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TONINHO CEREZO

Perfil



Quem diria? O Palhaço Dureza... chegou à seleção

Do circo aos estádios, o que mudou no craque Toninho Cerezzo?


Por MICHEL LAURENCE


Era uma tarde de domingo. A bola vinha alta e ia cair no meio de um bolo de jogadores. Mas chegou a tocar o chão. Parou no peito de um mulato alto e suavemente, como numa carícia, foi baixando até seu pé, dócil e obediente. O povo, nas arquibancadas do Mineirão, estourou em aplausos.


— Não sei se foi a jogada bonita, as palmas, mas aquela foi a única vez, em toda a minha carreira de jogador de futebol, que lembrei das crianças gritando e me aplaudindo lá no cirquinho da TV ltacolomy.


Crianças batendo palmas, rindo, torcendo por ele, são imagens que Toninho Cerezzo, meio-campo do Atlético Mineiro e também na Seleção Brasileira, faz questão de esquecer, pois elas sempre trazem de volta uma recordação muito triste: a do seu último espetáculo como palhaço.


O dia em que o palhaço morreu — Antônio Cerezzo, o pai de Toninho, era vendedor ambulante quando conheceu Helena Robattini, filha de artistas de circo húngaros, que também fora criada às voltas com palcos e picadeiros. Antônio se apaixonou, casou com a moça e entrou para o circo: foi ser palhaço. Quando Antônio Carlos nasceu, seu destino já estava traçado, ele iria trabalhar com o pai, aprender o ofício de fazer rir as pessoas.


Aos seis anos de idade, Toninho era mesmo muito engraçado dentro de umas calças folgadas e coloridas, calçando sapatos enormes e fazendo contraponto nas gags de seu pai, num programa de circo para crianças da TV Itacolomy, de Belo Horizonte. Os dois formavam a dupla Moleza (o pai) e Dureza (Toninho).


— Mas eu lembro muito pouco das coisas que fazia no palco. Eu era muito pequeno.


Toninho tinha apenas sete anos quando seu pai morreu. Diz que, desde então, nunca mais pisou no palco ou num picadeiro:


— Evito até passar perto de um circo. Agora sou apenas jogador de futebol profissional. Comecei a jogar nos "dente-de-leite" do Atlético Mineiro e desde os 12 anos é só o que faço. Só continuo ligado ao circo nas conversas com minha mãe e nas lembranças que tenho de meu pai.


Mas uma coisa Toninho admite ter ficado das lições paternas ou, quem sabe, das inclinações do sangue: o seu jeito para fazer as pessoas rirem:


— Até entre os colegas da Seleção, onde ainda não tenho muita intimidade, em certos momentos, quando menos esperam, solto uma frase ou outra que faz todo mundo cair na gargalhada. Às vezes, eu até me espanto, pois nunca falo com a intenção de arrancar risos.


Se o jeito para fazer rir é uma herança dos tempos em que fazia dupla com o pai, Toninho se recusa a admitir. Na verdade, ele prefere mesmo esquecer aqueles tempos, como se tivesse vergonha deles. Mas os aplausos das arquibancadas não deixam. De repente, na euforia de um gol, ele volta por uns instantes a viver as emoções do menino de calças largas e cara pintada.


Sua necessidade de esquecer o circo tem uma única origem: a morte de seu pai. Uma morte digna da imaginação dos roteiristas dramáticos: no palco, fazendo uma gag.


Jogando sinuca na concentração da Seleção Brasileira, Toninho Cerezzo procura palavras para fazer uma revelação que lhe dói muito. Nota-se que depois de tentar esconder as memórias de sua infância ele sente agora necessidade de falar:


— Meu pai morreu de câncer. Sua voz arrastada de mineiro ganha um tom emocionado. Sem desviar os olhos da bola cinco, que ele se concentra pra encaçapar, Toninho explica:


— A gente estava fazendo o programa semanal na televisão e havia uma brincadeira em que um palhaço tinha de enfiar um chapéu na cabeça de meu pai, até os olhos. Mas o chapéu era muito apertado. Então o palhaço começou a fazer força para baixo e meu pai a forçar para cima. Estalou um anel de sua coluna vertebral e deu câncer. Pouco tempo depois meu pai morreu.


Toninho parece ter se aliviado de um peso. Consegue até sorrir.


— Sabe, acho que eu me divertia mais do que a criançada que assistia ao programa. Meu papel no espetáculo não era muito complicado: eu ficava o tempo todo escapando das brincadeiras de meu pai, "ajudado" pelo aviso das crianças, que torciam por mim. E meu pai se encarregava de completar o número, invertendo as brincadeiras contra ele.


O rosto de Toninho Cerezzo volta a ficar sério:


— Depois que meu pai morreu, a vida ficou bem difícil para mim e a minha mãe. A gente morava num barracão e alugava dois outros que existiam no fundo do terreno. Minha mãe já não conseguia trabalho na televisão ou nos circos. O que nos salvou mesmo foi a maçonaria, que era a filosofia de meu pai. Ela nos ajudou muito.


As primeiras peladas aconteceram nessa época, nos terrenos baldios da vizinhança. Já estava com 12 anos quando foi descoberto por um "olheiro" do Atlético, batendo bola entre outros meninos. Foi levado ao clube e ali começou sua carreira. Hoje, aos 21 anos, acha que nem mesmo se o pai continuasse vivo sua vida poderia ter sido outra:


— Futebol é só o que tenho dentro de mim. Sinto que jogador de futebol e artista de circo têm alguma coisa em comum, mas não acredito que se meu pai fosse vivo eu ainda estivesse fazendo palhaçadas. Talvez ele tivesse insistido para que eu continuasse palhaço, mas acho que acabaria me deixando seguir minha vida.


A BOA JOGADA É COMO SACAR O MOMENTO EXATO DA GAG NO CIRCO

Uma vida da qual Toninho fala com orgulho. Ele tem consciência da alegria que dá ao público:


— Eu nunca fui vaiado, sabe? E nunca pediram outro jogador para me substituir. Tenho a sensação de que o povo gosta de meu futebol, da mesma maneira como as crianças torciam por mim no circo.


Com a bola, ele começa a crescer — Agora ele já consegue traçar afinidades entre a sua vida de palhaço e a de jogador. Acha, por exemplo, que ficar esquecido durante algum tempo dentro dos números de seu pai, para só aparecer na hora certa, tem muito a ver com seu papel dentro de um time de futebol:


— Em campo, muitas vezes ,dou a sensação ao adversário de que ele vai poder passar a bola por um espaço que deixo propositadamente aberto. Na hora, dá tempo de eu cortar o passe. Outra coisa que já reparei é que tenho a intuição de onde a bola vai passar. Ela pode estar nos pés de um adversário, mas consigo me colocar de tal maneira que ela acaba passando por onde estou. Sabe, é como adivinhar o momento exato em que tinha de fazer uma graça nos números de meu pai.


E as reações do público, também são parecidas?


— Também. Por exemplo, quando o circo estava cheio a gente trabalhava com mais vontade. Hoje, quando o estádio está cheio, dá vontade de jogar por dois. Não quero dizer com isso que faço corpo mole quando o público é pequeno. Mas, com a "casa cheia", como a gente costuma dizer, é muito melhor. Todo jogador de futebol gosta de jogar para um público grande, e acho que todo artista gosta de representar para uma sala cheia, abarrotada de gente.



Toninho diz que o futebol mudou sua personalidade e influiu até no seu modo de agir:


— Fora de campo sou um homem tranqüilo, meio desligado, que não presta muita atenção nas coisas. Mas, quando entro em campo, pareço me transformar. Fico ativo, ligado em tudo. Um psicólogo outro dia tentou analisar isso e chegou à conclusão de que o futebol é a coisa mais importante que existe para mim. Só consigo de fato acordar, ficar atento, quando vejo a bola rolando. Um fenômeno de vitalidade e habilidade com a bola nos pés — dizem os críticos de Toninho Cerezzo. Mas é mesmo difícil reconhecê-lo fora de campo, com sua imensa calma mineira e seu jeito manso de encarar o futuro. Nos planos de Toninho estão a namorada, alguns filhos e uma fazendinha no interior de Minas, parecida com a de um amigo onde costuma passar as férias, bebendo muito leite e conversando com os peões a respeito de vacas e cavalos.


— Acho que vou poder conseguir isso com o futebol.


Um treino da Seleção. O mineiro introvertido e quieto que sonha com uma fazendinha desaparece: quem está em campo é Toninho Cerezzo, o craque. Sua figura parece ter aumentado de tamanho e a bola, arisca para outros, obedece-o como uma potranca bem domada. Aqueles que o vêem das arquibancadas, chegam a se enganar com a sua estatura, os 176 centímetros de Toninho parecem virar 190, 200, 300, como naquela história de um velho filme sobre um homem com "três metros de altura-.


— Olha, algumas vezes as moças me procuram depois dos jogos. Acho que ficam um pouco decepcionadas. Elas pensavam que eu era mais alto.


Mesmo assim, algumas insistem. E uma delas chegou a ficar íntima.


— Mas isso foi antes de eu conhecer minha namorada.


O sexo, no ambiente do futebol, continua a ser encarado como um tabu. Toninho diz que houve uma época de sua vida em que o sexo era coisa importante, uma espécie de afirmação.


— Acho que nos meios artísticos existe muito disso. Pelo menos é o que ouço minha mãe falar de vez em quando. No futebol não é diferente. Jogador é muito visado. As moças pensam que a gente ganha muito dinheiro. Isso é uma ilusão. Eu, por exemplo, só agora estou ganhando Cr$ 10 mil por mês. Não é lá essas coisas, e se eu quiser fazer um pé-de-meia para o futuro vou ter de trabalhar muito. Mas as garotas dão em cima da gente. No início é aquela empolgação, o cara fica cheio de vaidade, achando que tem mesmo alguma coisa a mais do que todo mundo. Mas, com o tempo, vai caindo na realidade. Eu, por mim, nem ligo mais. Tenho a minha namorada, gosto dela e ela gosta de mim. Acho que vamos casar. Ela é estudante de filosofia e a gente se dá muito bem. Quer dizer, eu já não ligo mais para as moças que ficam esperando a gente na saída dos jogos.


Falta um palhaço na arquibancada — Toninho, para seus 21 anos, mostra sempre opiniões muito maduras sobre a sua profissão e os problemas que giram em torno dela. Acha, por exemplo, que quando um jogador fica rico não serve mais para um time que quer disputar títulos:


— Jogador rico é como artista rico, que passa a escolher as peças e os filmes em que quer trabalhar. Jogador rico me dá a impressão de escolher as partidas em que quer aparecer. Claro que nem todos são assim, mas eu não acredito que um jogador rico consiga se motivar ou se arrisque para ganhar um jogo. Eu lembro que Pele falou uma vez que o jogador é um escravo. Mas ele deve ter dito isso antes de ficar rico. Aliás, ele é um dos poucos jogadores que ficaram ricos mas não deixaram de se dedicar ao futebol. Mas eu acho também que deveria existir uma maneira de proteger o jogador que está começando. Depois, quando ele ficasse famoso, o melhor seria deixá-lo mais livre. Sei que isso é difícil, mas seria bom se encontrassem uma fórmula.


Você ainda acha importante esconder que já foi palhaço? Toninho Cerezzo sorri, mas seu sorriso é um pouco triste:


— Sabe, meu pai foi um homem maravilhoso. Ele me fez muita falta e acho que algumas besteiras que fiz na vida não teriam acontecido se ele não tivesse morrido. Ele vibrava com o circo, e me lembro de que ficava todo orgulhoso de me ver a seu lado dentro do picadeiro. Fico imaginando o orgulho que ele sentiria me vendo na Seleção Brasileira,


Enquanto Toninho fala, seus olhos ficam seguindo o movimento das bolas na mesa de sinuca. Nesse momento seu coração está lá longe, no palco de um cirquinho de televisão que se foi com a infância.


— Pra falar a verdade, eu não sinto mágoa de circo. Acho que ninguém pode sentir isso. O que acontece comigo é que não posso ver um circo sem me lembrar da morte de meu pai. Não consigo esquecer que se ele não está me vendo agora na Seleção foi porque ele quis fazer as pessoas rirem.


MICHEL LAURENCE

Um dos mais premiados jornalistas esportivos do país, nasceu em Marselha, França, e chegou com sua família ao Brasil em 1948, quando tinha apenas 10 anos de idade. Aqui, interno no Colégio São Vicente de Paula, no Rio, Michel aprendeu a ser brasileiro — e a falar português — nas peladas que disputava com seus colegas. Já revelando naquela época um precoce senso crítico, o garoto Michel, considerando-se "grosso" com a bola nos pés, nem por isso desistiu do futebol: escalou-se como goleiro. Saído do internato, continuou jogando nessa posição e, estimulado por seu pai, o respeitado jornalista esportivo Albert Laurence, passou a colaborar com a Última Hora carioca. Como atleta, Michel chegou a interessar a alguns clubes profissionais. Mas a atração da imprensa foi mais forte. Transferido em 1967 para São Paulo, dois anos depois Michel já ganhava um Prêmio Esso, de parceria com José Maria de Aquino. Em 1970, foi fazer parte da equipe que fundou a revista Placar. E só a partir de 1975, quando foi contratado pela revista Quatro Rodas, é que passou a escrever sobre outros assuntos que não o futebol. Mas este continua sendo a sua mais fiel paixão, como revela o perfil que agora publicamos, e no qual Michel faz uma apresentação em profundidade do homem e do craque Toninho Cerezzo.


ILUSTRAÇÃO JOSÉ FIGUEROLA



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