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CHICO BUARQUE | FEVEREIRO, 1979



Uma conversa franca sobre o valor da liberdade, da verdade,

do dinheiro, do sucesso e da vida, com o mais lúcido e admirado

dos nossos compositores.


Faz bem uns doze anos, quando o Brasil inteiro ouvia e assobiava A Banda, o humorista Millôr Fernandes afirmou que Chico Buarque era “a única unanimidade nacional ”. Muita música rolou desde então, mas, há poucos meses, quando mais de 15 mil leitores votaram para eleger os melhores da música popular brasileira de 1977, na enquete do Prêmio Playboy, sessenta por cento dos votos para melhor compositor foram dados a Chico Buarque. O veredicto da Comissão Julgadora do concurso também foi esse. Como se vê, o tempo passou, o “garoto de olhos verdes” amadureceu e se transformou num jovem senhor pai de três filhas, sua arte também ficou mais adulta e agressiva. Mas a unanimidade continua a mesma.


O mais notável é que Chico nunca se empenhou em cortejar a popularidade. Nos últimos anos ele só concordou em aparecer na televisão três vezes (as três em “especiais” da TV Bandeirantes) e suas aparições em shows vão se tornando cada vez mais raras. Não é responsável pela aura romântica que, nos primeiros anos de sua carreira, uma facção menos atenta de seus admiradores procurou lhe impingir e que, de vez em quando, é citada para comparar “o Chico de hoje ”: realista, engajado e até cínico em alguns de seus versos, com aquele“ “doce Chico dos bons tempos ”. A verdade, no entanto, é que, já em sua primeira canção de sucesso, Pedro Pedreiro (que ele compôs aos 18 anos), Chico mostrava as mesmas preocupações sociais e existenciais que marcam a fase mais recente de sua obra.


Essa integridade e essa coerência, como artista e como pessoa, não o livraram de mal-entendidos ainda mais incômodos do que os dos cultores da sua suposta "fase romântico". Pelo contrário, uma constante até monótona em sua vida tem sido a luta para não se deixar usar — posição que ele já afirmava há mais de dez anos, com a peça Roda Viva.


Como se já não lhe bastasse a insaciável tesoura da censura, ele se viu, exatamente em consequência disso, erigido em estátua e bandeira: o herói, a vítima da repressão cultural, o-que-está-tendo-o-peito-de-enfrentar-a-barra. Enfim, um uniforme que Chico jamais aceitou vestir, nem mesmo quando a tal “barra” pesou mais dura e concretamente, como, por exemplo, quando teve de pagar os enormes prejuízos causados pela proibição de sua peça Calabar, que estava montada e não estreou.


Hoje, o observador imparcial que der uma vista de olhos no panorama da carreira do compositor e cantor Chico Buarque de Holanda verá, nitidamente, a imagem de um artista que atravessou um dos períodos mais turbulentos da música popular brasileira sem ceder ao fascínio das revoluções aparentes e dos auditórios que fabricavam idolos descartáveis. Indiferente ao tilintar da caixa registradora do mundo do show — no seu caso, uma caixa milionária —, Chico preferiu dedicar mais de um ano a escrever a peça Ópera do Malandro. E talvez não renove seu contrato com a gravadora, para não ser obrigado a fazer um disco por ano. Afinal, identificado pelo público com as melhores esperanças de liberdade, nada mais justo que ele queira ampliar a sua.

Deixemos, porém, que o próprio Chico se explique, atitude que, nesta entrevista para PLAYBOY ele faz com aguda sinceridade e ferina pontaria. O entrevistado é Humberto Werneck, editor-assistente de "Artes e Espetáculos" da revista Veja.


PLAYBOY — Você está na crista da onda há mais de dez anos, e não ficou milionário. Como foi esse milagre?


CHICO BUARQUE — Eu não sou nada organizado nessa questão de dinheiro. Não tenho muita noção disso e já levei canos monumentais. Deve ser um pouco consequência da minha formação católica: se eu fosse protestante [ri], acho que transaria melhor com dinheiro. Porque dinheiro, para a gente, é um pouco pecado.

PLAYBOY — Você se preocupa com as finanças?

CHICO — Não. O dinheiro vai pro banco e eu vou gastando. E está dando. De uns dois anos para cá, com a reformulação do direito autoral e com as peças de teatro, eu estou podendo viver folgadamente. Só não sei aplicar, fazer investimentos. Eu fui muito beneficiado pela mudança que houve no direito autoral [Até o início de 1977, a arrecadação de direitos autorais era feita por sociedades particulares. Mas a partir de então ficou a cargo do Escritório Central de Arreca­dação e Distribuição, subordinado ao Conselho Nacional de Direito Autoral. A cobrança e o pagamento aos autores pas­saram a ser feitos com maior rigor e, em certos casos, os rendimentos dos compo­sitores foram aumentados em até 30%, já no primeiro trimestre de atuação do ECAD.] E isso me deixa com problemas, porque eu sei que essa distribuição não é justa — é bom constar aqui. Outro dia, por exemplo, eu pego um táxi, o chofer me reconhece e diz que somos colegas. Ele é parceiro do João do Valle em Carcará, tem uma série de músicas aí — mas músicas sertanejas, que nunca tocam nas rádios em São Paulo e no Rio e nos grandes centros, que é onde fazem a computação desses direitos. Então esse sujeito foi incrivelmente prejudicado pela nova distribuição de direitos autorais, enquanto eu saí lucrando. O que dá um certo sentimento de culpa.

PLAYBOY — Em suma: se você ganhasse menos, ele receberia mais?


CHICO — Não, se a coisa fosse justa eu inclusive receberia mais. Porque o grande problema do direito autoral não está na distribuição, está na arrecadação. Se fosse justo, a Globo ia pagar cem ou mil vezes mais do que está pagando, porque o grande direito autoral tinha de ser arrecadado nas televisões, nas rádios, etc. Aqui no Brasil é o contrário: arrecadam nos clubes. Nas rádios também, mas numa relação absolutamente injusta: afinal, quem fatura mesmo em cima de música são as emissoras de rádio e televisão, que veiculam e não pagam proporcionalmente nada.

PLAYBOY — Você se lembra do primeiro dinheiro que ganhou com música?


CHICO — Foram 50 contos, num show em Campinas. Seriam hoje uns 5 mil cruzeiros, sei lá. Cantei Pedro Pedreiro.

PLAYBOY — E o que você fez com essa fortuna?

CHICO — Saí, fui gastando, gastando. Fomos até Itápolis (SP), eu e um amigo meu. Eu tinha uma namorada lá. Ficamos hospedados no melhor hotel da cidade, que era uma pensão. Fiquei circulando pelo interior de São Paulo. Depois ganhei mais para fazer a música de Morte e Vida Severina. Em seguida consegui um contrato com a TV Record. Foi quando comprei meu primeiro carro, um fusquinha usado: pagava exatamente 500 contos por mês, que era o meu salário. Cantava Pedro Pedreiro em tudo quanto é programa: Astros não sei o quê, O Fino da Bossa...


PLAYBOY — E ficou deslumbrado com a glória?

CHICO — Não, não era glória nenhuma.


PLAYBOY — Mas para quem nunca tinha tido tanta notoriedade...

CHICO — Não. O que aquilo representava era realmente o dinheiro, que eu não tinha. Dinheiro pra ter um carro e poder farrear. Antes da Banda quase não tinha notoriedade: era conhecido, mas no meio de estudantes, só. E onde já era conhecido fiquei com um pouquinho mais de charme... Então namorei mais meninas do que namorava antes. Mas não passava disso.

PLAYBOY — Mas mudou a sua vida.


CHICO — Não mudou muito não. Em vez de pegar o carro de meu pai, eu pegava o meu. Mas o resto era aquilo mesmo — tomar cachaça e tal. E era tudo misturado: a vida de estudante e esse princípio profissional, era mais ou menos a mesma coisa. Depois de uma farra na faculdade, de ficar bebendo a tarde inteira, às 6 horas pegava o smoking pra fazer um programa na TV Record. Era a continuação da farra: ia de carro com os amigos, entravam todos juntos. Não tinha isso de glória, não.

PLAYBOY — Em que momento baixou a consciência profissional?

CHICO — Bom, aí veio o festival da Banda. E de repente o que eu estava fazendo de farra ficou sério. Apareceu empresário, começaram a pintar viagens, shows em toda parte. E comecei a viver em função disso. Era jogado de baixo pra cima, ia parar em Pelotas, depois em Teresina, sozinho com o violão. Já era um pouquinho a fase da roda-viva, de fazer sem a menor consciência do que estava fazendo. Aí, realmente, comecei a ganhar dinheiro. Mas é onde está a diferença: não era um dinheiro que podia gastar indo pra Itápolis, entende? Já era o dinheiro que eu podia pensar em dar de entrada num apartamento. Começou a mudar um pouco o esquema da minha vida.

PLAYBOY — Quando foi que começou a escrever?

CHICO — Muito antes de fazer música. Assim tipo jornalzinho de colégio. Gostava da ideia de ser escritor. Eu tinha impressão de que ia ser uma coisa tipo jornalista ou, sei lá, uma espécie de cronista, um Rubem Braga...


PLAYBOY — Isso em que altura da sua vida?

CHICO — Até o tempo em que eu estudava arquitetura. Nunca estive realmente convicto de que ia ser arquiteto. Entrei para a Faculdade de Arquitetura porque não tinha naquela época nenhuma outra opção — não ia estudar Letras, não é? Até a hora em que comecei a fazer música profissionalmente. Comecei a viver de música um pouco sem perceber. Aí abandonei a ideia de ser escritor. E parei de escrever mesmo — eu fazia uns contos, e parei.

PLAYBOY — Publicou um conto só, não é? Ulysses, parece.

CHICO — Publiquei esse conto aí por 64, 65, no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Mas também não gosto dele. Em todo caso, é bom a gente começar, publicar as coisas e gravar os discos. Ficar esperando amadurecer para se expor, acho uma atitude meio medrosa. E aliás ninguém faz isso. Porque depois de fazer a gente realmente acha que está bom. Quanta gente me manda fitas para ouvir, eu ouço. E 100% — não vou dizer 99%, não — são coisas ruins. É de gente que tem geralmente 18, 19 anos, e as músicas que eu fazia nessa idade eram muito ruins mesmo. Então, quando tenho de dar uma resposta, eu digo "continua, que você chega lá". Também não posso dizer que é bom.


PLAYBOY — Isso não tem um pouco de pessedismo? Você acha mesmo que esse pessoal vai chegar lá?

CHICO — Eu não tenho direito de dizer a eles que não continuem tentando. Se 1% deles vier a fazer uma coisa boa, eu não digo que terei ajudado, mas pelo menos não terei impedido isso. Eu sei que seria uma porrada forte que ninguém tem o direito de dar. Quando eu escrevia minhas primeiras coisas, mostrava pro meu pai. Sabia que eram umas porcarias, mas se ele dissesse isso, me mandasse estudar matemática, eu talvez tivesse deixado de escrever. Meu pai dizia: "vai ler mais, continue escrevendo". Sem nada de pessedismo, e me valeu a pena: eu podia ter simplesmente desistido.


PLAYBOY — Alguns elogios seus, por escrito, não são convincentes...


CHICO — Bom, mas aí é outra coisa: eu descobri que não consigo escrever coisa que não seja ficção. Volta e meia me pedem prefácio pra isso, pra aquilo, ou uma contracapa, e eu tenho uma dificuldade incrível, fico um tempão na máquina para desovar uma orelha de livro. Agora já estou conseguindo rejeitar esses pedidos, explico que não sei escrever. Foi que nem isso de apoiar candidatos, nas eleições: eu pedia às pessoas que escrevessem pra mim, "você escreve que eu assino embaixo". Até que descobri que podia fazer jingles — isso pelo menos é uma coisa lúdica, divertida. E foi o que fiz [Chico fez jingles para o candidato ao Senado Fernando Henrique Cardoso (São Paulo) e para os candidatos à Câmara Federal Audálio Dantas (eleito por São Paulo) e Modesto Silveira (pelo Rio)].

PLAYBOY — Você já disse que compõe músicas "por enxurradas". Já aconteceu, entre essas "enxurradas", um intervalo longo a ponto de deixar você inquieto? CHICO — Sempre é um período meio angustiante. Quando estava escrevendo Fazenda Modelo, passei nove meses sem compor. Mas aí não fiquei inquieto, porque a mim não interessa simplesmente estar fazendo música: se estiver fazendo outra coisa, me dou por satisfeito, me sinto vivo. Escrevendo, fazendo teatro. Agora, nesses períodos de seca é que o negócio é bravo. Sempre fico achando que acabou, que secou mesmo. Fico tentando fazer, vou pro violão, pego e não acontece nada, não sai nada de novo. Pinta mesmo essa dúvida, essa incerteza, essa insegurança muito grande. Para mim, tenho certeza de que não vou fazer nada de bom tão cedo, ou nunca mais. Mas aí fico lembrando: já aconteceu antes, e eu fiz. E me consolo com isso.

PLAYBOY — Dê um exemplo de uma fase de seca brava.

CHICO — O período mais longo foi quando estive na Itália, 1969, 70. Acho que aí realmente houve um corte. Depois de um ano sem fazer nada, gravei um disco — um disco que reflete muito bem isso: meio perdido, meio desligado do que era antes, mas ainda sem estar ligado a uma nova fase. Gravei quase por obrigação: tenho que fazer um disco agora, porque não é possível não fazer música. Fiz. Mas metade das músicas desse disco eu considero meio soltas dentro do meu trabalho todo, não querem dizer nada.


PLAYBOY — Nos períodos de criação, você trabalha com disciplina?

CHICO — Música, não. Mas literatura, sim. Porque música é uma coisa muito pequena, não é? Você termina e fica burilando. Quando estou nessas fases de trabalhar muito, acordo e vou direto pro estúdio, fico lá o dia inteiro, só saio para almoçar. Mas a música se esgota, depois de dois dias não há mais o que fazer. Enquanto que quando você está escrevendo um negócio de mais fôlego, uma novela, uma peça de teatro, você vai dormir com aquilo, no dia seguinte retoma, é um processo contínuo. Música é absolutamente descontínuo: você curte aquilo intensamente durante um, dois, três dias, no máximo. Depois, quando parte para a gravação, já é outra coisa, não tem nada a ver.

PLAYBOY — Acontece muito você ter que gravar um disco e não ter músicas em número suficiente?

CHICO — Quando eu comecei a gravar, tinha uma bagagem muito grande. Fiz o primeiro LP e podia ter feito o segundo dois meses depois. Mas daí para a frente, não. É que eu não componho tanto assim — ser for olhar, tenho uma média de dez músicas por ano. Quando fui gravar Meus Caros Amigos, em 76, entrei no estúdio com quatro ou cinco músicas, sem ter ideia do que ia ser o conjunto. A mesma coisa agora no final de 78: na hora de fazer o LP, botei três músicas antigas — Cálice, Tanto Mar e Apesar de Você, que tinham ficado proibidas por muito tempo; botei também — um artifício que eu não queria usar — três músicas da Ópera do Malandro: Homenagem ao Malandro, Pedaço de Mim e O Meu Amor. Queria guardar estas três para o LP da Ópera. E compus uma música em cima da bucha, no estúdio, na última semana: eu tinha uma vaga ideia dela, mas não sabia nem o ritmo, nem tinha a letra, e isso tudo foi aparecendo no estúdio, a música praticamente foi composta lá na Phonogram.

PLAYBOY — Não chega a ser uma violência, isso de compor no estúdio, sob a pressão do relógio?

CHICO — Não. O fato mesmo de entrar no estúdio vai te estimulando, vai te puxando.

PLAYBOY — Mas essa música feita, digamos, para completar um disco, dá a você o mesmo prazer que as outras, criadas espontaneamente?

CHICO — Eu só faço música com prazer. Entrar no estúdio é um estímulo até certo ponto artificial, externo. Há uma série de estímulos externos — o clima de gravação, a necessidade de fazer música nova, ou compor para cinema, teatro. Mas o momento da criação, para mim, é sempre um momento de tesão. Não importa se o estímulo vem de fora.

PLAYBOY — É verdade que você experimentou o "estágio Alfa", esse estímulo complicadíssimo? [O "estágio Alfa" seria o momento em que o cérebro atinge a sua amplitude cria­tiva, provocado por um tipo de treinamen­to mental feito com a ajuda de estímulos elétricos, que está muito em voga nos Es­tados Unidos.]


CHICO — [Ri.] Fiz duas experiências com isso, mas acho uma bobagem. Entrei nessa por brincadeira, curiosidade pura. Eu estava em Nova York por uns quinze dias, e como o João Gilberto estava fazendo esse negócio, fui lá de farra. Não consegui atingir o estágio Alfa, achei engraçado e parei aí.

PLAYBOY — Você costuma ouvir seus discos em casa?

CHICO — Não, de jeito nenhum. Só a fita, assim mesmo quando está quentinha. Gravei ontem, hoje a primeira coisa que eu faria seria ouvir a fita. Mas, quando o disco está saindo, já não estou ouvindo mais.

PLAYBOY — Que tipo de música você gosta de ouvir, então?

CHICO — Na minha casa você raramente vai ouvir música. O que toca mais são os discos das crianças. Quando estou ouvindo, é geralmente uma novidade, um disco novo do Milton, do João Gilberto, do Caetano. As vezes cismo e boto uma música cinco, seis vezes seguidas. Tem um gênero que não ouço mais, música erudita: não tenho mais saco, nem curiosidade. Jazz, muito pouco.

PLAYBOY — E seus livros, você relê de vez em quando?

CHICO — Não. Quando estava saindo Calabar, eu ainda lambia a cria: era o primeiro livro. Então fiquei lá vendo aquilo impresso, corrigindo os errinhos para a segunda edição. Depois acaba o interesse, como no caso da música. Me dá uma impressão meio desagradável ficar remexendo nessas coisas que já foram feitas.

PLAYBOY— Você acha que as pessoas, de forma geral, o respeitam como escritor?

CHICO — O sujeito, quando quer se referir, por exemplo, à Ópera do Malandro — uma peça que me custou um ano de trabalho —, diz assim: "A peça do compositor Chico Buarque de Holanda..." Sinto aí uma certa agressão, uma vontade de diminuir. Quando eles querem diminuir mais ainda [ri], dizem "...a peça do cantor Chico Buarque de Holanda". Porque na cabeça das pessoas ser escritor ou dramaturgo é uma coisa de mais status. Mas eu não tenho essa preocupação: compor é igualmente um prazer, só que mais breve.

PLAYBOY — De qualquer modo, a impressão que se tem é de que você se aplica à literatura com intensidade maior que à música.

CHICO — Verdade. Mas isso porque escrever toma mais tempo que compor. Agora, tenho medo de que a ocupação de compositor se esgote. Eu vejo isso muito aí fora: aos poucos o compositor vai diminuindo o ritmo, é quase uma regra geral. E eu tenho medo disso.

PLAYBOY — Seu ritmo vem caindo?


CHICO — Sim. Mas, também, quando comecei vivia com o violão na mão, fazendo música, boa ou ruim, não interessa, estava o tempo todo fazendo. Agora, parece que eu já sei tudo. É o medo da repetição: a minha mão, sem querer, já vai de acorde para acorde segundo um desenho que já existiu antes. No teatro ou na literatura a gente não vê essa tendência a uma diminuição de ritmo entre artistas novos. Quantos escritores não apareceram com 40 anos? E é difícil aparecer um compositor com essa idade. Tenho muito medo de deixar de criar, de fazer alguma coisa. E me parece que o lado da música popular é mais frágil, pode ser mais efêmero, esgotar-se mais cedo.

PLAYBOY — Você poderia estar caminhando para uma troca de meio de expressão?

CHICO — Por enquanto, a literatura que tenho feito é quase sempre teatro musical — Fazenda Modelo é um caso à parte. E o compositor continua acompanhando esse trabalho. Agora, é possível que deixe de acompanhar um dia, não é? Inclusive porque fazendo teatro eu estou aprendendo muito, a cada peça uma coisa nova. Então, num dado momento pode ser que o escritor de teatro dispense o compositor. Ou que o compositor não consiga acompanhar o escritor.

PLAYBOY — Você foi criado num ambiente intelectualizado. Em que medida, exatamente, isso influiu na sua formação?

CHICO — Influiu muito, porque eu vivia cercado de livros, fascinado por eles. Comecei a ler muito, mesmo porque os livros estavam lá. E a ler coisas que eu não tinha capacidade de entender. Não sei se aproveitei, não me lembro de nada que li. Os franceses todos, os russos. Queria aprender a falar francês, e aprendi lendo aqueles livros. Depois esqueci tudo, quando aprendi italiano. Mais que o proveito que eu possa ter tirado da leitura, ficou o fascínio pelos livros. Aqui em casa tenho umas estantes cheias. Não é que eu compre livros a metro: são coisas que vou ler um dia.

PLAYBOY — Que tipo de coisa você gosta de ler?

CHICO — Hoje em dia quase não leio. Muito jornal e revista, mas quase nada de ficção. E quando pego é quase sempre literatura brasileira. Maíra, do Darcy Ribeiro, Galvez, Imperador do Acre, do Márcio Souza, estão separados, esse tipo de coisa me interessa. Resumindo: não tenho a menor vontade de reler Guerra e Paz.

PLAYBOY — Você parece ter uma diferença com os críticos em geral — de música, de teatro e de literatura. Nenhum deles já lhe disse alguma coisa importante, que ajudasse a iluminar seu trabalho para você mesmo?

CHICO — Umas poucas vezes, sim. E, engraçado: pelo menos no meu caso, a crítica de música tem sido a mais rica, a mais séria, quando aparentemente se poderia esperar o contrário. Sobre teatro, vejo barbaridades em termos de leviandade e preguiça. Literatura também: descaso, falta de atenção. Música, bem menos — tenho lido coisas que me serviram. O Tárik de Souza, por exemplo, já escreveu artigos que me valeram como toque.


PLAYBOY — Você costuma guardar recortes de críticas, entrevistas?


CHICO — Eu quase não leio minhas entrevistas. Não guardo nada, só umas poucas coisas, ligadas, por exemplo, a um determinado trabalho que acaba de sair. Aí nem sou eu, geralmente é a minha mulher. Já tive uma chateação com isso, quando voltei da Itália e li um monte de recortes baixando o pau em mim. Joguei fora o que tinha, não quero saber mais.


PLAYBOY — Ao contrário de tantos artistas brasileiros, você não parece preocupado com a vanguarda. Como se situa, exatamente?

CHICO — Não sou um compositor de vanguarda. Não estou em linha nenhuma, porque o meu trabalho é bastante isolado do resto. Não pertenço a grupo nenhum, nunca pertenci, e tenho a impressão de ser um cara que não está criando escola.

PLAYBOY — Na época do tropicalismo, quando havia uma obsessão de vanguarda, pesquisa, etc., você, que não estava nessa jogada, chegou a ser apontado como um artista ultrapassado. Isso o incomodou muito?

CHICO — Nessa época aconteceu uma coisa engraçada. Havia um movimento de vanguarda, o tropicalismo, e eu simplesmente estava procurando outra coisa: estava querendo aprender música. Foi quando comecei a elaborar meu trabalho, melódica e harmonicamente. Pode ser uma coisa acadêmica, mas que me ajudou muito. Não era uma posição tradicionalista, e frutificou mais tarde. Mas naquele momento o resultado desse esforço foi contraposto ao tropicalismo. Eu fui usado, mas não estava ligado a um grupo antitropicalista. E por estar muito ligado à música, nesse tempo — 1968 —, não me embalei no movimento estudantil. Depois da desilusão muito forte que foi 1964, 68 me pegou meio descrente. O movimento de música estava muito ligado ao movimento estudantil, mas eu, na verdade, só fui participar de uma passeata, a dos 100.000, porque a pressão era demais: eu me arriscava a ser confundido com um reacionário se não fosse a essa passeata.

PLAYBOY — Você tinha a sensação de estar isolado nisso tudo?

CHICO — O Ziraldo diz de brincadeira que eu sou Fluminense porque todo mundo é Flamengo. Mas na verdade eu tenho uma certa aversão à moda e aos modismos em geral. Sou visceralmente contra. É justamente isso que me preocupa hoje: de repente, todo mundo é de oposição. Eu também sou, mas tenho que encontrar uma forma diferente de me situar. Porque já vi isso acontecer tantas vezes, entende? Em tão pouco tempo, pessoas que eram declaradamente de direita passarem a fazer músicas anunciando "o dia que vai chegar", e serem aplaudidas de pé. Isso, para mim, tem efeito magnético contrário, me afasta. Me lembro da famosa passeata contra a guitarra, que fizeram em São Paulo. Fiz questão de não participar, porque achava uma besteira aquele negócio de fazer passeata contra guitarra. Pois um ano depois, em 68, eu estava na posição de quem tinha participado dela. Por quê? Porque as pessoas mudaram, viraram inteiramente. Tem sempre essas tentativas de envolvimento.


PLAYBOY — Você poderia citar mais alguma?

CHICO — Há algum tempo, um sujeito me incluiu, à minha revelia, num negócio chamado Malditos Escritores, porque a moda é ser maldito. E puseram o quê? Esse conto Ulysses, uma porcaria que escrevi em 64. E por que "escritor maldito"? Eu nunca disse que era escritor, nem maldito! Fazem essas coisas, e aí eu tenho que reagir. Ao mesmo tempo, não dá para ir até o fundo: não vou assumir a posição de censor, tentar tirar essa revista de circulação. De repente, é todo mundo contra Caetano e Gil, como alguns anos antes era todo mundo a favor deles e eu era o outro lado da gangorra, não é? De repente vira tudo, aí se diz que eles são dois alienados, que eu é que sou o quente. E eu tenho que reagir, dizer "pera aí, não é isso não". Eu detesto ser usado. A autonomia é muito importante para mim. As pessoas me usam de uma maneira sem-vergonha, o tempo todo, e têm usado há muito tempo.

PLAYBOY — Aliás, você está permanentemente obrigado a definir suas posições.

CHICO — Pelo menos a desdefinir as coisas que são definidas pelos outros.

PLAYBOY — Acredita que um dia não será mais preciso ficar se explicando?


CHICO — Acho que não. Enquanto eu estiver produzindo, vai sempre aparecer esse tipo de coisa, e vou estar sempre tendo esse tipo de aporrinhação. Mas é melhor do que não estar produzindo mais nada e estar com a imagem cristalizada.

PLAYBOY — Você parece ter tanto trabalho com seus adversários quanto com os que dizem estar com você.


CHICO — Pessoas que não me conhecem ficam dizendo coisas inteiramente fora de propósito, a favor ou contra. Ou é gratuito ou é de má fé. Os a favor são muito pesados quando sinto que tem uma coisa por trás. Porque aí estou sendo um inocente útil, para usar o termo, de coisas que assumo muito claramente. Eu assumo minhas ideias muito claramente, até o limite da censura mesmo. E no entanto fazem confusão, me usam, no plano estético e no plano político.

PLAYBOY — Você tem feito declarações sobre a inutilidade de fazer shows, que para a platéia têm um efeito catártico. O pessoal vai lá, te aplaude freneticamente, sai em paz com suas consciências.

CHICO — Isso aconteceu nos últimos shows que fiz, em 1975, no Canecão. Aí fiquei dois anos fazendo shows beneficentes, por causas ótimas, ou por envolvimento pessoal. O último foi para a chapa de oposição do Sindicato dos Médicos do Rio. Depois dele, choveram cartas — o Jornal do Brasil publicava duas, três por dia, acho que com certo prazer. Cartas me derrubando, dizendo que eu estava de má vontade. Que eu errei a letra das músicas — o que é verdade. Má vontade, não: pouco à vontade. Afinal, eu não estava me dedicando a shows, não tinha músicos ensaiados, não tinha a letra de cor. Estava fazendo show para uma coisa em que acredito. Mas é o tal negócio: o público pagou ingresso e queria realmente um espetáculo de artista. Quando eu entrei, ficou todo mundo de pé, mas saí do palco como uma coisa frustrante. Porque o pessoal, parece, estava querendo um espetáculo grotesco mesmo, em nível de desabafo. Coisa que eu já fiz quando era necessário para mim. Mas não estou aí para ser um profissional do protesto. Renego também essa imagem de líder, nunca me propus a ser isto.


PLAYBOY — A platéia nunca lhe deu um troco positivo? Ou é apenas algo a enfrentar, simples obrigação profissional?

CHICO — Justamente por isso é que é penoso. Não é uma coisa simplesmente profissional. Se eu pudesse fazer isso profissionalmente e ser um artista e me transfigurar, tudo bem. Mas não, eu me sinto muito exposto como ser humano. Segundo ponto: sou incapaz de subir no palco sem estar, não digo bêbado, porque aí erro tudo, mas sem estar 30% movido a álcool [ri]. E isso me parece uma coisa antinatural. Eu, se acordasse e tivesse que fazer um show, seria uma lástima. Tem uma série de condicionantes externos que me permitem às vezes chegar lá e fazer um show que sai. Um jornalista de São Paulo, conhecido pela sua mordacidade, até inventou uma história [ri]: alguém teria perguntado se eu comemorava depois do show — e eu: não, já entro comemorado...


PLAYBOY — Você se considera um profissional?

CHICO — Nesse sentido de artista do palco, nunca fui.

PLAYBOY — E em outros sentidos?

CHICO — Eu sou muito responsável. Quando assumo certos compromissos, procuro cumprir. Agora, muitas vezes esses compromissos profissionais são um desafio à minha capacidade criadora. Então já aconteceu de eu largar coisas pelo meio. Mas na grande maioria das vezes eu, quase violentado pela necessidade de cumprir uma obrigação profissional, acabei criando — e aí, volto a dizer, criando com prazer. FreqUentemente sob pressão muito forte.

PLAYBOY — Que tipo de pressão?

CHICO — Para gravar o meu último disco, por exemplo. Eu sei que sou um artista que tem uma posição muito boa lá na Phonogram, sou um dos que vende mais disco, então sou tratado com delicadeza. Mas eu sei também que por trás existe uma pressão fortíssima para que um disco seja gravado. O vendedor de discos na Bahia depende da saída do meu disco para comprar seu carro novo, e isso me é dito indiretamente. Essa pressão, de qualquer maneira, me provoca, me obriga a fazer, a criar. Já houve casos de músicas para um filme, ou para uma peça que estava para estrear, que eu tinha de fazer de qualquer maneira — e fazia. Com prazer — maior ou menor, é claro. Faço uma distinção: tem coisas que faço e assumo inteiramente, acho uma beleza, e outras que não chegam a tanto mas também não me envergonham.

PLAYBOY — Você acha que está caminhando para ser dono de seu tempo?

CHICO — Eu só estou caminhando para isso. Inclusive posso não fazer televisão, porque não gosto. E não é qualquer um que pode assumir isso, financeiramente. Tenho uma certa tranquilidade para não precisar fazer as coisas de que não gosto. Acho muito importante o prazer, sabe? Fazer uma peça de teatro, gastar um ano nisso, não faz sentido nenhum na lógica empresarial do meu trabalho: claro que no fim dá direitos autorais, mas não se compara ao que eu ganharia fazendo shows por aí. Só tem sentido, portanto, na medida em que me dá um prazer muito grande. Estou realmente querendo ganhar o meu tempo, ser dono dele. E aos poucos estou conseguindo. Até mesmo em termos de gravadora: a minha ideia é não renovar o contrato com a Phonogram, que vence daqui a dois anos, por causa dessa obrigação de gravar um disco por ano.

PLAYBOY — Mas você não grava um disco por ano. Pelo menos não gravou em 1977.

CHICO — Não gravei, porque tenho uma situação privilegiada na gravadora. Eles não vão me obrigar, "faz se não te processamos, te damos um tiro na cara". Agora, se eu não renovar o contrato, não vou me sentir pressionado pelo vendedor de discos da Bahia.

PLAYBOY — A Rede Globo anda usando suas músicas nas novelas. É uma manobra de sedução?

CHICO — Eu tenho repetido que não estou a fim de fazer nada lá. Isso depois de ter sido proibido na Globo. Proibido mais de uma vez, e na mais grave com outras pessoas: foi todo um grupo de compositores que se recusou a participar do penúltimo Festival Internacional da Canção. Não era nada contra a Globo, era um protesto contra a censura — foi naquele ano mais bravo da censura, acho que 1972. A gente escreveu uma carta protestando e retirando as músicas. A Globo, que tinha muito interesse em jogo, quis forçar a gente a participar. E isso chamando todo mundo no DOPS. O Secretário da Segurança, general França, os compositores todos lá de pé e um diretor da Globo — um cara chamado Paulo César Ferreira — aos berros, chamando todo mundo de comunista. Apoplético, queria enquadrar todos na Lei de Segurança Nacional, queria deixar a gente preso lá. E, como não conseguiu, vingou-se proibindo a execução de músicas nossas na Globo durante um bom tempo. Houve vários incidentes assim com a Globo. Eu simplesmente não tenho interesse nenhum em participar de seus programas.

PLAYBOY — E da parte deles? CHICO — Eles estão usando músicas minhas aí em novelas. É uma coisa que podem fazer independentemente de mim, através da editora.

PLAYBOY — Há um ano, exatamente, você esteve em Cuba, e ainda hoje este é um tema de que fala com interesse. O que o impressionou mais por lá?

CHICO — Quando a gente está falando de Cuba, está falando do Brasil, sistematicamente. Porque é muito parecido, demais — tudo: a paisagem, a cara das pessoas, os hábitos. Vi um país pobre, parece assim o Nordeste, e as pessoas parecidas com nordestinos, mas todo mundo vivendo com a maior dignidade. E orgulhosos da experiência deles. Para mim, foi muito marcante, embora insuficiente: fiquei lá vinte dias, trabalhando muito, dormindo pouquíssimo, acordava e já tinha mil coisas para fazer. Acabei não vendo coisas que tinha vontade de ver, como Santiago de Cuba, que todo mundo diz que é igual à Bahia, aquelas ladeiras, etc. Quero voltar a Cuba.

PLAYBOY — Um artista independente como você se daria bem por lá?

CHICO — Acho que só seria estimulante. Até perguntei a um colega meu, Silvio Rodriguez, um dos grandes compositores cubanos: o que acontece se eu vier morar aqui? Ele disse: olha, você vai ter algumas dificuldades, vai se chatear, porque de repente não vai conseguir um gravador, ou fartura de cordas para o violão. Mas por outro lado, ele disse, você vai sentir tanto estímulo em tudo que te cerca que o saldo vai ser positivo. E Silvio Rodríguez é um artista muito independente, não senti nele nenhuma repressão. Além do trabalho com música, há um trabalho em que está envolvida toda a população cubana, uma coisa grandiosa, voltada pra fora, voltada pros outros. Uma coisa que não existe no Brasil. Aqui, você quer ser um bom profissional e pronto. O fato de eu ser um artista de oposição não quer dizer que eu seja do contra — eu sou a favor de muitas coisas... Quanto aos artistas cubanos, pelo que pude sentir, são independentes. Simplesmente estão voluntariamente engajados dentro de um processo.

PLAYBOY — Não existe por lá, então, o lamentável "realismo socialista"?

CHICO — Em Cuba, não. Pelo menos na música e no teatro não há. Você vê uma série de canções compostas para determinados fins ligados à problemática deles — a construção de escolas, por exemplo —, ao lado de canções simplesmente de amor. E com aquela musicalidade deles, que aqui na América Latina só tem páreo no Brasil, na minha opinião. Aliás, me disseram em Cuba, não sei se é verdade, que os escravos que foram para lá, para New Orleans e vieram para a Bahia eram de uma mesma região africana. Só pode dar samba...

PLAYBOY — Deu para você ter uma ideia de como são as relações entre Estado e Igreja, em Cuba?

CHICO — Convivem bem. Uma das reuniões do congresso de escritores, no ano passado, foi interrompida pelo coordenador para saudar a entrada na sala de um bispo católico, que entrou inesperadamente. Fiquei impressionado: a sala inteira — todos marxistas — se levantou, aplaudindo o bispo, que por sua vez estava lá prestigiando um acontecimento oficial.

PLAYBOY — Você teve formação católica. Gostaria que falasse um pouco dessa experiência.

CHICO — Minha mãe é muito católica, fez questão de criar os filhos com todos os requisitos: Primeira Comunhão, crisma, colégio de padre. Então a minha formação é toda católica apostólica romana. Rigorosa mesmo.

PLAYBOY — É verdade que numa certa altura você participou de um grupo que viria a ser o embrião da TFP?

CHICO — Foi no Colégio Santa Cruz, em São Paulo. Mas devo esclarecer que era um movimento à margem da orientação do colégio, à revelia da direção. Eu tinha uns 14 anos. De repente um grupo de garotos começou a comungar todo dia, a achar que vinha aí o fim do mundo e que só se salvariam uns predestinados — nós, os "ultramontanos". Mas isso durou pouco tempo, porque meus pais, meio alarmados, me mandaram interno para Cataguases, em Minas. E é preciso fazer uma distinção: a atuação da famigerada TFP é uma coisa, aquilo lá era bem diferente: era o que eles chamavam de "apostolado" em cima dos gárotos, em termos religiosos exclusivamente. Claro, envolvendo castidade, preservação dos valores tradicionais da Igreja Católica, uma coisa meio medieval, mas não tinha nada de político e ideológico.

PLAYBOY— Depois disso você deixou a religião?

CHICO — Não, porque eu voltei para a mesma escola, e tive lá outras experiências, até positivas, dentro dessa linha cristã. Participei de uma coisa chamada Organização de Auxílio Fraterno. Há algum tempo contei isso numa entrevista, e recebi uma carta dizendo que a organização ainda existe e que eu não devia ter falado nela, porque é secreta... Bom, fui umas quatro ou cinco vezes levar cobertor para os mendigos na Estação da Luz, visitava presídios, etc. Quem orientava era um padre do Colégio Santa Cruz. A experiência somou muito na minha vida.

PLAYBOY — Como, exatamente?

CHICO — Tomei contato com esse submundo de São Paulo, com a miséria mesmo. Você pode ver em filme, ler a respeito, mas você presenciar é outra coisa. Uma das coisas que mais me impressionaram é que a gente chegava com os cobertores para distribuir e as pessoas fugiam com medo. A gente então deixava como quem deixa um pratinho de carne para o gato, sabendo que depois ele vem buscar. É muito importante um cara de 16 anos, de uma escola de elite, tomar contato com isso. Não é no Nordeste, não, é ali dentro de São Paulo mesmo. Encontrar mulheres grávidas e crianças deitadas no chão de cimento da Estação. Segundo, ver que essas pessoas encaram um cobertor como uma ameaça — estão mais advertidas para receber a visita da polícia, ir em cana. Então têm medo da caridade. Evidentemente que hoje eu não encaro mais a caridade como sendo um remédio para nada disso. Mas valeu como experiência o contato com essa gente. Tudo parece meio banal falado assim, mas, dentro da vivência limitada de quem pertence a uma certa classe, é importante. As minhas filhas, morando aqui na Zona Sul do Rio, frequentando colégio de gente rica, eu quero que elas mais cedo ou mais tarde tenham uma experiência parecida com a que tive. Porque são coisas que não adianta a gente transmitir: já foi criada uma barreira entre esses dois mundos. Acho que se eu não tivesse tido esse contato com a miséria eu seria um alienado, tudo me empurrava pra isso. Nunca fui um garoto rico, mas as minhas relações eram dentro desse ambiente. Em minha casa nunca houve nenhum tipo de fausto ou de abundância — havia sempre um fascínio pelo lado intelectual. Mas, fora disso, todas as minhas relações de adolescente eram com uma garotada cujo futuro era correr ou pra ganhar dinheiro de qualquer maneira, ou pra gastar dinheiro, comprar carros.

PLAYBOY — Como foi a sua evolução religiosa a partir daí?

CHICO — Essa história dos cobertores foi realmente um parêntese, porque todo o resto era muito ligado à molecagem, a coisas de rua, a experiências outras, inclusive prisão.

PLAYBOY — Prisão?

CHICO — É, contato com prisão, apanhar da polícia. Eu tinha 17 anos. Estava no meio termo entre o boa-vida e o marginal absoluto. A brincadeira era roubar carro para circular pela cidade, e uma vez a polícia nos pegou, eu e um colega meu, numa ladeira do Pacaembu. Aliás, foi a primeira vez que eu saí no jornal, acho que no Diário de São Paulo: "O pivete F.B.H.", e a foto com aquela tarja preta nos olhos. Foi uma loucura, queriam que a gente confessasse vários roubos, queriam ter achado uma quadrilha de puxadores de carros. Então era porrada, muita porrada. Nos passaram para o camburão. Quando um batia — eram quatro —, os outros todos também batiam, para não se sentirem diminuídos. Até o cara que estava dirigindo o camburão: mesmo de costas, ele pááá! Fomos para o Departamento de Investigações, na rua Brigadeiro Tobias. Não tínhamos documentos, claro. Ameaça de pau de arara, e tal. No fim se convenceram de que a gente era menor de idade e passamos a noite numa cela do Juizado de Menores. Me lembro que havia com a gente um garoto que tinha roubado um cavalo. Lembro também do cheiro desse lugar, que era uma coisa abominável. No dia seguinte a minha irmã Miúcha — meus pais estavam viajando —, que era maior de idade, foi me tirar de lá. Isso foi aos 17 anos, e até fazer 18 fiquei na chamada liberdade condicional: não podia sair de casa depois de 8 ou 9 da noite. Me lembro de ter passado o Carnaval de 62 dentro de casa, puto da vida. Uns seis meses sem poder sair de noite.

PLAYBOY — Esse seu passado de semi-marginal não combina muito com a imagem pública do sujeito tímido...

CHICO — Mas eu não sou tímido. Não gosto de fazer show, mas isso é outra coisa. No convívio com as pessoas que conheço, não sou tímido, sou até sociável. Dentro de um certo limite, naturalmente: também não sou festeiro.

PLAYBOY — Voltemos à vida religiosa de Chico Buarque.

CHICO — Bom, saí da escola, fui para a faculdade. Não digo a curto prazo, mas a médio prazo esse contato com o catolicismo exacerbado, ultraconservador, me deu um certo asco. Acabou resultando até num anticlericalismo violento, juvenil, por volta dos 17 anos, quando eu estava largando a escola de padres, aí já querendo mandar tudo que é padre para aquele lugar.

PLAYBOY — Hoje, a questão religiosa te diz alguma coisa?

CHICO — Não, em termos de fé não diz mais nada. Não tenho mesmo nenhum resquício de crença mística, ou de fé, ou de coisa que o valha. Mas eu tenho suficiente tranquilidade para julgar positiva, em muitos pontos, a minha formação cristã. No frigir dos ovos, não tenho queixas de nada disso. Tenho até uma admiração muito grande pela posição da Igreja Católica — um dom Hélder, um dom Paulo Evaristo. Tenho amigos católicos. Quando estou em Cuba e vejo um colega meu de júri do Prêmio Casa de las Américas, o poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, que é padre até hoje, e é sandinista . Eu não entendo muito, no fundo não entendo como é que ele consegue conciliar a fé cristã e suas posições políticas. Fico meio dividido.

PLAYBOY — Você diria, então, que para você o problema religioso ainda não está resolvido?

CHICO — Não, me parece resolvido, dentro de mim. Agora eu vejo do lado de fora: é como você ter um amigo em quem confia, em quem por todos os motivos acredita, que parece pensar como você — e que no entanto tem um lado absurdo. Acredita numa coisa na qual você não pode acreditar. Então você fica dividido, sem entender esse amigo, embora entenda a si próprio.

PLAYBOY — Será que o seu lado místico morreu mesmo?

CHICO — Eu sou materialista.

PLAYBOY — Mas a gente sabe que a liquidação racional da religião não elimina necessariamente alguns mecanismos religiosos profundos — a noção de pecado, o sentimento de culpa, por exemplo. Você não se pilha, às vezes, numa autopunição?


CHICO — Minha mulher acha que sim, que o tempo todo. [Pausa.] Olha, uma entrevista desse tipo fica um pouco delicada para mim, porque eu me recuso a fazer análise, e está parecendo uma espécie de análise. [Pausa.] Agora, segundo quem conhece mais o negócio, eu tenho uma compulsão assim autopunitiva. Pode ser verdade. Eu não quero entrar muito a fundo nisso, não quero pensar nisso. [Pausa.] Fatos concretos: o disco Meus Caros Amigos de repente vendeu 500 mil. Cria um problema sério dentro de mim, me faz ficar um pouco agressivo, entende? Me transtorna um pouco no sentido mesmo de autoflagelação, de negação.

PLAYBOY — Pode explicar melhor?

CHICO — Ficar brigando contra o sucesso mesmo, entende? E sentir uma certa culpa da coisa bem-sucedida. Uma vontade secreta de querer destruir isso, de querer minar. Isso é uma opinião que não é minha, porque eu não tenho condições, não quero, não penso muito nisso. Acho que talvez tenha alguma coisa a ver. Quer dizer, depois desse disco não quis gravar outro no ano seguinte, e ano passado gravei com uma certa dificuldade. Aconteceu antes com Construção, que fez um sucesso muito grande para a época: eu passei anos sem conseguir gravar um disco meu; fiquei fazendo disco de show, disco de filme, disco com outros compositores. Isso é conversa que estou retransmitindo, de gente analisada e gente que pensa em termos analíticos.

PLAYBOY — Você nunca fez análise?

CHICO — Eu não faço, não fiz, não quero fazer e fujo um pouco disso.

PLAYBOY — Por quê?

CHICO — Geralmente quando a gente entra muito nesse negócio, fica com receio de desvendar os mistérios.

PLAYBOY — De sua criação?

CHICO — Exatamente. Precisamente disso. Eu não sei por que faço música. É terrível quando pinta uma fase de angústia, as fases em que acho que sequei. Aí realmente dá vontade de dar o braço a torcer e tratar da cabeça, pra ficar legal, pra viver legal. Mas para mim parece que viver legal se opõe a criar. Então, é uma opção. Não digo que seja definitiva — pode ser que encha o saco e eu diga: olha, eu quero que se dane, não quero fazer mais nada, se for para não fazer mais nada eu pelo menos quero ficar tranquilo, quero viver tranquilo.

PLAYBOY — A criação é, portanto, um processo que você não domina?

CHICO — Não domino, e tenho medo: se eu dominar, acaba. Parece que é isso. [Pausa.] Olha, isso que eu vou dizer é uma colocação para uso, talvez [ri] de algum psicanalista: eu não me lembro de ter tido uma fase tão tranquila em minha vida profissional como quando morei na Itália. Foi quando despintou o sucesso, lá na Itália eu não era ninguém, evidentemente. Cheguei lá e depois de dois meses eu era nada. Aqui no Brasil, eu era considerado nada, cocô. Eu me chateava com isso, claro. Lia entrevistas em que se davam notas a cantores e cantoras. Chico Buarque: zero. Isso me chateava, mas no fundo eu estava tranquilo: ah, bom, então é assim? Então não tenho obrigação de ter nota dez, já estou com a nota zero... Tudo o que fizer é lucro, não tenho nada a perder. Enquanto que nesse negócio de "tudo bem", "maravilha", o peso é muito maior.

PLAYBOY — Uma situação absurda: você continua criando, mas de repente não faz sucesso nenhum.

CHICO — No fundo, no fundo, se eu tivesse certeza de estar fazendo uma coisa muito boa, o fato de não fazer sucesso não me incomodaria. O que acontece é que, dentro desse trabalho que eu estou desenvolvendo, a falta de resposta do público é sintomática. Eu estou fazendo música popular, ou teatro que se pretende popular, não estou fazendo nada desligado disso. Nesse sentido não sou Hermeto Paschoal, não estou fazendo uma experiência de vanguarda dentro da música, nem dentro do teatro. Então, se eu não tiver uma resposta satisfatória do público ouvinte, do leitor, do espectador eu vou ficar desconfiado de que está errado.

PLAYBOY — Que tipo de resposta do público é importante para você?

CHICO — Os parâmetros que a gente tem são muito vagos. Geralmente é o Ibope mesmo, a vendagem dos discos e dos livros, a execução no rádio, etc. Com exceção de uma peça de teatro: então fico lá atrás, testando, vendo a reação do público. Isso acontece. Às vezes, quando eu estava meio down, eu ia ver a Ópera do Malandro, e ria quando o público ria, me dava um prazer muito grande. Quando o público se emociona, me dá um prazer grande também. Agora, isso eu só sinto estando lá atrás. Se eu estivesse no palco, não sentiria. Sei de gente que trabalha e canta no palco, e que de lá identifica pessoas. Para mim, a platéia é como uma massa negra na frente — não posso ver a cara da pessoa, que vai me perturbar. Então, é sempre um adversário, sempre foi. Um adversário que eu tenho que domar, que vencer. Pelo meu trabalho, não pela minha pessoa, ou por aquilo que eu declarei no jornal. Na hora em que estou ali no palco, o que tem de valer é o meu trabalho. Tenho vaidade por ele, não por minha pessoa. Estou pouco ligando. Gosto de separar as duas coisas. Quando elas começam, aí eu reajo.

PLAYBOY — Você acha que fez progressos no trato com a platéia, desde que subiu ao palco pela primeira vez?

CHICO — Ah, sim, melhorei bastante. [Ri.] Estava quase aprendendo quando parei... Algumas coisas eu já estava conseguindo fazer direito. No começo, eu era o garoto que subia no palco com o violão e cujo trabalho, bem ou mal, no fim era aceito. Mas não era ninguém, era um cara que ficava escondido atrás do violão. Mais adiante, já conseguia às vezes, em algumas músicas, fazer um trabalho de intérprete.

PLAYBOY — Quando Com Açúcar, Com Afeto foi gravada, quem cantava era uma mulher. Por que naquela época você não cantava no feminino?

CHICO — Não sei. Realmente foi uma bobagem colocar uma mulher para cantar essa música. Mais tarde, em algumas músicas mais teatrais, eu consegui fazer personagem. Cantar no feminino, interpretar uma mulher cantando, como em Ana de Amsterdam. Sem nada de feminino — como se fosse um ator.

PLAYBOY — Suas músicas no feminino, desde Com Açúcar, Com Afeto, mostraram uma compreensão muito profunda da condição feminina. Já se disse até que neste país ninguém entende mais de mulher que você. Agora, isso se reflete na sua vida pessoal? Ou você é mais um machista?

CHICO — Eu fui evoluindo. Quando precisei explicar na capa de um LP por que não cantava Com Açúcar, Com Afeto, eu era um sujeito machista, no sentido de não assumir, de ter medo de ser chamado de bicha. Hoje não tenho mais esse medo, se me chamarem de bicha não tem a menor importância. A minha insegurança daquele tempo foi sendo aos poucos superada. Eu não sou um cara machista, acho que não sou. Isso você tem que perguntar para a minha mulher... Não vou dizer que tenha perdido todos os sintomas dessa doença, não seria verdade. Posso até agir mal nesse terreno, mas tenho consciência de estar agindo errado.

PLAYBOY — Você já teve alguém que orientasse a sua carreira, um empresário que dissesse vista isso, faça aquilo?

CHICO — Nunca. Quando tinha empresário, era só para marcar show, avião, hotel. Nunca interferiu na minha maneira de me conduzir, inclusive porque eu era convidado, visto e ouvido pelas pessoas justamente como um cara que não se fantasia. Não vai nisso nenhuma crítica a quem se fantasia; pelo contrário, eu acho muito válido que o artista, por ser artista, se fantasie. Aliás, é um costume que sempre existiu. Mas eu sou descendente da bossa nova: aquela coisa do banquinho e do violão. Vestindo roupa convencional — um sujeito igual a qualquer outro da platéia, que sobe ali e canta sem vibratos. E nunca passei disso, como cantor de público nunca consegui superar essa postura.

PLAYBOY — Mas você tentou?

CHICO — Eu até passei um pouquinho disso. Como postura não, mas como colocação de voz. Isso a partir do show que fiz com Caetano na Bahia. Soltar mais a voz, ser menos tímido.

PLAYBOY — Por que você mudou de estilo naquele momento?

CHICO — Ali foi muito por causa do Caetano: acompanhar o pique dele, acompanhar até o tom dele, que é muito mais agudo que o meu. Como disse, sou um descendente da bossa nova. E tentei romper com isso. De certa forma, rompi, mas só na maneira de cantar: também não seria capaz de dançar, de sapatear e rebolar no palco. Nunca tentei, aliás. Não tenho cintura para isso.

PLAYBOY — Você já teve algum comportamento realmente ousado perante o público?

CHICO — Bom, eu já mijei no palco [ri]... Mas isso são uns excessos assim fora de qualquer contexto.

PLAYBOY — Como é que foi isso?

CHICO — Foi num show com a Leila Diniz. Terminei mijando...

PLAYBOY — O show do Caetano pode ser considerado um marco na sua carreira, de cantor pelo menos. Agora, na sua vida pessoal, poderia citar momentos de guinada radical?

CHICO — Dezembro de 68 foi um marco, não é? Um marco muito claro para mim, porque eu estava posto em sossego e um dia me tiraram da cama para ir ao Exército. Não estava envolvido em nada, estava um pouco descrente daquela coisa pré-Ato 5, e naquela jogada pente fino me pegaram. Me pegaram e me marcaram muito. Viajei, fui embora para a Itália, tive minha primeira filha — isso muda muita coisa, entende? Quer dizer: de repente eu já não era mais um moleque. Depois voltei para o Brasil. E como fui um dos primeiros a voltar, me senti um pouquinho acusado justamente de estar voltando. Ao mesmo tempo retomei contato com o país — foi uma mudança brusca, um ano e meio fora. Encontrei o Brasil da Copa do Mundo, aquela coisa toda de 1970. E fiz Apesar de Você, uma música que não tem valor muito grande em si mesma, mas que para mim tem, porque foi justamente a minha resposta a tudo isso que vi. Aí começou a rotina da perseguição e do contato policial. Fiz Construção, que para mim é um disco esteticamente muito importante, e antes mesmo do show com Caetano eu fiz um filme com Cacá Diegues (Quando o Carnaval Chegar), que era assim um pouco a maneira de marcar o lado lúdico da Construção. E também para não ficar enquadrado como "cantor de protesto" — um termo que aqui no Brasil só quem usa são os reacionários, são as direitas. "Canção de protesto" tem um tom pejorativo aqui, uma conotação esquisita. Aí fora, não. Em Portugal eles dizem "canção de intervenção" [ri] . Mas eu não estou intervindo em nada...

PLAYBOY — Virando um pouco a conversa: na vida das pessoas, o casamento costuma coincidir, ou determinar uma parada, uma gordura existencial. Nesse sentido, o que significa para você estar casado e ter filhos?

CHICO — Ser casado, eu não sei. O fato de ter filhos é muito importante pra mim. Porque depois disso, evidentemente, as coisas ganham mais consequência. Coisas que eu fazia antigamente e que hoje seria incapaz de fazer, em grande parte porque tenho filhaS. Do contrário eu faria, não teria pudor, entende?, de fazer outra vez a propaganda do Mug que dá sorte. Porque pra mim esta era uma sacanagem como qualquer outra, igual a mijar no palco depois de uma bebedeira. Podia até acontecer de novo a mijada no palco, seria até certo ponto uma atitude lúdica, você pode brincar em cima disso. Mas com determinadas coisas eu já não brinco. Enfim, eu tenho uma responsabilidade, me sinto direta e indiretamente responsável em relação a minhas filhas. Por isso é que diante de muita coisa eu penso: se eu fizesse isso, realmente seria muito engraçado, mas... Eu fico olhando esses anos todos que passaram e em que tudo empurrava a gente para o deboche, pura e simplesmente, para a falta de dignidade mesmo. E de repente você se orgulha de ter aqueles filhos e quer justificar isso também, quer agir com coerência em relação a eles.

PLAYBOY — Você faz parte da última geração que fez política antes da vigência do AI-5. Como você vê a que veio em seguida, a chamada "geração do desbunde"?

CHICO — Vamos pegar o quadro em que eu me mexo mais — a música, o teatro. Fala-se muito de que não surgem novos valores. Mas o que essa geração que veio depois da minha encontrou de dificuldades, em todos os sentidos, não foi brincadeira. Se eu tivesse seis anos menos, e fosse começar hoje, teria uma luta muito grande, seria quase impossível. Os novos artistas são realmente vítimas desse fechamento todo. Até 1964 eu participava mesmo de toda discussão, política ou cultural, abertamente. Me sentia participante e preparado para ser um cidadão deste país. Mas o garoto com cinco ou seis anos menos do que eu se sente simplesmente marginalizado, e provavelmente vai ser um mau profissional, vai ser difícil ele vencer nisso ou naquilo, porque não lhe deram outra saída a não ser a da evasão. E ainda há quem diga que a censura é uma desculpa, que as gavetas em Portugal estavam vazias no 25 de abril. Isso é de um cinismo absurdo.

PLAYBOY — Explique. CHICO — Você escreve duas peças, proíbem. A terceira você vai fazer com dificuldade, a quarta mais ainda, e a quinta você simplesmente não escreve. O contato com o público era essencial para você escrever a segunda, e a segunda essencial para a terceira. O autor vai sendo prejudicado, muito menos pelas peças que ficaram presas que pela continuidade do seu trabalho. E o autor novo, que não viu nem a primeira, nem a segunda e nem a terceira? Ele deixou de crescer, de avançar. O cara que vai criar sem ter essas referências já começa jogando pelada. Porque esse contato, esse confronto, essa competição mesmo, tem que existir, você tem que fazer uma coisa a mais do que o outro fez. E até pouquíssimo tempo atrás você tinha que fazer a partir do nada. Escrever a peça depois do quê? Depois do Tenessee Williams... Eu não faria nada se, em primeiro lugar, não conhecesse João Gilberto, a bossa nova; se não fosse a primeira peça que vi, A Revolução na América do Sul, do Augusto Boal; se não existisse o Teatro de Arena, o Teatro Oficina. Eu ainda peguei isso. Mas o cara que veio depois de mim já pega meio mutilado o que veio antes, não tem motor de arranque. E a geração seguinte, então... Vai diminuindo, acabando.

PLAYBOY — É o processo inverso do que deveria ser.

CHICO — Exato. Eu imagino o que seria a cultura hoje no país, se não tivesse havido as freadas bruscas de 64 e principalmente de 68. Em 64 eles bloquearam também as artes, na medida em que bloquearam o contato do artista com o povo. Então começou a existir esse negócio da coisa fechada, do Teatro Opinião, que era uma beleza, mas que se esvaziou porque ficava confinado à Zona Sul do Rio de Janeiro. E em 68 foi porrada em cima dos artistas, diretamente. O que a gente vê hoje são os mesmos caras, os mesmos caras que faziam antes, e que já estão meio cansados. Porque depois de um certo tempo você precisa do cara que vem atrás dizendo coisas novas. Eu me enriqueço com um disco novo. Quando veio o tropicalismo, por exemplo, eu já existia, e aquilo mexeu comigo, foi bom pra mim, mesmo que tenha sido meio uma porrada. Isso tinha que estar acontecendo o tempo todo, e não acontece. Quando a tendência tinha que ser multiplicadora, o que vemos é o contrário: está se afunilando, afunilando.

PLAYBOY — Você não acha que está surgindo uma nova geração mais ativa, mais motivada?

CHICO — Está, mas assim mesmo ficou um hiato, um buraco. Você vê uma porrada de grupos novos de teatro, e esses jornaizinhos pequenos todos — mas tudo meio perdido, meio ideologicamente sem referências. O que eu tenho visto de grupos de teatro novos com um talento muito forte, mas me dando a impressão de estarem jogados fora, por falta de uma base, de uma diretriz.

PLAYBOY — A sua geração, portanto, sofreria de uma orfandade ao contrário: a falta de alguém empurrando atrás.

CHICO — Claro. É provável que essa nova geração, quando surgir finalmente, me conteste, diga que eu sou velho. Isso vai me provocar, vai me rejuvenescer. Ou não, e aí eu vou ficar ferido, magoado, vou reagir contra e vou ficar velho mesmo [ri], rabugento, e dizer que os novos são umas merdas... Mas não interessa: tem é que mexer. E isso não está acontecendo — na música, no teatro, em setor nenhum.

PLAYBOY — Para encerrar: o Brasil mal vai saindo de um regime repressivo e começam a surgir "patrulhas ideológicas" do outro lado, pressionando para que todo e qualquer tipo de trabalho tenha uma nítida e expressa conotação política. Você acredita que um dia o artista brasileiro poderá trabalhar sem esses tipos de pressões?

CHICO — Acho que a médio prazo as coisas vão assentar. O Surgimento dessas patrulhas é inevitável, em Portugal aconteceu coisa parecida: essa gente afoita demais ouve o galo cantar e não sabe onde. Prefiro acreditar que não seja má fé, que seja apenas um lapso na inteligência e na sensibilidade dessas pessoas. Isso vira moda. Mas moda passa, não pode durar mais de um ano.


POR HUMBERTO WERNECK

FOTOS N. M. PASSOS


Publicada em fevereiro de 1979, ed. 43. Editora Abril, São Paulo - SP.
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1 comentário


Ademar Amâncio
Ademar Amâncio
09 de ago. de 2023

A Playboy fez pergunta sobre a primeira vez e outras questões sobre sexo até para o Tony Ramos,ao Chico Buarque,com aquela cara de safado,não perguntaram nadica de nada,em 1979 foi a fase que ele teve um caso com Sônia Braga,rs.

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