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45 ENCONTROS COM VERA FISCHER

Ficção



QUARENTA E CINCO ENCONTROS ÍNTIMOS COM A ESTRELA VERA FISCHER

Carta após carta, aquele bancário tímido se consumia no mais demolidor e alucinado amor. Até o dia em que tomou a decisão final...


POR IGNACIO LOYOLLA BRANDÃO


VERA, Hesitei antes de escrever. Sou assim, indeciso. Imagine que para começar esta carta levei meia hora com um problema. Escrever Senhorita Vera? ou Senhora? Devia colocar Ilustríssima? Acabei optando pela intimidade. Afinal, era tempo, não? Você me percebeu ali na segunda fila do teatro, não percebeu? Tenho feito de tudo para chamar sua atenção. Me coço, me mexo, me levanto. Outro dia, você olhava demoradamente em minha direção. Pensei que estava me repreendendo, o que me angustiou muito. Para mim, sempre reservo o pior, foi o que me disse uma antiga namorada. Antiga mesmo, não precisa ficar inquieta. Uma primeira carta como esta necessita de uma apresentação. E de que adianta? Tenho certeza de que você vai jogá-la fora. Acha que é de mais um fã. E não sou. Não sou, de modo algum.


Eu te amo, Vera. Essa é a diferença.


Assinado, Beto.


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Vera,


Uma pequena comemoração hoje. Vou tomar Sidra em sua homenagem. Claro, eu queria champanha. Com que dinheiro? É penoso confessar que não tenho dinheiro, vivo do salário, quase mínimo. Isto pode me afastar de você. Mas se afastar é porque está errado o nosso relacionamento. Se é baseado em dinheiro, é errado. Ah, a comemoração? Vou ver a peça pela décima sexta vez em dois meses. Só para te ver.


Porque eu te amo, Vera.


Assinado


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Vera,


Percebeu o respeito? Não coloco querida. Ou cara. Apenas Vera. Aposto uma coisa. Quando começou a receber minhas cartas, você achou que era daquele homem doente que manda cartas para todas as atrizes de São Paulo. Não achou? Li sobre ele num jornal. Pelo amor de Deus, não sou como ele. Nem sou um fã qualquer. Sou um apaixonado. Quantos você já teve? Muitos, por este Brasil afora. Mas percebi que comigo era diferente. O jeito com que você me olha, ternamente, cada noite que me vê. No domingo me fez um aceno, não fez? Fiz uma bobagem. Disse no banco que você tinha me feito um sinal. Riram. Disseram que ando lendo demais estas revistas em que você aparece. E que misturo a realidade. Sabe quantas revistas comprei? Daquela em que você saiu nua? Doze, e ando procurando pelos sebos, sai mais barato. Os caras do banco nunca foram a teatro na

vida. Teatro sério como esse. Só foram ver strip-teases.


Eu te amo, Vera.


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Nem calcula o suspense que fico, à espera da cena em que você abre a camisola e mostra as pernas ao filho do coronel. Fico completamente surdo. As mãos suam, enquanto você vai se acariciando, levando as mãos aos seios. Prendo a respiração, fico roxo. Quando você abre as mãos e deixa ver tudo, é como se Moisés estivesse abrindo o mar Morto para os judeus atravessarem. Como penso nisso quando me deito e olho minhas mãos finas.


Mãos que te amam, Vera.


"Minhas mãos suam, Vera, enquanto você vai se acariciando, levando as mãos aos seios"

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Pagava cheques, olhava aquele dinheiro e maquinava: vou tirar um pouco. Qual é o mal? Tem demais, dá para todo mundo. Ando num déficit desgraçado. Teatro é caro. Mais as revistas. Você sai muito em revistas, assim não dá, vou à falência. Ao menos, posso dizer: Vera Fischer me levou à falência. O que você tem com isso? Preciso pensar em nosso futuro. Não sei em quanto tempo atingirei a gerência. Tem muito trambique em banco. Qualquer dia destes desvio uma OP, estou feito.


Tudo porque te amo, Vera.


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Passei metade da noite na janela, cantando: "Um pequenino grão de areia, que era um pobre sonhador, olhando o céu viu uma estrela, imaginou coisas de amor". Só sei esse verso e fui repetindo, repetindo. Não, não me jogaram coisas. Moro num pequeno prédio, três andares, na Bela Vista. Do lado tem uma pensão, do outro um HO. Veja só quantas pistas para você me descobrir. Porque tão cedo não me apresento. Pensou se o meu nome é falso?


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Não, não é falso. É esse mesmo o meu nome. Relendo as cartas (guardo cópia de todas, sou organizado, vai ver é o condicionamento do banco), vi que coloquei numa delas um OP. Linguagem nossa, quer dizer Ordem de Pagamento. Na outra, pus HO. Esta você sabe, não? É Hotel. Principalmente hotel de curta permanência. Como eu gostaria de curtapermanecer com você.


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Três meses hoje que nos conhecemos. Ontem não deu para atender o teu telefonema. Você ficou chateada, mas como eu podia sair do caixa, numa hora daquelas? Bem que o meu colega gritou várias vezes: "É a Vera, vê se não faz a moça esperar". Foi legal você me chamar, assim eles acreditam em nosso namoro. Sempre querem saber coisas. Se você me deixa pegar na tua mão. Ou as nossas intimidades. Começo a detestar esta gente. Nunca perguntei a nenhum deles o que fazem em casa com as próprias mulheres, pombas! Pombas, olha aí, eu falando como a Sônia Braga na sua novela. Cada noite, agora, você está mais perto de mim.


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Senti uma pequena pontada no peito. Deve ser angústia. Olho o meu quarto. Coisa de solteiro. Cama mal arrumada, lençóis feios, armário cheio de coisas pregadas, mesa em bagunça, a vitrola não funciona, os vidros da janela estão empoeirados. Jamais poderia trazer você até meu apartamento. Por isso, quando a gente passeia por aqui e você insiste em conhecer minha casa, recuso. Mas por carta posso dizer. Com você, toda sinceridade. E a angústia vem disso: como ter uma casa onde você entrasse e se orgulhasse dela, de mim? Pensei outra vez no roubo. Não posso.


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Quase não deu para escrever. Hora extra para todo mundo, a máquina de escrever ficou ocupada. Se desse jeito de roubar uma máquina por aqui, levava para casa, escrevia quantas cartas quisesse. Tem horas que penso: é bobagem o que estou fazendo, perder tempo em cartas, fazê-la perder tempo. Claro que sei que você não joga fora. Ninguém jogaria, assim, sem ler. Sem a curiosidade de ver o que um desconhecido vai dizer cada dia. E este jogo que me excita. Provocar. Se as pessoas provocassem mais, obrigando os outros a responder, reagir, quem sabe não haveria mudanças? Em torno de mim está tudo parado. E não sei mudar, não consigo. Ao menos, não sozinho. Não se pode fazer as coisas sozinho. Um só, não funciona. É o trabalho inútil de eremita contemplativo. Escrevi um rascunho desta carta, a mão, agora datilografo, o banco silenciou. Meu professor de português no cursinho dizia que eu tinha boa redação. Só que não passei no vestibular. Quatro vezes e não passei. Tenho que me conformar com o banco. Ter de. Ter de passar no vestibular, por exemplo. Sei escrever, mas tudo o que eu tinha de fazer era uma cruzinha dentro de um quadrinho. Na última vez, simplesmente enchi todos os quadrinhos com cruzes. Não deixei um só vazio. Parecia um cemitério. Campas e cruzes. O cemitério do ensino. Olha aí, não é engraçado? Seria mais engraçado se eu tivesse passado, entrado, terminado alguma coisa para poder deixar este banco, arranjar uma profissão e um salário legal para sustentar você. Não acha?


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Não quero te chatear com problemas. Mas um casal como nós deve compartilhar tudo. Problemas de dinheiro. Sabe que amor sem dinheiro acaba no brejo. Tenho feito força para manter esse nível de vida que levamos. Sair do teatro, jantar todas as noites. Aqueles uísques no Hipoppotamos custaram todo o meu décimo-terceiro. Meu chefe perguntou hoje no que estou me metendo. Um colega, boçalão, disse: é, em quem você está metendo? Me perdoe, mas um casal pode dizer estas coisas vez ou oltra. Uma amiga, recepcionista, veio me avisar: essa moça de teatro vai acabar te perdendo de uma vez. Ela viu que estou apaixonado demais, só falo em você. Gente de teatro não presta, afirmou. Como pode dizer isso? Ela nunca foi a um teatro, ela mesmo disse. Não foi e não vai. E assim que meus companheiros pensam. Eu não. Por causa disso, te amo, te amo. Estou de joelhos fazendo promessa.


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Mortificado. Que coisa horrível. Veja a carta número onze. Você ainda tem. Escrevi oltra, em lugar de outra. O que você pensou de mim? O que essa turma da peça pensou? Riram do meu português. O problema é a pressa nesta máquina. Outra errata. Pensei em parar de escrever. Senão você acaba achando que sou um ignorante. Posso ser tudo, menos isso. Tenho minha cultura. Eu só queria que você não risse de minhas cartas. Um amor pode ser ignorado, desprezado, mas não ridicularizado, espezinhado. Não leia também nas mesas de restaurante. E diga para essa moça que trabalha com você, essa da televisão, que ela também é bonitinha, mas não deve ficar com ciúmes se me apaixonei só por você.


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Foi uma alegria muito grande, por causa do beijo que você me deu ontem à noite. Só roçou meu rosto. Esses lábios roçaram pelo meu rosto, suavemente, ternamente. Em casa, olhei no espelho, tinha ficado uma leve marca de batom. Muito leve. Não lavei o rosto. Deitei-me do outro lado, acordei com dor nas costas, só para que sua marca ficasse. Me gozaram no banco, quase briguei. O gerente me chamou, perguntou por que não tiro férias, ando nervoso, preciso me cuidar, minhas roupas andam maltratadas. Disse que um dia cheguei de colarinho sujo. Tudo, menos isso. À noite, lavo minhas camisas e cuecas. Não posso pagar lavadeira. As entradas estão custando caro. Prefiro lavar minha roupa a deixar de te ver, ao menos uma vez por semana. Eu te amo.


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Fui a uma festa. Aniversário do chefe de pessoal. Você não teria suportado as conversas. Sobre depósitos, 157, recordes de agências. Os inspetores estimulam as competições. Um deles disse que a maior alegria é ver o pessoal se comer para conseguir novos clientes e negócios. Comentei: pois a minha alegria é ver as agências assaltadas, limpas, os cofres a zero. Disse com cara gozadora, mas o meu gerente me chamou de lado:


— Não deve falar isso. Nem de brincadeira. Alguém pode contar ao lá de cima.


— Lá de cima daonde? Da prateleira?


— Tem gente sempre escutando o que os funcionários dizem, observando os comportamentos. Cuidado, não repete isso, não.


Lá pelas 2 horas, alguém gritou:


— Vamos esticar nos inferninhos.


Todo mundo aderiu, menos eu. Iam ver strip-teases. Não sou contra mulher pelada, mas um bando de bancários solto na noite é pior do que um bando de cabras num jardim, cagam em tudo. Além disso, sou fiel. Mulher para mim, só você. Resolvi passar em frente ao teatro, ver se você estava atrasada, tinha ficado lá por qualquer motivo. Nada. O teatro fechado. Tinha bebido tanto que me sentei na porta e dormi ali mesmo. Acordei de manhã, com um cara me cutucando, me mandei. Oh, te amo.


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Cada vez que você abre a camisola naquele quadro e o homem cai de joelhos dizendo puta merda, fico gelado. Perco a respiração. Já vi a peça cinco vezes na primeira fila. A minha boca seca. Fico afobado. Esse teu corpo. Que coisa mais incrível. Vou te contar, um casal precisa se contar tudo. Nessa hora, penso tudo. Tudo mesmo o que poderíamos fazer os dois juntos. Dos pés à cabeça. Saio do teatro, a cabeça fervendo, mergulho nessas ruas escuras e sem graça da Bela Vista. Subo ao meu quarto, como um pão, tomo água com açúcar, apanho velhas revistas Amiga, todas que têm fotos suas. O que é verdadeiro? Eu, meu quarto, a minha fome, o meu desejo por você, ou o teatro, a peça, as luzes do palco? Minha confusão aumenta. Ontem, me ameaçaram tirar do caixa. Fiz um erro de quase 5 mil cruzeiros. Erro nas contas. O dinheiro estava lá. Custou para acertar, precisei de ajuda. O gerente chegou a querer sentir meu bafo para ver se eu estava bebendo. Sabe o que falei: nem bebendo, nem comendo. Amando. Ele riu. Os gerentes são boçalões.


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Aquele vazio, ausência de músculos, de ossos, me toma cada vez mais. A noite passada pensei em você. Durante quarenta minutos nos amamos. Interminavelmente. Acordei, procurei nescafé, estava velho, endurecido no fundo da lata. O corpo vazio, a cabeça vazia, zonzeira, tonturas. Não fui ao banco. À merda o banco. Olhava você na cama, estendida, coberta com aquela camisola branca que usa a peça inteira, as coxas se entrevendo. Nossa primeira noite. Você chegou, nem reparou no apartamento. Também, tinha feito uma faxina daquelas, pois dias lavando vidros, parede, arrumando armários, limpando pó. Mandei lavar meus dois ternos. Tirei 2 mil cruzeiros do caixa, comprei sabão, sabonete, pasta de dente, escovas de dente (para quando você acordasse), um perfume, aerossol para o ar. Gostei de você quando entrou, não disse nada, só me olhou com esses olhos verdes, tranqüilos. Eu te amei mais por isso.


"Olhava você na cama, estendida, coberta com aquela camisola branca, mostrando as coxas"

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O cubículo em que trabalho no banco é estreito. Para o público, uma parede de vidro. Para os lados, madeira, de modo que não posso me comunicar com meus colegas. Existe entre cada caixa um buraquinho. Por este buraco entram contas, recibos, duplicatas, cheques, etc. Hoje fiquei de saco cheio. Às 2 da tarde, abaixei as calças e fiquei ali com a bunda de fora. De modo que quem estava na parte externa não podia ver o caixa bunda branca (se eu fosse índio americano era o meu nome). Imaginou? Gentis senhoras e senhrotas (olha só como escrevi senhoritas), circunspectos financistas recebendo dinheiro de um caixa com a bunda e o pinto de fora. Me deu uma sensação gostosa de liberdade, de desmantelamento da seriedade bancária, de esculhambação. Para alguns, com cara mais chata, eu apanhava discretamente uma nota de 500 e passava na bunda. Limpava o rabo com elas e entregava. Às vezes, meu amor, é engraçado trabalhar em banco.


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Domingo de manhã compro a Folha de S. Paulo. Todos os domingos. Que fazer? Estava com 14 cruzeiros no bolso e precisava passar o dia. Fiquei lendo o jornal, de cabo a rabo, palavra por palavra. Precisa mais de um fodido domingo para ler. Chego na parte do teatro, lá está seu nome fogoso, coxuda deliciosa. Seu nome é torneado como você, azulado como teu olhar, reticente como tua pele. Ali no jornal, chapado, ele se destaca, sobe, excita, transforma, reforma, rebela, bela, mela, refulgente na tela, estrela, dourada como pó. O mundo é uma coxa só, sua, tua, nossa, grossa. Meu deus. Cada domingo gozo com você, paixão, caixão, enterro de minha realidade, sonho, emulsão. A imensa solidão deste dia se arrasta. vagarosa, pacífica, pá, pá que enterra meu sonho vago, distante, neurótico, paranoico, inconcebível, inatingível como aquele teu fantástico triângulo de amor, livre, mas vedado, disponível, intransponível, ali, no alto das coxas, separado por um abismo, cataclismo, batismo. Supremo mistério: a quem você pertence? A mim certamente no escoar deste domingo solitário, infinito, este quarto transformado em seu rosto, as janelas teus olhos verdes. Imagem chavão como este domingo é chavão repetitivo, cansativo, estereótipo — acabei de ler esta palavra no suplemento cultural do "Estadão". Penso em imagens assim: Vera para mim é tão inatingível como compreensão deste suplemento cultural. Será que sou burro? Estou mergulhado em você, um surfista envolvido no túnel do seu corpo (ali atrás leia envolvido), veloz na prancha, querendo que a praia nunca chegue.


"Estou mergulhado em você, surfista envolvido no seu corpo, querendo que a praia nunca chegue"

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Fiquei dois dias sem voltar para casa. Hoje voltei. Teria de regressar um dia. Você nem imagina o estado em que deixamos tudo aquilo. Acho que não tem coisa inteira. Pedra sobre pedra. A cama sem pernas, os armários sem vidros, a roupa rasgada, os poucos pratos estilhaçados, copos e jarras (inclusive uma que minha mãe me deu quando saí de casa, na qual eu fazia a laranjada para nós, todas as manhãs, lembra-se?). No banheiro, calamidade, vidros estraçalhados, o bidê arrancado, o vaso quebrado. Inundação. Foram os vizinhos que reclamaram. Não agüentaram a nossa briga. Foi por causa da briga que te escrevi aquela carta rancorosa ontem. Já recebeu? Não vale mais. Repensei tudo. Prefiro te suportar com esse gênio, do que te perder: Olho as minhas mãos feridas, o braço rasgado (levei doze pontos, com aquela jarrada que você me deu), a cabeça raspada. Meu sangue por você. Já te disse isso? Não? Digo agora. Disse? Então repeti. Não sei o que fazer. Não me lembro do que aconteceu depois que você saiu. Acordei no pronto-socorro, todo enfaixado, fugi de lá, tenho que trabalhar. O pessoal do banco me olha estranho. Disse que fui ao jogo do Coríntians e que a torcida do Palmeiras me bateu. Jamais diria uma palavra contra você, adorada minha, coxas divinas, olhos celestiais. Nunca, jamais, em tempo algum. Adoro você. Volte, mesmo que seja para um novo entrevero como o de domingo. Vou comprar tudo de novo, copos, pratos, xícaras. Mas por causa disso ficarei quatro ou cinco vezes sem ir ao teatro. O que vale mais: copos e xícaras, ou você? Ora, os copos que vão a puta que te pariu. Vou é ver a peça e te homenagear. Amante, coxuda de deus, tornozelos de nossa senhora, nádegas de santa helena. Tuas partes santificadas merecem o altar que erigi em meu quarto, diante do qual acendo mil velas votivas todas as noites. Você me ilumina, adorada de santa Lúcia, protetora da visão.


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Hoje de manhã, encontrei um bilhete debaixo de minha porta. Dizia: "Ajude-me, estou no limite". Foi você que me mandou?


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Experimentou ficar olhando para uma lâmpada acesa, durante horas, até perder totalmente a visão, sofrer tonturas e enjôo de estômago, tudo se tornar uma bola vermelha, sangrenta? Fiz isso ontem. E é a mesma coisa que olhar fixo para você no palco, uma hora e cinqüenta de peça. Você o tempo todo sem sair dali.


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Devo deixar crescer o bigode? Você gosta de homem com bigode?


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Conto para você. Ninguém do banco sabe. Quando tinha 22 anos, me casei. Seis meses depois, ao voltar à noite para casa, entrei no banheiro e vi minha mulher morta, debaixo do chuveiro. A água estava aberta, muito quente, e ela estendida no chão, morta. Não foi coração. Ninguém soube dizer o que foi. Nem o médico, nem autópsia. Às vezes não acredito que ela morreu, quanto mais que me casei.


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O vento batia em teus cabelos enquanto atravessávamos a praça e os fios dourados se espalhavam como paina ao vento. Paina dá um travesseiro macio.


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Você pássaro livre, madrugador, que ilumina o sonho de quantos vejam essa peça, nem pode imaginar o que seja uma cela solitária. Toda prisão tem uma. A nossa, este banco, tem quadro. Solitárias de vidro, onde ficamos incubados o dia todo, recebendo faces anônimas, gente que não nos ama, nem nos quer. Gente que pensa apenas em dinheiro, depositar, retirar, pagar, receber. Sabe o que é olhar a pessoa e saber que ela não está te vendo através do vidro do caixa? Não, não sabe. Não entrou nesse círculo do desespero, sem fim. Sabe o que é tentar se comunicar e não ter o que dizer a elas? Apenas poder perguntar, às vezes, para que ela te dirija uma palavra?


— Está certo o troco?


— O senhor quer mais trocado?


— Em notas de quê?


Erro propositadamente no dinheiro dos cheques, para que as pessoas falem comigo. Reclamações, sei, mas é alguma coisa. E uma reação daquela massa cinzenta que passa, minuto a minuto. Sem rosto, sem coração, sem sentimento, muda, diante de mim. E quando o dia termina, ter de voltar ao meu quarto, esfomeado, sem dinheiro, lendo a revista roubada do gerente, pensando que o mundo não é isso, mas que esse é o meu mundo. Manietado, observando. Fazer o quê? Compreender que é necessário romper e que para romper é preciso força. E essa força me falta; ou me falta orientação para quebrar a mim mesmo, o que sou, o mundo ao meu redor Este mundo que não aceito, sou obrigado a aceitar. Viver a vida inteira assim? Dia a dia, hora a hora, instante a instante, dilacerado de dor e impotência. Esmagado, e resistindo tenazmente ao esmagamento. De que vale resistir? Me diga uma só palavra. Você, os seus amigos, o escritor dessa peça aí. Diga.


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E você não está aqui. Não vem. Não vem nunca. Estou sozinho, sempre sozinho. Não tenho com quem falar, com quem andar, com quem passear, com quem brigar nem com quem dormir. Sozinho. Aqui no banco. Não falam mais comigo. Sabe o que foi a última coisa que aquela moça de quem já te falei me disse? Sabe? Qualquer dia te conto. Vou roubar mil cruzeiros. Se der.


Amor, guarda bem este amor, amor, amo, am, a, a, a,


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A letra, naquele bilhete que encontrei sob a porta, era minha. Como pode ser?


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Me tiraram do caixa, me passaram para a compensação. Não sei se é promoção ou castigo, ou o que quer que seja. Desconfio de que me querem fora da agência.


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Na minha euforia, ontem, mandei tudo em minúsculas e ontem você não merecia. Portanto, reconsidere a carta, passando para maiúsculas tudo, tudo.


Curiosa de saber o que fiz ontem? Quero dizer, quatro dias atrás?


Saí do teatro, quer dizer, acabei de ver a peça, não suportei a tensão, corri ao banheiro do teatro mesmo e prestei minha homenagem. Espero que você goste de saber disto. Que penso sempre em você e que o sexo faz parte de nosso amor. No bar em frente, tomei uma média, disfarcei, saí correndo. Não tinha com que pagar. Não conseguia andar de fraqueza. Seria fome? Estou assim, sem vontade, sem nada. A coisa que fiz foi engraçada. Você vai ver. Preciso falar muito. Para compensar o longo silêncio, os dias em que não nos vimos. Ontem fiquei bem impressionado. Um caixa do banco se matou. Tinha 28 anos e morava sozinho. Ninguém conhece nenhum parente dele. Era um cara tranqüilo, normal. Vagamente afetado. Conhecido pela pontualidade. Chegava na hora, saía na hora. Não dava um minuto a mais para o banco. Eficiente. Enforcou-se na janela do banheiro, com uma corda nova. Então, foi premeditado, estudado. Como pode alguém encarar a própria morte desta forma? Lucidamente, sem pavor ou terror. Penso sempre que estou morto. Que apenas sobrevivo, sem emoções, sobressaltos, ou sustos. Outro dia, enfiaram um envelope debaixo de minha porta e corri ansioso. Era uma carta anunciando um novo liquidificador. O incrível, no entanto, é que meu nome estava no envelope. Gritantemente ali. Quer dizer: alguém sabe meu nome, em alguma parte. Não basta isso para dar à gente contentamento, segurança e motivo para viver? Muitas e muitas vezes, apanho envelopes, contas de luz, gás, a notificação do imposto de renda e contemplo o meu nome. Sabe por quê? Eles são a certeza de que existo.


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Alguns dias tranqüilos. Me deram soro. O caninho vinha do tubo e enchia o meu corpo com aquele líquido branco, revigorante. Estou animado, contente. Pensei até: o meu soro é a Vera Fischer. A Vera que me penetra por todos os meus vazios. Vera que me penetra, eu que não penetro Vera. Pensei. Não pensei, tive vontade de te escrever uma carta erótica. Ficaria grosseiro, vulgar. Mas por que temos medo do vulgar? Por que não assumir? Uma carta que beirasse entre o erótico e o pornográfico. Assim eu me descarrego desta tensão. Será que a base de tudo isso é sexo? Vamos combinar uma coisa. Vamos? Na sexta-feira, à meia-noite em ponto, comece a pensar em mim. Firmemente. Pense em mim sexualmente. Estarei pensando em você. O que pode dar?


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Meio a custo, cheguei à compensação ontem à noite. Os cheques vinham e vinham. Eu estava tonto. Zonzo, as mãos tremiam. Só pensava em você e aí me fortalecia um pouco. Fui duas vezes ao banheiro, pensando nas coxas. Coxas brancas que voavam como asas sobre minha cabeça. Voltava. De repente, que mundo bobo me pareceu aquele de papeizinhos com quantias escritas. Milhares de papeizinhos correndo de mão em mão. Assinados. O movimento financeiro desta cidade. Então, recusei um cheque que tinha saldo. Me deu uma puta alegria. O cara tinha saldo e recusei um cheque de 30 mil cruzeiros. De uma firma. Que bolo. Resolvi recusar mais. Fazia assim. Aprovava vinte e recusava dois. Pequenos e grandes. Fodendo todo mundo que usa cheque. Fodendo o sistema econômico. Tive vontade de fazer um pequeno comício. Dizer aos outros: vamos recusar hoje todos os cheques. Amanhã te conto o resto. Eu te amo demais, mais, mais.


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Não me envergonho de dizer. Bati numa porta e pedi um prato de comida. Acredita que me deram? Deram. Nesta puta de uma cidade fechada, me deram um prato de comida caseira. Bom arroz, feijão, alface, um bife, tomate e um copo de água. Ofereceram café. Café? Quase pedi: não tem sobremesa? Faço questão de dar o endereço desta família nobre, altruísta, certamente não paulista. Não, que ela permaneça simples e humilde. Bobagens. Minha cabeça roda, gira, não devia ter comido tanto. Me lembrei de um livro, Fome. Puta livro. Na época, não acreditei. Agora, ando por São Paulo, igual ao cara. Só que o cara não amava desesperadamente como eu. O amor não destrói, constrói. O gerente me chamou. Você vai acabar demitido. Por justa causa. Se emende. Era um bom funcionário. Continue sendo. Se a gente não se comporta a vida toda como eles querem, o que acontece? É demitido. Demitido do emprego, demitido da vida, demitido da liberdade. Um amor como o teu me faz permanecer de pé.


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Na minha tonteira, vergonha, agora o estômago ronca. Nos lugares mais inesperados. Durante a peça, por exemplo. Quase morri de vergonha. Os meus olhos pregados nas tuas coxas brancas e o estômago roncando. E se você ouvisse? Me perdoaria? Jamais. Deitar-se com um sujeito cujo estômago ronca. Olho lá em cima, as frases começam a se atropelar. Ia dizendo que na minha tonteira tenho esquecido de te contar as coisas direito. Pois é. Vamos ver.


"Quase morri de vergonha: os meus olhos pregados na tua pele branca e o estômago roncando"

EU TE AMO, TE DESEJO, ME ROO DE VONTADE DE VOCÊ.


Na compensação, pensava em fazer uma revolução. A gente recusaria os cheques. Todos. Puta zorra no dia seguinte. Os bancos sendo invadidos, tomados, os gerentes alucinados. Corrida, os jornais noticiando. E eu aqui de fora só olhando. O mercado bancário em bancarrota. Os cheques voltando, a confusão, bagunça. Bagunça na minha cabeça. Fiquei frustrado por não promover esta revolução. A gente não pode ficar promovendo grandes revoluções, então devia promover pequenas. Não acha? Amor, amor, amor. Gozo.


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Nem na compensação. Dou plantão de uma hora cada dia no banco. Querem investigar minha vida. Somos teus amigos, o que está acontecendo? Você tem catorze anos de casa. E se tivesse quinze? Vinte? Tem um tipo legal que agora vai comigo para casa todos os dias. Me compra um sanduíche, um copo de leite. Estou com quatro meses de salário adiantado, o banco vem descontando tudo que pode. Desmaiei. Percebo que escrevo as palavras colando um "a" na frente. O a é de asa. Asa. Asas são suas coxas brancas, esvoaçantes. Elas ficam pelo quarto, a noite toda. Caem em cima de mim, macias, torturantes. Fico alucinado. Sem você, com essas coxas malditas. Não, não sou doentio, é apenas delírio de fome, falta de amor, falta de contato humano. Contato com gente, pele na pele, gente se excitando. Não, você não pode saber, não tem esses problemas. Não, não te odeio por não ter. Odeio a mim mesmo, por ser assim. Estar me entregando gradualmente.


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Pensei em você. Pensei. Não deu nada. Que besteira a minha. Não quero que você pense que sou lelé. Pense apenas, todos os dias e todas as noites, que alguém que não consegue ter você, está fixado em você. Obsessivamente. Mas com bons pensamentos. Ainda que maus propósitos. Maus. Maus para os cretinos do banco. Não quero mais saber deles. Me pagaram o justo. Saí com algum dinheiro. Duzentos mil é alguma coisa. Tenho comido bem, dormido, vou até mudar de casa. Quero comprar um carro. Catorze anos de casa significam:


1 — um carro


2 — algumas roupas


3 — casa nova


4 — uma viagem catorze anos e nada mais do que isso, amor, meu. Meu?


36


Um pensamento horrível me ocorreu. Mas conto, porque você é legal comigo, jamais me traiu.


Sabe o que pensei? Será que ela aceitaria estes duzentos mil para sair comigo? Uma só vez?


"Será que ela aceitaria estes duzentos mil cruzeiros pra sair comigo, só uma vez?"

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Não me queira mal. Não. Peço perdão. Perdão, que palavra mais imbecil. Ontem falei naqueles duzentos mil. Insultei? Ofendi? E que pensei de outra forma. Aquele dinheiro representa toda minha vida. Ao menos a profissional. E ele é teu. Inteiro. Então, estou te dando como presente um pedaço de minha vida. Em troca. O problema é esse: troca. No banco fiquei moralista, puritano, preconceituoso. Perdi o senso, o julgamento. Não tenho mais o que dizer hoje. Terei amanhã? Se você não estiver brava comigo, sim.


38


Releio cópias de minhas cartas. Não escrevo tão mal. Quem sabe pudesse realmente te conquistar através de cartas? Tem coisas que não gosto, podia ser melhor. Falta a prática. No banco, sabe o que eu redigia? Nada. Ali só aprendi a fazer tudo certinho. Organizado demais. Por obrigação. Não sair da linha, dos regulamentos, a fim de não perder o emprego. Tem gente que comanda a vida dos outros. Fazer, pensar, agir assim. O incrível é que existem pessoas para obedecer, ficar satisfeitas com isso. E estas que obedecem, a meu ver, são tão culpadas como as que comandam. Os obedientes ajudam, fazem pressão sobre você para que também obedeça, não saia da linha, não questione. Não eram os chefes no banco, os piores, e sim os colegas que vigiavam, olhavam, criticamente, cutucavam, silenciavam, reprovavam, censuravam, enfim, construíam ao seu redor um ambiente de mal-estar, em que você se sentia incomodado. Se não gosta, por que não sai? É a única coisa que conseguem dizer, é o modo de resumir o que pensam. Se você não é como eles, ficam muito assustados, inseguros. E para resistir, é preciso força. Esta força que preciso de você, amada.


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Aquela colega do banco veio me visitar. Estou numa pensão ótima. Ela me contou que o sonho da vida dela era fazer teatro. Trabalhar, subir no palco, brilhar. Fazer cinema. Viu que filhada-mãe? Na verdade, ela te inveja. Aí ficamos falando do banco, das pessoas. Um mundo tão diferente o meu, do teu. Nem pode imaginar. Fiquei me sentindo chocho, muito sem objetivo. Vou me meter em alguma coisa ousada. Alguma coisa pra valer. Se você estivesse do meu lado, poderíamos tocar uma vida juntos. Não papai e mamãe. Vida mesmo, vivida. Meio Bonny e Clide. Fiquei tarado com aquele filme. O negócio é esse: viver pouco e muito. Somente morrer cedo consagra, define, estabelece o mito. Não gastei ainda um décimo da indenização.


Amo-te — muito, demais.


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Estava chovendo, entrei no cinema, fiquei lendo o jornal na sala de espera. Não é que não goste de entrar no meio do filme, é que eu não tinha nada a fazer, na rua estava úmido e frio, desagradável, e ali na sala confortável. Foi nesse jornal que li a notícia das ariranhas agressivas. Um menino, no zoológico, caiu no fosso das ariranhas. Um sargento foi salvá-lo, morreu, atacado a dentadas pelos bichinhos. Li também a história de um homem que matou a mulher e os filhos, e um chofer de táxi que matou um menino de 10 anos. Então começou o documentário sobre Elvis Presley, uma excursão que ele fez pelos Estados Unidos. Elvis morto, mas ainda ali, vivo, cantando, dentro do filme, conservado, eternizado. Não é para deixar a cabeça da gente confusa? Morreu, mas está vivo. Mesmo que estivesse vivo, era desconcertante, desajustante a idéia de que eu, nesta cidade, a milhares de quilômetros dos Estados Unidos, estava a vê-lo cantar no meio de uma tarde chuvosa.


O alcance destas coisas fica além da nossa compreensão, dos limites, como dizia o bilhete, estou atingindo o limite, ou já atingiu, quem atingiu, quem mandou o bilhete, ou eu?


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A história das ariranhas que me chocou saiu nos jornais da semana passada. Lembra-se? Você deve ler jornais. Todos os dias falam de você, dessa novela que me fascina, me obriga a pensar. As ariranhas ficaram na minha cabeça o tempo inteiro. Pensei: será que sou o menino que se equilibra no gradil e cai no fosso? Ou sou quem pula para salvar o menino, é mordido, desiste de lutar, se entrega? É uma coisa que faço sempre, me colocar dentro de uma situação. Porque todas as situações são simbólicas, elas se inter-relacionam, uma tem elementos da outra. Teoria minha. Só posso ficar bolando teorias, deitado no quarto olhando o teto. A minha teoria é que não existem novas situações. O mundo está dividido em compartimentos estanques, centenas. Ou milhares. Em cada instante, vamos flutuando de um compartimento para outro, tocado pela experiência existente dentro dele. Os elementos de um compartimento escapam de um para o outro, há misturas. Você não pode passar do compartimento A para o C, sem ter sentido o B. O que pode acontecer é você não estar consciente nos compartimentos B, C, D, E e adquirir a lucidez no F. Subitamente, no P, você, ou o seu inconsciente, se lembra de fragmentos do B, e então você interliga certas coisas. Entende? É fácil. Ninguém tem vivência total de todos os compartimentos, o tempo inteiro. Muitos deles estão afundados em sua memória, são desvendados aos poucos, voluntariamente, ou com esforço, ou arrancados de lá por instrumentos físicos ou psíquicos que forçam a mente. Certos compartimentos se comunicam por deficiências físicas. Há um vazamento, um furo, um canal que não devia haver. Então, formam-se em nossa mente imagens sobrepostas, sensações de já ter vivido um instante, quando o instante está por viver. Trata-se apenas de informação que vazou da frente para trás, por canais que não possuem vedação eficiente. Você preenche todos os meus compartimentos, com amor.


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Notou minha falta? Fui ao interior, dois dias. Fui por ir. No trem pensava naquela viagem que fizemos juntos. O vagão quase vazio, você excitadíssima, vindo para cima de mim, ali no banco mesmo. Uma loucura. Eu sentado, fumando. Você colocou a coxa na minha perna. Fiquei daquele jeito, na hora. Sua coxa fenomenal. Você sentiu, e me provocou. O conferente de bilhetes estava lá no fundo. Um velho magro. Você me beijou de língua. Eu com medo. Um bancário é uma merda, fica condicionado ao medo. Você continuou. Sentou-se no meu colo, tirou a calcinha. Loucura, loucura. Se esfregava, esfregava e gemia. O bestalhão aqui gostando e com pavor do bilheteiro. Você me desabotoou. Foi ali no banco mesmo. Ali naquele trem noturno que nos levava, levava, levava. E apitava, apitava. Não sei mais se era o apito ou os teus gemidos na noite do nosso amor.


"Finalmente, no banco do trem, você no meu colo, e sem a calcinha. Loucura. Se esfregava e gemia"

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Cansado. De não achar emprego. Cansado de ver a peça. Sei de cor. Cansado deste amor irremediável. Que preocupações mesquinhas tenho tido durante minha vida. Não errar no troco, conferir o caixa, fazer o relatório corretamente, manter a roupa limpa, a gravata no lugar, tratar as pessoas honestamente, procurar progredir no trabalho, viver decentemente. Quando comecei a escrever para você, pensei em dizer as maiores sacanagens. Em fazer com que você lesse besteiras, grosserias. Da pesada. Por quê? O que tinha em minha cabeça? A princípio não consegui escrever as indecências que pretendia. Depois não vi sentido. O que era fixação virou amor, verdadeiro, angustiado, sofrido. Claro que eu podia chegar um dia aí e dizer: eu que escrevi as cartas. Você tanto podia rir, como de repente se jogar em meus braços e gritar: te esperei tanto. Pura novela de televisão.


Sonhei algum tempo. Já não tenho mais vontade de sonhar. Não dá mais pé. Imaginei, e não há mais chances para a imaginação. Nenhuma. Lembre-se sempre: te amo.


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Você me fez companhia. Muito. Ninguém privou com você tanto quanto eu. Tenho de ser agradecido. Pensei muito: ela vai ficar de saco cheio. Vai pensar que sou encucado, chato, louco varrido. Vai rir de mim. E se rir? E se eu for tudo isso? A gente é. O problema, Verinha, é quando a gente não é. Na verdade, não sou. Me entende? Queria ser, e não sou. Ser eu, do jeito que sou. Que sonho ser. Fiquei sendo dos outros, moldado, ajeitado às regras do bem-viver. Fique tranqüila. Tudo bem comigo. Apliquei cento e cinqüenta mil cruzeiros em letras de câmbio. E pela primeira vez em muitos anos, chorei em casa, à noite. Chorei muito. Nem quando você me desprezava ou brigávamos chorei assim. Oprimido, dolorido. Aquelas letras de câmbio são o meu cárcere irresistível, irremediável. Coragem, Vera, não se adquire. Nasce e se desenvolve com a gente. Ou se revela em certos momentos.


Coisa de almanaque, você deve estar pensando. Se tivéssemos continuado juntos eu poderia mudar. Você me ajudaria. A imagem grandiosa e feliz que eu gostaria de te dar, não dei. Alegrias, quais? Quando você riu comigo? E amor é feito também de risos. Principalmente. Não esse torturar diário que te passei. Por isso me afasto, me distancio. Eu, cujo grande momento na vida se passou a bordo de um trem, na noite em que você tentou me mostrar quem eu poderia ser.


Tudo bem comigo. Hoje consegui emprego noutro banco. Um lugar bom, de futuro. Continuarei seguindo tua carreira, torcendo por você, comprando revistas a teu respeito. Continuarei te amando.


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Bilhetinho junto com um maço de flores do campo, entregue no teatro pouco antes da sessão começar:


"Vera. Sou bancário? Meu nome é Beto? Gosto de você? Como é possível saber? Escrevi durante oito meses. Será que brinquei com você? O que você sentiu este tempo todo? Como reagiu às minhas cartas? Emocionou? Se distraiu, criou o hábito de recebê-las? Como saber, não é? Hoje estou decidido. Desde que me levantei, penso nisso. É chegada a hora. A calça veio do tintureiro, comprei uma camisa, amarrotei, lavei para não parecer nova. Estarei à sua espera, quando a peça terminar. Vou ao camarim te dar um abraço. Não preciso de nada para ser reconhecido. Me apresento. Irei?


Do teu amor, sempre."


ILUSTRAÇÃO NÍLTON RAMALHO


Publicado em agosto de 1979, ed. 49. Editora Abril, São Paulo - SP.
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