembarcou direto no estúdio, já com o nome de Led Zeppelin (escolhido entre Mad Dogs e Whopee Cushion), para gravar seu primeiro LP. "Podíamos ter-nos chamado The Vegetables ou The Potatoes... O que significa Led Zeppelin? Não significa coisa alguma", disse Page.


A avalanche de som detonada pela guitarra de Jimmy Page, somada à potência vocal de Robert Plant, originou o estilo heavy-metal

Ainda assim, a nobre família alemã Von Zeppelin protestou contra o uso que aqueles "macacos cabeludos" faziam de seu sobrenome. O uso que eles faziam, o mundo logo passou a reconhecer, era transformar o rock e o blues em gêneros pesados, metalizados, que mais tarde, fundidos, seriam conhecidos como heavy metal. Foi mágica à primeira vista, recordariam seus quatro membros. Esse sentimento sobrenatural marcaria bons e maus momentos do Led Zeppelin, através dos anos 70.


Page sempre foi fissurado por mitologia céltica e magia negra. Chegou a comprar e morar num castelo que pertenceu ao ocultista Aleister Crowley, Boleskine House, às margens do Lago Ness, na Escócia. Plant era hippie místico. Um de seus filhos morreu de uma doença misteriosa em 76. Mas, foi Bonham quem pagou o pato, sufocado pelo próprio vômito de quarenta doses de vodca com laranja na casa de Page, a 25 de setembro de 1980. Com uma decência rara no show-biz, os três sobreviventes decidiram enterrar com ele o Led Zeppelin, no final daquele ano.



Tal gesto somente aumentou a lenda do grupo, encorpada por um álbum como Physical Graffiti e por um filme como The Song Remains the Same. Raros grupos de rock foram tão influentes, gerando uma prole tão vasta, que vai dos sérios Rush ou Living Colour aos hilários Kingdom Come (por falta de vergonha na cara pela chupação) ou Dread Zeppelin (por ironia mesmo, ao tocar as músicas de Page & Cia. em ritmo de reggae). E, ainda ano passado, a Stairway to Heaven velha de guerra foi incluída com sucesso numa trilha de novela global. Há mágica após a morte.


The Doors

Portas de uma nova percepção


Tom Leão / O Globo


Cavaleiros das tormentas, menestréis do lado escuro da ensolarada Califórnia, os Doors, passados 25 anos de sua formação e quase vinte da morte de seu vocalista Jim Morrison, permanece como um dos grupos de rock mais cultuados do mundo.


Surgido em meio ao movimento hippie/psicodélico, ele se destacava por não apresentar o visual flower power vigente. As maiores referências com o momento estavam apenas na origem do nome do grupo, inspirado no livro The Doors of Perception, de Aldous Huxley, e na sonoridade do órgão do tecladista Ray Manzarek.


Mesmo contando com músicos de qualidade como Manzarek, o guitarrista Robby Krieger e o baterista John Densmore (eles não tinham baixista), era o poeta e vocalista Jim Morrison quem roubava a cena, sendo o responsável direto pelo culto dispensado ao grupo.


Morrison, o único da banda não nascido em Los Angeles, chamava a atenção não só pelo seu estilo vocal inimitável até hoje, mas também por sua performance agressiva/sexual, que muitas vezes o fez sair do palco no meio dos shows, direto para a prisão, por seus gestos e palavras considerados obscenos.


The Doors cantavam o lado escuro da vida em plena Califórnia hippie. O vocalista do grupo, Jim Morrison, é uma expressão literária do rock

A bagagem de Morrison incluía poetas existencialistas, muito Nietzsche e um agudo senso inconformista, que o levava a escrever letras imortais como The End e When The Music's Over (referentes ao Vietnã), People are Strange (regravada pelo Echo and the Bunnymen, que ao lado dos Strenglers são dos grupos contemporâneos mais influenciados pelos Doors) ou L. A. Woman, espécie de resposta adulta às California Girls, dos Beach Boys. Tudo, das letras à postura, separava os Doors das demais bandas dos anos 60.


Assim como aconteceu ao poeta suicida Ian Curtis, do Joy Division, o culto a Jim Morrison extrapola o lado meramente musical, beirando o mórbido. Sua misteriosa morte em Paris, em 2 de julho de 1971, aparentemente de ataque cardíaco, nunca foi esclarecida, nem o corpo jamais visto (especula-se que Jim esteja vivo e escondido em algum lugar). Até hoje, seu túmulo, no cemitério de Père Lachaise, em Paris, é visitado dia e noite por fãs que realizam verdadeiros rituais bizarros de celebração a Jim.



O culto a Morrison e aos Doors tende a crescer, pois o cineasta Oliver Stone, de Platoon, está finalizando um filme sobre a vida do poeta, que teria a princípio Billy Idol no papel principal, impossibilitado por causa de recente acidente de moto. Por conta disso, Idol regravou L. A. Woman em seu recente LP, Charmed Life.


Quanto aos outros integrantes dos Doors, apenas Ray Manzarek ainda aparece vez por outra como produtor de bandas novas, como o X, que para ele foi a expressão musical mais parecida com os Doors surgida na América.


Os discos dos Doors continuam sendo reeditados e livros póstumos com poesias de Morrison, lançados. Eles nunca estiveram em tanta evidência.


David Bowie

As mil faces de um gênio


Okky de Souza / Veja


Não havia motivo para tanto barulho naquele início de 1972. Os ídolos do rock consagrados nos anos 60 brilhavam ainda alto, adorados em seus cabelos longos e seus jeans coloridos, faiscantes em suas poses de generais da revolução de costumes. Estava tudo calmo no front e não havia motivo para tanto barulho — a não ser o avanço da História. E a história do rock jamais seria a mesma depois que, naquela época, surgiu na Inglaterra um cantor, compositor e performer disposto a desafiar seus caminhos e virá-los de cabeça para baixo. Desde então, David Bowie — este o nome do cantor — se tornaria a principal antena de todos os movimentos que guiaram a música pop. Não só isso. Com a sucessão de personagens e alter egos que criou para divulgar sua imagem e conceber seus espetáculos, passou a encarnar a quintessência do estilo no rock, justamente numa época — a passagem dos anos 70 para os 80 — em que "estilo" passou a ser a palavra-chave no comportamento dos jovens.


David Bowie inventou uma coleção de tipos e alter egos para criar sua imagem e conceber seus shows. Com ele, o rock ganhou estilo

O David Bowie que há meses se apresentou no Brasil pode ser incluído entre os dinossauros do rock — essa nobre estirpe formada por artistas de mais de 40 anos (ele está com 43) que hoje perambulam pelo mundo colhendo os louros de inovações que já realizaram. É um roqueiro sóbrio, de discrição e humor tipicamente britânicos, e que nas entrevistas, quando as perguntas resvalam para o terreno pessoal, é obrigado a malabarismos para minorar a fama de loucaço angariada no passado. A verdade é que, como autêntico revolucionário do rock, Bowie aprontou tudo o que pôde. Em sua estréia nas paradas de sucesso, naquele longínquo 1972, ele se travestiu de Ziggy Stardust no show e no disco homônimos. Ziggy era um superstar intergaláctico que descia à Terra disposto a arrepiar os roqueiros locais. Conseguiu. Vestido com malhas justas de uma perna só, perucas vermelhas mirabolantes e um sol grudado na testa. Ziggy/Bowie aportou no rock com um dos trabalhos mais inovadores de seu tempo. Com ele, estava inventado o glitter-rock, ou rock-lantejoula, que nos anos seguintes se tornaria uma das principais correntes do gênero.



A partir daí, Bowie passou a abrir caminho para todas as tendências do rock. Seu LP Young Americans, de 1975, previa o casamento do rock com a soul music. Sua trilogia em colaborações com Brian Eno — os LPs Low, Heroes e Lodger —, a partir de 1977, introduz no rock a vertente eletrônica e computadorizada que hoje o domina. No início dos anos 80, quando a chamada new wave mobilizava roqueiros de todos os quadrantes, Bowie já exibia folha corrida na tendência com o LP Scary Monsters.



David Bowie não é o maior nome da história do rock, não coleciona recordes de vendagem ou de público e dificilmente pode-se dizer que seja uma unanimidade, como os Beatles. Nas últimas duas décadas, porém, nenhum outro músico ousou tanto e desbravou tantos caminhos para o gênero. Com sua guitarra e seus personagens mutantes, ele é a prova de que, em arte, por mais que se fale em crise de criatividade, há sempre luz no fim do túnel.


Prince

O rei está morto. Viva o príncipe!


José Carlos Camargo / MTV


Coisa boa é fazer o que se quer e ainda por cima todo mundo achar bárbaro. Nesse ponto, Prince deve ser um dos artistas mais felizes da história do pop. Um gênio. Um louco, um sábio, um maníaco, um exibicionista, um pouco de cada clichê. Mas, no mar de adjetivos fáceis já usados para definir Prince, falta o mais completo. Prince é insaciável.


Não existe outra maneira de explicar sua sede infinita de renovação. É com prazer cada vez maior que ele apresenta, a cada novo álbum, pequenas evoluções que os críticos e o público muitas vezes nem sabem como receber.


É fato que, com poucas exceções, como as trilhas sonoras para os filmes Purple Ruin e Batman, Prince nunca foi um grande sucesso comercial. É fato também que, com sua estratégia mutante, decifrá-lo é tarefa difícil. Uma das chaves é saber que o trabalho desse artista é muito mais prático do que intelectual. Em qualquer ponto que se comece, Prince é um pequeno enigma, capaz de confundir teóricos e deliciar quem simplesmente gosta de música inovadora.


De onde você quer começar? Pode ser de Parade, por exemplo, uma verdadeira enciclopédia de ritmos. De Girls & Bays a Mountains, cada faixa traz uma batida-surpresa. Desnecessário citar Kiss, certamente uma das músicas mais importantes da história do pop, e que na sua simplicidade assombrou o que qualquer outro músico estava fazendo por volta de 1986. Aliás, tão grande é o mistério de Kiss que sua originalidade assustaria em qualquer época. Ainda em Parade, Prince se permitiu ares de Beatles e fez outro pequeno clichê ao evocar o clássico Sgt. Pepper's sem muito disfarce. Mas ainda tem mais mistérios.



Se você quiser pode começar por 1999. O impacto de músicas como a própria faixa-título ou a sensacional Little Red Corvette redefiniram a dance music na década de 80. A primeira impressão é de que Prince está apenas variando sobre um mesmo tema. Quase tudo em 1999 é construído sobre a mesma base.


Prince sabe como disfarçar seu talento, sem querer se oferecer todo de uma vez. Por trás do hippismo em Around the World in a Day, por exemplo, ele esconde uma genial pesquisa de ritmos que mais tarde daria em algo como Sign o' the Times.


Como o rei Elvis, no começo dessa história, Prince deu uma nova cara ao pop e um novo balanço aos quadris do planeta

Depois da aclamação geral, Prince fez música para o filme Batman e despencou no conceito da crítica. Ceder a um esquema tão comercial quanto uma trilha sonora — Purple Rain ainda tinha a desculpa de ser um filme dele próprio — era dar passos para trás.


Seu mais recente lançamento é também uma trilha sonora. E o que ele faz para seu novo filme, Grafitti Bridge, é mais do que compor um fundo musical. Prince investe sério na sua pesquisa musical. Sim, ele está milionário, mas isso não pode dar a seus críticos o direito de achar que ficou preguiçoso.


Prince definiu a cara do pop contemporâneo. Ele muda de direção musical com a mesma rapidez com que muda de imagem. Dos babados da fase Raspberry Beret ao nu da capa de Lovesexy, Prince vem se divertindo com a brincadeira de ser sua própria piada.




128 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

コメント


bottom of page