top of page

DANIELA MERCURY

Perfil


Terremoto à baiana


Com seu carisma fulgurante, a mais nova sensação da música brasileira faz a terra tremer por onde passa


Por EUGÊNIO BUCCI


Em pelo menos duas coisas Daniela Mercury de Almeida Póvoas não é original. Baiana, resolveu virar artista — o que é quase uma redundância, porque, como todo mundo sabe, "baiano não nasce, estréia". Artista, decidiu ser consagrada no sul. Foi, é claro. E como foi. A sua temporada em outubro no Olympia, em São Paulo, teve de ser esticada para dar conta do público. Eram 4.000 pessoas por noite, chacoalhando de quinta a domingo. Daniela Mercury costuma dizer que perde 1 de seus 55 quilos a cada show, mas também nisso ela não é original. Incautos da platéia, que pulam feito possessos por mais de 120 minutos, podem perder até mais que 1 quilo. Há os que perdem a compostura — o que ela não perde nem quando fica inteira molhada de suor.


A menina que, aos 16 anos, começou cantando no bar Le Fiacre, de Salvador, que se tornou cantora de Trio Elétrico e fez corinho de fundo em shows de Gilberto Gil é hoje, aos 27 anos, uma estrela da música brasileira. Mais do que uma estrela. É uma mania. Em menos de dois meses, seu segundo disco, O Canto da Cidade (Sony Music), lançado em meados de setembro, tinha vendido 140.000 unidades. A gravadora espera chegar ao meio milhão entre o Natal e o Carnaval. Daniela Mercury, o primeiro disco solo da mulher que é o novo fenômeno de vendas do mercado fonográfico, editado em 1991 pelo selo Eldorado, marcou seus pontos com o sucesso Swing da Cor, e vendeu 100.000 cópias.


Com a média de onze shows por mês, ela viu o seu cachê disparar em 1992. A escalada passou dos 5.000 dólares, no início do ano, para 7.000 dólares em julho. Daí, a expectativa era a de um salto para algo próximo de 20.000 no final do ano. A moça é um excelente negócio em expansão, principalmente depois que o megaempresário do showbizz, Manoel Poladian, promoveu os shows do Olympia e uma turnê nacional, com planos de lançá-la em Nova York. Também pudera. Daniela tem um carisma fulgurante. Diante dela, pais de família assumem ares de crianções e pedem para tirar uma foto a seu lado no aeroporto. Adolescentes que pintaram a cara para derrubar o presidente da República abarrotam os seus shows. Marmanjos de todos os matizes também. Daniela faz tremer o chão por onde passa, embora não seja propriamente aquele carnaval ambulante tipo Moraes Moreira. Graças a Deus que não é. Ela é incomparavelmente mais bonita do que Moraes Moreira. Mas tampouco é uma versão de saias de Moreira, ainda que seus agudos, aqui e ali, façam lembrar a telúrica e alternativa Baby Consuelo.


NÃO É NEGRA NEM MORENA.

ELA É SUPRA-RACIAL


Daniela Mercury tem a cabeça no lugar. Administra sua carreira e sua voz ("o melhor presente que Deus me deu") com a disciplina e a precisão dos bons operadores do mercado financeiro. Se tem muito juízo, tem também, quem sabe por isso mesmo, os melhores motivos da Bahia para enlouquecer a gente. É exatamente na conjugação desses motivos, na maneira como eles se combinam numa poderosa fusão sensual, que Daniela Mercury é original como ninguém. Uma baiana que tem tudo o que a baiana tem, ou quase. Mais exatamente, sua originalidade mais gritante está naquilo que lhe falta. Ela não é negra. Nem sequer morena. É branca, branca como a neve. Fora isso, não inventou mais nada. Nem precisaria. Além de transgeracional, ela é supra-racial. "No começo fiquei com o pé atrás, porque ela é branca", confidencia Antônio Carlos dos Santos, o "Vovô", de 40 anos, presidente do bloco afro Ilê Aiyê, de Salvador, com 3.000 integrantes negros. "Mas ela é uma boa cantora, e logo agradou à comunidade negra." E à comunidade branca também, obrigado. Afinal, racismo nunca esteve com nada.


No palco, ela usa uma meia de renda preta quadriculada. Sobre a meia, um conjunto preto de short e blusa, o chamado "macaquinho". Sem sutiã. Muda de acessórios à medida que o espetáculo evolui: luvas vermelhas e azuis, depois luvas brancas, adereços coloridos. A mulher é um foguete. À plena potência. Ela dança sem parar — e aqui com uma outra originalidade em relação aos outros baianos, que também não param com os remelexos durante suas apresentações. A bela cantora tem licenciatura em dança pela Universidade Federal da Bahia. Além de profissional, ela é, portanto, uma acadêmica na matéria. Sua coreografia, que ela mesma inventa, inclui duas colegas bailarinas, que foram especialmente treinadas pela própria para assumirem também os vocais. Metidas em malhas com alguma cor entre o lilás e o rosa, Stella Campos e Suely Ramos fazem os mesmíssimos movimentos que a estrela. Têm corpos bastante parecidos entre si: coxas fortes, bustos medidos. Realçam o brilho de Daniela, sem nunca ofuscá-la.


Daniela tem as formas de uma bailarina clássica, sim, mas é uma bailarina mundana, heterodoxa. Não tem nada de gordura — só de opulência. Uma opulência de espírito, uma eloqüência sedutora traduzida em corpo. As pernas são proporcionalmente longas, graciosamente vigorosas, o segredo de tudo. A bunda não se deita sobre elas, mas delas decorre, prolongamento natural, de baixo para cima. O shortinho preto nada oculta dos contornos, assim como o decote. Os cabelos ondulados, compridos até o meio das costas esguias, jogam-se, meio castanhos, meio vermelhos, de um lado para outro, no ritmo do samba-reggae. Da maquiagem espessa salta o batom encarnado, vibrante. Quando ela sorri, é um novo refletor que se abre para o público. Daniela Mercury transpira — e, suada, fica ainda melhor.


Quando ela sorri, é um novo refletor que se abre sobre o público. Daniela Mercury transpira — e, suada, fica ainda melhor.

A maravilha que comanda aquela celebração de si mesma tem suas manhas e seus caprichos. "Só entro no palco com o pé direito", ela conta. Em junho, pisou firme com seu pé de sorte e juntou 30.000 pessoas em torno do vão livre do Museu de Arte de São Paulo, o MASP, numa apresentação ao ar livre tão literalmente trepidante que a prefeitura, alegando razões de segurança, resolveu proibir qualquer outro show dançante no local. Mas ela tem ainda uma outra superstição secreta para fazer a assistência explodir de tanto remexer. "Antes de começar a cantar, toco o chão com a mão direita e faço o sinal da cruz", diz a baiana católica que também não dispensa algumas técnicas de concentração. São cerca de 25 minutos, imediatamente antes de entrar em cena. Já vestida e maquiada, com o estômago forrado apenas por um copo de café com leite levemente adoçado, ela fica só. "Nessa hora, não gosto que ninguém fale comigo." Nesses minutos, a cantora — que nunca estudou canto — entoa escalas para aquecer as cordas vocais e faz alongamentos para esquentar os músculos de bailarina bem formada, que já deu aula de balé clássico e de jazz.


DE PERTO, ACREDITE, ELA É TÍMIDA


O camarim de Daniela Mercury não tem muita frescura. Quando, ao fim de um show, ela toma um banho para refrescar a pele — um banho e tanto que demora mais que meia hora—, ficam ali os sinais do que se consumiu durante a noite: dois cocos vazios ("eu bebo água de coco nos intervalos, para compensar a perda de líquido"), uma pequena bandeja de frios, como salame italiano e queijo provolone, copos de água mineral. Depois da chuveirada, cabelos molhados, ela sai renovada e simplesmente irresistível. Se de longe Daniela é uma usina contagiante, de perto até parece tímida. Ela se acha baixinha. Tem 1,62 metro. Gosta de usar sapatos de salto alto, tipo plataforma. Talvez por conta deles, adora calças boca-de-sino, principalmente jeans. Suas roupas ostentam sempre-um detalhe particular, como botões de cores diferentes no mesmo biazer, ou tachinhas ao longo da calça. "Eu oriento o que ela deve usar em cada ocasião", orgulha-se Nilma Copello, loira de sobrancelhas pretas, dona da butique Vermelho 20, uma das mais caras de Salvador. "Às vezes ela gosta de um par de sapato e compra logo meia dúzia de uma vez só." Daniela é atualmente a maior propagandista da butique: "A Nilma já conhece o meu gosto". Em se tratando de roupas, por sinal, Daniela também tem suas manias místicas, como não usar nem vermelho nem preto às sextas-feiras. E suas manias estilísticas: fora Nilma Copello, ninguém se atreva a dizer o que é que ela deve ou não usar. A griffe de Daniela Mercury é Daniela Mercury.


Apesar da ligeira extravagância do vestuário, a estrela é mesmo tímida. Obcecada em preservar sua intimidade e, principalmente, a intimidade de sua família. "A opção de ser famosa é minha, não deles", justifica. E não abre mão de nada: "Não me peça para escolher entre a minha família e a minha carreira, porque sem alguma das duas eu seria extremamente infeliz". No dia 20 de abril de 1985, ainda estudante, ela casou com Zalther Laborda Póvoas, o "Zal", então aluno da faculdade de engenharia. No mesmo ano, nasceu Gabriel, o "Biel", seu primeiro filho. Giovana, a "Nana", veio pouco mais de um ano depois de Biel. Póvoas, hoje com 29 anos, trabalha há cinco na Telebahia, onde ocupa o cargo de gerente da Seção de Administração de Tráfego Telefônico. Magro, pele clara, cabelos castanhos bem aparados, com um ou outro fio branco despontando na barba por fazer, voz tranqüila, Zalther Laborda Póvoas é atualmente um dos homens mais invejados do Brasil. "Sem meu casamento, nada tem sentido", diz Daniela, garantindo que não é frase de efeito. "Comecei a namorar o Zal quando eu tinha 12 anos", lembra ela. "Depois nos separamos e voltamos quando eu estava com 17. Aí foi pra valer." Foi para ele que Daniela perdeu o coração e a virgindade. "Minha primeira vez foi muito boa e o nosso relacionamento vem ficando cada vez melhor", conta. "A intimidade que a gente tem hoje ajuda muito."


Com Zal, o marido, sua história vem de longe, dos 12 anos. Foi com ele, mais adiante, a sua gloriosa primeira vez.

O marido não se deixa perturbar pelo sucesso da mulher. "Eu sempre torci pra que isso acontecesse, sempre soube que ela tinha muito horizonte", diz. "E, apesar de passar muito tempo fora, ela é uma mãezona, e uma grande mulher também, sem dúvida." Póvoas tem a ajuda de duas empregadas para socorrê-lo nos encargos domésticos que acabam sobrando para ele, mas diz que já se habituou a tal rotina. "O importante é a intensidade do nosso relacionamento quando a gente está junto." Ele jura, também, que não se incomoda com o fato de ela estar ganhando mais que ele. "Durante vários anos eu ganhei mais, não tem diferença."


Daniela já deixou para trás o tempo em que amealhava trocados graças a uma porcentagem do couvert artístico dos bares onde cantava. Segundo calcula o empresário Jorginho Sampaio, de 34 anos, que trabalha com Daniela desde 1986 e que desde 1989 se dedica exclusivamente a ela, a cantora vinha ganhando pouco mais de 5.000 dólares mensais até setembro passado, só com os shows. Ele morre de rir quando alguém pergunta se ela já juntou o primeiro milhão de dólares. "Está louco, rapaz? Não é assim não." O cachê de cada espetáculo paga uma equipe de dezessete profissionais que acompanham Sampaio e a cantora nas viagens, mais os custos com a estrutura do escritório de Salvador, onde estão outras quatro pessoas fixas. Os lucros são repartidos ao meio entre o empresário e a artista. Para ela, Sampaio é mais que um empresário. Ele é consultor, conselheiro, assessor, chofer e, muitas vezes, mentor. "Nós temos uma amizade muito grande, nos damos muito bem", diz Daniela.


"O que eu tenho hoje é fruto de muito sacrifício, meu e de meu marido", diz a cantora. Ela conta orgulhosa que pagou do próprio bolso, graças aos bares onde cantou, um curso de inglês e suas aulas particulares de dança. Terceira dos cinco filhos do corretor Antônio Fernando Abreu Ferreira de Almeida e da professora universitária (hoje vice-reitora da Universidade Católica de Salvador) Liliana Mercury de Almeida, ela teve de trabalhar um bocado antes de começar a conquistar uma folga financeira. Além de talento, é preciso muita garra, um casamento de virtudes que dificilmente acontece numa única pessoa. Aliás, aviso aos navegantes: a receita que gerou Daniela Mercury não ficou só nela. Vem vindo aí a irmã mais nova, Vania Mercury, de 25 anos, outra cantora da família. Vania lançou em junho, pelo selo baiano Stalo, o seu primeiro disco, Biss, com a banda do mesmo nome e um repertório também baseado no samba-reggae. "Já vendemos 2.000 cópias só em Salvador, e nossa música Leve-me estourou no rádio em Aracaju", ela diz, animada com o reconhecimento regional. "A Daniela fez uma carreira brilhante, mas eu acho que estou trilhando um caminho próprio."


FANTASIA SECRETA: SER ATRIZ DE CINEMA


Vania sabe muito bem que esse caminho não é fácil. Sua irmã mais velha que o diga. Daniela é cultuada em Salvador há pelo menos três anos —"tivemos que tirar o telefone da lista porque os fãs-clubes não davam sossego", conta Póvoas —, mas só agora, com a consagração nacional, a dedicação profissional começa a ter reflexos na conta bancária. Aos poucos, ela, o marido e os filhos vão mudando de vida. O casal, dono de um apartamento de dois quartos, "minúsculo", hoje alugado, no bairro de Brotas, em Salvador, mora de aluguel num condomínio fechado na praia de Piatã, a pouco mais de 20 quilômetros do centro de Salvador. Em março, a família vai mudar de endereço uma vez mais. Transfere-se para um outro condomínio fechado. Estão construindo uma casa com aproximadamente 200 metros quadrados, com piscina. Pretendem quitá-la até o ano que vem.


Começou cantando nos botecos, onde ganhava uns trocados. Hoje, nem pode ter seu número no catálogo telefônico — os fãs não dão sossego.

Quem imagina Daniela Mercury andando de carros importados se engana. Tem um modesto Gol CL 1989. O marido dirige um Fiat Elba do mesmo ano. A casa alugada em que moram não foge em nada do padrão dos apartamentos habitados pela classe média do resto do país. A sala é o invariável "living em L", com dois ambientes. Num deles cabe uma mesa de jantar para seis lugares; no outro, uma televisão e o vídeo, o som, dois sofás e algumas garrafas de uísque e vinho, embora todos digam que Daniela não gosta de beber. Na estante, troféus como o 5º Prêmio Sharp ("revelação feminina na categoria regional", de maio de 1992), dois troféus Caymmi (1989 e 1991) e outras láureas. Na eclética coleção de CDs, o Elas Por Ela de Marília Fera, discos de Almir Sater e dos Gipsy Kings. Num canto da sala, uma mini mesa com duas cadeirinhas, sob medida para as crianças. Nana e Biel gostam de comer ali, confirma a babá, sorrindo.


A família Almeida Póvoas é como tantas outras, terna, simpática, e Daniela não descuida de protegê-la dos olhos do mundo. Ela sabe se defender, quando necessário — e se vingar, quando furiosa. Com uma pitada de orgulho, conta que, num dos bares onde cantou, foi tratada com grosseria pelo dono, numa ocasião em que pediu aumento. Inconformada, pediu demissão. "Olhe, não deu um mês e o bar fechou", depõe, com um brilho vitorioso nos olhos apertados. "Ela era um show desde quando cantava nos bares", lembra o marido. "Ela nunca foi cantora de fazer fundo musical para a conversa dos outros."


Definitivamente, Daniela Mercury não nasceu para ser figurante. Em campo nenhum. Bem a propósito, ela tem uma fantasia. "Quero ainda ser atriz de um filme", anuncia a cantora, que já fez curso de teatro com Marilena Ansaldi, "a atriz que mais admiro". Empolgada, começa a recitar um trecho de Escuta, Zé Ninguém, de Wilhelm Reich, que conheceu através da antiga professora de teatro. Mas que filme seria um bom filme para Daniela Mercury? Um filme de amor? "Ah, tem várias possibilidades." Seria um filme erótico? "Não!", ela se apressa, para explicar em seguida o que pensa do erotismo: "O que me agrada no erotismo é aquilo que é sutil, sugerido, nada explícito. Nove e Meia Semanas de Amor, por exemplo, é um erotismo na medida certa."


Talento à espera de um bom roteiro, acompanhado de uma boa proposta, Daniela dá a pista: gostou de ver Mickey Rourke namorando Kim Basinger na tela. "Gostei como mulher e como pessoa interessada em arte." Essa preferência bem típica dos anos 80, aliada a uma outra —"eu adoro passear em shopping center, qualquer um, adoro fazer compras"—, além de ser uma dica para cineastas à cata de atrizes ideais, talvez sirva para identificar culturalmente Daniela Mercury. Ela pertence à "geração shopping center". Ou, como ela mesma define numa letra de música que escreveu, pertence à "Geração Perdida": "Filhos de árvores cortadas, fomos silêncio sem sabe".


VOTOU EM LULA, MAS NÃO SE METE EM POLÍTICA


"A derrubada de Collor pela ação da juventude foi um despertar da minha geração", alegra-se a artista que, apesar de ter votado em Lula nos dois turnos das últimas eleições presidenciais, detesta se vincular a campanhas partidárias.


É verdade, no entanto, que ela ultrapassa, e muito, os muros que cercaram sua geração. É mais abrangente, mais universal que a média de seus contemporâneos. Bem ao estilo baiano, Daniela é a materialização de um sincretismo mais estético do que religioso. Os efeitos de raio laser colorido no seu show, o shortinho, as canções de pula-pula têm, de longe, um parentesco com o Xou da Xuxa, que por sua vez não deixa de ser a seu modo um trio elétrico de jardim da infância. Daniela tem dois pés na África, desobedece fronteiras que procuram isolar o brega com a mesma independência com que sobrevoa territórios sagrados da música popular. Tem grandeza — e, decididamente, toda a originalidade — para promover releituras enriquecedoras de Caymmi e Caetano. Acima de tudo, é uma profissional amadurecida, e está em ponto de bala. Pisa duro na estrada há sete anos, é boa de briga e promete mais do que já fez. O Brasil que se prepare. Ainda vai dançar um bocado conforme a música de Daniela Mercury.


 

LÁ VEM ELA, BANDAID NO CALCANHAR

A travessa dos Perdões, uma ruela de cerca de 100 metros que sobe, íngreme, até a Praça Barão do Triunfo, no largo do Santo Antônio, em Salvador, está interditada na manhã desta quarta-feira, 28 de outubro. Pouco mais de uma dúzia de policiais militares, divididos entre o esquina de baixo e a esquina de cima, no Bar do Eloy, seguram os populares alvoroçados, principalmente as crianças de uniforme escolar que gritam de excitação. Tudo OK com a câmera, pronta para o traveling sobre os trilhos. A diretora Patrícia Prata, contratada especialmente pela Rede Globo com mais uma equipe de quinze pessoas, ordena: "Som!" Lá da praça, uma kombi carregada de alto-falantes solta a todo volume: "Quem é que sobe a ladeira..."A voz é de Daniela Mercury. A música, O mais Belo dos Belos (A Verdade do Ilê / O Charme da Liberdade). Começa a ação. Daniela Mercury, a própria, vai subindo o ladeira, gingando e sorrindo para a objetiva. Usa um vestido branco, deliciosamente leve, com estampas amarelas na barra da saia bem curta. Dá para ver que ela veste uma calcinha bem cavada, pequenina, seu modelo predileto. Nos pés, uma sandália de couro preta, alta, tipo plataforma. Em dois meses, este é o segundo clipe que ela grava com a mesma diretora. Com uma diferença: o anterior, com a música O Canto da Cidade, foi exibido no Fantástico e depois migrou para a MTV. Este tem uma missão internacional. Representar o Brasil na noite de entrega do prêmio Emmy, em Nova York, no final do ano.


A equipe repete a tomada várias vezes. Só a cena da subida da ladeira consumirá praticamente o dia todo. A cada nova tomada, a música volta ao começo, incessantemente, para que a cantora possa "dublá-la", ou seja, fazer de conta que está cantando de verdade. O reincidente bordão "Quem é que sobe a ladeira" entorpece o casario.


O roteiro do clipe prevê que Daniela, efetivamente, suba a ladeira, encontre um grupo de amigos no Bar do Eloy, enquanto cerca de 100 componentes do bloco negro Ilê Aiyê, saindo do Forte de Santo Antônio Além do Carmo, do outro lado da praça, vem com sua batucada a todo vapor para encontrar com ela. A confraternização tem a função de uma apoteose. Nessa cena, que rodarão no dia seguinte, Daniel° será a única pele branca no meio do Ilê. O próprio "charme da liberdade".


Mas neste dia 28 ela tem um problema, um calcanhar-de-aquiles, ou melhor, um bandaid no calcanhar. Na verdade, um em cada calcanhar. E dor. Bolhas por baixo. A produção quer que ela calce um tênis branco. Ela prefere a sandália preta. Por volta da 1 hora da tarde as filmagens esbarram nessa sutil desavença. "Ela é bacana, sou fã de Daniela", diz a diretora Patrícia. "Mas às vezes é uma luta convencê-la a usar uma determinada peça de roupa. Ela não quer de jeito nenhum usar o tênis."


Acaba usando. Sem bandaid. E fica ótima. Tudo transcorreria tão otimamente quanto os pés de Daniela, não fosse um outro calcanhar-de-aquiles daqueles que trabalham contra o tempo. O próprio tempo. Pancadas repentinas de chuva teimam em atrapalhar o cronograma. Passa bem das 2 horas quando despenca um novo toró. Daniela, Jorge Sampaio e três amigas acham refúgio na casa de dona Lucy, a de número 93 na Travessa dos Perdões. Daniela fuma um cigarro (gosta de Carlton). Recusa o hambúrguer seco que a equipe providenciou. Pede um McDonald's autêntico. Tem uma sutil mancha roxa na coxa direita. "Nem sei onde bati." Está resfriada. Espirro três vezes. Saúde! Está exausta. Não se entrega.


O sol volta a brilhar e lá vai ela de novo, ladeira acima. Sorri. Ginga. Daniela tem feito quatro shows por semana este mês. Está sem descanso a perder de vista. Não almoçou e parece exuberante. Ela é mesmo uma "força da natureza", como diz o jornalista Edvaldo Pacote, da vice-presidência de operações da Rede Globo, responsável pela contratação do clipe. Deve ser. Pacote sintetiza, em tom de brincadeira: "Só mesmo uma força da natureza para fazer um show com aquele shortinho que parece uma cueca samba-canção e se tornar símbolo sexual do país inteiro". E.B.



FOTO / ILUSTRAÇÃO LUIZ AURELIANO / BANANA DIGITAL


454 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page