top of page

PELÉ

Perfil



A vida do Rei em Nova York


Pelé, seus milhões de dólares, sua cama cobiçada

e o que ninguém nunca contou de suas aventuras no jet-set.


Perfil NIRLANDO BEIRÃO (*)


"Um dia desses, descendo para almoçar, acho que no Charley O's da rua 48, com o Robert Redford, estávamos eu e ele na rua, e ele, de repente, espantado, me disse: Fuck, man, how popular you are! Também pudera: eu já tinha dado uns dez autógrafos e ele, o Robert Redford, nenhum."


Fuck man, popular é pouco. Raros personagens poderiam ter uma história sobre eles começarem assim: "Um dia, eu e o Robert Redford..." O ator é amigo, vizinho de escritório, mesmo prédio, mesmo andar. Mas o nosso personagem surpreende. É capaz de passear meio casualmente com uma dezena do outras cintilantes celebridades, no curto espaço de uma conversa de fim de tarde. Assim:


"A Jackie Kennedy me cumprimentou, e na mesma hora senti aqueles olhares em volta, como se o personagem estivesse pensando: 'Pô, o crioulo está com tudo', e eu lá, pensando, 'Ela nem é bonita, não dá tesão'".


"Estraçalhei o Spielberg numa partida de tênis em East Hampton. Ele não acerta uma bola..."


"O Beckenbauer, quando vem a Nova York, fica comigo, o Bobby Moore também."


"Aí, a Régine Choukroun me ligou: 'Sem você, não tem festa, nem abro a casa'."


"Aprendi a esquiar com o Bjorn Borg, aquela vez, na Suíça..."


"O Andy Warhol, quando fez meu retrato, me disse que eu era a única celebridade que, em vez de durar 15 minutos, duraria 15 séculos."


Histórias desse calibre, para contar, histórias de embasbacar, ele tem centenas. De algumas, ele se orgulha. De outras, porém, modestamente se vexa, como se o incomodassem, ainda hoje, as luzes da ribalta. Esta é das de orgulhar:


"Sabe que os Kennedy me ligaram, hoje, pedindo para eu ir até Dublin, Ireland [em inglês], com eles, o Ted, a Eunice, eles todos, uma festa da família, parece — para eu dar uma forcinha, sabe? Mandei dizer, pela Kelly, minha filha: Vamos ver, depende das datas. Só vou se não for politicagem. Apoio político, eu não dou".


Como a quermesse irlandesa da família Kennedy estava prevista para meados de agosto e como, em meados de agosto, nosso personagem e um seleto elenco de acompanhantes escolhidos a dedo estariam desfrutando, a 500 dólares por cabeça, só em hospedagem, num condomínio fechado de Marbella, na Costa do Sol espanhola, das delícias da alta estação, era bastante improvável que Ted, Eunice e todos eles viessem a contar com a ilustre companhia de nosso personagem, apesar da torcida de Kelly Cristina, sua filha e secretária.


Escutem esta outra história, envolta em vapores orientais de mil e uma noites, na verdade a tradução de uma conversa travada, ao telefone, num inglês bastante razoável, numa tarde outonal do Rio de Janeiro, com alguém que, do outro lado, se identificava como ninguém menos do que Sua Alteza Real, o xeque Ahmed Abdulah Eid, from Jedah, Arábia Saudita, um dos donos do Al-Ah-li, o time de Telê Santana:


"Estou aqui cercado de garotas de Ipanema", brinca Pelé. "Sei que você também gosta, não é, Ahmed?" Ahmed é um riquíssimo xeque árabe

"Alô, Ahmed... Bom gosto, né? Estou aqui cercado de garotas de Ipanema, girls from Ipanema... Ha, ha, ha... E, eu sei que você também é chegado, príncipe... Ha, ha, ha... Claro que vou. Já tem data certa?... O Alfredo saiu, está no escritório do centro, downtown, se você quiser eu dou o número... Olha, fora o que for acertado entre vocês e o Telê, eu vou, faço questão... Hum-hum... Nice to talk to you... Thank you. Bye".


PELÉ DIZ: "ELE, O PELÉ..."


Aparentemente, o príncipe Ahmed teve a precaução de evitar que a data de inauguração do novo estádio de futebol de Jedah coincidisse com o pique da saison em Marbella.


São histórias realmente acontecidas, extraídas de algumas horas de conversa, em Nova York e no Rio, das quais você pode sair convencido do que for, menos, paradoxalmente, que o personagem é um deslumbrado. As histórias são banalidades para ele, uma celebridade, o Cinderelo da mass-midia mundial, o brasileiro — e talvez o homem — mais famoso do planeta, esportista do século, eleito por jornalistas de todo o mundo, estrela em Pequim, onde a criançada, como nos bons tempos do maoísmo, se aglomerou na porta do hotel, gritando "Pili, Pili", ou em Biafra, na África, onde a guerrilha parou certo dia, na década de 60, para que todos, rebeldes e regulares, numa pausa bíblica, pudessem ver o craque desfilar seu talento com uma bola nos pés.


Se dependesse dele e de sua modéstia, tombada e preservada por uma espécie de patrimônio ético que resiste às cintilações mundanas e às afetações pessoais que o envolvem, tentadoramente, seria talvez conveniente recomeçar esta narrativa de uma forma, digamos, mais prosaica, na intimidade doméstica de um prédio de apartamentos da rua 54 com Segunda Avenida, em Nova York:


"Aí, eu desci no elevador até o basement, com uma trouxa de roupa, você sabe, cuecas, meias, roupas de criança... Botei tudo na máquina, enfiei as moedas de quarter dollar e a máquina começou a sacudir. Ouvi, num canto, duas vizinhas sussurrando: Looks like Pelei. Mas it's impossible, continuaram elas. Pelei não iria lavar sua própria roupa suja".


No fundo, tinham razão, as bisbilhoteiras. Pelei, ou Pelé, não lava suas cuecas. Existem dois personagens relativamente autônomos: um, o Pelei, ou Pelé, a quem ele próprio se refere, com a necessária cerimônia, na terceira pessoa do singular — ele, o Pelé, a criatura famosa, aquele outro lá, distante, como se fosse um display de papelão, uma frase em neon, uma fachada promocional, um produto, enfim, reluzente, cosmopolita, que as vizinhas estranham poder estar ali, num prédio pouco principesco do Midtown; e há o outro, que é quem desce o elevador, carregando a trouxa de roupa, e vai pachorrentamente lavar as cuecas.


Quem lava as cuecas é o Edson Arantes do Nascimento, ou o Dico, como têm licença para chamá-lo uma meia dúzia de amigos muito íntimos: um crioulo meio chorão, que adora ficar em casa paparicando os três filhos; que eventualmente mora em Manhattan, o endereço mais chique do universo, mas que tem seu coração provinciano passeando a milhares de quilômetros dali, em Bauru, no Grajaú, na favela do Pavãozinho ou na Ponta da Praia em Santos; o Dico que deixa para cortar cabelo a 12 mil cruzeiros, com o Didi, numa barbearia de uma cadeira só e mesa de fórmica lascada, na Vila Belmiro, em Santos, e que, embora seja sempre generoso em gentilezas, raramente é pródigo na gorjeta; que dispensa champanha e caviar em troca do insuperável torresminho com que as mãos mágicas de dona Rute, sua governanta em Santos há 23 anos, contemplam seu paladar; o Edson que tem vergonha de fazer xixi em avião; que é muito namorador mas que, no fundo da alma, ainda sonha com um bom casamento, como o seu primeiro não foi — sólido, fiel, feliz, camarada e duradouro. Eventualmente, com uma Cinderela loura e dois darde-jantes olhos verdes.


O Pelé e o Dico não precisam e nunca precisaram de psiquiatra. Eles são um raro exemplo de excelente convivência. Pelé, que ganha no mínimo meio milhão de dólares por ano só em meia dúzia de anúncios, segundo a inconfidência de um amigo, dá boa vida ao Dico, mas é o Dico quem o consola da mineira e permanente desconfiança que o devora por dentro, que é saber se as pessoas gostam de fato do Pelé ou apenas querem se aproveitar dele. Este episódio ajuda a esclarecer onde termina o Pelé e onde começa o Dico: quando se casou, em 1966, com grande estardalhaço, Pelé passou a lua-de-mel na Europa e ganhou audiência particular com o papa Paulo VI. Pelé e sua então mulher, Rose Cholby do Nascimento, estavam impecáveis: ele, de terno e gravata, ela, com um véu negro, como recomendava o protocolo pontificio. Pelé entrou com todas as honras, a Guarda Suíça perfilada. Paulo VI o abraçou e disse: "Meu filho, você está feliz, casou-se, é um campeão, mas não se esqueça que a vida é feita de espinhos, tem altos e baixos". O envaidecido Pelé saiu de cena e o Dico, emocionado, chorou.

O PRIMEIRO US$ MILHÃO


Pelé é executivo de uma corporação multinacional, a Warner Communications, com dez anos de casa e responsabilidades de globetrotter, Dico é preguiçoso e costuma acordar de madrugada para arriscar um sambinha novo, ao violão. Dico pega um yellow cab na esquina, Pelé desfila num Cadillac preto do ano, com telefone a bordo, presente da empresa. Pelé recebe telefonemas ilustres e internacionais a toda hora, o Dico remancha e diz que não está. Dico é preto, Pelé quase não é. Dico é um solitário de raros amigos, Pelé, um desbravador das noites, das louras vaporosas, dos amores secretos, das incansáveis badalações do jet-set.


Nova York desconhece o Dico, ou o Edson. Mas adora o Pelé. Taí o Robert Redford que não deixa mentir. Taí a família Kennedy. Taí o Muhammad Ali.


A propósito, foi o mais famoso, o mais tagarela, o mais histriônico, o mais polêmico, o mais admirado boxeur de todos os tempos quem deu o veredito final na involuntária competição em que se meteu com o mais celebrado jogador de futebol da história. Pelé acabava de chegar nos Estados Unidos: 15 de junho de 1975. Aposentado na Seleção, em 1971, no Santos, em 1974, Pelé chegava ao Cosmos para ensinar os americanos a amar o soccer. Perguntaram a Ali quem era o mais famoso, se ele ou se Pelé. Ali resmungou, fingindo aborrecimento:


— Ele é mais famoso porque tem mais gente que vê futebol do que boxe. Mas eu sou mais bonito.


Ali é outro de quem nosso personagem tem o direito de falar, assim, casualmente: "Uma noite, indo jantar, eu e o Ali..." Hoje, eles se vêem menos. "Ele chorou na minha festa de despedida", diz Pelé. Em compensação, Pelé chora hoje por um amigo que sofre as seqüelas das muitas pancadas que enfrentou, num ringue. "Com ele", diz Pelé, "aprendi uma lição: você tem que parar com o que está fazendo enquanto ainda está por cima. Quando parei com o Cosmos, em outubro de 1977, eu ainda tinha muito fubebol para jogar. O Ali voltou mal, levou muita porrada, ficou assim, com esses tremeliques."


Pelé (**) — Não tenho mais tantos negócios como eu tinha há alguns anos atrás, quando tive uma fábrica de fazer borracha, a Fiolax, uma firma de exportação e importação no porto de Santos...


Playboy — ... uma firma de material de construção, a Sanitária Santista...


Pelé — E, eu não tenho mais. O que eu tenho agora é meu contrato com a Warner, que termina em 1989, mas pode ser renovado. Tenho um escritório que toma conta das minhas publicidades, em Santos, a Pelé Administração, Comércio e Propaganda, sou sócio da Rádio Clube de Santos, meio a meio com o Vasco Faé, ex-presidente do Santos. É o que eu tenho, o que eu faço. Faço cinema, faço publicidade, faço televisão.


Playboy — O americano tem uma frase: "difícil é o primeiro milhão de dólares; o segundo, o terceiro, o quarto vêm em seguida" . Quando você chegou ao primeiro milhão de dólares?


Pelé — Não tenho idéia. Porque fui comprando imóveis, fui aplicando o dinheiro, tinha minha família que eu cuidava. Todo mundo fala: "Ah, você ganha..." O importante é ver o que você produz, para quantas pessoas você dá oportunidade. Independente da família, que é grande, tem tios em Três Corações, primos, que eu ajudo, meu pai, que é funcionário público.


A pessoa física paga "uma nota" de imposto de renda. A pessoa jurídica alimenta 50 bocas, do Japão à Alemanha, de Nova York a Três Corações

Playboy — Quantas pessoas trabalham com você, diretamente?


Pelé — Mais de 50, talvez mais ainda. Veja só: tenho um representante que ganha comissão no Japão, tenho na Inglaterra, aqui nos Estados Unidos, no meu escritório são uma dez pessoas, dez pessoas representam 30, porque cada família tem no mínimo três pessoas, aqui em Nova York tenho mais 10, quase todos casados, sem contar os agentes individuais que nós temos pelo mundo afora.


Playboy — Você paga imposto de renda em Nova York ou no Brasil?


Pelé — Aqui e no Brasil. Aqui, tenho o contrato com a Warner, pago o que recebo aqui. No Brasil sou cidadão brasileiro, pago pelo que recebo lá.


Playboy — Quanto?


Pelé — Não dá para calcular.


Playboy — Uma nota?


Pelé — Uma nota. Mas não dá para calcular porque o forte é o que vem em royalty, faturamento da publicidade, de merchandising. Aí varia, se vende mais, eu faturo mais.


Nosso personagem dá idéia, por temperamento ou conveniências contratuais, de viver num eterno mar de rosas, tudo bem, bicho, tudo legal, um São Francisco de Assis que fez judô, fez karatê, e não briga desde moleque — mas o fato é que o cash flow levou, subitamente, de janeiro para cá, uma pancada. Culpa do patrão, a Warner Communications, que anda mal das pernas. Pelé não pode ser botado no olho da rua, o contrato assegura. Ninguém há de lhe tomar o carrão do ano, outra mordomia prevista no papel, e tampouco o apartamento de dois salões e três quartos para o qual ele se mudou, em 1979, depois de separado, presente da Warner, que hoje vale uns 700 mil dólares, incluindo o fetiche de pertencer a uma estrela, coisa bem de Nova York, onde até um aluguel pode ficar mil dólares mais caro se você quiser ter como vizinho alguém como Dustin Hoffman ou Al Pacino.


UM MITO ACIMA DA CRISE


Pelé se segurou, mas a Warner passou com um caterpilar em cima de seu próprio e milionário sonho esportivo. O Cosmos quase não joga mais na América e não joga de jeito nenhum no exterior. Dispensou os cobras. Uma das fontes de renda de Pelé eram as diárias que recebia, quando acompanhava o time, em excursões de além-mar. Tinha de ir: fazer um rapapé, dar o chute inicial, marcar presença. A razzia pegou do principal executivo do Cosmos, Rafael de la Sierra, à secretária de Pelé. O corte de despesas sacrificou até as ambições geofísicas de seu escritório, no 23.° andar do prédio da companhia, na Rockefeller Plaza — reduzido, agora, a duas saletas, alguns sofás, cadeiras confortáveis, cores sóbrias, uma mesa redonda com pose de mesa de reuniões, uma televisão, um videocassete, nada além do que mereceria um executivo comum, se não fosse a abundância de fotos na parede, lembrando momentos épicos de uma carreira incomparável. Marjorie, filha do professor Júlio Mazzei, que ele trouxe de Santos, atende a porta, e Kelly Cristina, a filha de 17 anos, os telefonemas — ambas pagas com dinheiro da pessoa física Pelé. Cuidam também de responder, com uma palavrinha encorajadora e uma foto autografada, as 800 cartas que chegam por mês, em média.


O mito permanece, mas a Warner encolheu e o trabalho diminuiu, o que contempla o Dico, que, como já se viu, é dengoso e dorme tarde. Até o ano passado, os compromissos prendiam Pelé por sete meses em Nova York e Hemisfério Norte e o liberavam para passar apenas os outros cinco no Brasil. Este ano, ele inverte tudo: quatro, na América, com a adicional indulgência de uma e outra escapadela, como a semana de sol em Marbella, e o resto no Brasil. "A rigor, tive dois meses de férias, em maio e junho", confessa. E só pegou o avião no dia 10 de julho porque ainda se sente meio responsável pelo Soccer Camp que tem o seu nome — embora seja a Warner quem fature. A Warner já teve, no pique do futebol, três desses acampamentos para garotos e garotas aprenderem futebol, nas férias. "Um ano, só no meu, tivemos quase 2 mil alunos", recorda Pelé. Para este ano, juntando tudo, não esperava mais de 150. O inseparável professor Mazzei, pai por adoção, dá uma força. Mazzei também viveu os anos de ouro do Cosmos, chegou a ser seu técnico, hoje está desempregado. Usando sua influência, Pelé quer enviá-lo rumo aos petrodólares da Arábia.


ROSE PELE VS. GAL COSTA


Importante não perder o aplomb. O alto executivo sai de casa, invariavelmente, de terno e gravata, alguns da Brookes Brothers, embora outros possam ocultar a etiqueta Canalonga, de uma família de alfaiates de Santos. Como se recomenda, nesses ambientes endinheirados do Midtown, chega no trabalho de Cadillac, embora a distância, da rua 54 à Rockefeller Plaza, pudesse propiciar a ocasião para uma saudável caminhada de quatro quadras. O horário é que é camarada: ele nunca chega antes das 10 e, ao meio-dia, quando não há almoço de negócios marcado, dá para cruzar a ponte e dar uma fugida até o Queens, para uma partida de tênis com o jornalista Lucas Mendes, correspondente da Rede Globo. A quadra fica num lugar distante o suficiente para que ninguém jamais se dê o trabalho de conferir a versão sempre conflitante sobre quem joga melhor. Só volta ao escritório à tarde se tiver de acertar um ou outro contrato publicitário, que é de onde jorram os dólares.


Cadillac preto do ano, com telefone e motorista, Rolex de ouro no pulso, o executivo chega à Rockefeller Plaza para trabalhar duas horas

O filé publicitário tem o nome Puma e o sobrenome Pelé. Puma é o gigante alemão de produtos esportivos, com sede em Munique e negócios multinacionais, que batizou de Pelé toda uma linha de chuteiras, tênis e acessórios. Se um tailandês adquire, em Bangkok, um calção Pelé, nosso personagem fica um pouco mais rico. "A Puma vende muito", diz ele. "Mas tem época que vende mais, tem época que vende menos." É esta oscilação que ainda atazana a tranqüilidade do empresário Pelé, sobretudo se você levar em conta que não há nada que chame mais sua atenção — depois das mulheres — do que o dinheiro. Aliás, o contato ocasional de uma dessas idéias fixas com a outra costuma ter efeitos explosivos, para nosso personagem. O melhor exemplo foi sua tumultuada separação com a primeira mulher, Rose, mãe de seus três filhos, Kelly, a mais velha, de 17 anos, Edinho, de 13, e Jennifer, de 6. Duraram dois anos as desgastantes batalhas no fórum de Nova York. Quatro anos depois, Pelé paga perto de 800 dólares semanais de pensão, fora todas as outras despesas — como médico, escolas, etc. Edinho, que estuda em colégio interno, custa-lhe, por exemplo, 8 mil dólares por mês. E, vira e mexe, as relações com Rose, que se tornaram mais amistosas, recentemente, voltam a se azedar. Há poucos meses, Rose apresentou a Pelé uma salgada conta de quase 28 mil dólares, só em roupas para as crianças. Mais uma vez, o caso foi parar na Justiça. Pelé abre o coração:


Pelé — Eu nunca disse isso para ninguém: eu gostei muito da Rose numa época, quando eu a conheci ela tinha uns 13 para 14 anos, e eu 18 para 19. Eu saía pra caçar com o pai dela, pra pescar, ia na casa dela, eu e outros jogadores do Santos, a gente ia em grupo. Ela e as irmãs, são três irmãs, eram fanáticas pelo Santos, a gente fez amizade, começamos a sair juntos, amigo, amiga, acabei namorando e casando. Depois eu descobri que não amava, eu casei sem amar.


Playboy — E ela?


Pelé — Não sei, da mesma maneira que eu pensei que amava, e não amava, só gostava, talvez ela tivesse pensado que amava e só gostava. Mas, por educação religiosa, essas coisas, eu não queria separar de jeito nenhum. Um dia, ela quis separar, propôs uma coisa que eu não iria cumprir, porque eu sou honesto. Ela queria, depois que a gente veio para cá, em 1975, que eu deixasse de fotografar, de fazer comerciais com mulher, que eu deixasse de filmar, que eu vivesse só para ela e pro Cosmos. Ou isso ou a separação. Quer dizer, ela me botou na parede.


Playboy — O que houve: ciúme, insegurança dela?


Pelé — É o que todo mundo fala, um problema de insegurança. Olha, eu sempre gostei de música, e comecei a dar música para gravar, quando dei para Elis Regina foi uma bronca danada, depois veio a Gal, sempre tinha problema em casa... Você sabe que já não é mole conviver, no casamento, com uma pessoa que você ama. Quando você só gosta, fica mais difícil ainda.


Playboy — Mas vocês ainda tiveram a filha Jennifer, foi uma tentativa de salvar o casamento ou aconteceu sem esperar?


Pelé — É uma coisa meio difícil pra eu explicar, porque a gente não tinha combinado nada, já estávamos aqui em Nova York e já tínhamos tido problemas. Ela tomava pílula depois do Edinho, engordou, depois recuperou, mas ela não queria tomar. E, um dia, me disse que estava grávida.


Playboy — Cá entre nós, talvez tenha sido uma tentativa de te segurar...


Pelé — É, pode ser, mas acontece que...


Playboy — Acontece que nasceu e vocês se separaram.


Pelé — É, nasceu, e na mesma semana a gente se separou. Eu voltei da Copa do Mundo [na Argentina, em 1978] e a gente se separou. Foi um negócio chato, triste, a educação religiosa que eu te falei, minha família não aceitava muito. Agora, a gente tem uma amizade relativa. Não é uma coisa muito boa, mas a gente se conversa.


Playboy — Foi divórcio litigioso, na Justiça, muitos problemas entre vocês, não foi?


Pelé — Eu não queria ir para a Corte. Ela não aceitou e quis pegar advogado. Eu conversei com o advogado dela e quis saber se ele não poderia fazer a separação dos dois, a gente acertava, eu e ela, e ele disse que não, que era ética profissional, que eu tinha de ter outro advogado. Quando peguei o advogado, as coisas ficaram mais difíceis, porque aí meu advogado queria provar que era o bom... A gente passou dois anos na Corte, separando. Estamos separados há cinco.


Playboy — Gastaram um dinheirão...


Pelé — O dinheiro que a gente dividiu com os advogados a gente deveria ter dividido para os filhos.


Playboy — Você tem tais e tais dias para ver os filhos?


Pelé — No acordo, ela abriu mão, disse que eu podia... Nos dois primeiros anos foi meio difícil, havia um pouco de mágoa.


Playboy — Na Corte, quem ganhou? Ou o jogo deu empate?


Pelé — Pra ser honesto, com todo o amor que tenho por meus filhos, acho que se a gente não fosse para a Corte ia ser melhor pra ela, eu estava oferecendo quase tudo, não me preocupava porque eu tinha condições de trabalhar.


Playboy — Ela mora aqui em Nova York. Muito longe?


Pelé — A umas dez quadras daqui, em Manhattan mesmo. Antes, morava na rua 56, ela mudou agora há pouco tempo para a... a... (não se recorda).


Playboy — Você vai na casa dela, entra lá?


Pelé — Normalmente evito entrar, pego as crianças e vou pra casa. Quando ela quer falar comigo, aí eu entro, a gente conversa sobre as crianças, o colégio.


Playboy — Você, como pai, como é?


Pelé — Às vezes fico com um pouco de remorso, porque fico pouco com eles, queria ficar mais. Mesmo assim eles me adoram. Você vê, a menina de 5 anos, a Jennifer [a Jennifer vai fazer 7], não quer sair daqui, se deixar ela fica morando aqui.


E quando Jennifer e os outros entestam de ficar, aí entra em ação o Super-Pelé, Rei do Lar, que dispensa empregada doméstica, embora pudesse se dar a esse luxo, mesmo na América. Naquela noite, ele terá de sacrificar o requinte gastronômico do Les Pyrénées, na rua 51, dos amigos Jean-Claude e Claudinha Pujol, pelo improviso de um TV dinner, que ele esquentará no forno de microondas. Vem até tomando gosto pelo fogão: nos domingos em que está em Manhattan, mete o avental para receber os amigos mais chegados em torno de um guisado de peixe ao molho de camarão — sua especialidade. É comovente vê-lo, no apartamento da rua 54, tentando reproduzir a atmosfera doméstica das domingueiras na casa paterna de Bauru ou de Santos: musiquinha ligeira ao fundo, o papo dos companheiros, barafunda de crianças, ele, refestelado na poltrona favorita, com ares de patriarca. Mais tarde, sozinho, ele botará os pratos sujos na máquina de lavar, recolherá, como extremoso pai solteiro, as roupas de Jennifer, limpará os cinzeiros, passará os olhos numa revista e candidamente adormecerá. Pena que, para desespero dos leitores enternecidos, nem sempre esta cena aconteça exatamente assim: sozinho, o Pelé quase nunca está.


Só nos seis primeiros meses do ano, 120 mil quilômetros de avião. Ele já preencheu, com selos e carimbos, 14 passaportes

E quase sempre tem um pé num avião. Não faltará quem ache um luxo o fato de que esse homem tenha viajado 120 mil quilômetros de avião, sempre de primeira classe, é claro, só nos seis primeiros meses deste ano — 134 horas a bordo. Este último passaporte — dos 13 ou 14 que já completou de vistos e carimbos — registrou: Nova York, inúmeras vezes, Los Angeles, Tóquio (duas vezes), Frankfurt, Munique, Londres, Paris, Sidney, Nairobi, Kampala (Uganda), Saint Thomas, Guadalupe (ambas ilhas do Caribe), Assunção, Santa Cruz de la Sierra. E, com certeza, no segundo semestre, os filhos teriam de competir pelos afetos do pai com suas responsabilidades de ir à Arábia Saudita, para o jogo do príncipe; Bahrein, Kuwait, Roma etc. Da Austrália, ligam: querem o Pelé na abertura da Olimpíada dos Imigrantes. 24 países. Ele, o homenageado especial. Data? Está marcada para o final de setembro. Mas, se for preciso, eles mudam.


Os maiores compromissos continuam sendo os publicitários: um seriado no Japão, um analgésico chamado Panadol, da Bayer, vendido nos Estados Unidos e América Central, a Puma. Sem falar nos contratos brasileiros tipo Café Pelé, o Pelezinho do Maurício de Souza, o Vitasay. Ele é um Midas que nem sempre usufrui os benefícios de seu toque mágico mas que, com ele, sempre enriquece os amigos e associados. Acertou, por exemplo, um contrato com a Rede Bandeirantes de Televisão, como comentarista das eliminatórias e dos jogos brasileiros na Copa — após ser cozinhado por mais de dois meses pela Globo. Resultado: por alguma razão que sua modéstia o impede de dizer que é só pela sua presença, a Bandeirantes, pela primeira vez em seus 18 anos de história, chegou a bater a Globo, num programa. Foi no jogo Brasil x Paraguai, em Assunção, em junho. Nos outros, esteve por perto. A Bandeirantes, que estava pedindo três milhões de dólares pela cota de transmissão para a Copa do México, em 1986, já passou a fechar por cinco milhões cada patrocínio. Cinqüenta por cento da diferença, por disposição contratual, é de Pelé. Alguém cometeu a temeridade de perguntar a ele se estava ganhando da Bandeirantes 500 mil dólares, como se sussurrou. "Por esse preço, eu nem saio de casa", fuzilou.


Copa do Mundo sempre significa uma safra generosa de bons contratos para aquele que, mesmo há oito anos fora do gramado, ainda é o seu maior ídolo. Se a Bandeirantes promete, imaginem a Coca-Cola, que já acenou com uma campanha só para ele, tomando carona na feliz circunstância de que Pelé era, até pouco tempo, garoto-propaganda da sua maior concorrente, a Pepsi: "Faça como Pelé, troque pela melhor". Sem falar dos filmes que estão para lançar: no nosso caboclíssimo Pedro Mico, dirigido por Ipojuca Pontes, Pelé não é apenas o galã com direito à cena de cama e tudo, com aquela que é, constrangedoramente, a mulher do diretor na vida real, a atriz Teresa Rachel. Na hora da filmagem, Pelé, que não é disso, vacilou. Mas, enfim, além de ator, Pelé é co-diretor de Pedro Mico — e leva 50% do lucro. Ele detém também os direitos brasileiros de Minor Miracle, o último filme de John Huston, seu diretor em Fuga para a Vitória. Em Minor Miracle, Pelé faz o confortável papel de um famoso futebolista chamado Pelé.


AS LOURAS E AS OUTRAS


É curioso que, com tudo isso, os amigos ainda percebam nele a estranha mania de sair de casa, quando está em Nova York, em pleno paraíso do cartão de crédito, com o invariável bolinho de notas de cem dólares. Andar com notas de cem, em Nova York, é uma excelente maneira de não pagar pequenas contas.


Uma das poucas chances que ele tem de se livrar das notas de cem pode ser, à noite, no Clube A, de Ricardo Amaral, ou então no Régine's. De nenhum dos dois se pode exatamente dizer que é onde a ação está, mas ambos têm sua clientela cativa, e Pelé se inclui aí, irrestritamente, com uma ou outra exceção para alguma festinha particular. Não tem mais a ânsia de variar. Pede uma dose de White Label ou de Chivas, puro, sem gelo, e jamais passa daí. A bebida serve apenas para compor a atmosfera. O que freqüentemente varia são as companhias que embarcam na limusine, no fim da noite. Amir, o motorista, discreto escudeiro, irrepreensível cidadão de Minas Gerais, nada ouve, nada vê.


Convivem harmoniosamente a lenda de seu atletismo sexual — "ele é doente por mulher", diz um amigo muito próximo, repetindo o que outros que o conhecem bem assinariam embaixo — e a habilidosa administração de um enternecido romance que, como admite o nosso próprio protagonista, tem tudo para dar, um dia, em casamento — "ele está amarrado", assegura o mesmo amigo. Fica mais difícil compatibilizar uma coisa com a outra, naturalmente, quando a Xuxa está em Nova York, hospedada no apartamento da rua 54, cumprindo sua promissora incursão pelo mundo da moda, com contrato de exclusividade de 5 mil dólares mensais com a Ford Models. Quando a Xuxa está, nosso habilidoso personagem vira um homem caseiro. A boa administração do affair cobra dele, ainda, um discurso que os amigos tanto de um quanto de outra sabem ser uma coisa meio da boca para fora. Diz o discurso:


"Eu sou uma pessoa ciumenta com os amigos, mas não sou ciumento com a Xuxa. Eu tenho toda a liberdade, a gente namora, mas ninguém tira o espaço um do outro. Ela é minha namorada, mas eu também tenho outras amigas".


Ela, 22 anos. Ele, 44 para 45 — os primeiros cabelos brancos aflorando-lhe caprichosamente nas frontes; ainda imperceptíveis nas fotografias e na TV. Ela, lourinha. Ele, negro. Liberdade de lado a lado. E dá certo há quatro anos.


Vale um intervalo romântico:


Pelé — Foi engraçado como eu conheci a Xuxa. Veja como são as coisas: fiz uma reportagem, capa da Manchete, que se chamava "A Gaiola de Ouro", falando da minha liberdade, eu, homem separado. Posei, para a capa, com quatro modelos, a Xuxa, a Luíza Brunet, a Márcia Porto e uma gaúcha, uma garota nova. A Xuxa tinha de 16 para 17 anos...


Ele se ligou na Luíza Brunet: "Que tal a gente dar uma saída?" Ela esfriou: "E que tem o meu marido..." Mas, aí, tinha aquela outra lourinha...

Playboy— A Luíza, você já conhecia?


Pelé — Não conhecia nenhuma, eram todas modelos que estavam começando. A Xuxa eu acho que conhecia só de fotografia. Eu me amarrei na Luíza: "Pô, que garota!" Aí, achei que a gente podia levar um papo. Naquela semana, eu tinha sido convidado para ver o show da Simone, no Canecão, eu tinha os ingressos. Aí, eu cheguei na Luíza: "Luíza, depois do trabalho a gente podia ir ver o show da Simone, não é?" A Xuxa estava perto, ouviu. Eu percebi: "Você se quiser ir, pode ir também". Aí, a Luíza falou: "Olha, estou esperando meu marido, vamos ver se ele quer ir..." E eu: "Pô, com 17 anos e você já é casada?" Ela: "Pois é, sou". Aí, esfriou o negócio.


Playboy — Quer dizer, você foi com o marido da Luíza...


Pelé — Não, ninguém foi. Aí, eu fui pro Rio, um dia, e convidei a Xuxa para sair.


Playboy — Já estava com o telefone na mão, para qualquer coisa...


Pelé — Tinha o telefone de todas. Aí, liguei pra Xuxa: "Vamos ver o show?" Liguei também pra Márcia. E chamei meu advogado, o Samir. O Samir ficou com a Xuxa, eu fiquei com a Márcia, conversando, aquele negócio de papo. Depois de um tempo, o Samir reclamou: "Pô, essa menina é muito criança pra mim". Ele tem a minha idade. "E tem mais uma coisa: estive batendo um papo com ela e ela é virgem." E eu: "Modelo, assim, virgem?"


Playboy — Modelo e virgem?


Pelé — É, ficou só no papo. Passou uma semana, voltei ao Rio e telefonei pra Xuxa: "Olha, tem uma festa aqui no Alfredo Saade". E ela, "tenho que falar com meu pai, eu não saio sem falar com meu pai e com minha mãe", e eu falei, "tá bem, deixa que eu falo com seu pai". Convidei o pai, a mãe, o irmão e assim começou minha amizade com ela, ela começou a me ligar, "cara, tou com um problema", e eu, "tá, vamos conversar", eu passei a chamar ela de carinha, ela me chamava de cara, ô, cara, "pô, pintou uma demais". E eu dizia, "você, uma menina tão bonitinha, falando palavrão igual gente grande", e comecei a gostar, fiquei gostando dela.


Ousadia do crioulo: roubar o coração de uma lourinha meninota, tesão nacional. Não bastasse o insuportável fato de ser preto e ter subido na vida, andar de Cadillac, ter relógio Rolex de ouro, vestir black tie. Para ele, a fama sempre teve mão dupla: de um lado, afaga, de outro, espanca. Já viveu quase três décadas de celebridade e ainda não consegue entender o que move os homens da Alfândega brasileira, por exemplo, a revistá-lo com a avidez de quem fuça um meliante, toda vez que desembarca na sua pátria. A falta do Pelé, tomaram um radinho que sua filha, Kelly, trazia para o Brasil, tempos atrás. "Fizeram um estardalhaço", reclama.


A CASA MILIONÁRIA DO REI


A envaidecedora circunstância de ser Pelé irá custar-lhe quase meio bilhão de cruzeiros a mais do que lhe custaria a construção de uma magnífica mansão, numa extremidade deserta da belíssima praia de Pernambuco, a mais elegante do Guarujá. Um antigo prefeito cedeu-lhe, em carta, uma tripa a mais, que corria ao lado do terreno — um charco, que não pertencia a ninguém. Pelé plantou ali exatamente os pilares que sustentam o segundo andar. Um vereador protestou, tempos depois, e Pelé foi obrigado a negociar, em troca, a construção de uma creche em Vicente de Carvalho, o bairro mais miserável da Baixada Santista. Só que naturalmente ficou furioso em perceber que o projeto incluía parapeito de mármore, dobradiça de latão, fechadura de bronze e piso industrial. "Ali, em Vicente de Carvalho, não vai durar um dia", explica. O acerto foi de 6.500 ORTNs, 300 milhões, mais ou menos — e isso ele vai honrar. O resto do meio bilhão ele andou distribuindo em gorjetas, para amaciar a ciumeira. Por trás do episódio está o vereador Gilson Fidalgo Salgado, cheio de razões por ter tanta bronca de nosso personagem: Gilson foi seu reserva no Santos Futebol Clube.


Estranho país o Brasil, onde a corrupção grossa tem habeas-corpus e onde há sempre alguém disposto a achar tramóia onde ela realmente não existe. Pelé comprou o terreno em Guarujá com seu dinheiro. Talvez o insuportável seja exatamente isso. "Me ofereceram terreno na Grécia, em Nice, em Cancun, em Port Wyath, em Natal", choraminga. "Tudo de graça, desde que eu fizesse uma casa e fosse morar lá. No Guarujá, que é praticamente uma extensão de Santos, minha terra do coração, me tratam assim." Mas, enfim, ele não é muito de reclamar. Vai se mudar para a mansão, quando estiver de volta, em outubro. Talvez seus 45 anos ele já possa comemorar na casa nova; a de Santos, suntuosa, com ares de fortaleza, situada na Ponta da Praia, ele deixa para o pai, Dondinho, e a mãe, Celeste. Tem uma outra casa em São Paulo, um apartamento de cobertura, na alameda Jaú, nos Jardins. No Rio, prefere a hospedagem principesca que lhe oferece Alfredo Saade, empresário de futebol, proprietário de um triplex que descortina Copacabana, no exclusivo Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace.


No balneário chique dos nova-iorquinos, um bangalô, uma piscina, uma lancha e Lauren Bacall na vizinhança. E ele, o único crioulo de East Hampton

No Guarujá, privará da intimidade praiana de ofuscantes sobrenomes quatrocentões. Está acostumado. Os 1.500 metros quadrados de um dos mais valorizados braços de mar de East Hampton, o balneário chique dos nova-iorquinos, onde ele fez, de um bangalô, uma casa digna de revista de decoração, mais piscina, lancha e barco a vela, são igualmente cercados de vizinhos ilustres — a atriz Lauren Bacall, o cineasta Sidney Lumet, o jornalista Ben Bradlee. A casa, reformada, ele já recusou vender por 300 mil dólares. Ali, não há quem não conheça Pelé. Mesmo porque é o único negro das redondezas. Pausa para uma questão melindrosa: a cor da pele.


Playboy — Por que você prefere as louras?


Pelé — Não tenho preferência, já disse. Esse negócio surgiu porque casei com uma branca, a Rose, mas a Rose tinha cabelo preto, isso o pessoal esquece, depois é que ela tingiu de loiro. Eu saí, numa época, com a Marina Montini, que era a modelo mais cobiçada da época e que é mulata; saí uma época — para fazer música — com a Gal Costa, que é morena. Não tenho preconceito.


Playboy — Nenhum?


Pelé — Nenhum. Pra começar, a primeira namorada foi uma japonesinha, a Neusa, lá de Bauru.


Playboy — E o Pelé, antes de ficar famoso, sentiu-se vítima de algum preconceito?


Pelé — Eu não. Mas vi amigos meus que tiveram. Minha família, acho que não, não posso garantir, era garoto na época, lá em Bauru, e o Dondinho era jogador de futebol, muito conhecido. Preconceito social, eu sei que existe. Tinha lugar onde eu entrava e alguns meus amigos de cor, não.


Playboy — Vamos supor que alguém que nunca tenha visto você, que jamais assistiu futebol, um esquimó, esteja conversando com você, por telefone, e lhe pergunte "qual é a sua cor?" O que você responde?


Pelé — Se você estiver perguntando sobre o Pelé, eu digo que o Pele não tem cor, não tem raça, não tem religião, porque o Pele é ídolo em qualquer lugar, em qualquer lugar onde ele for recebido não tem problema nenhum. Agora, se você perguntar sobre o Edson, o Edson é de cor negra.


Por essas e por outras é que, alguns anos atrás, quando a Warner pensou em produzir um musical, na Broadway, ilustrando, em som e luz, a carreira de seu astro, e começou a pesquisar, a chamar produtores e roteiristas, todos a aconselharam a desistir: Pele é um santo. Santo demais para um musical da Broadway. Ele é quem conta e se orgulha. Assim como lhe envaidece a circunstância de jamais se lembrar, em quase três décadas de carreira, de uma única inimizade contraída no esporte. Se você arriscar o nome de Carlos Alberto Torres, por exemplo, ex-Santos, ex-Cosmos, ex-capitão da Seleção, ele desviará: "Não, eu não me sinto inimigo dele". Se você insistir, "ele guarda mágoa, diz que você não compareceu na festa de despedida dele, no Cosmos, dizendo que ia para Los Angeles", ele tentará desconversar, dizendo que não foi bem assim, escorregará com a ex-periência do libriano que ele é. Fique por aí. Da vizinhança astrológica com o escorpião, pode vir a estocada cruel: "Acho que a bronca dele é que conheci a Terezinha Sodré antes dele".


LULA, MONTORO E O BANERJ


Tem essa malandragem, na vida, é misturar os dois atributos de uma que contraditória vizinhança astrológica, sempre a seu favor, naturalmente. No terreno movediço da política, que 'ele vem percorrendo, cada vez com maior entusiasmo, finge, de um lado, hesitação — "Estou cru, tenho muito o que aprender" — e, de outro, exibe surpreendente segurança — "Já viajei pelo Brasil todo, conheço o mundo, em termos de conhecimento de filosofias de vida, de costumes diferentes, não tenho medo de competir com nenhum político do Brasil".


O político Pele tem amor à camisa, mas ainda pisa na bola e tromba na zaga. Num grupinho de amigos, enquanto traça uma costelinha na cobertura de Alfredo Saade, no Rio, você é capaz de ouvi-lo omitindo opiniões do seguinte teor:


"Tá legal, vocês dizem que o Brizola rouba, mas eu digo que o que importa é que ele tenta ajudar os outros".


"O Maluf foi um injustiçado. Ele é um vencedor, também, e isso provoca muita inveja" (Pele dizia, contudo, torcer por Tancredo).


"O melhor presidente foi o Juscelino. O Jânio tinha umas idéias malucas, mas bem que podia... Eu votei no Jânio, ainda sou amigo dele, pessoalmente. O Castello Branco podia ter sido bom. Nós perdemos a grande oportunidade de arrumar o Brasil. Os militares perderam o freio."


"Uma vez, no avião, o (Henry) Kissinger me disse, 'Pelé, tudo bem que o brasileiro roube, que exista essa corrupção entre vocês, mas, pelo menos, a roubalheira podia ser produtiva, a favor do país, e não a favor de uns poucos'. Aí, eu disse para Kissinger, 'sabe que você tem razão?'"


Depois das mulheres e do dinheiro, eis sua mais recente obsessão: a corrupção nacional. Anda tão tomado que, em junho, no Rio, foi assaltado pelo fantasma da roubalheira, de madrugada, quando dormia, sacou do violão e começou a compor uma modinha onde corrupção rima com indignação. Fez progresso quem, em 1970, foi abraçar, comovido, o presidente Médici, achou-o "um grande praça" e passou anos com a ligeira impressão de que Chico Buarque era um sinistro radical e que o povo brasileiro não sabia votar. "Meu negócio era a bola, não a política", justifica, a propósito de Chico. A respeito do voto, engoliu o comentário, tentou emendá-lo ("Não foi bem assim"), mas, no íntimo, mantém a suspeita. Assim como não se acanha ainda de dizer que o líder negro que mais o impressionou, em suas excursões internacionais, foi o Idi Amin. "Ninguém nunca me tratou tão bem", recorda.


De namoro firme com a política, admitiu concorrer até para a Presidência. Corrigiu: "Era um papo com amigos, eles dizendo, 'Pô, Pelé, estão falando em presidente do consenso e, nesse país, ninguém tem mais consenso do que você'. E, no dia seguinte, estava nos jornais". Nos jornais, também, mais recentemente, a surpreendente idéia de que ele topava ser candidato à Prefeitura de São Paulo, pelo PDT de Brizola. Explicações:


Doce sonho: trocar Nova York por Brasília. Desde que vire ministro do Esporte, é claro. Brizola saiu na frente e já quer fechar negócio

"O Brizola me chamou na casa dele, em Copacabana, e disse, Pelé, nós temos uma idéia. Nós achamos que, no Brasil, ou você tem de ser presidente da República ou prefeito de São Paulo. São Paulo é o coração do país. Você quer pensar nisso?'"


Em vez de perguntar, "nós, quem, cara pálida?", Pelé perguntou, "por que não?" E foi tratar, em São Paulo, com Ademar de Barros Filho, o Ademarzinho, presidente regional do PDT.


De oficial, Pelé assume um sonho: quer ser ministro dos Esportes. Extra-oficialmente, conspira, com Brizola e aspones brizolistas, para que isso aconteça. "Tem um assessor do homem, o Helinho, que fica buzinando na cabeça dele horas seguidas, todos os dias", desabafa seu advogado Samir Abdul-Hak, amigo e confidente há 26 anos, referindo-se a Hélio Viana, da entourage de Brizola. A conversa com Brizola e assessoria caminhava, antes da volta para Nova York, para os finalmentes: Pelé entraria para o PDT, asseguraria o apoio a Brizola para presidente, em 1988, ou em 1986, como sonha Brizola, apóia os candidatos do PDT já e ganha, em troca, a promessa do futuro Ministério e um belo contrato por uns anúncios do Banerj, o Banco do Estado do Rio de Janeiro. Nada como juntar ao idealismo o pragmatismo.


A união não teria as bênçãos incondicionais dos amigos, como o advogado Samir ou o irmão Loca — Jair —, outro companheiro inseparável, Jair na hora de pôr o adoçante no cafezinho, mas o dote talvez acabe removendo as resistências. Até o último momento, porém, o noivo há, ao seu estilo, de escorregar: "Estou em contato com todos os grupos, todos eles querem o Pelé". Para ele, política se faz desta forma. "Estive com o Lula, na TV Record, na saída do programa do Sílvio Luís, e ele me falou: 'Temos muito que conversar'. E aí vem o pessoal do Montoro, que também quer o Pelé, mas o Pelé só está vendo uma grande confusão, Os grupos não têm filosofia coerente."


Brizola, pelo menos, atiçou mais rápido um coração cheio de candura. Pelé filmava, no primeiro semestre, o Pedro Mico, locações nas favelas do Pavãozinho e do Cantagalo. Ficou desolado. "Nem água tinha, lá em cima, pra gente tomar." Um dia, a Teresa Rachel, sua parceira, machucou o joelho. "Desceu de maca, porque ambulância não sobe." Desabafou com os repórteres que enxameavam as filmagens: "Assim não dá, não sei como essa gente vive". Dia seguinte, manchete dos jornais antibrizolistas: "Pelé condena governo pelo abandono das favelas". Brizola se tocou e começou a doutrinar. Quando inaugurou a água no Pa-e no Cantagalo, levou Pelé a tiracolo. Posaram para as fotos juntos, o Pelé ainda meio constrangido.


Foi um dos primeiros a pedir: diretas já. Por trás, uma bronca com Figueiredo e a história meio esquisita de um antigo convite para Xuxa

Reconheça-se que, na campanha das diretas, o perna-de-pau fez um golaço. Saiu na frente de muita gente boa, inclusive, é bom lembrar, do hoje presidente José Sarney. Foi claro e corajoso. Ainda que, por trás de seu destampatório, residisse uma justificada dor-de-cotovelo: ele não morria de amores pelo presidente Figueiredo. Data de quatro anos atrás o motivo do desgosto: outubro 1981. Pelé já conhecia Xuxa, tinham aparecido juntos em fotos, eram, de certa forma, namorados. Pelé estava de viagem, no México, quando ela recebeu um convite, pretensamente honroso e sério, para trabalhar em Nova York. Cachê de 5 mil dólares, nada mal. Desembarcou em Nova York e percebeu a arapuca. Não era bem em Nova York que a queriam, e sim em Cleveland. Não era bem um desfile de manequins, mas uma festinha particular, onde ela serviria de bálsamo aos humores abalados de um certo número de cortesãos do Planalto, reunidos ali para consolar Figueiredo, recentemente enfartado. O intermediário, revelou-se depois, era o ajudante-de-ordens da Presidência, major Dias Dourado. Xuxa perdeu os 5 mil dólares mas preferiu ficar em Nova York.


ILUSTRAÇÃO JACK RONC


(*) Colaboraram Luís Fernando Mercadante e Lúcia Guimarães, em Nova York.

(**) Todos os diálogos reproduzidos nesta reportagem são produto da entrevista de Luís Fernando Mercadante com Pelé, em Nova York.


424 visualizações0 comentário
bottom of page