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BEM-VINDO A WAKALIWOOD

Reportagem

NA PARTE POBRE DA CAPITAL DE UGANDA, DOIS APAIXONADOS POR HOLLYWOOD LUTAM POR RECONHECIMENTO – E DINHEIRO – COM UMA PILHA DE ROTEIROS VIOLENTOS E UM ELENCO DE ATORES INEXPERIENTES


POR DANIEL C. BRITT


Quatro homens ugandenses rodeiam uma cabra abatida em Wakaliga, uma favela na periferia de Kampala, capital de Uganda. É sábado, o sol está para se pôr, e uma dúzia de nativos franzinos circula próximo ao grupo sem se incomodar com a cena, tentando vender jacas e chips para celular.


Um dos homens corta a cabeça do animal. Uma mulher a agarra rapidamente para cozinhar depois. Os outros usam facas cegas para raspar os pelos da carcaça em direção à barriga branca e depois cortam as patas. Um branco dentuço e desengonçado – a quem chamam de mzungu, algo como “estrangeiro branco” – veste a carcaça, com todo o sistema digestivo do animal ainda intacto.


Listras de sangue envolvem o corpo do homem branco como amarras. Vestida a carcaça, ele sobe em cima de uma mesa forrada com folhas de palmeira e fecha os olhos. Sua mente viaja de volta aos tempos da escola católica em South Huntington, Nova York, quando ele jurou se entregar a um bem maior – ao cinema e à arte. Nessa busca, o mzungu trabalhou como voluntário em festivais, foi assistente de produção em um programa de TV e chegou a morar em seu carro. Agora ele está dentro do corpo de um animal mutilado em um gueto de terra batida onde as pessoas cagam em sacos, tomam banho de balde e aprendem a apreciar parasitas tirados de galinhas – ou de cabras.


Os homens que cercam o mzungu estão fantasiados de canibais, com colares feitos de ossos de cães encontrados mortos na estrada. Dois atores passaram dias fervendo a carne e separando as partes que mais se assemelhavam às de crianças.


Ali ao lado, o diretor Isaac Nabwana está em pé falando com os canibais em sua língua luganda nativa. Ele os faz lembrar que é a primeira vez que sentem o gosto doce da carne mzungu. Logo, decide que estão prontos para começar a mastigar os intestinos da cabra e nacos de sua carne. Ele interrompe a conversa agitada com uma única palavra: “Ação!”


Os homens começam a agarrar ferozmente as entranhas do animal e a mastigar a carne. O branco grita durante a cena até Nabwana berrar: “Corta!”


Os atores cospem os órgãos, que têm gosto de ferro, limpam suas línguas e enfiam os intestinos de volta na carcaça. Os canibais e o americano se posicionam como antes e ficam à espera dos sinais de seu diretor, prontos para mais um take. Isso é cinema em Wakaliwood.


ENCONTRO DE GÊNIOS


O apelido Wakaliwood foi dado pelos motoristas dos boda-boda (mototáxis) de Wakaliga por conta da abundante produção de filmes do local, mas o responsável por tudo isso nunca pôs os pés dentro de uma sala de cinema. Isaac Nabwana, 43 anos, raramente deixa a casa de tijolos onde mora com a esposa Harriet e seus três filhos pequenos na favela de Kampala. Mesmo assim, tornou-se o cineasta mais famoso de Uganda. Um vídeo de 47 segundos extraído de seu primeiro filme, o violento Who Killed Captain Alex? [Quem Matou o Capitão Alex, em tradução livre], foi assistido no Facebook mais de 11 milhões de vezes. Agora suas produções estão chamando a atenção de blogueiros e jornalistas de todo o mundo. No ano passado, documentaristas da BBC viajaram para Kampala exclusivamente para entrevistar Nabwana. Mais notável ainda é um vídeo de um minuto de duração extraído do mesmo filme ter sido suficiente para convencer um homem branco de Nova York chamado Alan Hofmanis, então com 41 anos, a desistir de sua vida na cidade grande dos Estados Unidos e se tornar um mzungu na favela de Uganda, só para trabalhar com o diretor.



“Se Isaac estivesse produzindo filmes com menos de 200 dólares no Brooklyn, como está fazendo aqui, e recebendo o mesmo tipo de resposta, seria um herói popular”, diz Hofmanis, que trabalha como ator, produtor e editor em Wakaliwood.


Nabwana é o cineasta mais prolífico do país, e produziu, escreveu e dirigiu cerca de 40 longas de ação de baixo orçamento, mas no Ocidente seu trabalho não teve boa recepção desde que cenas de Captain Alex foram publicadas no YouTube, em 2010. Uma distribuidora de filmes chegou a comparar as imagens a um vídeo viral de gato. “Durante anos, ninguém conseguiu vê-los por aquilo que são: filmes de gênero, comédias de ação. Isaac é um artista, mas ninguém está pronto para respeitar a sua visão por causa da mentalidade antigay e pró crianças-soldados que seu país tem”, diz Hofmanis. “A luta é transpor política, etnia e geografia. É por isso que estou aqui.”


GUERRA CINEMATOGRÁFICA


Todas as manhãs, Isaac Nabwana senta em uma cadeira de plástico rachado em sua varanda, dedilhando a mesma melodia ritmada em um violão desbotado pelo sol. Muitas vezes ele sai desses transes musicais com páginas frescas de script. O diretor viria a descrever essas viagens para mim uma noite após o jantar: as selvas do Vietnã, a história dos canibais de Uganda, as lutas de milhares de guerreiros kung fu e a lembrança da guerra civil em seu quintal 40 anos antes de Wakaliga tornar-se Wakaliwood.


Na época em que ele cresceu, os ugandenses eram moldados tanto por filmes ocidentais quanto pela violência que fazia parte da paisagem. O atual presidente, Yoweri Museveni, travou uma rebelião sangrenta contra a selvageria do ditador Idi Amin na década de 1970 e novamente contra o presidente Milton Obote, no início da década de 1980. Antes de ser uma favela, Wakaliga foi uma fronteira coberta de mata, atravessada por pelotões de combatentes que rastejavam pela grama alta em direção à capital Kampala. Nabwana pastoreava o gado, cuidava de patos e via os soldados fiéis ao governo e os rebeldes adolescentes de Museveni caçarem uns aos outros na pastagem de sua família.


Seus devaneios pertencem a essa infância incomum. Ele cresceu ouvindo contos locais de sacrifício de crianças e magia negra, e também seu irmão mais velho falando com entusiasmo sobre astros de Hollywood como Bruce Lee e Sylvester Stallone, cujos trabalhos dublados circularam em salas de vídeo de Kampala. Nas décadas de 1970 e 1980, Selvagens Cães de Guerra, Predador e Kickboxer – O Desafio do Dragão criaram um cânone cinematográfico que inspirou os pais a darem a seus filhos nomes de heróis ou vilões favoritos. O futuro cineasta e seu irmão passavam horas batendo um no outro, praticando kung fu e buscando a combinação perfeita de chutes que causaria morte instantânea.


Durante esses anos, Museveni invadia povoados nos arredores de Kampala. Pessoas desesperadas fugiam e passavam pelas pastagens da família Nabwana em seu caminho para a cidade, desabrigadas e famintas, tentando escapar da guerra. Logo os refugiados se viraram uns contra os outros, e roubos começaram a ocorrer atrás da linha de combate. Na casa de sua avó, ele ficava acordado entre sete irmãos e irmãs, aterrorizado com os bandidos que esmurravam a porta no meio da noite. Se as crianças a abrissem, o pouco dinheiro que tinham para se alimentar seria tomado. Se não o fizessem, os tiros viriam através das janelas.


A maioria dos rebeldes esfarrapados de Museveni eram meninos do interior que nunca tinham visitado uma sala de projeção de vídeos na vida. Aqueles de Kampala, no entanto, tinham visto os filmes ocidentais; gritavam e lançavam rojões como Arnold Schwarzenegger. Em algum lugar naquele espaço e tempo, as histórias de Nabwana nasceram.


ESTRUTURA MAMBEMBE


O diretor escreveu seu primeiro roteiro há dez anos, depois de se matricular em um curso de seis meses em manutenção de computadores. Um mês de aulas foi o suficiente para ensiná-lo a construir máquinas a partir de peças de sucata. Ele vasculhou lixeiras para montar um desktop e aprendeu sozinho a usar o Adobe Premiere, o After Effects e outros softwares pirateados de edição. Pegou emprestada uma câmera de seu vizinho, reuniu amigos para atuar e recrutou combatentes de uma escola de kung fu de Kampala para coreografar as cenas de luta.


A primeira geração de réplicas de fuzis e bazucas de Wakaliwood foi adaptada a partir de folhas de bananeira dobradas, mas a produção foi melhorando. Nabwana comprou um pano

verde-esmeralda para usar como chroma key e transformou preservativos da clínica de saúde em balões de sangue falso.


Hoje, cinco ou seis armas foram soldadas de sucata de metal. Um rifle camuflado feito de cano simula um lançador de granadas. Dauda Bisaso, principal fabricante de réplicas de Wakaliwood, construiu uma metralhadora a partir de um motor de cortador de grama, com oito canos que giram. Ele a batizou de Maria, e seu peso ressalta a musculatura dos atores.


Hofmanis assistiu pela primeira vez a cenas de Captain Alex no telefone celular de um amigo em um bar em Nova York. Era 2011 e ele estava girando no dedo um anel de noivado, com o coração partido. A mulher com quem ele queria se casar tinha acabado de deixá-lo. Louco por cinema, o americano trabalhou no festival de Lake Placid, no interior do estado, e como voluntário em Sundance, em Utah, no oeste dos Estados Unidos, mas estava sempre quebrado e ocasionalmente dormia na rua. Nesse momento, tinha o suficiente no banco para uma passagem de avião. E lá estava ele, assistindo a atores ugandenses atirarem uns nos outros com armas de fogo de sucata. De repente, o aperto que sentia no peito se desfez em um vasto horizonte de infinitas possibilidades.


“Eu pensei que seria loucura não ir”, conta. Naquele momento, ele se sentiu totalmente disposto a sacrificar tudo para estar perto de algo diferente. Menos de um mês depois, bateu à porta de Nabwana.


REFORÇO IANQUE


Hofmanis agora mora em um pequeno espaço atrás da casa do diretor, onde edita filmes e promove Wakaliwood. Porém, como único mzungu residente lá, por muito tempo foi visto com uma mistura de pena e desconfiança. Afinal, que tipo de perdedor troca Nova York por Wakaliga? Ele ouvia colegas e moradores cochicharem: “Pobre Alan, a América o odiava, por isso ele teve que vir para cá. Ele não era bom o suficiente para o seu país ou sua mulher”.


Para a maioria dos membros do elenco, atuar em filmes do diretor é motivo de orgulho, mas eles ainda precisam comer. Bukenya Charles, especialista em artes marciais de Wakaliwood, vende bolsas e blusas em uma pequena loja dentro do labiríntico mercado de Owino. O ator Ronald Buriyahika dirige um boda-boda sete dias por semana. Apollo Creed, batizado com o nome do primeiro algoz de Rocky Balboa, descarrega caminhões de frutas e legumes.


Quatro anos depois, o mzungu é quase um deles. Ele perdeu mais de 23 quilos desde a mudança, e sua higiene foi para o saco. Tem unhas sujas, cabelos longos e uma barba de andarilho. Ele gosta de um prato local chamado Rolex – ovos mexidos e tomate enrolados em panquecas de trigo fritas –, que obstrui seu intestino. Aprendeu a cagar em sacos plásticos, tomar banho de balde e ignorar os parasitas.


O americano retorna aos Estados Unidos para divulgação uma ou duas vezes por ano, e lá enfrenta obstáculos bem diferentes. Alguns dos membros da indústria cinematográfica com quem conversou se sentiram insultados por ele estar vendendo um produto de um país intolerante aos gays. Outros disseram que um verdadeiro filme de Uganda se posicionaria contra a pobreza e a existência de crianças-soldados. A crítica mais gentil sugeriu que o lugar dos filmes de Nabwana eram festivais etnográficos ou relacionados à arte africana.


Como embaixador de Wakaliwood, Hofmanis rapidamente aprendeu que milhões de visualizações online e inboxes cheios de e-mails de fãs não significam apoio de estúdios ou mesmo o acesso a festivais de cinema. Eventos com produções independentes como Sundance e South by Southwest, em Austin, Texas, esnobaram Nabwana, assim como o Festival de Cine Pobre, em Cuba, que celebra os filmes de menor orçamento com financiamento próprio. Como podia a mesma produção que o fez atravessar o globo causar tamanha reação por supostamente glorificar a violência na África?


O DIA DO FODA-SE


Em junho de 2015 isso começou a mudar. Hofmanis saltou da cadeira em seu bunker de cimento e releu a manchete radiante em sua pequena tela de computador: “Festival de cinema vai incluir Dark Place, de Gilles Paquet-Brenner, e celebrar os filmes de Wakaliwood, de Uganda”. O site americano Indiewire, mais conceituada fonte de notícias do ramo tanto para cineastas quanto para cinéfilos, estava divulgando uma produção de Nabwana e o trabalho mais recente da atriz Charlize Theron lado a lado, como principais atrações do Fantasia International Film Festival, de Montreal, no Canadá, o maior festival de filmes de gênero do mundo.


O momento pelo qual ele esperava há tempos tinha finalmente chegado. Eufórico, Hofmanis buscou por algo específico no fundo do seu estoque de tesouros americanos industrializados – molho Tabasco, calda Hershey, café instantâneo – até encontrar o Twix que estava guardando justamente para essa ocasião. “Meu momento foda-se”, descreveu. Foi um “foda-se” para a mulher que não quis se casar com ele, para a distribuidora de filmes de Nova York que tinha comparado Captain Alex a um vídeo viral de gato, para uma dúzia de diretores de festivais que não apresentaram Nabwana.


Na verdade, a mudança estava começando. Exibições de Captain Alex foram realizadas em Hong Kong e Estocolmo, e celebridades americanas embarcavam. No mesmo mês, o músico Jack White realizou uma exibição privada do filme em seu estúdio em Nashville, no Tennessee. O ator Orlando Jones [Endiabrado] enviou um e-mail sondando um papel de protagonista.


O elenco viu tudo em um tablet que uma campanha de crowdfunding pelo site Kickstarter tinha ajudado a comprar. O mesmo dinheiro começou a pagar as refeições nos dias de produção e uma pilha de camisas de uniforme azuis. Também pagou a Bisaso o suficiente para uma réplica de helicóptero em tamanho real a partir de sucata, encomendada para causar estragos em chroma key em um futuro filme chamado Ugandan Expendables [Os Mercenários de Uganda, em tradução livre]. Adivinha em qual filme americano ele é baseado?


Ainda assim, a tensão em relação a dinheiro incomoda por trás de cada grande sucesso, segundo Hofmanis. Novos cochichos foram trocados no set: Wakaliwood arrancou aplausos internacionais, mas não pode pagar os seus próprios filhos e filhas? A comunidade está faminta por sucesso palpável.


SE CUIDA, HOLLYWOOD


Nabwana grita “corta!” uma última vez e o mzungu desliza para fora de seu traje de carcaça. Esta é uma cena de Eaten Alive in Uganda [Comido Vivo em Uganda, em tradução livre], episódio número um de uma trilogia. Os filmes do cineasta abordam questões difíceis da realidade de lá, e este é baseado em uma história real de canibalismo ocorrida em 2014 na província de Rakai, na fronteira com a Tanzânia.


No roteiro, que vive mudando, Hofmanis interpreta um homem confundido com Chuck Norris enquanto está de férias no interior com sua esposa e seus filhos ugandenses. À noite, ele se depara com uma celebração tribal, que é na realidade um ritual de passagem para crianças canibais. Quando o mzungu dispara um flash para uma foto, a selvageria começa.



Para outra cena, Hofmanis será forçado a entrar em um duelo de morte de kung fu com o ator Bruce U, o Bruce Lee de Wakaliwood. Infelizmente, o americano não sabe lutar, então Nabwana tem que pintar o rosto de outro ator de branco. Só que, mesmo com tinta branca espalhada sobre o rosto, o substituto ainda não se parece em nada com um mzungu.


Não está muito claro como Hofmanis vai vender um longa que inclui um rosto pintado de branco e crianças africanas canibais aos curadores culturalmente conscientes do Ocidente, mas Nabwana não está preocupado com isso. Filmes de ação de Hollywood uma vez convenceram o mundo de que um único soldado americano poderia derrotar um batalhão inteiro. Por que os heróis ugandenses não poderiam inspirar o mundo, como Sylvester Stallone e Chuck Norris fizeram?


Enquanto isso, Hofmanis, com 46 anos, está sorrindo por tudo o que abandonou. Seus olhos se voltam para longe de Wakaliga em direção ao seu sonho: o circuito do cinema internacional, cheio de mulheres de unhas feitas, champanhe, tapetes vermelhos e os olhares do mundo.


FOTOS DANIEL C. BRITT

TRADUÇÃO LETÍCIA IPPOLITO


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