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BELCHIOR: O HOMEM POR TRÁS DO BIGODE

INVENÇÃO DE SI MESMO


VISTO PELA ÚLTIMA VEZ EM 2013, EM PORTO ALEGRE, O CANTOR CEARENSE COMPLETA 70 ANOS EM OUTUBRO, QUANDO SUA HISTÓRIA SERÁ CONTADA NA BIOGRAFIA PEQUENO PERFIL DE UM CIDADÃO COMUM, DE JOTABÊ MEDEIROS. AQUI, UM CAPÍTULO INÉDITO.


No fim dos anos 1960, Belchior era como um peixe fora d’água: sem conhecer rudimentos de música, mal dedilhava um violão, e sua formação em filosofia clássica, latim, caligrafia e teologia o aparelhava para quase tudo, menos para o coloquialismo da música da época. Escrevia epopeias, poemas épicos com uma métrica completamente particular, inassobiável. Vinha do interior, Sobral (CE), assim como o estudante de direito de Piripiri Jorge Mello, que conheceu em 1967 e se tornaria um grande parceiro e amigo. Com seus cabelos compridos repartidos ao meio, tipo Príncipe Valente, e ouvindo Beatles nas vitrolas dos amigos por não possuir uma, Belchior tinha escolhido o caminho da música, mas só os muito amigos acreditavam nele – no início, não cantava, era apenas letrista, e procurava se encaixar na nova ordem que surgia por uma ebulitiva Fortaleza.


“As letras eram longas, eu era um cantor fanhoso, um cantor do Nordeste, não era um rapaz fino etc. Eu não tinha um layout dos anos 1960, nem tinha uma letra maravilhosa. Muito pelo contrário, tinha uma letra crua, uma letra direta, uma letra que tratava de problemas nem sempre agradáveis. Claro que eu acreditava na possibilidade de que esse material chegasse a um certo número de pessoas”, disse, em entrevista em 1978, à revista Música.


Belchior foi fisgado pela sua geração por uma feliz confluência de fatores geográficos e intelectuais. Estava todo mundo no mesmo lugar, na mesma hora e nas mesmas condições. Sem a responsabilidade dos grandes movimentos do Sudeste, sem envolvimento tropicalista, sem a dureza da resistência ao regime e embates com rejeição ou aprovação de tendências, criavam-se soltos. Em 1968, 1969 e 1970, reuniam-se sob as mangueiras da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Ceará, palco de stripteases memoráveis, festas homéricas e shows lendários, e depois rumavam para o Bar do Anísio, na Praia de Mucuripe.


Anísio era um ex-ascensorista gorducho que tinha aberto uma modesta barraca na praia do Mucuripe, na qual vendia seu modesto peixe frito pescado por ele mesmo. Ficava num galpão aberto em três lados, com paredes de carnaubeira, telhas das quais abundavam goteiras. Mas aqueles ruidosos universitários da Federal do Ceará acharam por bem estancar ali para saraus musicais e Anísio teve que se virar com a súbita demanda. Arrumou três mesas de madeira de caixote de maçã. No início, buscava cerveja em bares vizinhos para abastecer sua clientela, depois acabou adquirindo sua própria caixa de refrigeração. No seu auge, em 1971, o Bar do Anísio se tornara o maior celeiro artístico da nova música cearense, e aqueles universitários que o elegeram como anfitrião – Fausto Nilo, Belchior, Raimundo Fagner, Jorge Mello, Rodger, Ednardo e outros – tinham se convertido nas joias mais brilhosas da MPB emergente. As canções surgiam com naturalidade no Anísio, como Apenas um Rapaz Latino-americano (Belchior, surgida a partir de um “haicai” de Augusto Pontes) e Carneiro (Ednardo), frutos das conversas entre os frequentadores.


Ali, Belchior escreveu em um guardanapo de papel um dos maiores clássicos da MPB, Mucuripe, observando as jangadas que saíam para o mar de manhã e voltavam no fim da tarde. Amelinha foi uma das primeiras a cantar – a canção foi gravada por Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, Elis Regina, Maria Rita, Fagner, Oswaldo Montenegro e Zé Ramalho, entre outros. Fagner, contam frequentadores, era menor de idade e chegava dirigindo uma Rural Willys, mas tinha que se mandar, porque, a partir de certa hora, o Juizado de Menores fustigava a garotada.


O Bar do Anísio não existe mais na Avenida Beira Mar, em Fortaleza. No seu auge, servia mais de 300 pessoas bebendo ao mesmo tempo à beira da praia. “Quando a mesa cresce, a cultura desaparece”, dizia uma das boutades preferidas do filósofo Augusto Pontes. Assediado pela especulação imobiliária, Anísio vendeu o terreno – fica a uma quadra de onde depois foi instalado o hotel Caesar Park (hoje Gran Marquise).


O nome Belchior é de origem hebraica. É um dos três reis magos na tradição cristã (que talvez não fossem reis, mas sacerdotes da Pérsia). Em Portugal e na Espanha, o nome transmutou-se para escapar da Inquisição, passou a aceitar também Melquior, Merquior e Belquior, e acabou migrando para o novo mundo. O DNA ibérico da canção de Belchior encontra explicação parcial nessa mistura. Um dos muitos filhos de um comerciante de Sobral (201 quilômetros de Fortaleza) e de uma dona de casa, chegara à capital adolescente e tornara-se seminarista. Em Sobral, ao contrário do que certos relatos biográficos contam, não tinha ainda veleidades de cantor. Parecia que sua vocação seria outra: chegou perto dos votos para tornar-se frade franciscano, mas então largou tudo e entrou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. A partir dali, entrava em contato com a geração que aspirava a um mundo de conexões planetárias, pop, de mutações continuadas,

assimilação e mobilidade.


O Bar do Anísio se converteu numa espécie de ponte entre mundos. Por intermédio do seu

programa Porque Hoje é Sábado, na televisão cearense, Jorge Mello se ocupava de trazer artistas como Trio Mocotó, Tim Maia, Gilberto Gil, Torquato Neto para se apresentarem – e já fechava também canjas e shows no Anísio. Dali, já de madrugada, levavam notáveis como

Tim Maia correndo para o aeroporto. Isso aproximava a cena cearense, em formação, de nomes consagrados. Segundo narra Caetano Veloso em Verdade Tropical, houve até uma deserção famosa: o violonista Piti gostou tanto que ficou por lá mesmo, em Fortaleza, um ano a fio, constituindo-se numa influência decisiva para aquela geração. “Deixaram lá uma figura maravilhosa que mudou nossas vidas. Piti ficou com a gente. Nos deu ritmos agressivos que a gente não tinha, tínhamos uma formação mais bossanovista. Veio com a batida de Jorge Ben”, lembra Jorge Mello.


Em 1968, os músicos daquele grupo já tinham se dado conta que o seu lance eram os festivais. Começaram a participar de todos, com grande êxito. Eram apresentados ou aproximados por articuladores hábeis e acabavam criando uma comunidade que envolvia nomes como Petrúcio Maia, Zé da Flauta, Augusto Pontes. Com o tempo, aquilo só fazia crescer.


Ainda assim, consideravam que estavam quase se tornando os “chatos da cidade”, porque todos os festivais locais os tinham como vencedores, alternando-se apenas a ordem nos pódios. Não havia uma competição de fato. Então, passaram a “importar” também apresentadores como Cidinha Campos e Ivon Curi, entre outros, para espraiar e legitimar sua produção. Mesmo com esse esforço, vitorioso por um tempo, chegara a hora do impasse: aquele ainda era um mundo provinciano, deveriam se deslocar para adiante.


Belchior assumiu então a tarefa solitária da construção de uma personalidade única na MPB. Sua voz como intérprete de si mesmo foi ouvida pela primeira vez no IV Festival Universitário

da Música Brasileira, na TV Tupi, em agosto de 1971, quando defendeu Na Hora do Almoço, um clássico “guimarãesroseano” de primeiríssima grandeza. Sua ascensão coincidia com a decisão do grupo de largar tudo e ir para o Sudeste. Belchior, questionado se também iria, respondeu: “Vamos embora”. Um amigo retrucou: “Mas você está no quarto ano de medicina!” Ele deu de ombros, e abandonou a faculdade.


Belchior chegou ao Rio de Janeiro em abril de 1971, de carona num voo do Correio Aéreo Nacional. Trazia uma mala cheia de livros, textos complicados de filosofia de São Tomás de Aquino, Kierkegaard, Wittgenstein. Sem dinheiro, foi se abrigar com parentes no Méier. Os que vinham chegando moravam de favor e frequentavam jantares de executivos de música para tentar mostrar seu trabalho e conhecer intérpretes que os poderiam promover. Para trazer Fagner, tiveram de pedir autorização para a mãe dele, era muito moleque ainda. Foi num desses saraus, na casa do hoje novelista Manoel Carlos, levados pelo publicitário Carlito Maia, que conheceram Elis Regina, segundo conta o historiador Wagner Castro no livro No Tom da Canção Cearense. Um dos maiores sucessos de Elis é de Belchior, Como Nossos Pais (que ela gravou em 1976 no disco Falso Brilhante, além de Velha Roupa Colorida).


Fagner resumiu esse sentimento de expatriado no Rio em entrevista ao jornal cearense O Povo, em julho de 1976. “A maneira como nos olham e definem: somos os paraíbas das construções, os paus-de-arara das feiras de São Cristóvão. Os famintos. E aí chegamos e enfrentamos isso como se tivéssemos entrado em outro país. É uma batalha desumana essa de chegar e conquistar um lugar ao sol no meio de tanta fera. Eu vim disposto a arriar minha bagagem, e não para levá-la de volta para casa”.


Belchior, nesse ambiente quase hostil, encarava tudo ainda com mais determinação. “Cheguei ao Rio com um monte de cartas de recomendação, de endereços de pessoas que podiam me ajudar na música e 80 contos no bolso. O dinheiro sumiu logo, e as cartas, os endereços, não me serviram, porque eu não encontrei ninguém.”


Não baixou o topete com as dificuldades. Levado a dividir um pequeno apartamento com outras quatro pessoas em Copacabana, insistia em sua estética muito particular. Três anos depois, seu primeiro disco, de 1974, Mote & Glosa, insinuava um choque estelar entre a música nordestina tradicional e a mais fria tradição concretista, insolente. “Você que é muito vivo/ Me diga qual é o novo?”, inquiria, e ameaçava: “Eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês”. O segundo disco, Alucinação (1976), foi considerado, em eleição do jornal O Povo, o mais importante já feito por um conterrâneo em todos os tempos. “Alucinação é uma obra-prima. Você o ouve de cabo a rabo e não tem nada fora de lugar, todas as canções são perfeitas. É uma preciosidade”, disse o cantor pernambucano Lenine, no camarim de uma emissora de TV, esperando uma gravação.


Belchior fez show em igreja, cabaré e cadeia. Criava seu mito com talento assombroso, além de perseverança e senso de humor. Assumiu desde sempre um diálogo de ironia e enfrentamento com seu tempo e seus antecessores. “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve/ Correta, branca, suave, muito linda, muito leve/ Sons, palavras, são navalhas/ E eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém.” As canções serviam como um veículo de diálogo com seus contemporâneos e sua época. “Veloso, o sol

não é tão bonito para quem vem do Norte e vai viver na rua” – ao contrário de rivalidade, Belchior sempre disse que achava Caetano Veloso o maior entre os compositores do país.


Musicalmente, Belchior assumia que a influência da cultura ibérica, moura e provençal definia seu estilo, mas não o encapsulava em nenhuma fórmula. Assumia inflexões dos cantos gregorianos que aprendera no colégio de frades e das tendências poéticas épicas e picarescas da tradição. Ao mesmo tempo, demonstrava gosto pelo sarcasmo. Chegou a inventar seu próprio nome durante uma entrevista ao Pasquim, em 1982. Quase todos os verbetes de enciclopédia, reportagens e artigos posteriores sobre o artista reproduzem o nome “Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes”, estampado naquela edição. Há, inclusive, processos judiciais contra ele publicados na Imprensa Oficial, na qual esse cidadão fictício é acionado. Mas o cantor é simplesmente Antonio Carlos Belchior, o resto é um sarro na posteridade – Carlos Gomes é homenagem ao compositor; Fernandes Fontenelle é outra homenagem a um mestre cearense.


Sua trajetória, a partir da entrevista em junho de 1982 ao Pasquim, foi sendo mesclada de fatos inventados e verídicos. Sabe aquelas histórias de ex-cantador de feira, repentista vocacionado, filho de músicos ultradotados? Tudo cascata. Disse que tinha 23 irmãos e que era o 13º, “o galo”, coisa certamente inventada pelo próprio jornal. “Meu pai pretendia fazer os 25 bichos, mas parou no 23, o urso, porque não queria viado nem vaca”, brincou. Quem o conhece sabe que não é seu esse senso de humor característico, mas deixou que escrevessem o que quisessem. Presumivelmente, teve oito irmãos e tem de fato quatro filhos, dois deles com Angela Margareth Henman, com quem foi casado por 42 anos, e mais um no interior de São Paulo e uma filha em Fortaleza, com ex-namoradas.


Nunca foi ingênuo, nunca foi naïf. Seu disco-chave, Alucinação (1976), agora com 40 anos de existência, possuía canções concretistas que ele já tinha escrito ainda na década de 1960, mostrando uma notável antevisão que só artistas de uma geração anterior tinham demonstrado. Não é por acaso que suas músicas alcançaram artistas de planetas tão distintos quanto Jair Rodrigues, Ana Carolina, Vanusa, Jessé. Ele, morando em Porto Alegre na época por sugestão da gravadora, que pretendia arquitetar uma estratégia de lançamento, nunca se deslumbrava com sua desenvoltura para

com a vanguarda nem a idealizava. “O conceito que junta qualidade com dificuldade é um conceito cristão, ascético. Eu acho que uma coisa pode ser fácil e extremamente importante. E pode ser difícil e ruim.”


Recusou todos os papéis que lhe ofertaram: não quis integrar as coletâneas do chamado Pessoal do Ceará, que as gravadoras lhe ofereceram inicialmente como chance discográfica e com o intuito de aglutinar em um único rótulo todos os artistas daquela geração. Recusava-se a cantar músicas que não as suas próprias. E diagnosticava os conflitos geracionais. “Fosse eu um Chico, um Gil, um Caetano, e cantaria todo ufano os anais da guerra civil”, cantou, em Bahiuno (1993).


Quando o destino o colocou frente ao seu antípoda artístico, Fagner, foi trágico: tentaram se matar duas vezes, uma delas num duelo com faca em uma quitinete na esquina da Barata

Ribeiro com Santa Clara, em cima do Cine Lido, em Copacabana, Rio de Janeiro. Só não se mataram porque Jorge Mello jogou uma cadeira entre os dois e os separou antes de se furarem. O motivo era prosaico: quando não brigavam por um pastel velho na geladeira, brigavam porque um deles tinha se atrasado para um compromisso. E é um ódio que o tempo não curou, que parece que nunca vai curar, e que só se explica mesmo pela rivalidade pura e simples, a aversão sanguínea.


Há alguns meses, durante a gravação de um depoimento no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, perguntaram a Fagner qual foi a grande canção que gravou. Ele respondeu: “Rapaz, eu vou ficar com Mucuripe. Embora meu parceiro nessa canção seja a pior pessoa da face da Terra. Ele desapareceu, e eu espero mesmo que nunca mais volte. Espero que já esteja morto a essa hora”.


Belchior, que dizia se considerar mais andarilho que viajante, esteve no Brasil todo, mas em São Paulo ele criou raízes e estabeleceu diálogos importantes. Na cidade, também morou de favor e, em 1981, ficou amigo do artista plástico José Roberto Aguilar. Acabou produzindo o primeiro disco de Aguilar e a Banda Performática. O rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes que continuava dedilhando mal seu violão tinha aprendido os truques de produção do estúdio e chegou a brigar com um músico da banda de Aguilar por insistir que o rapaz mudasse sua abordagem musical.


Belchior então conheceu novos parceiros, como Arnaldo Antunes (com quem compôs Ma e Estranheleza, do disco Paraíso, de 1982), e intensificou a produção de artes visuais. “Era um figurativo forte e muito místico. Eu tinha um ateliê muito frequentado na época, a Casa Azul, e acabou se criando ali uma grande amizade”, lembra Aguilar.



Vegano radical, Belchior costumava sair para jantar com os amigos levando um fogareiro portátil a tiracolo – pedia para ir à cozinha do restaurante preparar a própria comida. Nunca cedeu à tentação da idolatria, foi sempre discreto e silencioso. O poeta Ademir Assunção, Prêmio Jabuti de poesia, certa vez estava numa padaria no centro de São Paulo dos anos 1990 quando encasquetou que conhecia um sujeito no balcão. “Eu já tinha tomado umas canjibrinas. Estava numa ponta do balcão, ele estava na outra, com seu bigodão. Fiquei olhando e achando familiar. Quando ele já estava pagando a conta, cheguei perto e falei: ‘Acho que te conheço de algum lugar’. Ele riu e disse: ‘Pode ser’. Perguntei: ‘Qual o seu nome?’ Ele respondeu, sorrindo: ‘Belchior’. Eu apenas balbuciei ‘ah’, e voltei para o meu lugar no balcão”.


Cinéfilo, vivia na antiga locadora 2001 da Avenida Pedroso de Morais (fechada recentemente) em busca de filmes de Kurosawa, Bergman e clássicos do neorrealismo italiano. Pintava e ilustrava desde sempre, e produziu grande parte do layout das capas de seus discos. Refinou-se após adquirir um certo conforto financeiro, passou a colecionar livros raros, pinturas e a fumar cachimbo. “Nunca fumei maconha, só cachimbo e charuto”, confidenciou a alguns de seus mais recentes interlocutores.



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Ademar Amâncio
Ademar Amâncio
Apr 01

Li a biografia e adorei.

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