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FERNANDO GABEIRA | JULHO, 1995

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o amadurecido deputado verde sobre drogas, homossexualismo, bicicleta na Câmara e filhas que gostam de açúcar


Os três elevadores sociais do Hotel Bonaparte, em Brasília, parecem uma fábrica de deputados. Nas noites de terça a quinta, quando abrem suas portas de aço escovado, é quase certo que saia perambulando pelo saguão um parlamentar novinho em folha, de banho tomado depois de uma jornada de trabalho duro. Dezenas deles moram ali nos três dias úteis da semana legislativa da Capital Federal, com as despesas pagas pelo Congresso, na falta de apartamentos funcionais vagos na cidade. A bem dizer, apenas a hospedagem é gratuita — as refeições ficam por conta dos recursos de cada um. Assim, quem pode se encaminha solenemente para a filial do empetecado restaurante paulista Vecchia Cucina, no mezanino do hotel. Outros, mais modestos, tomam o rumo do bufê de saladas, sopas e dois ou três pratos mornos oferecidos meio melancolicamente na coffee-shop. É aqui, tomando um prato de canja e pensando em comer pipocas como sobremesa, que vastas encontrar um fora-de-série: o deputado federal Fernando Paulo Nagle Gabeira, representante do Rio de Janeiro, gnomo solitário do Partido Verde na Câmara, o ex-guerrilheiro, jornalista e escritor best-seller que precisou apenas de seis meses de seu primeiro mandato para se destacar como um espécime único, inimitável, na selva política de Brasília.


Gabeira comprou uma bicicleta Caloi vermelha para se movimentar pela cidade. Na ida, é fácil embalar na descida de 2 quilômetros entre o hotel e o Congresso, com o paletó preso no bagageiro e a gravata multicolorida querendo voar. Na volta, ao final do dia, a ladeira é muitas vezes cruel. "Vai, deputado!", costumam incentivar algumas prostitutas ao longo da S-2, a avenida por onde ele volta para casa. Na porta do hotel, Gabeira desmonta e sobe impávido com a bicicleta num dos elevadores sociais, para guardá-la na varanda do seu apartamento. As 6 horas da manhã seguinte, lá vai ele de novo, mas dessa vez a pé. Caminha por duas horas num parque das redondezas, num exercício que termina com uma sessão de tai-chi-chuan — a arte oriental de harmonizar o corpo por meio de gestos muito lentos, copiando o movimento de determinados bichos. Num canto do parque, escondido atrás da vegetação, o deputado encarna sucessivamente um cavalo, um tigre, uma garça. Na volta ao hotel, veste um terno, muitas vezes combinado com um par de sandálias de couro alemão, monta na bicicleta e vai pedalar na direção dos grandes problemas nacionais. Numa quarta-feira recente, eram 10 horas da manhã quando Gabeira entrou apressado no corredor que leva a um auditório para debates na Câmara. Tinha as mãos nos bolsos e os ouvidos atentos a dois corpulentos engenheiros da Petrobrás, que tentavam convencê-lo a reverter seu voto pela quebra do monopólio na exploração do petróleo. "O senhor está a par das reservas mundiais, da participação do Estado nos países que são os principais produtores?", ia metralhando um dos engenheiros, ansioso. Em 200 metros de marcha acelerada pelos corredores, Gabeira discutiu números, diferentes políticas nacionais, questões de comércio exterior. Mas, enquanto caminhava, ele foi desviando sua atenção para outros assuntos.


A assessora parlamentar Yvone Duarte, uma carioca bonitinha e esperta que nas horas vagas dá aulas de jiu-jitsu numa academia de Brasília, alcançou o deputado para entregar uma pasta com um conteúdo não menos explosivo: a versão final do projeto que regulamenta o transporte de armamentos e artefatos bélicos, para ele conferir e assinar. Como relator desse projeto, Gabeira precisou se entender com os militares, que ficaram bem impressionados com sua flexibilidade (entre outros abrandamentos do projeto original, o líder verde cortou um trecho que inadvertidamente acabava proibindo o uso, pelo país, de submarinos nucleares). A Marinha elogiou Gabeira; o Jornal Nacional da Rede Globo começou a abrir espaço para ele; o jornal conservador O Estado de S.Paulo publicou no fim de maio um editorial com o título "É isso aí, companheiro", aplaudindo suas posições liberalizantes nas votações de quebra dos monopólios. Vários de seus antigos aliados de esquerda, hoje atrelados a corporações, passaram a se perguntar, espantados: para onde vai Gabeira?


O deputado vira no final de um corredor e atravessa a fervilhante ala das comissões, onde pela manhã os congressistas se cruzam em debates e reuniões variadas, num ritmo de atividade surpreendente para quem se acostumou com as fotos do plenário às moscas, freqüentemente injustas para com o Congresso Nacional. Aqui, entre especialistas em determinados temas como orçamento, saúde, trabalho e educação, Gabeira é saudado como líder de uma área em franca expansão: hoje, há 154 projetos ligados ao meio ambiente tramitando na Câmara. Mas essa talvez não seja ainda a maior novidade que ele tem a oferecer ao Congresso, e nem as suas posições inesperadas nos debates sobre coisas intrincadas como a exploração do petróleo, a distribuição do gás encanado ou a abertura da navegação de cabotagem. A novidade é que, por suas mãos, o Legislativo está sendo obrigado a lidar com alguns outros problemas que há décadas têm sido varridos para baixo do tapete, embora estejam em muitas casas do país. Por exemplo, a inócua e risível punição do adultério como crime, um artigo que ainda faz parte do Código Penal. E o problema, ainda, de se punir como um criminoso quem tem o hábito de fumar um cigarrinho de maconha? Ah, sim: é por aqui que vai Fernando Gabeira.


O deputado atravessa um salão e entra no Centro Cultural, um auditório onde às sextas-feiras funciona o cineminha da Câmara. Para a próxima sexta está programado o cult australiano Priscila, a Rainha do Deserto. Hoje, o espetáculo é outro: os 102 lugares da platéia estão ocupados pelos espectadores de um eletrizante seminário sobre a descriminação do uso de drogas. Numa longa mesa que se estende pelo palco, sucedem-se em seus discursos os deputados de uma comissão que esteve na Europa para estudar os efeitos das diferentes políticas que alguns países adotam para tratar do problema. A deputada Maria Valadão (PMDB-GO) tem a palavra nesse instante e conta como foi sua viagem: fez muitos contatos em Portugal, um pouco menos na Espanha e quase nada na Alemanha. "Realmente, com aquela língua incompreensível deles, ficou difícil", justifica ela. A deputada agradece os serviços da embaixada brasileira em Bonn, que escalou intérpretes para enfrentar o desafio do idioma, mas informa que nem assim o problema foi superado. "Ficava um falando alemão, outro falando português, e a confusão ficou maior ainda. Mas pudemos observar muitos viciados pelas ruas e ficamos muito mal impressionados."


Revezam-se no palco dois ministros — Nelson Jobim, da Justiça, e Reinhold Stephanes, da Previdência Social. O médico e secretário de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, professor Elisaldo Carlini, surpreende o plenário discorrendo sobre alguns efeitos terapêuticos do THC, o princípio ativo da cannabis sativa, ressaltando contudo os efeitos negativos que podem atacar quem usa drogas com freqüência. Mas, apesar de tantas atrações, todas as atenções se voltam para o deputado Fernando Gabeira, quando ele é convidado a usar o microfone para dar sua opinião.


Gabeira sobe ao palco lentamente, com a cabeça baixa, o que dá um aspecto ainda mais franzino a seu corpo de 1,70 metro e 63 quilos. Mas há uma força notável que vem da figura de gestos suaves desse mineiro descendente de sírios que vieram parar em Juiz de Fora. Em parte essa força deve ser a lembrança de seu passado como guerrilheiro, militante do MR-8 que abandonou uma carreira brilhante na redação do Jornal do Brasil, no Rio, para mergulhar na ação de seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. O tiro de metralhadora que o derrubou ao tentar resistir à prisão, quatro meses depois, em São Paulo, num disparo que lhe levou pedaços do estômago, de um rim e do fígado; a tortura na prisão; a libertação em troca de um outro embaixador seqüestrado no Rio, o alemão Ehrenfried von Holleben, em junho de 1970; os nove anos de exílio na Argélia, em Cuba, no Chile, na Alemanha e por fim na Suécia — tudo isso está relatado em texto excelente no seu primeiro livro autobiográfico, o best-seller O Que É Isso, Companheiro?, de 1979, um relato que deve virar brevemente um longa-metragem dirigido por Bruno Barreto.


Mais do que as lembranças dessas aventuras passadas, contudo, o que tonifica a imagem de Fernando Gabeira é a sensação de que ele está em permanente estado revolucionário, mesmo que tenha abandonado a idéia da força como maneira de resolver qualquer coisa na vida. Durante a década de 80, começou a pregar o que chamou de política do carpo — a liberdade de buscar a felicidade no amor, o direito de cada um exercer livremente sua sexualidade. Assumiu a bandeira ecológica, renunciou à velha divisão ideológica do mundo entre direita e esquerda. Escreveu outros dez livros, tornou-se defensor de homossexuais e prostitutas, comandou campanhas para legalizar o consumo de determinadas drogas menos pesadas. A freqüência desses temas em suas três candidaturas — disputou o governo do Rio em 1986 e a Presidência da República em 1989, e finalmente foi eleito deputado federal no ano passado — lhe rendeu a consagração de um slogan popular que arruinaria qualquer outra carreira política: Quem senta, fuma e cheira vota em Gabeira, pregavam seus inimigos.


E ele foi em frente. Ei-lo agora em Brasília, aos 54 anos de idade, casado há treze com a estilista Iamê, pai de duas garotas (Tame e Maia, de 12 e 8 anos). Gabeira está sentado bem ao lado do ministro Stephanes, concluindo um discurso em que falou o tempo todo "em nome dos meus eleitores que fumam maconha". Sua última frase ao microfone é: "Por fim, gostaria de encerrar dizendo que a única forma em que a maconha pode ser letal é se, por acaso, um pacote com 2 quilos de fumo cair do 25° andar de um edifício na cabeça de um sujeito que estiver passando lá embaixo." Seguem-se alguns aplausos, vários protestos inflamados e um debate que se prolonga por mais algum tempo.


A noite, já de banho tomado, Fernando Gabeira surgiria com um lencinho amarrado no pescoço e uma roupa colorida num elevador que abriu suas portas no saguão do Hotel Bonaparte. Em seguida, o deputado começou a dar a seguinte entrevista ao editor-contribuinte Guilherme Cunha Pinto, de PLAYBOY.


PLAYBOY — Nos debates sobre droga, você tem falado sempre em nome de seus "eleitores" que fumam maconha. E você, fuma ou não?


FERNANDO GABEIRA — Não me interessa, nesse caso, colocar a minha experiência pessoal como centro da discussão. Agora, sempre que me perguntam se eu conheço maconha, se conheço haxixe, se conheço as drogas todas, eu digo: já experimentei todas, entendeu? Já experimentei todas e estou falando de uma coisa que conheço relativamente.


PLAYBOY — Mas você só fala no passado?


GABEIRA — Falo só no passado, porque no momento eu praticamente não tenho nenhuma relação com droga, e quando tenho é socialmente...


PLAYBOY — Como assim, "socialmente": numa festa?


GABEIRA — Não, pode ser a qualquer hora. Um baseado, se alguém te oferece um baseado e você quer fumar, você não vai dizer "Não, obrigado, vou esperar legalizar", entendeu? "Vou esperar daqui a quatro anos e tal..." Mas, realmente, eu não sou ligado à coisa de ter todo dia...


PLAYBOY — Não compra?


GABEIRA — Não, não compro. Não compro. Mas isso também não me impediria de fumar, porque a uma pessoa como eu em vários lugares as pessoas oferecem [risos].


PLAYBOY — Ainda mais na sua base eleitoral...


GABEIRA — É claro. Em todo lugar o cara diz "Tem essa aqui". Jamais faltaria, entende? O problema é que o tipo de atividade que eu tenho hoje impede que eu fume. Porque eu tenho que ficar ligado muito tempo, não pode haver nenhum...


PLAYBOY — Quando fuma, você não consegue trabalhar direito?


GABEIRA — Não, não. Há escritores que fazem isso, o [americano] William Burroughs faz isso muito bem, mas ele veio de drogas pesadas e, com a maconha, entrou numa fase sadia. Mas, em geral...


PLAYBOY — O medo que uma mãe tem, geralmente, e você viu quantas falaram sobre isso no debate de hoje na Câmara, é que o filho adolescente comece a perder o rumo a partir do uso da maconha. Medo de que ele se desinteresse da escola, dê valor só para a curtição, comece a andar com gente que ela acha esquisita.


GABEIRA — O que você... o que a mãe gostaria de saber — e isso tem mesmo alguma procedência — é que, realmente, a pessoa que fuma tem momentaneamente uma perda de memória. Não uma perda de memória total, mas as palavras e as lembranças vêm com mais lentidão à consciência. Nesse ponto há uma dúvida sobre se essa perda de memória é algo que ocorre de um jeito ou de outro com todo mundo, e se só aflora mais claramente sob o efeito da droga, ou se é algo que acontece só quando a pessoa fuma. Há também uma certa tendência à contemplação. Existem algumas teses, sobretudo do outro lado, o lado que quer proibir e prender o usuário, segundo as quais a pessoa que fuma maconha passa a ter uma certa apatia, uma certa perda de ânimo de encarar a vida. Mas isso aí não é constatado, não foi confirmado cientificamente, é presunção. No Rio de Janeiro existe um movimento organizado de pessoas que fumam maconha e lutam pela sua liberação, o que demonstra, no mínimo, que essas pessoas não são apáticas, elas são animadas a ponto de criarem um movimento desse tipo. Então também é um dado para você considerar. Mas eu procuro falar, nas palestras, que assim como a maconha não pode ser demonizada, ela não pode ser santificada. Eu conheço gente que fuma o mesmo baseado, diante do mesmo pôr-do-sol, e reclama que nada de novo acontece — não vai acontecer mesmo, porque elas não mudam a vida delas!


PLAYBOY — O problema não é só apatia. Muita gente acha que a maconha é que move os assaltantes, por exemplo.


GABEIRA — É uma pena que seja assim, porque... Eu vejo isso muito até nos jornais: o sujeito estava drogado e fez um assalto. Esquecem de dizer que ele estava armado, que ele comprou aquela arma com uma relativa facilidade, entendeu? Quero dizer que a droga, em si, não te conduz necessariamente ao crime, ela não te conduz necessariamente ao crime nem à santidade, ela não é uma entidade separada da pessoa que a consome. Eu acho que ela produz alguns efeitos comuns, mas produz também resultados diferentes. Tem um escritor como [o inglês] Aldous Huxley que tomou droga [mescalina] e escreveu um livro [As Portas da Percepção O Céu e o Inferno]. Não saiu para fazer nada, escreveu um livro.


PLAYBOY — Você fala numa química de cada um.


GABEIRA — É uma química. Agora, as drogas são diferentes entre si. Por exemplo, acho que inevitavelmente o ópio te leva a uma contemplação.


PLAYBOY — Você experimentou?


GABEIRA — Experimentei.


PLAYBOY — Onde?


GABEIRA — Na Índia.


PLAYBOY — A cena clássica de tudo mundo deitado?


GABEIRA — É, numa sala de ópio. Uma sala com umas esteiras no chão, muito modestas, e os cachimbos. Só.


PLAYBOY — O que você sentiu?


GABEIRA — E tudo muito tranqüilo, os movimentos ficam muito lentos. É uma droga contemplativa. A maconha e o haxixe também... Já a cocaína, não. A cocaína tem esse grande impacto também nos Estados Unidos porque ela é uma droga que impulsiona um pouco a sua autoconfiança e até a sua megalomania.


PLAYBOY — Seria... uma droga "de direita".


GABEIRA — Não diria isso. Mas é uma droga de pessoas que querem ação, não é? Que estão preocupadas em melhorar sua performance. Outras tendem mais à introspecção, a uma forma de ver o mundo. Por exemplo, acho que o ácido lisérgico, sobretudo na década de 60, permitiu uma ampliação da percepção, houve até uma modificação na arte popular a partir do próprio LSD — a arte psicodélica, como nós a chamávamos.


PLAYBOY — Esteticamente, devem ter sido os anos mais horripilantes de todos os tempos — os pôsteres com raios coloridos saindo da cabeça das pessoas, aquelas calças boca-de-sino cor de laranja...


GABEIRA — É. De repente cada uma das drogas impulsiona para um lado, impulsiona para outro, então acho que não dá para falar assim da droga de um modo geral. O Prozac aumenta o nível de serotonina, segundo o que se diz, aumenta a autoestima, mas também por outro lado reduz o desejo sexual. Então cada droga se destina a um determinado tipo de necessidade que a pessoa tem num determinado momento. Eu trato mais da maconha porque os meus eleitores são mais... são voltados para isso.


PLAYBOY — Qual o seu plano para tratar desse problema?


GABEIRA — O meu trabalho hoje no Brasil tem sido o de mostrar que você não pode dar ao usuário da droga o mesmo tratamento que você dá ao traficante. Existe uma lei de 1976 que propõe a prisão de seis meses a dois anos para uma pessoa que consome droga. Isso não é bom terapeuticamente — você pode perguntar a especialistas que todos vão concordar que é péssimo. Não interessa pedagogicamente, porque não vai ser na cadeia que você vai melhorar seus hábitos. Não interessa mesmo para quase ninguém, porque no Brasil essa lei se transformou, na verdade, num grande pretexto de corrupção da polícia. A pessoa presa nessas circunstâncias paga uma taxa para não ser processada, é isso o que ocorre objetivamente. Isso é tão flagrante, hoje, que os próprios conservadores, o próprio Ministério da Justiça acha que essa forma de tratar o problema tinha que mudar. E eles sempre acharam que bastava ter uma lei contra, uma polícia para fazer cumprir a lei, que tudo se resolvia.


PLAYBOY — Mas você está falando por enquanto da descriminação do usuário de droga — ou seja, se um sujeito for pego fumando maconha, ele não iria mais preso, teria apenas que pagar uma multa ou algo assim. Mas na sua campanha eleitoral no Rio você ia além e propunha a legalização da venda de drogas, não é?


GABEIRA — Eu propunha isso. Eu disse que ia lutar por isso. Mas eu não vou poder conseguir isso no primeiro ano de mandato, entendeu? É humanamente impossível. Se eu propusesse o meu projeto agora, ele não ia ser aprovado, porque não expressa a visão dos deputados. O que foi conseguido até agora já foi muito. Nós vamos caminhar aí para uma revisão da lei em conjunto, este ano. E essa lei certamente será muito mais branda com a pessoa que consome. Quem sabe daqui a dois anos, quando a sociedade amadurecer um pouco mais a sua reflexão sobre o problema, a gente consiga realmente resolver a parada.


PLAYBOY — Mas você não acha que a legalização da maconha é completamente inviável no Brasil? Imagine o caos...


GABEIRA — Caos é o que está ocorrendo agora, por uma razão muito clara: o tráfico ilegal é necessariamente violento. São milhares de transações feitas entre pessoas, e não existe uma autoridade externa para arbitrá-las. Se uma pessoa compra 10 quilos de cocaína, mas no dia seguinte manda o pagamento só de 8 quilos, aquele que vendeu e foi enganado não pode ir reclamar na polícia. Ele tem que criar a sua própria força para se proteger. É evidente que a violência básica no Rio existe em função do comércio clandestino de drogas — são as lutas pelos pontos e os tratos não cumpridos que produzem essas mortes semanais, né? Cada grupo tem que ter o seu armamento, a sua capacidade de punir e se fazer respeitar. Além disso, como não há alvará, a luta pelo território ou pelos mercados é uma luta que se faz armada. Não é um fenômeno que ocorreu só no Rio, por causa da droga — a Lei Seca, por exemplo, que foi a proibição de venda de bebidas alcoólicas durante um certo período nos Estados Unidos, provocou o nascimento de um comércio clandestino e a conseqüência disso foi o crescimento do gangsterismo. O que contribuiu para enfraquecer os gângsteres foi justamente o fim da Lei Seca.


PLAYBOY — Se uma das suas filhas pedisse para dividir um cigarrinho de maconha com você, para ela ver como é, qual seria sua reação?


GABEIRA — [Pensativo.] Eu acho que no momento essa hipótese é muito pouco provável. Sempre que tem alguém fumando em casa, qualquer tipo de tabaco ou qualquer outra coisa, elas reagem muito negativamente ao cheiro, elas não seguram o cheiro. Eu me lembro que uma vez nós estávamos num restaurante de hotel e tinha um cara fumando charuto na mesa ao lado, e elas disseram: "Papai, isso tem cheiro de cavalo." Não entendi por que elas associaram com cheiro de cavalo uma coisa estranha, mas foi isso. De todo modo, nós procuramos estabelecer uma relação equilibrada no que diz respeito a todos os hábitos de consumo — desde a Coca-Cola e o leite condensado, por causa do açúcar, existe já um trabalho assim de controle de satisfação da própria ansiedade. Através disso a gente fica mostrando como é necessário utilizar, experimentar, mas ter perspectiva de não se deixar levar pelo excesso.


PLAYBOY — Você não consome açúcar?


GABEIRA — Não.


PLAYBOY — Na sua casa tem açúcar?


GABEIRA — Tem, elas consomem. Da mesma maneira, a primeira vez que uma delas viajou de avião, ganhou um sanduíche de presunto, comeu o sanduíche frio.


PLAYBOY — Ela gostou?


GABEIRA — Gostou. Depois disso, algumas vezes elas já saíram e contaram, na volta para casa: "Nós comemos uma carne", "Hoje nós comemos uma salsicha".


PLAYBOY — Elas confessaram?


GABEIRA — Não confessaram propriamente, mas comentaram, porque era uma coisa diferente para elas. Gostaram, mas nunca chegaram a pedir que eu desse carne para elas, então a gente mantém essa linha, basicamente sem nenhuma repressão. É claro que se eu achar que excedeu, que tem açúcar demais, corto, entendeu? Corto. Eu não acho autoritário, acho que elas precisam de um limite, neste ponto, porque acho importante a pessoa aprender a controlar a própria ansiedade, em relação a qualquer tipo de consumo.


PLAYBOY — Mas, voltando àquela pergunta: afinal, você dividiria ou não um cigarro de maconha com uma filha?


GABEIRA — É uma pergunta difícil de ser respondida assim. Só tomarei uma posição se a coisa me acontecer e eu puder considerar todos os lados da questão. Porque você quando é pai, acompanha todas as fases da criança, do adolescente, às vezes tem que ser chato, tem de procurar saber por que o filho está bem e por que não está bem, quais são os problemas que ele vive dentro da escola, quais são os problemas sentimentais que está vivendo no momento...


PLAYBOY — Mas se você tivesse que responder isso numa frase, diria o quê: "Não sei?"


GABEIRA — Não, eu diria: depende das circunstâncias.


PLAYBOY — Essa resposta pode ser surpreendente para quem faz uma imagem sua mais, mais...


GABEIRA — Pode usar qualquer palavra. É impossível alguém defender as posições que eu defendo e não ser chamado de veado e maconheiro. Impossível, porque existe aquela tendência a te associar às coisas e a te catalogar e a estigmatizar, inclusive. Mas realmente isso não me incomoda.


PLAYBOY — Pelo contrário, parece até que isso de alguma forma estimula você. Você gosta de provocar?


GABEIRA — Não, não gosto de provocar, não. Mas não vou deixar de lutar por coisas que defendo, como o fim de qualquer discriminação sexual, só porque podem me confundir com alguns grupos que eu represento. Uns dias atrás, por exemplo, a minha secretária eletrônica no Rio tinha a mensagem de um cara dizendo que eu votei errado no fim do monopólio das telecomunicações, e que eu era veado e que veado não podia entrar no Congresso, né? Concluía assim: por isso é que não pode ser deputado, porque acaba tomando essas posições erradas. O sujeito que ligou acredita nisso realmente, entendeu? Estava, pela visão dele, me ofendendo, mas eu não podia me sentir ofendido, porque eu estava vendo que ele devia... a ofensa dele na realidade era um diálogo com seus fantasmas, porra, não tinha nada de pessoal comigo.


PLAYBOY — Você acha que esse cara tem uma questão com a própria sexualidade?


GABEIRA — Um problema dele que só a [sexóloga e deputada federal paulista] Marta Suplicy pode resolver, analisar para ele.


PLAYBOY — Ou seja, você está sugerindo que veado é ele [risos]. Mas, na verdade, não é só ele: muita gente tem certeza de que você seria homossexual, embora seja casado há treze anos com uma mulher.


GABEIRA — Sou casado há treze anos e, como sou monógamo, a minha prática é heterossexual. Mas não posso dar nenhuma garantia, entendeu, não dou garantia futura [risos]. A minha prática agora é heterossexual, mas não quer dizer que amanhã ela não possa deixar de ser, entendeu?


PLAYBOY — Mas você já teve experiências homossexuais?


GABEIRA — Já, como menino já tive experiências, como a grande maioria dos brasileiros deve ter tido.


PLAYBOY — Em que época foi isso?


GABEIRA — Ali entre os 13 e os 15 anos, em Juiz de Fora. Havia lá os homossexuais, e nós tínhamos relações com eles — só que nós não achávamos que nosso ato era homossexual, porque o parceiro é que era a bicha oficial.


PLAYBOY — O fato de ser ativo...


GABEIRA — Isso não era considerado homossexualismo.


PLAYBOY — Mas, e mais tarde, quando você já estava exilado na Europa e ocorreu o início daquela sua fase da liberação?


GABEIRA — Não tive experiências definitivas, mas nunca me reprimi também.


PLAYBOY — Como foi para você a descoberta da sua sexualidade, quando criança?


GABEIRA — A descoberta para mim creio que não tenha sido muito diferente da descoberta de todo mundo. É a descoberta que você faz através, primeiro, do contato com os meninos, não é? Menino com menino.


PLAYBOY — [Ouvindo mal.] Menina?


GABEIRA — Menino. Quer dizer, os meninos mais fortes naquele momento têm uma ascendência sobre os outros e tal. Então, acho que hoje a coisa mudou muito, naquela época ou você começava com esses contatos ou fazia com prostitutas. No meu caso, eu vivia a cerca de 200 ou 300 metros da zona boêmia. Meu pai tinha um armazém ali e elas vinham muito fazer compras. Eram mulheres que eu ia conhecendo, vendo, ali perto da minha casa, da minha vida. E com algumas delas eu me relacionei. E comecei a conhecer o mundo também através delas.


PLAYBOY — Com que idade, mais ou menos?


GABEIRA — Uns 12 ou 13 anos. Nossa turma de meninos freqüentava o rendezvous mais à tarde, porque era mais seguro, mas era também menos romântico — porque não havia música e o ambiente era mais claro, à luz do dia, com algumas mulheres por ali fazendo a unha, andando de chinelos...


PLAYBOY — Como é que você tentava se impor nesse ambiente de mulheres experientes, tão mais velhas que você?


GABEIRA — Bom, mandei fazer umas tatuagens num sapateiro perto de casa.


PLAYBOY — O quê? Você foi a um sapateiro para ele fazer tatuagens no seu corpo? E o que ele desenhou?


GABEIRA — Aqui no pulso ele fez uma cobra e aqui no peito uma estrela. Tinha também uma flecha. Depois eu pedi para um primo meu que é médico tirar, mas foi tão desastroso que as cicatrizes ficaram mais evidentes que as tatuagens.


PLAYBOY — Outros garotos fizeram isso também?


GABEIRA — Não. Só quem fez fui eu. Mas com as mulheres lá na zona boêmia era um grande estilo.


PLAYBOY — Então você reconhece uma vontade de se destacar, sempre, sendo diferente? Quando garoto, fez uma tatuagem. Agora, em Brasília, vai à Câmara de bicicleta. Não é a mesma coisa?


GABEIRA — A primeira pergunta, quanto a ser diferente lá com a tatuagem, não era para ser diferente — era para eu me integrar em um grupo. A tatuagem significava, naquele mundo das mulheres e dos marginais, dos cáftens e tal, uma antítese da própria polícia. Um cara de tatuagem era considerado um antipolícia. Era um símbolo de uma marginalidade. Agora, sobre a questão da bicicleta: realmente uso bicicleta. Pedalei 600 quilômetros na minha campanha. E em Brasília é uma maneira também de eu ficar em forma, economizar um dinheiro, que não tenho, e ir para o trabalho. Não faço nenhum marketing. Eu sou assim. Sou incapaz de alterar a minha conduta para provocar uma fotografia, uma entrevista e tal. Pelo contrário, isso já me enche um pouco o saco, não agüento mais os pedidos da imprensa para me fotografarem na bicicleta.


PLAYBOY — Mas esse interesse é mais do que natural. Se estivéssemos em Pequim, tudo bem. Lá todo mundo vai de bicicleta para o trabalho. Em Joinville, Santa Catarina, vá lá. Mas em Brasília, ninguém vai. Você, como deputado, achou que não iria chamar atenção?


GABEIRA — Mas não há essa intenção, entendeu? Fiz minha campanha de bicicleta sem ter a intenção de dizer: "Olha, estou de bicicleta para ser fotografado." Para mim, entenda, ser fotografado pelos jornais brasileiros, aparecer na primeira pagina não tem mais graça. Acho que eu tique já fui fotografado demais. [Levemente irritado.] Porra, não é isso. Não vou entrar nessa, entende? Inclusive é uma até perigosa. Tende a folclorizar o meu mandato. Você vê que tem todas essas coisas polêmicas, tem a questão da maconha. Há uma tendência, uma força enorme, para folclorizar o meu mandato. E já fui de sandália à Câmara, já fui de jaqueta...


PLAYBOY — Já íamos falar nisso também Qual o sentido da sandália?


GABEIRA — Você acha que precisa ter um sentido para usar uma sandália?


PLAYBOY — Com terno, sim.


GABEIRA — Mas é bonito. Todo mundo usa. Hoje isso é uma coisa comum.


PLAYBOY — É?


GABEIRA — Só no é comum para os... É uma coisa comum usar terno com sandália.


PLAYBOY — Sandália com meia?


GABEIRA — Sem meia. É comum. E daí? Você vê, o Caetano usou agora na entrega do premio Sharp de música um terno com sandália. É uma coisa comum. Quer dizer, não é uma coisa comum. O que estou dizendo é que existe também esse modo de se vestir, é uma coisa que está em permanente mudança, com algumas ousadias.


PLAYBOY — No seu caso, a curiosidade sobre sua maneira de se vestir começou quando você apareceu nas praias do Rio com uma tanga de crochê, em 1979. Muita gente ficou desconcertada, porque não era exatamente o que se esperava de um mito da guerrilha brasileira, na volta do exilio. Aliás, é verdade que aquela tanga era da sua prima, a

apresentadora de TV Leda Nagle?


GABEIRA — Rindo. Não, não, a tanga não era da minha prima. Na verdade, o que aconteceu é que na Europa eu passava as férias nas ilhas gregas, onde havia varias praias de nudistas. Eu já ia nessas praias, parte da classe média europeia já ia a praia sem roupa. Quando eu voltei ao Brasil, a coisa mais próxima que eu tinha da nudez era uma tanga, que eu usava numa piscina de Estocolmo. Foi essa que eu usei.


PLAYBOY — Aí você pulou das páginas de política para as de comportamento.


GABEIRA — Foi um período até interessante, algumas pessoas condenando, outras tentando explicar sociologicamente. Foi interessante porque colocou um inicio na discussão sobre o machismo, sobre a questão do corpo, num verão excepcionalmente de abertura, excepcionalmente sensual — era o primeiro verão da anistia, que veio com esta carga de liberação. Então a tanga de crochê pode ter contribuído para uma coisa boa.


PLAYBOY — Você é dessas pessoas que estão sempre em luta por alguma coisa. Enfrenta a ditadura, é metralhado, torturado, exilado. Volta e enfrenta antigos aliados, os conservadores de esquerda, com um comportamento ousado. Francamente, você se acha um herói?


GABEIRA — Não. Não me acho, não. O que acho é que a gente deve ter a determinação de viver as coisas da forma mais verdadeira possível. O que envelhece, o que entristece uma pessoa, é você chegar a uma conclusão, intelectual e emocionalmente, e não assumi-la. Agora, isso se apresenta para todo mundo de uma maneira ou de outra. É cara que decide abandonar e emprego dele no banco e vai para outro lugar, é o outro que decide se separar da mulher depois de muito tempo, ou o que decide ir embora e emigrar para um outro país. Não vejo nenhum heroísmo nisso. Vejo mais como uma espécie de necessidade de ser fiel às suas opções.


PLAYBOY — Você sempre teve grande coragem física?


GABEIRA — Não sei se sempre tive grande coragem. Sei que em certos momentos você é obrigado a tomar certas decisões.


PLAYBOY — Você passa uma imagem de ser uma pessoa com poucas inseguranças. É isso mesmo? Você tem poucos fantasmas?


GABEIRA — Não, não é isso. Existe uma dose de fantasmas de que você não pode abrir mão [risos]. Você não vai querer levar uma vida sem fantasias e sem fantasmas, não é? O que eu acho é que você precisa aprender a perder alguns medos. Por exemplo, o medo de ser vaiado. Você não pode ter medo de ser vaiado. Senão, na hora em que tem que dizer uma coisa, não vai dizer. Esses medos você vai aprendendo a perder.


PLAYBOY — Você lembra quando perdeu esse medo?


GABEIRA — A primeira vez em que fui vaiado assim pelos companheiros de esquerda foi na porta do Consulado dos Estados Unidos, no Rio. Foi bem depois da minha volta, lá por 1984 ou 1985. Quando bombardearam a Líbia, nós estávamos fazendo um protesto na porta do consulado. Ai me deram a palavra e eu falei: "Protesto contra o bombardeamento da Líbia, mas protesto também contra a presença das tropas soviéticas no Afeganistão." Ficaram putos.


PLAYBOY — Você, quando criança, era briguento na escola?


GABEIRA — Não era briguento, mas também não era muito disciplinado. Fui expulso de um colégio protestante quando tinha 12 anos, porque houve a saída de um grupo para ir a uma missa, e os caras foram expulsos. Eles disseram que iam a uma missa e foram expulsos. E aí eu me mostrei solidário com eles.


PLAYBOY — Uma missa católica?


GABEIRA — É. Eu me solidarizei com eles, porque achei que era sacanagem, e fui expulso.


PLAYBOY — Você já trocava sua segurança pela defesa de posições.


GABEIRA — Quando eu tinha 13 anos, passou um filme pornográfico lá em num cinema na minha terra. E era uma sessão meio secreta, porque era proibidíssimo, imagine isso em 1954. Mas eu peguei uma Constituição e fui lá para a porta do cinema, chamei o gerente e inventei lá um artigo que dizia que eu podia entrar, que ele não podia proibir o direito de ir e vir. O gerente ficou assustadíssimo, não com minha argumentação, mas com a possibilidade de eu atrair a polícia com aquele escândalo, então ele me colocou para dentro [risos].


PLAYBOY — Você saiu cedo de casa?


GABEIRA — Com 17 anos já saí de casa e fui morar com uns músicos.


PLAYBOY — Você também era músico?


GABEIRA — Não, mas era ligado a eles. Eu já tinha começado a trabalhar em jornal, comecei muito cedo. Então saí de casa. Desde aquela idade já deixei bem patente a minha vontade de me libertar dos limites da estrutura familiar.


PLAYBOY — O sobrenome Gabeira é árabe?


GABEIRA — Meus pais eram filhos de imigrantes sírios analfabetos que, na hora de entrar no Brasil, não conseguiram se identificar claramente. Talvez o nome fosse Gabaira, ou Gebara. Mas o fato é que, pela insegurança que marca geralmente uma família num país onde ela ainda não tem tradição, havia na minha casa uma expectativa de que eu me transformasse num funcionário do Banco do Brasil e uma pressão muito grande pra que eu jamais fosse boêmio, poeta e jornalista. Engraçado como essas coisas não mudaram. Ainda hoje fui ao Banco do Brasil, junto com a Comissão de Direitos Humanos que está batalhando pela contratação de uma pessoa cega que foi aprovada em concurso, mas discriminada na hora de preencher a vaga. Então, numa determinada hora ouvi o presidente do Banco do Brasil dizer ao telefone para uma outra pessoa — "Olha, você foi contratado e eu espero que fique conosco aqui trinta anos, como todos ficam..." A pessoa do outro lado na linha ficou super emocionada, e eu disse para os deputados que estavam comigo: "Se eu ouvisse isso de alguém seria um tiro mortal..." [risos] Imagine: "Espero que você fique trinta anos conosco..." [risos].


PLAYBOY — Mas você, nos seus 17 anos, em Juiz de Fora...


GABEIRA — Eu vivia na banca de jornais, esperando a chegada das revistas para ler. Eu vivia ali mas já estava longe. Queria sair da família, depois sair da cidade.


PLAYBOY — Já em Belo Horizonte, no início dos anos 60, você freqüentava um bar célebre na época, chamado Bucheco, que dizem ter sido uma versão mineira do existencialismo. Havia umas mulheres todas de negro, fumando com piteiras...


GABEIRA — Era um bar que tinha um núcleo existencial muito bom, sartreano, e tinha um outro que pertencia à VAR-Palmares, que era um núcleo de trotskistas. Então nós nos encontrávamos ali, existencialistas e trotskistas. Mas com trajetórias separadas. Eles eram políticos naquele momento, nós éramos intelectuais. Lembro de uma vez em que eu e o [jornalista e escritor] Ivan Angelo passamos por uma greve na rua. E resolvemos copiar um personagem de um filme [Os Boas-vidas] do Fellini que dizia: "Lavoratori!", e dava uma banana para os trabalhadores [risos]. A gente era um grupo de literatos, intelectuais muito parecidos com aqueles italianos retratados pelo Fellini. Mas aí, depois de um certo tempo, a minha trajetória começou a convergir para a trajetória dos políticos, e fiquei um pouco político e um pouco intelectual.


PLAYBOY — Nessa época você já começou a admitir a idéia de empunhar armas, uma coisa assim, ou isso ainda era uma coisa muito distante?


GABEIRA — Olha, houve uma tentativa de golpe de Estado e participei da resistência. Quando o Jânio renunciou, em 1961, e houve um movimento tentando impedir a posse do [vice-presidente João] Goulart, nós já fizemos manifestações em defesa da legalidade. Me lembro que telefonei para o arcebispo e para não sei mais quem, ameaçando explodir uma bomba.


PLAYBOY — Ameaçando explodir uma bomba se ele não fizesse o quê?


GABEIRA — Nada, só ameaçando, criando pânico, entende? A gente nem sabia [risos]. Depois, quando fui para o Rio, em 1964, trabalhei no jornal do Brizola, O Panfleto. Algum tempo mais tarde, já trabalhando no Jornal do Brasil, ganhei uma bolsa para estudar no País de Gales. Na Europa, pensando em coisas do Terceiro Mundo, fiquei meio seduzido por essa coisa de revolução, que eu não sabia precisamente como seria. Voltei para o Rio, voltei para trabalhar no Jornal do Brasil, e tomei contato com o movimento estudantil, aquela contestação toda. Então falei: "É nessa que eu vou." Resolvi entrar para aquele movimento estudantil e aí comecei a tomar contato com os partidos políticos mais organizados para a luta armada, algo que me pareceu fascinante também por seus ritos, por suas células, por seu vocabulário, por suas hierarquias. Quer dizer, você entra em um mundo todo especial. Abandona o seu nome, passa a ter um outro nome, passa a ser uma outra pessoa, há uma espécie de rebatismo.


PLAYBOY — Você deixou logo o Jornal do Brasil para entrar na clandestinidade?


GABEIRA — Senti que a coisa estava ficando difícil. Ainda dentro do Jornal do Brasil nós fizemos um jornal clandestino, chamado Resistência, que a gente mimeografava e algumas pessoas iam buscar lá para distribuir. Um dia resolvi organizar melhor o esquema e aluguei uma casa em Santa Teresa [bairro do Rio de Janeiro], onde montamos tudo o que era necessário para fazer um jornal clandestino de porte nacional. Aí alguém falou: "Pô, mas esta casa é boa demais. Vamos fazer um seqüestro aqui."


PLAYBOY — Foi assim?


GABEIRA — Foi.


PLAYBOY — A história do seqüestro do embaixador americano e tudo o mais está em livros e em muitas entrevistas que você já deu. Mas ficaram alguns pequenos pontos intrigantes. Por exemplo: por que você levou para essa casa dois empregados totalmente inocentes na história — uma cozinheira, que acabou se demitindo quando percebeu que a barra estava pesando, e um jardineiro, que acabou preso? Não havia um casal de militantes da sua organização que pudesse representar esses papéis?


GABEIRA — A empregada já trabalhava comigo há tempos, e ela foi para a casa porque eu tinha mudado e estava fazendo o jornal, não pensava ainda no seqüestro. Mas de todo modo eu já estava pensando na saída dela. Ela seria demitida mais adiante. E o rapaz era um militante da Bahia que representava o papel de jardineiro. Quando foi preso, naturalmente resolveu reforçar o lado jardineiro dele e negar o lado militante.


PLAYBOY — Por causa desse seqüestro, você não conseguiu até hoje visto para entrar nos Estados Unidos. E o diplomata americano Diego Asencio disse certa vez que o seqüestro acabara matando precocemente o embaixador Elbrick, que nunca teria se recuperado do trauma e morreu no meio dos anos 70.


GABEIRA — [Enfático.] Não é verdade! Não é verdade! Cheguei a falar com a mulher do Elbrick. Agora, recentemente, o Bruno Barreto falou com a mulher dele, e ela não confirmou isso em nenhum momento. Ele não morreu como vítima de alguma seqüela. E continuo lutando para conseguir esse visto de entrada nos Estados Unidos, por várias razões: primeiro porque já fui anistiado aqui no Brasil, meu país de origem, onde não tenho mais pendência nenhuma; depois, porque acho que em princípio país nenhum deve ficar impedindo a entrada das pessoas. Agora, como deputado, tenho direito a um passaporte especial e essa questão talvez fique mais fácil.


PLAYBOY — Vamos voltar um pouco ao tempo em que você estava metido nessa confusão toda. Como começou o exílio? Em Cuba, para onde foi depois da Argélia, para ser treinado como guerrilheiro, você ainda estava inteiramente convencido de fazer a revolução?


GABEIRA — Olha, várias vezes me senti questionando... Uma das coisas mais aflitivas era que você não podia sair de Cuba, por causa da burocracia. Você esperava meses e meses até os burocratas decidirem se você podia sair. Havia também os "coletivos", os grupos que formávamos e que no fim decidiam toda nossa vida. Se eu quisesse trabalhar na Rádio Havana, por exemplo, o grupo se reunia para deliberar se eu podia ir — se deliberasse que não, eu não podia ir, independentemente da minha vontade.


PLAYBOY — Em Cuba você aprendeu a atirar?


GABEIRA — Aprendi. Aprendi a atirar, aprendi a marchar, aprendi a fazer emboscada, aprendi a atirar de bazuca. Muitas coisas eu já esqueci.


PLAYBOY — No que você era bom?


GABEIRA — Eu era muito bom para marchar. Era bom de vanguarda, de ir em frente e tal. Naquele momento eu tinha — tenho ainda — uma grande facilidade de caminhar. Com bazuca também eu atirava bem. Era um bom bazuqueiro.


PLAYBOY — Você caminhava quanto?


GABEIRA — Uns 40 ou 50 quilômetros, dependendo do dia, da hora, da situação. Caminhava com mochila e fuzil.


PLAYBOY — Bazuca, você...


GABEIRA — Eu atirava bem.


PLAYBOY — Depois que saiu de lá, o que você fez com essa habilidade? Alguma vez chegou a ir a algum parque de diversões para atirar naquelas barraquinhas de tiro ao alvo?


GABEIRA — [Rindo.] Fui! Levava as namoradas e era um sucesso total — derrubava os maços de cigarro, ganhava elefantinhos de porcelana...


PLAYBOY — Depois dali você foi para a Suécia?


GABEIRA — De Cuba eu fui para a Alemanha, da Alemanha para o Chile...


PLAYBOY — Você chegou a conviver com o presidente Fernando Henrique Cardoso no Chile?


GABEIRA — Não.


PLAYBOY — Na Alemanha você...


GABEIRA — Na Alemanha aí eu trabalhei em uma fábrica de calças, trabalhei encadernando jornal, vendendo livros nas portas de universidades.


PLAYBOY — Você aprendeu alemão?


GABEIRA — Aprendi. Não muito, mas aprendi. Eu já tinha um rudimento quando fui para lá, porque havia estudado no Instituto Goethe no Brasil.


PLAYBOY — Você resolveu estudar alemão para ler O Capital no original?


GABEIRA — Não, eu achava que era fascinante aprender a falar línguas. Pela cultura, mesmo. E também tinha expectativa de estudar filosofia. Recorria sempre essa idéia de que era impossível estudar filosofia sem estudar alemão. De qualquer jeito, eu li O Capital. Estudava doze horas por dia.


PLAYBOY — Na Alemanha?


GABEIRA — Em Cuba. Então, finalmente, teve uma hora em que comecei a questionar o intelectualismo da minha vida. Cheguei à conclusão de que o trabalho intelectual é um pouco de sublimação, entende? Tinha hora que eu queria sair, fazer exercício, namorar. Aí, já na Suécia, comecei a mudar a minha vida. Parei de fumar...


PLAYBOY — Na Suécia você teve várias atividades estranhas: jardineiro de cemitério, porteiro de hotel, catador de papel, maquinista de metrô... Como você foi parar nesses lugares?


GABEIRA — Esse trabalho de jardineiro de cemitério eu consegui numa agência de empregos para o verão. Nesse período o cemitério contratava geralmente estudantes de Belas Artes para cortar a grama, dar uma olhada geral nos túmulos, plantar alguma coisa. Tínhamos um grupo imenso, e deixávamos os cemitérios maravilhosamente bem cuidados.


PLAYBOY — Depois...


GABEIRA — Depois fui catador de papel. Era legal, tinha uma jardineira, carrinho, tinha um cabo de vassoura com um ferrinho na ponta para pegar os papéis.


PLAYBOY — E ser maquinista de metrô — foi complicado?



GABEIRA — Não. Porque fiz um curso. Eu dirigia o metrô sempre com um cara ao meu lado, no princípio. No dia em que me deixaram sozinho tive uma certa tremedeira. O mais difícil era que o metrô tinha uma velocidade que você não podia ultrapassar. Se você ultrapassasse, ele se desarmava automaticamente e só se recompunha 16 segundos depois. Então tinha isso. Se você errasse, incomodava os passageiros. Havia também, era um cálculo preciso, a distância para você começar a frear quando entrava em uma estação. No metrô, é importante que o primeiro carro fique com as portas abertas, e o último também. Se eu passasse um pouco a porta se abria para a parede. Você tinha que saber frear no momento exato.


PLAYBOY — Então não é tão simples.


GABEIRA — Havia também o problema rígido do horário. Entrar e sair da estação no horário exato, vamos dizer 3h32. E para você, que é brasileiro, nem sempre é fácil — você vê um cara correndo, e já fechou a porta, a tendência é segurar um pouco, abrir de novo. É uma tendência de dar um jeito, porque o cara se atrasou e tal. Isso tudo implicava uma autodisciplina que você tinha que ter, até virar um maquinista eficaz.


PLAYBOY — Você virou um bom maquinista?


GABEIRA — Não. Eu nunca fui um bom maquinista. Mas virei um bom porteiro noturno. Aí, sim. Trabalhava na recepção de um hotel maravilhoso [Cristina], um lugar bonito, espaçoso. Levava meus livros, tinha minha mesa. Tomava chá, comia biscoitos, lia meus livros e tal. Na hora em que ficava cansado, dormia, porque os hóspedes voltavam às 11 horas em ponto. Não tinha esse negócio de brasileiro que chega às 3, às 4 da madrugada, bêbado. Eles são todos organizadinhos.


PLAYBOY — Bêbados, na Suécia, só sexta-feira.


GABEIRA — É. Porque nos dias de semana eles têm que trabalhar. Eu trabalhava até as 11, dormia, acordava às 7 da manhã. Éramos um grupo de brasileiros trabalhando nesse hotel. Até me lembro de um dia em que resolvemos sacanear uns portugueses que apareceram. Os portugueses se hospedaram no hotel e não sabiam que nós éramos brasileiros. Então eles pediam em inglês para serem acordados às 5 horas da manhã. Falavam em inglês, nós respondíamos em inglês, OK e tal. Aí de manhã a gente ligava para o cara e dizia: "Acorda aí! Seis horas da manhã!" E batia o telefone [risos]. O cara ficava o dia inteiro grilado, entende? Ele não sabia se tinha sonhado com aquilo ou se tinha ouvido mesmo alguém falar com ele em português.


PLAYBOY — E você, hoje, costuma sonhar?


GABEIRA — Costumo.


PLAYBOY — E sonha mais com coisas passadas ou com coisas que você está vivendo agora?


GABEIRA — Eu sonho com símbolos. Sonho com situações que às vezes têm algo a ver com o que eu estou vivendo no presente, mas que são mascaradas, através de símbolos. Você tem que interpretar. Agora, de vez em quando tenho outros sonhos. A prisão foi uma experiência muito forte. Já tive sonhos com prisão.


PLAYBOY — É freqüente isso?


GABEIRA — No caso da prisão, sim. A prisão foi uma experiência marcante.


PLAYBOY —Virou um cenário.


GABEIRA — E eu não cheguei a ficar muito tempo preso, mas foi uma coisa muito forte e que me marcou muito.


PLAYBOY — Você ficou seis meses preso, passou por doze prisões. Tomou choques... A tortura é uma das coisas que voltam nos sonhos?


GABEIRA — Não, nos sonhos não volta exatamente a situação, mas aquele cenário, talvez para marcar situações que eu posso estar vivendo agora, sem nada a ver com aquilo — às vezes um momento de simples estagnação, de uma dificuldade sentimental, ou de uma falta de horizonte no Brasil, em que a coisa está muito chata. Aí vai se formando a situação em que você sente que está preso, mas não mais numa cadeia, não mais naquela prisão.


PLAYBOY — Existe um fantasma que insiste em atormentar você?


GABEIRA — Existem certos flancos em minha vida que me deixam inseguro. Um desses flancos é o fato de eu não ter um emprego fixo como jornalista, sou free-lancer — se bem que meu emprego fixo agora é na Câmara dos Deputados. Mas não tenho nada. Não tenho casa para morar, moro em casa alugada, tenho duas crianças. E já estou entrando no meio da década do meio século, não é? Estou com 54 anos. Então fico um pouco inseguro.


PLAYBOY — Quanto é que você ganha como deputado?


GABEIRA — Como deputado o salário total é 8.000 reais, mas tem descontos e cai para perto de 5.000. E desses descontos ainda tenho que tirar 20% para o partido. Aí cai para uns 3.800 por mês.


PLAYBOY — Mas em Brasília seus gastos são poucos.


GABEIRA — A Câmara paga o meu quarto, mas eu tenho que pagar a minha comida, a lavagem de roupa, os táxis quando vou para o aeroporto, quando volto do aeroporto, livros e todo o material de pesquisas que eu tenho. No Rio tem também o aluguel do meu escritório, que sai por 400 reais, mais os gastos do escritório. E se de repente eu perco a saúde amanhã? Minha mulher trabalha, mas ela sozinha não vai agüentar. Essa é a única insegurança que eu tenho.


PLAYBOY — Mas como jornalista e deputado, nem precisaria ter. Os deputados têm direito a aposentadoria depois de oito anos de serviço. E muitos jornalistas têm conseguido boas aposentadorias pelo Sindicato do Rio de Janeiro, alegando que foram perseguidos pelo regime militar e tinham dificuldade em arrumar emprego. O que você acha disso, aliás?


GABEIRA — Bom, em primeiro lugar eu não me vejo aposentando. Creio que vou trabalhar até morrer. Agora, olhando essas duas aposentadorias, acho o seguinte: a dos parlamentares ainda existe, mas vai cair logo, porque é um absurdo. A dos jornalistas aproveita uma lei que procura reparar os erros, as perseguições que determinadas pessoas sofreram durante a ditadura, ou que foram presas por algum tempo durante o regime. Por exemplo, o [jornalista] Zuenir Ventura eu acho que realmente foi perseguido e teve dificuldades para trabalhar no período.


PLAYBOY — E você?


GABEIRA — Eu não. Quer dizer, quando eu optei por lutar contra o nosso governo, em parte fui perseguido pelo governo, mas também persegui o governo enquanto pude [risos].


PLAYBOY — E os direitos autorais de seus livros?


GABEIRA — Dão pouco, muito pouco.


PLAYBOY — Mas são onze livros, alguns best-sellers...


GABEIRA — Muitos ficaram para trás... Na verdade, me arrependo de quase tudo o que publiquei.


PLAYBOY — É mesmo? Por quê?


GABEIRA — Tirando o primeiro, O Que É Isso, Companheiro?, que escrevi ainda na Suécia, os outros saíram aos borbotões e foram feitos muito a toque de caixa, sem burilar o texto. Meio no sentido de aproveitar a onda, acho eu. Admiro muito quem consegue ser conciso, enxuto, preciso. Só alguns raros escritores conseguem isso.


PLAYBOY — Quem, por exemplo, no Brasil?


GABEIRA — [Depois de refletir alguns segundos.] O Ivan Angelo. O Raduan Nassar.


PLAYBOY — Você está escrevendo alguma coisa nesse momento?


GABEIRA — Escrevo sem parar! [Risos.] Trabalho assim: durante a semana, vida parlamentar de segunda a sexta. E no fim de semana sigo trabalhando: aos sábados, escrevo artigos gratuitos, sobre os temas em que me interessa intervir; e aos domingos artigos e reportagens como free-lancer, porque tenho de reforçar o orçamento de casa. Além disso, estou no meio de um romance chamado Era Uma Vez um Português, em que o personagem está preso numa cadeia de Porto Seguro, na Bahia.


PLAYBOY — Este é seu primeiro mandato, a primeira vez que mora uma boa parte do tempo em Brasília. Como você se sente na cidade?


GABEIRA — Às vezes me sinto como um monge, que durante o dia trabalha o tempo todo em sua missão, depois à noite vem para o quarto, ouvir música, escrever, vem para sua clausura. Na verdade não me fascina a vida noturna de Brasília, tenho todo o respeito por ela, mas percebo que é uma cidade muito marcada por executivos solitários, prostitutas e esquemas de prostituição. Você sente uma presença desse esquema profissional destinado a atender solitários em restaurantes, boates, hotéis. Sem contar as ruas mesmo, onde tem praticamente um cerco de putas e travestis.


PLAYBOY — Elas são do seu eleitorado também, não?


GABEIRA — A Gabriela, que era líder das putas no Rio, sempre votou em mim, fez campanhas. Uma vez eu participei de um encontro nacional para discutir os projetos. Discutimos as divergências com o feminismo, que é contra a atividade delas e que quer acabar com a prostituição. Já as prostitutas querem apenas trabalhar com dignidade, e aí minha posição é com elas.


PLAYBOY — Você tem surpreendido muita gente que esperava posições mais radicais em alguns temas. Mesmo entre os verdes dá para notar isso. Por exemplo, quando começou uma grande campanha contra a Farra do Boi, você viajou para Santa Catarina e, na volta, não defendeu mais a extinção pura e simples da festa. Por quê?


GABEIRA — Porque eu vi o que aquele ritual significava para eles. Vi mulheres, pacatas donas de casa, se atirando na frente da polícia para garantir a festa. Comecei a pensar por que elas faziam isso e fui entendendo um pouco a tradição da festa em determinadas comunidades de pescadores. O boi visto como o oposto do peixe — e, portanto, como o inimigo — e tudo o mais. Você não pode chegar lá e dizer que nada disso tem sentido. Pode não ter para você, mas para eles têm. Minha proposta foi gradualizar uma mudança, sem mexer no espírito do ritual. Primeiro convencendo as pessoas de que o animal não precisa sofrer no sacrifício, e depois até substituindo o boi por uma fantasia, uma representação.


PLAYBOY — Até chegar num bumba-meu-boi.


GABEIRA — Com um boneco no lugar do animal.


PLAYBOY — Você acha que essa geração das suas filhas tem mais chance de ser feliz do que as anteriores? Quer dizer, tem mais condições, medicina mais avançada, informação mais rápida, uma visão mais global do mundo, menos barreiras ideológicas?


GABEIRA — Ontem eu vi um comercial da [indústria de software] Microsoft, e eram duas garotinhas de camisola, com a idade das minhas filhas. Elas diziam uma coisa assim: "Papai, eu não quero ouvir mais a história dos três porquinhos. Fale-nos um pouco sobre Sartre." O pai liga lá a enciclopédia no computador e aparece tudo sobre Sartre, e mais mapas dos países e não sei o quê. Até chamei a minha mulher para ver, e ficamos conversando como os meios técnicos estão colocando à disposição das crianças um volume de informações até superiores às suas necessidades. Então, no meu entender, a grande questão que vai haver para essas crianças não é mais a busca de informação, mas como selecionar aquilo que interessa. Acho que isso é uma coisa delicada. Os apelos e as solicitações te conduzem muito à dispersão.


PLAYBOY — Um dia desses, os jornais trouxeram a previsão de um cientista de que, no meio do século que vem, seria possível implantar chips no cérebro das pessoas — ou seja, você teria não mais acesso a biblioteca, teria a própria biblioteca na cabeça. O seu partido está se encaminhando para discutir os limites de coisas assim?


GABEIRA — É lógico que nós estamos preocupados com tudo isso. Estamos debatendo a questão da biotecnologia como, por exemplo, o rato de Harvard, os animais que estão sendo fabricados em laboratórios a partir de combinações cibernéticas. Enfim, são outras dúvidas, outros problemas que se colocam à frente do homem. No nosso tempo nós tínhamos sistemas que nos diziam mais ou menos o que era bom e o que era mau, e que nos forneciam até uma previsão da História.


PLAYBOY — Você concorda que todo militante concorre o risco de se tornar meio chato? Você não tem medo de chegar num lugar e alguém dizer: "Ih, lá vem ele falar aquelas coisas de novo!"?


GABEIRA — A militância passou a ser uma coisa muito estigmatizada. Militante vem de militar. As pessoas hoje, sobretudo no fim do século, caminham para um nível de liberdade individual muito grande. Não aceitam muito essas determinações coletivas sobre elas. O fato de um militante pertencer a um partido significa que ele vai ter que tomar uma série de atitudes difíceis de serem entendidas por quem esteja desfrutando o máximo de liberdade nesse fim do século 20. É uma coisa olhada assim meio como algo religioso e assustador. Me lembro que minha filha falou alguma coisa sobre isso, quando eu estava fazendo a campanha e fui fazer uma panfletagem. Ela disse: "Papai, você não fica com vergonha?" Existe no militante, no político que sai para as ruas, um nível de atuação que está muito próximo do ridículo. E também tem aquilo que você perguntou. Tem uma hora em que sinto necessidade de parar de falar. Chega um momento em que você começa a achar que a sua voz é um pouco chata [risos].


PLAYBOY — já estamos acabando. O que você acha que ficou daquela luta toda dos anos 60?


GABEIRA — O engraçado é ver como cada movimento tinha uma busca. O movimento de 1968 na Alemanha se apresentou como um movimento antiautoritário, contra o autoritarismo. Na França, era contra as mais variadas formas de repressão. No México, assumiu a forma de um movimento estudantil que é metralhado. No Brasil, uma luta contra a ditadura. Nos Estados Unidos, a luta era contra a guerra do Vietnã e o racismo. E já vinha paralelamente nos Estados Unidos o movimento hippie, que chegou ao Brasil alguns anos depois. Quando as idéias do movimento hippie chegaram no Brasil — até, registro isso no meu livro O Que É Isso, Companheiro? — elas eram uma espécie de negação da luta armada, da militância. O movimento hippie era entendido, no Brasil, como uma maneira de você aderir ao sistema. A gente achava que aquilo era uma forma com que os americanos propunham uma rebeldia inconseqüente. Se você for examinar hoje as conseqüências para o Brasil e para a América Latina das aspirações hippies e das aspirações dos revolucionários socialistas, você vai ver que, de uma certa maneira, os hippies influenciaram até mais.


POR GUILHERME CUNHA PINTO

FOTOS SÉRGIO DUTTI


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2 Comments


Juliana Damasceno
Juliana Damasceno
Jul 29, 2021

Parabéns pelo trabalho, meu caro!

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Inside Playboy Brasil
Inside Playboy Brasil
Jul 29, 2021
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Muito obrigado, Juliana. 🤗

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