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QUANTO MAIS FEIO MELHOR

Ficção



O que faria nesse tempo de horrores o homem que amara as mulheres mais lindas do mundo?


Por WILLIAM HARRISON


Agora, a Onda era todo mundo se mutilar. Atores famosos tinham removido as orelhas ou os olhos. Executivos tinham feito cicatrizes profundas nos rostos. Cirurgiões plásticos de Wilshire e Sunset — pelos preços altos de sempre — transformavam garotas em monstros: os dois olhos do mesmo lado do nariz, por exemplo, lábios separados da boca, a pele repuxada para baixo da face e do pescoço como um horrível celofane. Os mais invejados eram os que podiam se dar o luxo de praticar essas alterações.


Um velho maquilador morava em Beverly Hills, na Califórnia, quando essa nova histeria começou a circular. As palmeiras no seu jardim estavam secas, mas ele insistia em regá-las; terremotos tinham aberto clareiras em alguns bairros; a provisão de alimentos era suficiente e todos ainda possuíam um automóvel, mas a nova onda dominava as conversas e os noticiários.


Nos velhos tempos da beleza e do charme, o maquilador tinha lojas em toda parte, escritórios particulares em dois dos maiores estúdios de Hollywood, além de um excelente laboratório em casa. Atendia as estrelas nos seus iates e nos seus camarins, e todos concordavam que não havia outro igual na indústria, um mágico. Era conhecido como Mister Byron ou o Fabuloso Byron. Naturalmente, tinha muitas amantes. Podia inventar rostos tão belos que suas clientes não queriam jamais afastar-se de sua companhia.


Agora deixava-se ficar em casa — um local menos caro — procurando reviver suas palmeiras secas, tomando pílulas e ouvindo as notícias inquietantes do programa Os Marginais ou A Onda, na televisão.


Certa manhã, pouco antes de tomar o mingau e o suco de frutas, uma moça aproximou-se da porta da frente.


— Eu me chamo Sylvia — disse ela, pela tela da porta. — Não tenho dinheiro para uma operação permanente. Mas você é o Fabuloso Byron, não é mesmo?


O homem balançou a cabeça. Ninguém mais o chamara assim durante anos.


— Faça-me feia — pediu a moça.


Byron segurou a porta aberta para ela entrar. Estendeu a mão cinzenta e virou de leve sua cabeça, a fim de observar a curva do rosto. Sylvia era deslumbrante, certamente a jovem mais bonita que já tinha visto.


Deixou os lábios pronunciarem suavemente o nome dela.


• • •


Sylvia ficou morando na pequena casa na encosta do morro, no alto do vale escuro de neon, enquanto Byron refletia sobre seu pedido. Parecia abatida e perdida, uma outra duende da cidade, mas mesmo assim conservava a indiferença natural que só as belezas autênticas ou as talentosas possuem.


— Por que as pessoas fazem isso? perguntou-lhe Byron, a respeito da Onda.


Sylvia afastou a pergunta com um gesto.


A nudez combinava bem com ela. Tirava a roupa e enroscava-se no quartinho dele durante as horas quentes e serenas da manhã, escovando os cabelos compridos, comendo frutas e vendo televisão. Toda tarde, espichava-se nas espreguiçadeiras do quintal como uma leoa, casual e ofuscante, enquanto o sol bronzeava os pêlos do seu torso e dava a seus braços a cor de caramelo. À noite, deitava-se na cama dele. Dormiam afastados. Ele ruminava sobre o passado, enquanto ela sugeria algumas maneiras de arruinar o rosto. Byron era muito velho e pouco exigente, por isso ela permitia uma certa intimidade enquanto conversavam.


Certa manhã, Byron observou-a no momento em que assistia a um programa da série Os Marginais: bandos de delinqüentes que assolavam diversas regiões do país. Em locais obscuros do Wyoming, das Carolinas ou do Arkansas, atacavam comunidades, limpavam supermercados e realizavam execuções públicas. Sylvia apertava o peito e dava voltas no quarto olhando fascinada para a televisão. Sua excitação enchia o ambiente com uma pulsação elétrica estranha, que fez tremer as mãos cinzentas do homem.


Depois deste dia, fez seu primeiro trabalho de maquilagem. Alargou os orifícios do seu rosto: fez os olhos saltarem, as narinas cintilarem, a boca abrir-se exageradamente. Puxou a pele para trás e prendeu-a, como se ela fosse surpreendida dando um berro horrendo e aterrorizado.


— Medonho! — exclamou Sylvia radiante. Adorei!


• • •


Sylvia voltou para a cidade a fim de fazer fortuna e Byron foi de carro até a casa abandonada que tinha na praia, um pouco além de Malibu. Fazia anos que não ia ali, desde a época de suas amantes e das festas dos seus tempos de glória. Alugara a casa nos primeiros tempos do seu retiro, mas os novos moradores escreveram nas paredes, destruíram os móveis e arrancaram as tábuas do quebra-mar para acender a lareira. Lentamente — trabalhando de preferência na parte da manhã ele executou os reparos. Quando cansava, passeava pela praia. Gritos de gaivotas. Odores de maresia e de podridão oleosa. Cascos distantes de barcos vazios.


A terra é um deserto, concluiu o velho, e o último vestígio de vida está de novo na praia, todas as criaturas estão se arrastando de volta para o mar, derradeiro impulso de primitivismo. Pensou nos crustáceos orgulhosos. Só as coisas protegidas sobreviviam: defendidas nas suas armaduras tristes, absortas em si mesmas.


Ao entardecer, voltava para casa e preparava o jantar de Sylvia.


Pouco depois ela recebeu duas pontas em filmes e seu rosto recém-modificado enfeitou um comercial da televisão local. Com este primeiro sucesso tornou-se petulante e difícil, e nada do que Byron fazia lhe agradava.


— Quer mais mingau? — berrou ela.


Byron arreganhou os dentes falsos e mostrou as gengivas enrugadas. Com os dedos enfiados no canto da boca, gritou para ela, borrifando-a com suas palavras:


— Olha só que nojo! Você tem dentes brancos e perfeitos, mas eu tenho estes aqui — velhos, fracos e nojentos.


— Desculpe.


Ele aprendeu a ser ocasionalmente repulsivo. Certamente era a melhor maneira de lidar com ela.


• • •


A nova Onda dava energia às pessoas. Na natureza inteira a beleza parecia estagnada, languescente, contente consigo mesma, enquanto a feiúra tornava-se cada vez mais dinâmica. Os crustáceos de carapaça de pinças compridas, horríveis como pesadelos, continuavam vivos, cresciam, alimentados com a carne macia e adorável da paisagem, reproduziam-se.


Sylvia também: seu rosto novo tornou-a mais corajosa. Não se enroscava mais nas cadeiras do quarto ou do quintal. Em vez disso, circulava pelos aposentos da casa. Muito freqüentemente não aparecia à noite. Sua carreira incluía estranhos jantares, fins de semana na Baja, festas nas montanhas. Byron foi obrigado, por isso, a criar novas distorções para ela, cada qual mais horrenda que a outra, apenas para garantir suas visitas frequentes. Tudo para mantê-la perto.


Byron gostava de conversar com ela quando estava sem maquilagem, e adiava ao máximo a execução de novas fisionomias.


— Houve grandes belezas no passado — disse para ela, enquanto caminhavam. — Garbo, Bergman, Taylor, Christie! Sensuais, lascivas! E os rostos deste tamanhão na tela! Maiores do que qualquer coisa viva, grandes como a Esfinge, enormes como o Colosso de Rodes!


— Eu também gosto de me sentar na frente para ver as coisas maiores nos filmes — concordou Sylvia.


— Um belo rosto humano em proporções gigantescas — continuou falando Byron. — Este é o mistério e o poder do cinema!


— Você não pode encompridar minhas orelhas agora?


— Claro, faço tudo que você quiser Sylvia.


— Bem... quero que as orelhas dêem a volta no rosto... como tentáculos. Como se... os tentáculos... me asfixiassem.


A deslumbrante Sylvia pedia: "Quero orelhas medonhas, tentáculos no meu rosto"

• • •


Sylvia recebeu um papel num filme de monstros. A história passava-se durante o período da Inquisição na Espanha. O filme foi rodado em Barbados e no Texas; a equipe era inglesa; o produtor, árabe; o diretor, dinamarquês; e os cabeleireiros, latinos — o esquema normal. Só que o filme captou o espírito da Onda no auge da loucura, e foi um sucesso incrível de bilheteria. Depois disso, Sylvia recebeu dezenas de propostas enquanto Byron, finalmente reconhecido, voltou triunfalmente do seu retiro. Algumas semanas depois inaugurou o Fabuloso Center Byron, em Palm Springs.


Tudo ia bem, só que ele a estava perdendo.


Uma academia concedeu-lhe uma medalha com a inscrição:


A BELEZA É SUPERFICIAL

A FEIÚRA PENETRA NOS OSSOS

A BELEZA EVAPORA-SE COM O TEMPO

MAS A FEIÚRA É ETERNA.


• • •


Com a fortuna recente, Byron reformou completamente a casa na praia e voltou ao isolamento protegido por um muro alto, três dobermans e um punhado de guardas de rostos brutalmente lanhados.


Comia mingau, via televisão e meditava sobre os tempos normais. Sylvia, como se lembrava, era de Ohio. O pai de Byron trabalhara durante algum tempo para o Departamento de Saneamento de Phoenix, no Arizona, numa época em que havia famílias, diaristas, jogos de bola, hinos e carburadores.


Como não se sentia nada fabuloso, Byron ficou olhando para as profundezas do aparelho de televisão durante toda uma tarde e toda uma noite, e viu mais coisas do que podia entender.


Um time tinha perdido, o outro tinha ganho.


A música de maior sucesso da temporada era a respeito das aventuras excitantes dos Marginais.


Um distúrbio estranho, numa galáxia distante, foi registrado, mas não foi completamente identificado.


A tatuagem era a próxima moda.


Terremotos leves eram previstos desde a costa do Pacífico até as montanhas Rochosas.


O rosto horrendo de Sylvia apareceu num anúncio de armas portáteis.


A produção de alimentos, na opinião dos analistas, tinha diminuído apenas ligeiramente.


Em algumas regiões do sul do Pacífico, e nas florestas do centro da África, as palmeiras continuavam verdes.


• • •


No Center de Palm Springs, um laboratório brilhante e impecável aguardava o toque do mestre. Quando Sylvia tornou-se um dos grandes monstros de todos os tempos, competindo com Drácula, o Réptil, e a Besta de Cinco Dedos, estava sempre muito ocupada para visitar Byron, que passou por isso a andar de um lado para o outro de seu laboratório. Byron retomou um velho sonho, uma experiência antiga: descobrir o creme da juventude.


A substância básica do Fabuloso Creme da Juventude Byron durante muitos anos fora sempre sulfometano, um composto que produzia efeito hipnótico. Mas Byron, como ele mesmo admitia, não era cientista, apenas um artista, por isso os tubos de ensaio e os frascos estavam sempre cheios de líquidos que tinham boa aparência mas que não produziam muito efeito.


Sua nova tentativa era menos um creme do que um leite de beleza.


Num momento de desespero, Byron despejou-o em cima da tigela com mingau e comeu-o.


Não tinha muito gosto, mas seus olhos fixaram a colher brilhante na tigela e Byron ficou sentado ali, em transe, durante sessenta horas.


• • •


Byron foi a uma festa na esperança de encontrar Sylvia.


Como espetáculo da noite, o dono da casa apresentou um filósofo que se recusava a falar. Depois de algumas perguntas fúteis e breves, o mestre de cerimônias colocou os dois pés do filósofo num torno. O filósofo, um homem velho e barbado que parecia um sábio, contorceu-se de dor enquanto o mestre de cerimônias apertava o torno — mas não revelou nenhum segredo.


Depois do jantar, servido à americana, alguns homens espancaram um Chevrolet 1976 com lampiões antigos. Batucaram um ritmo vibrante e todos dançaram, com exceção de Byron.


No meio da noite, o mestre de cerimônias anunciou em pânico que os Marginais haviam cercado o lugar. Os convidados apavorados saíram correndo em todas as direções. Muitos mergulharam pelas janelas, esconderam-se nas despensas ou correram no escuro em direção à praia.


Mas tudo não passava de uma piada hilariante e bem-sucedida.


• • •


Quando Sylvia finalmente apareceu de novo, usava ainda seu rosto famoso de tentáculos.


O ar cantava com nervosismo naquela noite. O mar inquieto batia na praia embaixo da casa, os dobermans latiam ao longe na escuridão, e a gargalhada de Sylvia soava falsa, uma simples representação. Sim, ela estava contente com o novo rumo da Onda, contou a Byron, balançando a cabeça e rindo, ha-ha-há, porque a maquilagem necessária, ha-ha-há, estava começando a irritar sua pele. Parecia desesperada e artificial.


Logo começou a tirar a roupa à maneira antiga. Seus dedos — prateados, como Byron observou — corriam por cima das almofadas novas, do telescópio de latão apontado para o oceano, do cálido aparelho de televisão, enquanto ela percorria a casa.


— O que você quer agora? — perguntou Byron, acompanhando-a.


Byron sentia-se ao mesmo tempo profundamente triste e irritado, porque ela tinha perdido sua magnífica indiferença de antes.


Sylvia estava com uma flor silvestre tatuada embaixo do umbigo.


Dançou pela casa, jogou a blusa de seda aqui, um sapato ali, enquanto tocava nos objetos. Colocou as roupas em cima dos móveis e derrubou os frascos facetados de cosméticos na mesa de trabalho espelhada de Byron, tentando a todo custo fascinar de novo sua casa e sua vida, atirando o encanto cru do seu rosto moreno contra todos os poderes dele.


Mas seu rosto arruinado distraía a atenção de Byron. Não podia negar a evidência: ela simplesmente não era a mesma que o visitara da primeira vez.


Você vai me fazer a esplêndida agora! — exclamou Sylvia, dançando para longe.


— Não posso fazer isso! — gritou Byron, ofegante, subindo as escadas atrás dela.


— Claro que pode! Você pode fazer tudo!


Ela foi até o quebra-mar, embaixo do céu estrelado, voltou ao quarto, atravessou o corredor, com os braços batendo como asas.


Byron queria dizer que ela não gostava dele, que não apreciava seu trabalho, mas sabia que isto soaria infantil. Ela continuava executando sua dança patética.


— Só a arte e a indústria contam! —gritou Sylvia, rodopiando para longe. — Você vai me inventar uma nova onda, depois outra!


— Você não entende! — exclamou Byron, ofegante.


— Truques e mais truques, Byron, você é um gênio!


— As ondas nos matam — gritou ele.


— Elas são reais! Só você não é capaz de perceber:


— Você vai me fazer bonita agora! Você tem que me fazer! — insistiu Sylvia, deixando-se ser apanhada. Byron agarrou-a com força, os dois lutaram e caíram sobre o tapete felpudo em frente à lareira. As chamas crepitavam alto ao lado de seus rostos quando Sylvia começou a sedução desesperada. Puxou o corpo dele para cima do seu, riu no seu ouvido, abriu-se para ele.


Puxou o corpo dele para cima do seu, abriu- se para ele

— Você não sabe o que fez! — disse Byron, sem fôlego, mas ela riu e enfiou o rosto no seu peito, enroscando-se nele. As mãos dela o acariciavam no momento em que Byron segurou-a pelo rosto e começou a arrancar a máscara de látex.


Ele era o mestre, o artista supremo: destruidor e criador, mas seu talento lhe dava nojo agora, porque tornava reais todas as modas efêmeras, como se fossem parte do tecido verdadeiro da alma.


O mar batia na praia, os cachorros uivavam. Byron enterrou o dedo na maquilagem dela e sentiu seu corpo relaxar ao percebê-la submissa. Mas imediatamente ela se assustou com o que viu nos olhos dele.


— O que é isso? — exclamou, tentando sair debaixo dele.


Lutaram, rolando e caindo, até o instante em que ela viu no espelho partido da mesa de trabalho, que estava virada de lado na outra extremidade do quarto.


Seus olhos apareciam um depois do outro, massas de artifício e de carne, cada um mais enrugado e horrendo que o outro. Byron enterrou o dedo nas cavidades dos olhos e arrancou um outro punhado.


Os gritos e os berros de Sylvia ecoaram mais altos e mais negros que a noite lá fora.


Por trás de tudo aquilo, bem no fundo, como o próprio velho maquilador, a célebre Sylvia era apenas uma caveira.


ILUSTRAÇÃO PHILIP CASTLE


 

WILLIAM NEAL HARRISON ficou famoso quando seu conto Roller Ball Murder, publicado na revista Esquire, foi adaptado para o cinema — segundo um roteiro seu — e transformado no sucesso de bilheteria Rollerball — Os Gladiadores do Futuro, com James Caan. William Harrison estreou como escritor em 1965, com o romance The Theologian. Tinha 32 anos (ele nasceu em Dallas, no Texas, em 29 de outubro de 1933) e era professor associado de inglês na Universidade de Arkansas, onde continua lecionando até hoje, agora como professor titular. Ao lado de suas atividades universitárias, William Harrison continuou escrevendo. Publicou In a Wild Sanctuary em 1969 e Lessons in Paradise em 1971; recebeu uma bolsa da Fundação Guggenheim em 1973 e, dois anos mais tarde, publicou o livro que incluía Rollerball: Roller Ball Murder and Other Stories. Como no assustador relato do futuro em que as frustrações e ansiedades dos povos, controlados por um consórcio de multinacionais, são catalisadas num esporte assassino, o conto Quanto Mais Feio Melhor faz uma projeção terrível dos males da sociedade atual para um futuro sombrio e nada desejável. E, pior que tudo, possível.



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