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DECLARAÇÃO DE GUERRA EM LÍNGUA DE SOTAQUE

Ficção


Um trecho do livro Guerra dos Santos, ainda em preparo, de Jorge Amado.


ILUSTRAÇÕES FLORIANO TEIXEIRA


Enorme, estendida morta no catre, na sala principal da casa de Oxalá, a mãe-de-santo parece um navio prestes a desatracar nas ondas dos seios libertos de panos e colares. Mãe-de-santo deve possuir peito desmedido, seios assim imensos onde recolher as dores do mundo, as aflições de filhos e filhas, e aquela ali dormida sem retorno iniciara mais de cem iawôs, iyalorixá famosa.


As do último barco, recém-saídas da festa do nome, rompem as cabeças raspadas contra as paredes, rasgam saias e batas, rolam no chão em gritos de desespero: "que horror, meu Deus!", "ai, minha mãe!". A própria Stela, porém, antiga no santo, guardiã da casa de Oxóssi, também ela perdera a continência e seus gemidos abalam os alicerces da construção pobre, de barro batido. Clamor de preceito, ritual obrigatório, maior ou menor conforme a importância e projeção do defunto — incomensurável em honra de Mãe Leocádia, a legendária Leocádia de Oxum, do Axé Obá Kossô, lyá Nassô de título e direito; desespero a atravessar roças e ladeiras, a desabar sobre a cidade, despertando a população antes da hora.


Em meio aos gritos e às imprecações, rompendo a obrigação do preceito, escapando dos seios doloridos, desponta em soluços abafados a dor da orfandade. Adeus Mãe clemente e dura, navio prestes a desatracar para a viagem derradeira, término de longo reinado, fim de um tempo.


De minuto a minuto pequenos grupos, pessoas apressadas, ar de espanto e de consternação, atravessam o portão da roça, encaminham-se para a casa de Oxalá. Na sala o clamor redobra. A notícia transita de boca em boca na madrugada, chega às ruas do centro, e distantes recantos. Ninguém a escuta indiferente, afeta pobres e ricos, ligados ou não ao candomblé, à seita: às quatro horas da manhã, após salvar Xangô e cumprir as primeiras obrigações do dia, Mãe Leocádia queixou-se de dor súbita crescendo-lhe do braço para o peito. O tempo exato de desamarrarem os panos que lhe oprimiam o coração. Alguém saiu correndo em busca de um copo com água.


— Vão chamar um médico, depressa! — ordenou Miquelina, a respeitável dagã, curva e trêmula; atribuem-lhe mais de noventa anos, ainda dança na roda dos encantados.


Um molecote desprendeu-se da agonia da avó e partiu em disparada. No terreiro atravessou silêncio e solidão, enxergou o sol parado — o sol, o vento, a brisa matinal —sentiu o hálito da ausência: ai nunca mais a pesada mão da avó no merecido castigo! Ai nunca mais a terna mão da avó na carícia furtiva! Tremeram as pernas do menino.


A iyalorixá fechou os olhos nas mãos de Stela e de Veveva, braços frágeis para suster tanta corpulência e tanta grandeza, e só elas, as duas iyamorôs, ouviram as palavras finais. Não se referiam à sucessão nem continham mensagem para o povo do Axé — na hora derradeira Mãe Leocádia disse de coisas suas, uma revelação, a troca de cabeças, a razão do acontecido, por último chamou pelo filho, a voz em sangue. Souberam então Stela e Veveva por que a Mãe morrera, que dor a matara, o nome de quem lançara o raio. Ao ouvir, Veveva sentiu-se desmaiar, por pouco solta o corpo tão pesado em suas mãos, infinitamente pesado da morte e do segredo. Stela fez-se forte, ergueu o busto, trincou os dentes, mas não pôde conter o soluço, rugido de fera. As iyamorôs trancaram nas caixas dos peitos as irreversíveis palavras finais — assim crescem sem medida os seios das futuras mães-de-santo e qualquer das duas poderia vir a ser a sucessora. Com um ojá de imaculada alvura, tia Miquelina limpou o fio de sangue a escorrer da boca da morta, cerrandolhe os lábios para sempre.


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De que adianta porém tão estreito segredo, quem pode negar a evidência, senão do enigma inteiro, pelo menos de cochichados detalhes? O médico, ao chegar, apenas constata o óbito. Pergunta pelas doenças da finada de quem só conhece o renome. Responde-lhe voz inesperada, áspera, pejada de ódio, superando o crescente coral das carpideiras:


— Doença nenhuma, tinha uma saúde de ferro, foi o coração carregado demais, não suportou tanta ruindade, tanta traição. Mataram ela de desgosto.


Um curto silêncio, o suficiente para que a acusação de Almerinda não se perca no ar, seja recolhida e se fixe incômoda na memória dos presentes, para que todos lhe apreendam o significado. Logo recrudesce o coro dos soluços, gemidos, gritos, ais, imprecações, vagas revoltas no mar pia orfandade. Discreta e eficiente, Linda retira da arca receitas antigas, vazios frascos de remédio, mostra ao doutor. Os olhos secos, única a não chorar, surpresa e atônita, sempre imaginara fosse a avó imortal e a liberdade impossível.



Nas sombras do corredor, vindo das camarinhas, aparece Alvina, a face anuviada, o passo firme, revestida de recobrada autoridade. Retomando de vez e por completo os direitos e os deveres que durante tantos anos foram sonegados a seu posto e condição de iyakêkêrê, a segunda pessoa do Axé. Agora a primeira, pois a iyalorixá faltara. Algumas cabeças inclinam-se respeitosas a seu passo, outras erguem-se insolentes.


Sem tomar conhecimento de apoio e oposição, a mãe-pequena vai direta ao médico, atenta às explicações, agradecendo o atestado de óbito — o doutor nem quer ouvir falar em pagamento, valera a pena ter sido arrancado da cama, terá o que contar no hospital. Alvina o acompanha até a porta, dona da casa.


Ao voltar, demora-se parada e silenciosa ante a morte de quem recebera tantos agravos.


Normalmente, deveria arrancar os cabelos, gritar junto com as filhas-de-santo e mais alto que todas pois é a mãe-pequena, a iyakêkêrê, a imediata — mas tem alguém o direito de ser tão falso a si mesmo? Sem perder o respeito próprio e o respeito dos demais, dos filhos e filhas a pedir-lhe a bênção no terreiro plantado no Rio de Janeiro quando, vencida e humilhada, tomara dos seus santos e partira em fuga? Devia compostura àqueles cuja cabeça tocara com a navalha, no recesso do barco, Mãe reverenciada. Tantos agravos, tantos!, e a permanente hostilidade, como então representar saudade e dor, anunciando ao povo a perda terrível? Terrível, sem dúvida, mas hoje tudo terminou, hoje começa tudo de novo.


Não antes do início do axêxê, porém. Cumpre esperar.


— É preciso tratar das obrigações. Tirar logo o oxu da cabeça dela. — Diz finalmente em voz alta, numa ordem.


Ao ouvi-la, Stela prende os soluços, atravessa a sala lado a lado até o canto onde Mário, Obá Telá, contido, mudo, a cabeça baixa, curte sua aflição.


Com os dedos longos, Stela toca-lhe o ombro:


— Vai permitir que ela dirija o axêxê? — Acento de sotaque ao dizer "ela" como se dissesse "aquela tipa" repetindo a falecida. — Que ela toque na cabeça de nossa Mãe? Que ela — levanta a voz, sibila o sotaque — tire oxu. Ela?


Repete, voltando-se para a sala inteira:


— Que ela tire o oxu da cabeça de nossa Mãe?


Alvina, de costas para Mário e Stela, permanece silenciosa e imóvel, aparentando não ter ouvido. Falara, agora espera; é a iyakêkêrê da casa, mas nem assim se atreve a tomar da navalha sem a concordância de Mário. Onde andam Vítor, o presidente, e Salvador, Obá Aré? Onde os velhos ogãs há anos afastados do terreiro, os que a procuram para ainda comentar os acontecidos antigos cada vez que ela vem à Bahia? Levantados e confirmados por Mãe Agripina, com eles pode contar. Mas ainda não chegaram e nesse embate inicial ela depende de Obá Telá, o primeiro obá levantado por Leocádia, quando o posto vagara com a morte do velho Manfredo. Se nenhum dos doze obás estivesse presente, ela, Mãe Alvina, imporia sua vontade, a mão na cabeça da morta para retirar o oxu e libertar o santo. Que vingança melhor? Cadê a soberbia, minha senhora, quem lhe desfaz o nó, quem a manda embora? Imporia sua vontade, tomaria da navalha, as filhas quisessem ou não, Stela inclusive, essa arrogante Stela de Oxóssi, inimiga declarada, arco retesado, flecha venenosa.


— Minha Mãe nem bem faltou e já querem começar o desrespeito? Será possível que vosmicê vá deixar?


A voz rouca da filha de Oxóssi estremece as paredes da sala

A voz rouca da filha de Oxóssi, arrancada com raiva das entranhas, estremece as paredes da sala. No recesso da mata virgem, no mítico reino de Ketu, o orixá derruba tigres e javalis na caçada infinita. Até lá chega o apelo de Stela, por artes de Exu, o mensageiro. Oxóssi é o primeiro dos encantados a atender à proclamação da guerra.


Alvina, de costas, imóvel, à espera. Apenas toma da mão de Linda e a traz para perto de si, a se apoiar nela, neta de sangue da falecida mas sua filha de criação. Não a recebera com menos de um mês de nascida das mãos da mãe, a formosa Beata, vítima de infecção, conseqüência do parto? Quando Manu, rapazola sem juízo, a abandonara e a avó nem sabia do nascimento da neta? Com desvelos de mãe, a criara até os catorze anos.


Mário desencosta-se da parede, devagar, não esconde a contrariedade. Por que nenhum dos outros obás ainda não chegara? Por que tinha de cair em seus ombros o peso da decisão? Nunca fora homem de brigas, de tomar partido, ponderado, atencioso, agradável companheiro, em paz com o mundo. Mas sendo o único obá presente, obá com voz e voto, cabe-lhe decidir. Cônscia de suas prerrogativas, Alvina espera, fora levantada e confirmada mãe-pequena por Agripina, no início do esplendor do Axé Obá Kossô ou Candomblé da Roça Velha. Prerrogativas lesadas anteriormente, há mais de vinte e cinco anos, quando da morte e da sucessão da inesquecível iyá. Agora, porém, ela não é mais a jovem ingênua e vaidosa, deslumbrada com o posto de iyakêkêrê recebido de Xangô por causa dos merecimentos de Jairo, seu pai, na época o primeiro no corpo dos obás.


Nos vinte e cinco anos decorridos da confirmação de Leocádia, Alvina, superando o impacto inicial, fizera-se mãe-de-santo respeitada e o Axé Ilê Ajaká, num subúrbio do Rio, reunia na roda dos santos, nos dias de grande festa, para mais de trinta filhas, sem falar nas ausentes, outro tanto. A débil mão incapaz de empunhar o gládio na peleja transformara-se em pulso forte ao trato da navalha. A moça enfatuada, sem malícia, fácil presa para Leocádia e mesmo para a finada Cora, crescera em experiência e saber — apenas o orgulho conserva-se igual. Ah! desta vez será diferente, a serva de Xangô tem cabeça, pulso, voz firme e aliados poderosos.


Stela espera, erguida em combate, flecha disparada. Veveva espera, à espreita, trêmulo o corpo esbelto: que elas briguem, chegara minha hora de falar. Veveva tinha um campo e cavalheiros.


Também Antonieta espera mas por outros motivos que, mesmo ali na sala da casa de Oxalá, em presença da morte, lhe mordem as carnes nos seios e nas coxas. As desavenças vão trazer Manu de volta ao terreiro, quem senão ele pode evitar a luta e manter a paz? Perto dele de que valem Alvina, Veveva, Stela? Em sua presença quem alteia a voz? Ali, na casa de Oxalá, ele lhe tocara os seios, descansara a mão em sua bunda e a fitara nos olhos — Antonieta sorri por entre as lágrimas.


Tudo vai depender de quem toque na cabeça e desamarre o oxu

Esperam todos quantos estão na sala cheia pois ninguém ficara do lado de fora ou permanecera nas camarinhas, todos querem ver e ouvir para melhor repetir depois nas esquinas da cidade. Também a morta espera com pressa de partir para a viagem, impossível iniciá-la antes de raspar a cabeça como o fizera menina de nove anos de idade. Naquela ocasião, para receber o santo, virar cavalo de orixá, montaria de Oxum. Agora, cinqüenta e seis anos depois, para poder ser apenas o cadáver de uma senhora idosa, liberto da presença do encantado. Só então estará realmente morta, pronta para o enterro e o axêxê. Imóvel no catre, o coração estático, é parte interessada no conflito pois repouso e glória vão depender de quem lhe toque na cabeça e desamarre o oxu.


o o o


Mário sente-se incômodo, perplexo, de repente juiz e executor. Não sendo contra nem a favor, nada o opõe a Alvina, a Stela, a Veveva, dá-se bem com todas elas, com os obás e os ogãs, amigo de Manu desde menino. Quanto à sucessão só lhe importa a vontade dos orixás a ser revelada no jogo dos búzios, daí a um mês e confirmada um ano depois. Pessoalmente, não tem preferências, não assume candidata. É no entanto leal à finada, ela o levantara e o confirmara obá quando Xangô o escolhera e nas festas consentia-lhe o adjá pois Obá Telá é um dos seis ministros da mão direita. Os outros seis podem propor, discutir, concordar, têm direito a voz mas não a voto.


Aproxima-se do catre de onde Mãe Leocádia, cada vez maior, domina a sala; parece-lhe ouvir a voz de mando, sempre de mando mesmo se de riso e conversa, de fuxico e de dichote, de queixa, de lamúria. Por vezes, na quietude do fim da tarde, Mário, de regresso da oficina onde bate sola de sapatos, vinha dar dois dedos de prosa com a iyalorixá, pedir-lhe a bênção, saudar o santo. Habita na vizinhança do candomblé, ali nasceu e se iniciou no ofício e na seita.


Mãe Leocádia, senhora de maior, dona da sabedoria, boa prosa, desenrolava memórias, casos, discutia regras e preceitos, exibindo amizades e preferências, rancores e quizilas, explicando particulares dos ritos, revelando-lhe de quando em quando a secreta origem de uma obrigação, o misterioso significado de uma cantiga, o peso mágico de uma folha:


— Você é Obá Telá, tem direito a saber, escute e guarde para sua pessoa somente.


Cuspia grosso ao pronunciar certos nomes, cuspia desprezo e condenação, mas o nome de Alvina ela não o pronunciava nunca. A desavença a separá-las prolongara-se além da disputa pela sucessão da Mãe Agripina, talvez tivesse a ver com Manu, Mário não tem certeza, mas, fosse o que fosse, levantara um muro de ódio, intransponível. Alvina subia as ladeiras no caminho da roça apenas uma vez por ano, em junho, no ciclo das festas de Xangô, vinha do Rio cumprir a obrigação. Certa feita, numa dessas ocasiões, Mãe Leocádia surpreendera Mário em amistosa conversa com a iyakêkêrê. Mais tarde, no barracão, lhe disse, a voz fria, distante, sem apelação:


— Quem é de minha amizade não pode rir para aquela tipa. Nem rir nem tratar. — Mário jamais vira ou supusera tamanha violência.


Quando qualquer problema o afligia, o remendão de sapatos vinha à casa de Xangô pedir conselhos à iyalorixá. Também agora quando lhe cabe decidir, fita o rosto da Mãe em busca de uma palavra de ajuda.


"Aquela tipa!", pronunciam os lábios fechados. Nitidamente.


Não, não seria justo deixar Alvina presidir o axêxê, despachar a morta e seu carrego, retirar o oxu. Tampouco podia desrespeitar a mãe-pequena atribuindo a Veveva ou a Stela, a outra qualquer, o pesado encargo, nenhuma com a autoridade e o direito de Alvina, mãe de terreiro aberto, madura e competente, e não simples feita a dançar na roda.


Não fosse o passado de ódio, caberiam a ela, iyakêkêrê da roça, iyalorixá do Axé llê Ajaká, no Rio, o encargo e a honraria.


Mário recorda certa tarde lúgubre, quando — pós ter recebido a visita de Zizinha, a esposa legítima de Manu que se atirara em pranto aos pés da Mãe depositando sobre as chinelas africanas a insuportável carga de desgostos e de abandono — Leocádia falara de morte e lhe dissera:


— Meu filho, no dia que eu faltar não deixe que ninguém toque em sua cabeça a não ser minha irmã Mocinha. Só ela, mais ninguém.


Obrigado, Mãe, por ter iluminado meu entendimento — Mário afasta-se do catre, dirige-se ao povo à espera:


— Vou buscar Mãe Mocinha. Na Bahia só ela e mais ninguém pode tocar na cabeça da velha.


Abandona a sala, dirige-se para o táxi de Riva, o ogã de Omulu, compadre da falecida. Stela desabrocha meio sorriso de vitória; suor frio nas mãos cruzadas de Veveva; as filhas retornam aos gritos e soluços. Alvina conserva levantadas a cabeça e a voz. Obá Telá não lhe entregara a navalha, é bem verdade, mas também não abrira passagem para qualquer outra, revelando prudência e retidão. Quem poderia discutir a primazia de Mãe Mocinha, quem o doido?


Assim Alvina distribui ordens, tudo dispondo para receber com o maior calor e acatamento a mais que todas veneranda Mãe Mocinha, irmã-de-santo da finada, iyalorixá do grande candomblé do Muzuê, o Ilê Opô Dadá, agora sozinha na realeza pois morrera Mãe Leocádia, única a se lhe comparar em saber e poderio.


o o o


— Pelo amor de Deus, Cristina, preciso ver minha tia agora mesmo. Cristina segura-lhe o braço:


— Notícia, de morte, não é?


Como se já esperasse. Fala do corredor:


— Mãe, é Mário, Obá Telá. Vem da Roça Velha, quer lhe ver.


— Mário? Mande entrar.


São cinco horas da manhã quando Mário é admitido no quarto onde Mãe Mocinha passa a maior parte do tempo, há muitos anos enferma, semiparalítica. Só de raro em raro, apoiada nas duas filhas de sangue, nas muitas filhas-de-santo, nos ogãs da casa, vai até a grande sala de festas e assume o trono. Do quarto, na cama, recostada em almofadões, zela pelos orixás, pelo destino do Axé e de milhares de pessoas mundo afora.


Mário se ajoelha, toma da mão da anciã e a beija. Na face do obá, a mãe-de-santo enxerga a morte —o santo cumpriu a ameaça, Xangô não fala em vão. Mãe Mocinha baixa a cabeça, o coração apertado.


— Ah! minha tia, uma desgraça, notícia mais desinfeliz. Mãe Leocádia morreu indagorinha...


— Quem? Leocádia? — confusa, a iyalorixá suspende o rosto, fita Mário. Atônita. Aquela não era a morte prevista, a condenação fatal lida no jogo dos búzios, duas vezes confirmada pela cólera do encantado; de nada adiantara cantorias e ebós. Um bode, doze galos, conquens e pombos, sangue e peditório, tempo perdido, sentença sem perdão. Que sucedera, meu senhor Xangô, cabiêsi...?


A boca de perguntas não se abre, porém. Primeiro a obrigação. Cortada pela dor da perda da irmã e aliada, pela surpresa — outro fora o aviso recebido há mais de uma semana —, Mocinha entrega-se aos preceitos rituais. Mário vê-se envolvido no mesmo clima da casa de Oxalá de onde viera. Mulheres e homens acorrem em desordem, a notícia ressoa nos quatro cantos do Axé, as exclamações, o choro.


Comparados ao rugido de Mãe Mezinha, os soluços e gritos de Stela e de Veveva não passam de tímidos balidos. Mário pode sentir, no confronto com a anciã a arrancar os cabelos e a rasgar a bata, a erguer os braços para o céu, quanto ainda são jovens imaturas as duas candidatas. A própria Alvina se abrisse o peito estaria longe dessa força de pranto, desse carpir de fim de mundo, anúncio de irremediável desgraça:


— Ui! que desgraça, minha irmã, minha irmãzinha, que desgraça!


Desespero realmente à altura da morta. Cristina, filha de sangue e iyakêkêrê, e mais três iawôs não conseguem segurar a octogenária, impedir que meta as unhas no rosto e tire sangue; faz-se necessária a intervenção do obá.


Também Cristina e as feitas presentes no terreiro, muitas naqueles dias de obrigação, se abandonam ao pranto e o ritual se cumpre. Mário espera o tempo conveniente, antes de interromper:


— Minha tia, me perdoe mas eu...


O obá não viera apenas para comunicar. Mocinha dá-se conta, diminui o ímpeto da lamentação:


— Diga, meu filho.


— Vim lhe buscar, minha tia. Estou com um táxi na porta para levar vosmicê. Para começar os trabalhos, tirar o oxu da cabeça dela, sinão...


— Sinão o quê?


Por detrás do diálogo, o coro de soluços.


— A parte vosmicê não vejo quem possa tomar a frente. Tem Stela e Veveva, são as de mais preceito, sem falar nas tias velhas, Miquelina, Barda, Fúlvia, sem falar em Alvina, mas...


— Alvina está no Axé? Nessa época do ano? Não é seu costume. A que veio?


— Não sei a que nem como veio, mas está. Faz dias que chegou. Vosmicê conhece a situação. Muitos acham que ela não pode tocar na cabeça da velha. Eu também acho, a mão dela está pesada de ofensas, não pode dar descanso à minha Mãe. Por isso vim buscar vosmicê, sua irmã. Ela mesma me disse: quando eu faltar não deixe que outra ponha a mão em sua cabeça a não ser minha irmã Mocinha. Na minha, quanto mais na dela.


Irmãs-de-santo, ambas de Oxum, Mãe Mocinha e Mãe Leocádia mantiveram-se amigas a vida inteira, complicados laços de família e de seita davam sentido e solidez à fraterna convivência das duas senhoras, consideradas as figuras mais importantes do mundo do candomblé. Consultaram-se freqüentemente, o babalaô Nelito transitava entre os dois terreiros, levando e trazendo.


Muitas vezes agiam de acordo. Ao morrer Mãe Gabi, por exemplo. A escolha da nova iylorixá desencadeou rivalidades e discórdias, ameaçando a existência do terreiro da Fazenda Azul, o mais antigo da Bahia, a casamãe, da qual haviam nascido num passado distante todos os candomblés ketus. Mocinha e Leocádia, teoricamente ambas tinham direito à herança. Mocinha por laços de sangue, Leocádia por laços de seita, mas só entraram na disputa para impor ordem e restaurar a harmonia. Intervieram juntas, chamaram a elas a direção do jogo para que a vontade dos orixás não fosse burlada. Nelido manejou os búzios no dia exato e tudo ocorreu em paz como não podia deixar de ser. A nova mãe-de-santo não foi objeto de dúvida ou discussão, pelo menos em voz alta e pública. Quem ousaria levantar-se, opor-se às duas rainhas em aliança?


Quem ousaria opor-se às duas rainhas em aliança?

Agora, com a morte de Leocádia, o perigo pesa sobre a Roça Velha. Mãe Mocinha toca o ombro de Mário:


— Eu não posso sair desta casa, o médico não quer nem que me levante da cama mas Xangô há de me dar forças. Vou de qualquer jeito, não posso faltar à minha irmã nem deixar que o pior aconteça. Volta-se para a filha:


— Cristina me ajude a me arrumar. Você vai comigo e leve mais umas seis criaturas, mande ver se Armênio ainda está em casa, que ele traga o carro dele para me levar. Mande um portador a Muritiba avisar Nelito para ele vir hoje mesmo, sem falta. Ande depressa que minha irmã não pode esperar.


Faz um gesto com a mão mandando todo mundo embora, o choro transporta-se para o peji na sala vizinha.


— Você fique, meu filho — diz a Mário. Sozinha com ele, ainda assim baixa a voz para perguntar: —Me diga, meu filho, que é que você sabe de Manu?


— Anda viajando.


— Ainda não voltou? Tem notícias dele?


— Só o que leio nos jornais, parece que vai bem.


Morte errada, Mãe Mocinha busca entender, penetrar o mistério, decifrar a adivinha. O orixá dissera e repetira: não tem ebó que resolva, feitiço que dê jeito.


O orixá repetira: não tem ebó que resolva, feitiço que dê jeito.

Meu filho, vá indo, eu chego logo, é o tempo de mudar a saia. Vou no carro de Armênio, é grande e ele está acostumado a me transportar.


— No táxi tem lugar para mais duas pessoas. — Veja se já tem alguém pronto e leve.


Acompanhado de duas ebomins, Mário sai para a pequena praça em frente ao candomblé onde Riva espera ao volante, ouvindo rádio. Embarca as feitas, senta-se ao lado do ogã, a tempo de ouvir o locutor anunciar:


"Atenção! Atenção! O 'Plantão de Notícias' informa em edição extraordinária! Acaba de falecer, vítima de mal súbito, Maria Leocádia da Imaculada Conceição, a falada Mãe Leocádia de Oxum, mãe-de-santo, do candomblé da Roça Velha, escolhida após uma guerra de santos que ficou nos anais da história do candomblé baiano. Durante vinte e cinco anos dirigiu seu terreiro com pulso forte, fazendo-o conhecido em todo o país. Outras notícias daqui a alguns minutos".


Mário estremece, um frio na espinha, controla-se, olha em frente, no clarão matinal do Sol os orixás galopam no rumo da cidade da Bahia.


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