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FIDEL CASTRO | AGOSTO, 1985

Playboy Entrevista

Uma conversa franca com o polêmico líder de Cuba

sobre o reatamento com o Brasil, Malu Mulher, revolução, ditadura, Reagan e um pouco de sua misteriosa vida pessoal.


Raros líderes políticos mundiais, vivos ou mortos, ocuparam tão longamente o palco da História quanto o presidente de Cuba, Fidel Castro, cuja revolução, em 1959, eletrizou o mundo, influenciando legiões de pessoas em vários continentes por toda a década seguinte, desencantando outros tantos nela e nos anos 70 e 80 e trazendo atrás de si, desde o início, uma raramente igualada carga de paixão e polêmica. As palavras e atos de Fidel Castro, ao lado desse efeito geral, tiveram o condão específico de levar ao paradoxismo de irritação sete presidentes dos Estados Unidos, tumultuando, a partir de sua pequena ilha, a política externa de seu enorme e poderosíssimo vizinho – a maior superpotência do globo.


É evidente que, mais ainda, a política de Cuba tem sido influenciada pelas pressões dos Estados Unidos – e isso explica a insistência, a quase obsessão de Fidel Castro em falar de seu inimigo, o governo americano, ao longo de praticamente toda a entrevista que concedeu a PLAYBOY, como, aliás, o presidente cubano costuma fazer em outras entrevistas e em seus discursos.


Aos 58 anos, Fidel exibe a mesma energia com que liderou, em 1959, seu exército de camponeses, operários e intelectuais na derrubada do regime corrupto e decadente do ditador Fulgencio Batista. Nesta entrevista à PLAYBOY – uma das mais longas e mais abrangentes de toda sua vida – o líder cubano dispara sua metralhadora giratória, hoje carregada com alguns toques de brilhantismo e ironia, contra o presidente americano Ronald Reagan, seu alvo predileto; o capitalismo; as ditaduras latino-americanas; o regime de segregação racial da minoria branca na África do Sul, o apartheid; a dívida externa do Terceiro Mundo e muitos outros temas atuais, enquanto, com prodigiosos malabarismos dialéticos, defende incondicionalmente o maior aliado de Cuba, a União Soviética.


A tarefa de entrevistar uma personalidade tão rica, conhecida e complexa quanto o presidente cubano coube, inicialmente, a uma dupla especial: o deputado democrata americano Mervyn M. Dymally, membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, e o dr. Jeffrey M. Elliot, professor de Ciência Política. Numa etapa posterior, PLAYBOY enviou à ilha o especialista em assuntos cubanos Kirby Jones, para complementar a entrevista.


O trabalho da equipe incursionou também pela pessoa Fidel Castro – e o presidente cubano permitiu-se a exceção raríssima de falar um pouco de si mesmo, de sua preocupação em manter a forma física, de amizades pessoais, de mergulhos ao largo de ilhotas espalhadas ao redor de Cuba. Voltou também à velha questão de sua barba, lembrando, antes de começar a gravar a entrevista, que nos seus tempos de guerrilheiro em Sierra Maestra as barbas dos rebeldes cresceram por falta de tempo e de necessidade de fazê-las, e com o tempo acabaram servindo como uma forma a mais de identificar eventuais espiões da ditadura infiltrados entre os rebeldes. Barba curta, então, em suspeita.


A realização da conversa exigiu uma enorme logística, apropriada para um homem voluntarioso e praticamente incansável como Fidel – capaz, como ele próprio conta a uma certa altura da entrevista, de trabalhar às vezes 40 horas seguidas. Elliot e Dymally lembram, não sem razão, que “poucas entrevistas poderiam ser de feitura tão tumultuada como nossa maratona de oito dias com Fidel Castro. Não é de admirar que um certo documentário feito na década de sessenta sobre a frustração de uma equipe de filmagem diante de uma entrevista prometida e não concedida por ele tenha sido intitulado Esperando por Fidel”.


De fato. A concordância de Fidel em falar a PLAYBOY pela segunda vez – a primeira entrevista foi concedida por ele dezoito anos antes, em 1967, em uma época e em circunstâncias completamente diferentes foi precedida por dois encontros com Dymally, realizados com grande antecedência. Em junho de 1984, Dymally acompanhou o reverendo Jesse Jackson – então um aspirante a indicação presidencial pelo Partido Democrata nas eleições americanas de novembro daquele ano – a Cuba. Como resultado de seu encontro com Jackson, Fidel ofereceu-se para libertar 27 prisionei­ros políticos cubanos e 22 americanos que tinham sido presos por supostamente ingres­sar de forma ilegal em águas territoriais cu­banas ou por tráfico de drogas. Em dezem­bro de 1984, Dymally propôs uma entre­vista a ser desenvolvida em profundidade — e Fidel Castro concordou. Dymally en­tão sugeriu o dia 21 de março de 1985 co­mo data, e Fidel Castro também concordou. Ao chegar à capital cubana, entretanto, a equipe de PLAYBOY começou a enfrentar uma verdadeira maratona de paciência. Re­cebidos no aeroporto pelo ministro das Rela­ções Exteriores cubano, Alfredo Ramírez, Dymally, Elliot e Gorgoni foram aconselha­dos a permanecer no hotel, pois a qualquer momento seriam chamados por Fidel.


Doce ilusão. Dez horas depois, eletriza­dos pela tensão da espera, nossos amigos receberam, afinal, um telefonema: Fidel não poderia atendê-los naquela noite, e a entre­vista ficava transferida para o dia seguin­te, em horário a ser confirmado. A partir dessa comunicação, iniciou-se uma verda­deira batalha contra o relógio, resumida a seguir, sob a forma de diário:


"Sábado. Acordamos às 7 da manhã, achando que seríamos chamados logo cedo. Às 11, informam-nos que a entrevista não começará antes de uma da tarde e que orga­nizaram um tour da cidade para nós, no meio tempo. Fomos e voltamos apressados. Às sete da noite, o ministro Ramírez nos avisa que Fidel nos receberá ainda naquela noite, mas não para a entrevista. Será ape­nas uma sessão de apresentações. Seríamos apanhados às 8 horas. Às 11, avisam-nos que Fidel está pronto."


"Somos levados a sua sala. Fidel é alto, esguio e elegante, em seu uniforme habi­tual, com botas irrepreensivelmente engra­xadas. Através de uma intérprete — toda a entrevista foi concedida em espanhol — ele levanta uma série de questões sobre nosso projeto. Explicamos tudo de novo, e ele diz que dará a entrevista. Mas só no dia se­guinte, domingo."


"Domingo. Acordamos cedo outra vez. Novamente em vão. Apesar de termos enca­recido a Ramírez nossa urgência — Dymally tinha que estar em Washington ter­ça-feira para votar como deputado na ses­são da Câmara que discutiria o projeto de construção dos mísseis MX —, a entrevista ficou para o dia seguinte."


"Segunda. Já não agüentamos mais a co­mida do hotel. Não vamos a restaurantes na cidade com medo de perdermos o bendito telefonema. Às 7 da noite, recebemos a visita do principal assessor de Fidel, o dr. José Ramón Myard Barruecos, "Chomy" para os íntimos. Ele se desculpa pelo presidente, 'que anda muito ocupado', e promete que seremos recebidos ainda naquela noite. Afi­nal, às 11 da noite, chegamos ao palácio presidencial e começamos a entrevista, que varou a madrugada. Mas era apenas a pri­meira sessão."


"Terça. Dymally voou até Washington, votou contra a adoção dos mísseis MX e vol­tou a Havana.


"Quarta. Nova espera."


"Quinta. Continua a entrevista, sempre atravessando a madrugada."


"Sexta. Às 11 da noite, começamos a última sessão da entrevista, que se estendeu até as 4 da manhã. Terminamos. Tínhamos um total de 25 horas de gravação."


Do resultado final, foram suprimidos al­guns trechos em que Fidel Castro discutia pormenores um tanto distantes do leitor brasileiro, como a política interna de Granada e sua relação com a invasão militar america­na da ilha, em 1983; questões de política interna do Afeganistão relacionadas com a invasão soviética de 1979; ou especificidades referentes ao comportamento da imprensa americana.


Para a complementação da entrevista com temas especificamente brasileiros, PLAY­BOY ainda valeu-se do jornalista e deputado estadual (PMDB-SP) Fernando Morais, autor da primeira grande entrevista com Fi­del Castro na imprensa brasileira — na re­vista Veja, em julho de 1977 —, autor do best-seller A Ilha, sobre a vida em Cuba, e que realizou em julho sua décima segunda viagem à ilha, para participar de um congresso internacional sobre a questão da dívi­da externa dos países do Terceiro Mundo. Um exaustivo esforço que, seguramente, valeu a pena.


PLAYBOY — Todos conhecem o homem público Fidel Castro, mas poucos conhe­cem o indivíduo. Por isso, gostaríamos de iniciar esta entrevista com algumas perguntas pessoais. Após 26 anos no cen­tro da História e de muita controvérsia, o que ainda motiva Fidel Castro?


FIDEL CASTRO — É uma pergunta difícil. Prefiro começar pelas coisas que não me motivam: dinheiro não me motiva; bens mate­riais não me motivam. Da mesma forma, o desejo de glória, fama e prestígio não me motiva. Penso, realmente, que as ideias me motivam. Ideias e convicções é que impelem o homem à luta. Quando se é verdadeiramente devotado a uma ideia, fica-se cada vez mais convencido e com­prometido, com o passar dos anos. Creio que o desprendimento pessoal cresce; o espírito de sacrifício cresce. Gradualmen­te, renunciamos ao orgulho pessoal, à vai­dade e a todas as coisas... A todos aqueles elementos que, de uma forma ou de ou­tra, existem em todos os homens. Quem não se protege dessas vaidades fica convencido e passa a acreditar que é insubstituível ou indispensável, acaba fas­cinado por tudo: a riqueza, a glória. Eu tenho estado em guarda contra essas coi­sas. Acho que desenvolvi uma filosofia sobre a importância relativa do homem, o valor relativo dos indivíduos, e a convicção de que é o povo, e não o homem, que faz a história, a ideia de que não pos­so chamar a mim os méritos de todo um povo. Uma frase de José Martí [herói na­cional de Cuba] deixou-me uma impres­são profunda e indelével: "Toda a glória do mundo cabe num grão de milho".


PLAYBOY — Então o senhor não acredi­ta que certos homens são destinados à grandeza pessoal? Tudo é apenas uma questão de tempo e circunstância?


FIDEL — Isso mesmo. Vou lhe dar al­guns exemplos. Se Lincoln vivesse hoje, poderia ser um mero fazendeiro nos Es­tados Unidos, e ninguém ouviria falar dele. Foi o tempo em que ele viveu, a so­ciedade em que conviveu, que tornaram Lincoln possível. Se George Washington tivesse nascido 50 anos depois da independência dos Estados Unidos, poderia ser um desconhecido, o que também po­deria acontecer se ele tivesse nascido 50 anos antes. Lênin, com toda a sua ex­traordinária capacidade, poderia ser des­conhecido também, se tivesse nascido em outro tempo. Veja o meu caso, por exemplo. Se eu não tivesse aprendido a ler e escrever, que papel teria desempenhado na histó­ria de meu país, na Revolução? Onde eu nasci, entre centenas de crianças, apenas eu, meus irmãos e minhas irmãs tivemos a chance de estudar além das primeiras séries. Quantas pessoas havia lá com as mesmas ou talvez melhores qualidades para fazer o que eu fiz, se tivessem ti­do a oportunidade de estudar? Um belo poema espanhol diz que freqüentemente há um gênio adormecido nas pessoas, esperando uma voz que gri­te "Levanta-te e anda!" Isso é profunda­mente verdadeiro. E por isso creio que as qualidades necessárias ao líder não são excepcionais: elas são encontradas no seio do povo. Por que eu digo isso? Porque notei, sobretudo no Ocidente, uma grande tendência de associar acon­tecimentos históricos a indivíduos. A ve­lha teoria de que o homem faz a História. E também há no Ocidente a tendên­cia de ver o líder de qualquer país do Terceiro Mundo como caudilho. Há um certo estereótipo: líder é igual a caudilho. A partir disso, existe a tendência de maximizar o papel do indivíduo. Eu mes­mo vejo isso nas coisas que vocês dizem de nós: a Cuba de Fidel, Fidel fez isso, Fi­del fez aquilo... Quase tudo neste país é atribuído ao Fidel: o comportamento de Fidel, as perversidades de Fidel. Esse ti­po de mentalidade é comum no Ocidente; e, infelizmente, muito difundido. Pa­rece-me ser uma abordagem errônea dos acontecimentos históricos e políticos.

PLAYBOY — Mesmo achando que o Oci­dente amplia o papel do indivíduo, não é fato que o senhor está sob intensa ob­servação aqui em Cuba? O senhor não vi­ve numa espécie de aquário?

FIDEL — Na verdade, nunca penso sobre isso. Nunca tenho consciência disso. Pode haver algo que explique a situação: mi­nhas atividades são raramente divulgadas pela imprensa. Eu posso fazer um monte de coisas durante 15 dias, mas nada apa­rece nos jornais. Você deve ter notado que, de uma forma ou de outra, todos os governos têm uma assessoria de impren­sa. Tudo que o líder faz diariamente é pu­blicado nos jornais e informado na televi­são e no rádio. Em certo sentido, cons­troem-se torres de marfim e aquários em torno dessas pessoas. Eu não criei um aquário para mim. Eu visito fábricas, esco­las, cidades e províncias. É verdade que eu fazia mais visitas antes, quando tinha mais tempo. Mas nunca houve protocolo ou solenidade, como é comum acontecer aos líderes de muitos países. No entanto, aonde vou forma-se sempre uma multi­dão. Há quanto tempo não vou a um restaurante? Ando querendo ir a um chinês, recém-inaugurado na parte velha de Ha­vana. Mas, se for, terei que comer sob as vistas do povo, que ficará olhando da rua. São os ossos do meu ofício. Mas eu consi­go superá-los. Quando quero descansar, relaxar, vou para o mar, para uma ilhota, mergulhar. O fundo do mar é lindo, cheio de peixes e corais. Conheço essas ilhotas desde estudante, quando nin­guém tinha o hábito de mergulhar. Tinha aquelas histórias de tubarão...

PLAYBOY — Considerando todas as via­gens que o senhor já fez em Cuba, como definiria a relação do povo com Fidel Castro?

FIDEL — Acho que o sentimento popular é de familiaridade, confiança e respeito. É uma relação muito íntima. O povo me vê como um vizinho, como mais uma pes­soa; não se sente esmagado por cargos e homens públicos. Ninguém me chama de Castro, só de Fidel. Acredito que a fami­liaridade baseia-se, entre outras coisas, no fato de jamais termos mentido ao po­vo. Nossa Revolução tem sido honesta. O povo sabe que mantemos nossa palavra. E não só os cubanos de Cuba, os de Miami também. Ou seja, mesmo aqueles que não têm afeto por nós, mas que confiam em nossa palavra. Eles sabem, desde o início da Revolução, que não haverá tru­ques, traições ou armadilhas. Quando lhes dissemos que poderiam partir, eles sabiam que podiam, mesmo sendo os nos­sos piores inimigos, mesmo sendo terro­ristas. Somos como os árabes do deserto, que abrigam os inimigos em sua tenda e nem olham a direção em que partem. A base disso, claro, é o fato de a Revolução nunca ter mentido. Nunca! É uma tradi­ção que data da guerra [contra a ditadura de Fulgentio Batista]. Durante todo o con­flito, todas as informações que veicula­mos sobre baixas e munições capturadas foram absolutamente exatas. Não tenta­mos acrescentar sequer um rifle ou uma bala. Nem mesmo a guerra justifica men­tiras ou o exagero de uma vitória.

PLAYBOY — O senhor tem muitos ami­gos íntimos? Um homem na sua posição pode ter amigos?

FIDEL — Bem, tenho muitos amigos não cubanos, que conheci em diversas circunstâncias. Alguns são destacadas perso­nalidades: médicos, escritores, cientistas, cineastas, amigos estrangeiros. Mas os meus amigos da Revolução são todos os meus companheiros revolucionários. Todos que trabalham comigo, todos que têm responsabilidades importantes no Es­tado. Temos um tipo de relacionamento amigável. Na verdade, não tenho o que você chamaria de um círculo de amigos. Não tenho o costume de encontrar sem­pre o mesmo grupo de oito ou dez ami­gos. Um dia visito um amigo, depois visi­to outro; com uns converso mais por cau­sa das relações de trabalho. De qualquer jeito, tento evitar ter apenas um grupo de amigos, pois isso não seria bom, em função das minhas responsabilidades.

PLAYBOY — O que queremos saber é se as pessoas se intimidam. Elas conseguem discutir com o senhor?

FIDEL — De modo geral, qualquer com­panheiro do partido ou do Estado que trabalha comigo pode falar abertamente sobre qualquer problema ou preocupa­ção que tenha. Em geral, minhas rela­ções com os companheiros são excelen­tes. Mas, já que você me perguntou, de­ve haver duas ou três pessoas que traba­lham comigo que me acham uma dor de cabeça. O companheiro Chomy, que está aqui conosco, é um ótimo exemplo. Ele tem a desagradável responsabilidade de me mostrar a lista das pessoas que tenho que ver, audiências a conceder... Ele é a pessoa com quem posso reclamar e res­mungar. [Fidel e seu secretário José Ramón Myard Barruecos, o "Chomy", riem. Momentos depois, Chomy sai da sala e, en­quanto Fidel desenvolve um raciocínio, o gravador usado por seus assessores para re­gistrar a entrevista dá um clique, indican­do o fim da fita. Exasperado, Fidel grita por Chomy, que volta correndo.] Normalmente, não me deixo obcecar pelos problemas. Se eu não tivesse senso de humor, se não pudesse brincar com os outros, não poderia manter minha po­sição. Porque eu também me faço as mes­mas perguntas que as outras pessoas se fazem. Como anda a minha pressão? Co­mo vai meu coração? Como tenho conse­guido aguentar tudo isso há tantos anos? As vezes eu vejo gente que eu sei, na hora, que vai morrer cedo. São amargos, tensos e acabados. Mas não é o meu ca­so. Os exercícios e uma alimentação mo­derada também têm ajudado. E a nature­za e a sorte também, por que não?

PLAYBOY — Ao contrário da maioria dos líderes políticos, o senhor prefere traba­lhar à noite, e freqüentemente até de ma­drugada. Por que esse horário?

FIDEL — Num dia como hoje, de longas conversas, a agenda vai para o espaço, e sai inteiramente do controle. Isto é co­mum acontecer. Cuba recebe muitos visi­tantes. Se eu estabelecesse datas e horá­rios rígidos para audiências solicitadas através dos canais competentes, eu esta­ria preso o tempo todo. Eu não gosto de encontros puramente protocolares, que são uma perda de tempo. Prefiro conver­sar coisas interessantes com os visitantes, e não gosto de ficar olhando o relógio. Geralmente, eu digo às pessoas que organizam visitas: "Marque a data. Só quero saber onde estão e quando estarão livres os visitantes". Claro que isso tem seus in­convenientes. Muitas vezes me dizem: "O ministro Fulano parte amanhã". Nes­ses casos, sou obrigado a recebê-lo à noi­te, às vezes muito tarde. Por outro lado, ninguém atrapalha mais a minha vida do que os entrevistadores e os jornalistas em geral...

PLAYBOY — O senhor já pensou em se casar, ter família e se aposentar?

FIDEL — Sempre fui alérgico às colunas de mexericos sobre a vida pessoal dos homens públicos. Acredito que é uma das poucas in­timidades a que as pessoas têm direito. É por isso que mantenho discrição. Um dia, as coisas sobre as quais você pergunta serão conhecidas, mas não com a minha coopera­ção. Posso lhe dizer que vai tudo perfeita­mente bem com minha vida pessoal. Não há problemas. [Sorrisos.]

PLAYBOY — Mais uma pergunta pessoal. O senhor é conhecido como um dos últi­mos grandes oradores, com discursos re­tumbantes para estádios cheios de gente. É reconhecidamente um ótimo comuni­cador. Há alguma diferença entre a figu­ra pública e o indivíduo?

FIDEL — [Rindo.] Tenho um grande ri­val como comunicador: Reagan. Mas dei­xe eu dizer uma coisa que as pessoas tal­vez não acreditem: tenho medo de palan­ques. Quer dizer, passo por um momento de tensão sempre que estou para falar em público. Não gosto muito de fazer discursos. Considero isso uma responsa­bilidade, uma tarefa delicada, uma meta a ser atingida. Os grandes comícios são di­fíceis. Às vezes tenho as ideias básicas — uma espécie de roteiro mental das ideias essenciais — e mais ou menos a ordem em que vou apresentá-las. Mas desenvol­vo os tópicos, as frases e as formas de ex­pressão ao longo do próprio discurso. As pessoas gostam mais assim. Acho que elas gostam de ver a luta do homem com as ideias e palavras.

PLAYBOY — Vamos falar sobre um cres­cente problema, que o interessa de per­to: a tremenda dívida da América Latina com os países ocidentais, especialmente os Estados Unidos. O senhor acha que es­ses países têm a responsabilidade moral de pagar seus credores?

FIDEL — Há 20, 25 anos, a América Latina não tinha dívida. Hoje, deve 360 bilhões de dólares. O que aconteceu com esse di­nheiro? Parte foi gasta em armas. Na Ar­gentina, por exemplo, dezenas de bilhões de dólares foram usados em gastos milita­res, o que também ocorreu no Chile e em outros países. Outra parte foi desviada, roubada e metida nos cofres de bancos es­trangeiros, na Suíça e nos Estados Uni­dos. Sempre que surgia um boato de des­valorização, as pessoas mais ricas, por des­confiança, trocavam seu dinheiro por dó­lares e o depositavam nos Estados Uni­dos. Outra parte do dinheiro foi esbanja­da. Outra foi usada por alguns países pa­ra pagar os altos preços do combustível. E, finalmente, outra parte foi gasta em vá­rios programas econômicos.

PLAYBOY — Mas, com todo o respeito, o senhor está evitando a pergunta. Será que essas nações não têm responsabilidade moral de pagar a dívida?

FIDEL — Segundo vocês, os países têm res­ponsabilidade moral. Quando vocês fa­lam em países, vocês estão falando em povo: trabalhadores, agricultores, estu­dantes, classe média — médicos, enge­nheiros, professores, profissionais libe­rais em geral — e em outros setores so­ciais. O que o povo ganhou com esses bi­lhões que foram gastos em armas, deposi­tados em bancos americanos, desperdiça­dos e roubados? O que o povo ganhou com a supervalorização do dólar e com a taxa de juros? Não ganhou absolutamen­te nada. E quem tem que pagar a dívida? O povo: trabalhadores, profissionais libe­rais e agricultores. Todos terão que se ar­ranjar com salários reduzidos, rendimen­tos reduzidos, e fazer enormes sacrifícios. Qual é a moralidade de impor medi­das que resultem em banhos de sangue para forçar o povo a pagar a dívida, co­mo foi o caso da República Dominicana, onde as medidas do FMI resultaram em dezenas de mortos e centenas de feri­dos? O povo tem que protestar, pois ele está sendo obrigado a pagar uma dívida que não contraiu e que, praticamente, não lhe trouxe qualquer beneficio.

PLAYBOY — O senhor está dizendo que os países do Terceiro Mundo deveriam simplesmente cancelar suas dívidas?

FIDEL — Mesmo se eles quisessem, o pa­gamento é uma impossibilidade econô­mica, política e moral. Forçar o povo a pagar essa dívida seria praticamente sa­crificá-lo, matá-lo. Qualquer processo democrático que tente impor essas restri­ções e esses sacrifícios está fadado à ruí­na. A dívida simplesmente não pode ser paga. "Liberdade ou morte." Hoje, a es­colha dos governantes da América Lati­na está entre o cancelamento da dívida e a morte política.

PLAYBOY — Deixando de lado as pres­sões que os governos latino-americanos recebem do povo, o senhor afirma tam­bém que seria mais moral cancelar as dívi­das do que pagá-las. O senhor acha real­mente mais moral deixar que as pessoas que emprestaram o dinheiro sofram as conseqüências?

FIDEL — Sim. É muito mais normal cance­lar a dívida e beneficiar bilhões de pes­soas. E não estou falando só sobre a dívi­da da América Latina. Estou falando da Ásia e da África, onde mais de 70% da humanidade estão sendo afetados. Isso é muito mais moral do que gastar esse di­nheiro com armamentos: armas quími­cas, nucleares, biológicas; e com porta-aviões, navios de guerra, mísseis estraté­gicos e armas de "Guerra nas Estrelas". O que é verdadeiramente imoral, um ato de má-fé, praticamente uma traição à hu­manidade, é forçar o povo a passar fo­me, viver na miséria e nas piores condi­ções materiais, educacionais, culturais e sanitárias, para poder gastar anualmente um trilhão de dólares em armas e ativida­des militares. Isso é o que está sendo gas­to no preparo de uma catástrofe, que matará centenas de milhões de pessoas e, talvez, acabe com a humanidade.

PLAYBOY — O senhor acredita honesta­mente que isso é realista, que os credores devem simplesmente engolir as perdas re­sultantes do cancelamento da dívida?

FIDEL — Não estou sugerindo que os ban­cos percam seu dinheiro. Não estou suge­rindo que os contribuintes paguem mais impostos. Estou sugerindo algo muito simples: usar um pequeno percentual dos gastos militares — que não excederia 12% — para permitir que os governos das nações credoras possam assumir as dívidas [do Terceiro Mundo] com seus próprios bancos. Com isso, nem os ban­cos nem os depositantes sairiam perden­do. Ao contrário, os bancos teriam esse dinheiro assegurado. Afinal, quem pode garanti-lo melhor que os ricos e podero­sos Estados industrializados dos quais as nações ocidentais são tão orgulhosas? Elas se consideram capazes de sonhar e travar "Guerras nas Estrelas", mal avaliando os riscos envolvidos num conflito termonuclear que destruiria, apenas no primeiro minuto, muito mais do que de­vem a seus bancos. Em suma, se a ideia do suicídio universal não assusta essas na­ções, por que teriam medo de algo tão simples quanto o cancelamento da dívida do Terceiro Mundo? É apenas uma ope­ração contábil, que não fechará uma úni­ca fábrica, não interromperá nenhum na­vio em sua rota, não interferirá em se­quer um contrato de venda no mercado. Ao contrário, o nível de emprego, o co­mércio, bem como a produção e o lucro da indústria e da agricultura aumenta­riam em toda parte. Não vai machucar ninguém. Os únicos efeitos adversos re­cairiam sobre os gastos militares.

PLAYBOY — Na sua opinião, o que aconte­cerá se o mundo industrializado se recu­sar a cancelar a dívida?

FIDEL — Se não se chegar a uma solução ne­gociada, o Terceiro Mundo imporá uma solução: o cancelamento unilateral. Os países industrializados não farão qual­quer ação: bloqueios econômicos, inva­sões de países do Terceiro Mundo, redivi­são dos recursos e territórios do mundo, comuns em outros séculos, são simples­mente impossíveis hoje. Qualquer pessoa racional entende isso. Não se pode inva­dir dez países, bloquear 100 nações.

PLAYBOY — Como não parece provável que o mundo industrializado siga o cami­nho que o senhor está indicando, qual se­rá, a seu ver, o resultado final?

FIDEL — Se quisermos ser loucos, se quisermos continuar com a corrida arma­mentista e manter essa ordem econômi­ca injusta, seguiremos pelo caminho que leva a uma penúria em alta escala, a grandes conflitos sociais e — o que é ain­da pior, e muito provável — a um gran­de conflito nuclear, até que todos, loucos e sãos, sejam varridos da face da Terra. Aliás, também pode-se dizer que agora todos os loucos estão no poder, mas nem todos os que governam são loucos.

PLAYBOY — Este ano, o senhor já deu di­versas entrevistas, além desta nossa gran­de conversa. Por quê? E por que razão está falando conosco agora?

FIDEL — É verdade que dei muitas entre­vistas nos últimos meses. Achei que seria bom fazer isso agora. Não estou tentan­do lançar uma campanha de propagan­da, nem, muito menos, melhorar minha imagem. Não estou concorrendo a ne­nhum cargo nos Estados Unidos. Faço is­so por que estamos vivendo um momen­to especial no campo internacional. Tem havido, por exemplo, tensões na América Central, e creio que há uma situação real­mente crítica, tanto em termos econômi­cos quanto sociais, na América Latina. Existe uma grande preocupação interna­cional sobre a corrida armamentista e o perigo da guerra. Ao mesmo tempo, há conflitos no sul da África. Se esses proble­mas forem mais bem compreendidos, po­de haver mais chances de solucioná-los.

PLAYBOY — O senhor pode considerar o assunto anedótico, mas nós assistimos a sua entrevista ao repórter Dan Rather, da rede de televisão americana CBS. Co­mo ele, estamos curiosos em saber por­que o senhor não compareceu aos fune­rais do líder soviético Constantin Cher­nenko. E por que o senhor não respon­deu essa pergunta a Rather?

FIDEL — Vejam, estive presente nos fune­rais de Brejnev. Fui ao funeral de Andro­pov. Estive nos dois últimos congressos do Partido Comunista soviético. Ou seja, compareci aos principais eventos desse ti­po ocorridos na União Soviética. Deve-se considerar que a distância entre Cuba e a URSS é muito grande. Os outros paí­ses socialistas estão a horas de Moscou: às vezes menos. Agora, a morte de Cher­nenko — homem por quem eu tinha grande estima, que eu sabia ser amigo de Cuba — ocorreu numa época em que eu tinha um enorme volume de tra­balho. No dia de sua morte, acabávamos de encerrar um Congresso Feminino, ao qual devotei vários dias de intensa ati­vidade. E vou lhes dizer mais uma coisa, já que vocês estão me forçando: entre o Congresso da Federação, onde fiz o discurso de encerramento — numa noite de sexta-feira — e as oito da manhã de domingo, trabalhei 42 horas consecuti­vas. Sem qualquer descanso. E como eu tinha que receber muitos visitantes — e vocês próprios são testemunhas de que não poupo tempo nem esforço para rece­ber visitas, seja qual for sua coloração polí­tica — decidi pedir a meu irmão Raúl que me representasse no enterro. Precisamen­te em função de nossa confiança mútua os soviéticos entenderam meu gesto.

PLAYBOY — O que os soviéticos sentem pelo senhor é uma coisa, mas não é se­gredo que, nos últimos anos, as atitudes de Washington têm endurecido. O presi­dente Ronald Reagan lhe caracteriza co­mo um cruel ditador militar, que gover­na Cuba com mão-de-ferro. E muitos americanos concordam com ele. Como o senhor reage?

FIDEL — Vamos pensar sobre esta pergun­ta. Ditador é quem toma decisões arbitrá­rias, por conta própria, quem está acima de todas as instituições, acima da lei e não é sujeito a qualquer controle. Se ser ditador é governar por decreto, pode-se usar esse argumento e acusar o papa de ditador. Suas amplas prerrogativas no governo do Vaticano e da Igreja Católica são bem conhecidas. Não tenho essas prerrogativas. Mas ninguém pensaria em chamar o papa de ditador. O presidente Reagan pode tomar deci­sões terríveis sem consultar ninguém! Al­gumas vezes ele passa por certas formalidades, tais como conseguir a aprovação do Senado para a nomeação de um em­baixador. Mas Reagan pode ordenar uma invasão, como a de Granada, ou uma guerra suja, como a da Nicarágua. Ele pode até usar os códigos guardados na maleta que carrega sempre para de­sencadear uma guerra termonuclear que poderia significar o fim da raça humana. Se não, para que a maleta? Por que ele tem os códigos? E por que tem sempre um assessor carregando a maleta? É de se supor que Reagan tomaria a decisão de desencadear uma guerra termonu­clear sem consultar o Senado ou o Minis­tério. E isso é algo que pode exterminar a humanidade. Nem mesmo os impera­dores romanos tiveram tanto poder.


PLAYBOY — Mas o senhor não governa, de fato, por decreto? Não é o senhor quem toma todas as decisões importan­tes do Estado?

FIDEL — Não. Eu não tomo decisões total­mente sozinho. Desempenho o papel de líder dentro de uma equipe. Em nosso país não há uma instituição similar à Pre­sidência dos Estados Unidos. Aqui, todas as decisões básicas, importantes, são ana­lisadas, discutidas e adotadas coletiva­mente. Não nomeio ministros e embaixa­dores, não nomeio nem mesmo o mais modesto funcionário, porque há um sis­tema para selecionar, analisar, identifi­car e nomear esses funcionários. Tenho, é verdade, alguma autoridade. Tenho in­fluência. Mas minha única prerrogativa real é falar ao Comitê Central, à Assem­bléia Nacional e ao povo. Este é o maior poder que tenho, e não aspiro a nenhum outro. Não quero e nem preciso de ou­tro. Essas são as condições de trabalho de um líder político em nosso país. Não creio que nenhuma delas confunda-se com a ideia de ditadura, ou ditador, que vem do verbo ditar — alguém que está sempre dando ordens. Não ajo assim, nem tenho poderes para tanto. Não dou ordens, argumento. Não governo por de­creto, e nem posso. Durante a guerra, conduzi um exérci­to, que é o que se tem que fazer numa guerra. Tem que haver esse tipo de responsabilidade — durante a Segunda Guerra Mundial, o general Dwight Eise­nhower, tinha o poder e a responsabilida­de de tomar decisões — mas, tão logo nosso movimento foi organizado, muito antes do ataque à guarnição de Moncoda, em 26 de julho de 1953 [primeira ten­tativa séria de derrubada da ditadura de Fulgencio Batista], passamos a ter lideran­ça coletiva. Mantivemos o princípio, e depois o implantamos no país. Honestamente, acho que o presidente dos Estados Unidos tem muito mais po­der, e muito mais condições de dar or­dens diretas e unilaterais. Se o poder de­le inclui algo tão monstruosamente antidemocrático, como ordenar uma guerra termonuclear, quem é mais ditador: eu ou o presidente dos Estados Unidos?

PLAYBOY — Mesmo assim, o que os ameri­canos percebem é a existência de uma acentuada diferença entre as liberdades pessoais no mundo ocidental e as desfru­tadas em Cuba.

FIDEL — Acho que os conceitos america­nos e cubanos de liberdade são muito di­ferentes. Por exemplo, há mais de 1 mi­lhão de crianças desaparecidas nos Esta­dos Unidos. Ao lado dos milionários, os EUA têm mendigos. Não temos nem crianças abandonadas nem mendigos sem lar. Os americanos sempre falam em liberdade. Desde a Declaração de Independência, os americanos não param de falar em liberdades. Nós também consideramos óbvio que todos os homens nascem iguais. Mas quando George Was­hington e os outros criaram os Estados Unidos, eles não libertaram os escravos. Até pouco tempo atrás, os atletas negros americanos não podiam jogar beisebol nas primeiras divisões. Mesmo assim, os Estados Unidos se dizem o país mais li­vre do mundo. O país mais livre do mundo também extermina seus índios. Os americanos mataram mais índios do que Buffalo Bill matou búfalos. Desde há muito, os ameri­canos se aliaram aos piores tiranos na Ar­gentina e no Chile, têm protegido a Áfri­ca do Sul e usado os piores assassinos do mundo para organizar a contra-revolu­ção. É esse o país da liberdade? Qual é a bandeira da liberdade que os Estados Unidos realmente defendem? Tudo bem, se alguém é comunista na América, quais são suas liberdades? Ele pode traba­lhar no Departamento de Estado em qualquer emprego público? Pode falar abertamente na TV? Em que jornais po­de escrever? Podemos ser criticados em Cuba, mas somos, ao menos, mais limpos do que os americanos, pois não pretende­mos ser os maiores libertários.

PLAYBOY — Na verdade, os comunistas podem falar abertamente nos Estados Unidos. Lá, as pessoas têm a liberdade de dizer o que querem.

FIDEL — Pode-se dizer o que quiser, mas não se tem onde dizer — a não ser que se pague. Quem não é proprietário de um jornal, ou de um império de comuni­cação, é ignorado. Eu li como um sena­dor direitista tentou comprar a CBS pa­ra demitir o Dan Rather. E Rather não é comunista. Mas querem calá-lo. Admito que existem brilhantes escritores e jorna­listas que escrevem contra e a favor do capitalismo, e que podem falar na TV. Mas um comunista que quer pregar o co­munismo, que quer mudar o sistema, não aparece nos grandes jornais nem nas principais estações de TV.

PLAYBOY — E em Cuba? Alguém pode escrever nos jornais contra o sistema?

FIDEL — Não, um contra-revolucionário não pode escrever em nossos jornais. Não pode escrever contra o nosso siste­ma. Mas é exatamente o mesmo que acontece nos Estados Unidos. Só que nós somos honestos, e admitimos o fato. Os americanos se dizem o melhor exemplo de liberdade que jamais existiu. Quando eu vir um comunista escrevendo no The New York Times ou no The Washington Post, ou falando na CBS, prometo abrir as portas de nossos jornais a todos os con­tra-revolucionários. Mas, primeiro, os americanos que dêem o exemplo.

PLAYBOY — Com certeza, o senhor sabe que há nos Estados Unidos candidatos comunistas a cargos políticos que podem falar livremente.

FIDEL — Sim. Permitem-lhes distribuir panfletos e fazer discursos. Mas eles não são cobertos pela imprensa, não podem participar de debates. O texto de seus discursos não é publicado.

PLAYBOY — Será que poderíamos ir ago­ra até a principal praça de Havana e criti­car Cuba?

FIDEL — Cuba é um dos lugares onde as pessoas são mais críticas. Qualquer visi­tante sabe que os cubanos falam aberta­mente. Eles criticam da manhã à noite. Ninguém é preso aqui por falar. Se fos­sem, todos estariam na prisão. As coisas não são como vocês imaginam. Além dis­so, o povo não quer outro partido. Este país tem tido uma educação política, uma educação revolucionária. As pes­soas podem falar o que pensam, a não ser que comecem a conspirar ou a orga­nizar planos terroristas...

PLAYBOY — Então, se nós fôssemos lá pa­ra fora e começássemos a falar contra o Partido...

FIDEL — Vão em frente, tentem. Vocês podem arranjar problemas! [Risos]

PLAYBOY — A história das relações entre Cuba e os Estados Unidos é muito ruim. Em que medida pioraram depois da pos­se de Reagan?

FIDEL — Consideravelmente. Ele, é claro, tem intensificado o bloqueio contra nós. Depois, ele acabou com as viagens de ci­dadãos americanos a Cuba, uma coisa que tinha sido restabelecida há muitos anos. Ele também tem exercido uma prá­tica tenaz e incessante de colocar obstácu­los a todas as operações econômicas e co­merciais de nosso país. Não sei quantas pessoas existem nos Estados Unidos en­carregadas de levantar informações so­bre todas as nossas transações econômi­cas e comerciais com o mundo ocidental, para tentar evitar a venda de nossos pro­dutos e bloquear os créditos a Cuba, in­clusive o reescalonamento da nossa dívi­da. Toda vez que nós renegociamos a dí­vida com os banqueiros, os Estados Uni­dos sacam documentos e os enviam a to­dos os governos e a todos os bancos. Os Estados Unidos não limitam seu blo­queio ao simples banimento de todo o comércio com Cuba. Banem até o comércio na área de medicina, o que é vergonhoso. Nem uma simples aspirina pode vir dos Estados Unidos, porque é proibido por lei. Nem remédios que poderiam salvar vi­das, nem equipamentos médicos, podem ser exportados para Cuba. E o comércio é proibido nos dois sentidos. Além disso, o bloqueio se expande pelo resto do mun­do, como parte de uma vergonhosa políti­ca de perseguição contra todas as ativida­des econômicas de Cuba. Os Estados Uni­dos só não interferem em nosso comércio com os outros países socialistas porque não podem. Esta é a verdade.

PLAYBOY — Uma pesada acusação foi fei­ta pelo secretário de Estado George Schultz, que afirma haver provas de uma conexão cubano-colombiana de dro­gas. Como o senhor reagiu a isso?

FIDEL — Um dos Dez Mandamentos diz: "Não levantarás falso testemunho". O go­verno Reagan devia ser lembrado disso constantemente. Acho que o Congresso e o povo americano merecem mais respeito. É absolutamente impossível que os Esta­dos Unidos e o Departamento de Estado tenham o mínimo farrapo de prova de uma coisa dessas. [Levanta e anda, zanga­do.] Acho, de fato, que isso é um método infame, sujo e desonesto de fazer política externa! Nos últimos 26 anos, Cuba não teve qualquer mácula nessa área. Primei­ro, porque a primeira coisa que a Revolu­ção fez no país, onde as drogas eram li­vremente consumidas, vendidas e produ­zidas, foi erradicar o problema. Foram tomadas medidas rigorosas para destruir plantações de maconha e punir pesada­mente todas as formas de produção e trá­fico de drogas. Desde a vitória da Revolu­ção, há 26 anos, nenhuma droga entrou no país. Nem dinheiro proveniente do tráfico. Segundo, durante todo esse tem­po, não tomei conhecimento de qual­quer caso de funcionário envolvido com negócios de drogas. Nenhum. Pergunto se pode-se dizer o mesmo nos Estados Unidos, ou em qualquer outro país lati­no-americano ou do Caribe, e no resto do mundo ocidental.

PLAYBOY — O secretário Schultz afirma que Cuba é tacitamente conivente com o tráfico de drogas, permitindo o sobrevôo de pequenos aviões de contrabandistas.

FIDEL — Olhe, nosso país é o lugar que os contrabandistas mais temem. Eles fazem tudo para evitar pousar em Cuba ou pa­rar em nossa costa, porque têm muita ex­periência das conseqüências e conhecem as rigorosas medidas adotadas no país. Nossa ilha tem um eixo leste-oeste no Caribe, com mais de mil quilômetros de ex­tensão, mas, em certos lugares, só tem 50 quilômetros de largura. É fácil cruzar essa faixa e, poucos minutos depois, es­tar de novo numa zona de jurisdição in­ternacional. Os radares freqüentemente detectam aeronaves aproximando-se ou deixando nosso território. Aviões-es­piões americanos fazem isso quase todo dia, mesmo sem entrar no espaço aéreo nacional. Com muita freqüência, os ame­ricanos fazem isso com aviões que voam a uma altitude de 30 mil metros, a 3.000 quilômetros por hora. Imagino que esses aviões não estejam carregando drogas. Pequenos aviões civis penetram cons­tantemente em nosso espaço aéreo, e não dão a menor atenção a nossos inter­ceptadores. Decidir alvejar um avião civil é um dilema sério, trágico. Não se pode saber quem está a bordo. Não é como um carro que pode ser parado na estra­da, identificado e revistado. Os ocupan­tes podem ser contrabandistas de dro­gas, mas também podem ser passageiros de um avião fora de rota. Podem ser fa­mílias, jornalistas, homens de negócios ou aventureiros — dos quais os Estados Unidos estão cheios — com medo de aterrissar e serem presos em Cuba. Apesar de estar bloqueada pelos Esta­dos Unidos, e não ter qualquer obriga­ção de cooperar com aquele país nesse ou naquele problema, Cuba tem sido um baluarte contra o tráfico de drogas no Caribe por uma questão de auto-respei­to, prestígio e retidão moral. Está certo, então, que o tratamento que recebemos em troca seja a acusação de que Cuba es­tá envolvida com drogas?

PLAYBOY — A que o senhor atribui tantas acusações graves? Por que razão o se­nhor acha que os líderes americanos — e até certo ponto o povo dos Estados Uni­dos — têm uma imagem tão negativa de Cuba e de sua pessoa?

FIDEL — Em primeiro lugar, basicamen­te, não é uma atitude negativa contra Cu­ba e contra Castro. Trata-se, fundamen­talmente, de uma atitude anti-socialista, anti-revolucionária e anticomunista. O fa­to é que, nos últimos cem anos, nos Esta­dos Unidos, na Europa e no resto do mundo, esse sentimento anticomunista tem sido instilado nas massas, sob todas as formas possíveis. A doutrinação anti­comunista começa praticamente quando a criança nasce. O mesmo acontecia em nosso país, exatamente como nos Esta­dos Unidos. Uma permanente campa­nha em todos os jornais, revistas, livros, filmes, televisões, rádio e até em historie­tas infantis, tinha o mesmo objetivo: criar as ideias e preconceitos mais hostis ao socialismo. Estou me referindo, é cla­ro, à revolução socialista, não à tão gasta palavra socialismo adotada por tantos par­tidos burgueses como uma coisa elegan­te, numa tentativa de vestir o capitalismo antiquado com notas roupagens.

PLAYBOY — Os críticos no governo Reagan argumentariam que o senhor precisa usar medidas punitivas e cruéis para impor a sua forma de sistema socialista em Cuba.

FIDEL — Quanto à acusação de cruelda­de, acho que as pessoas mais cruéis do mundo são as indiferentes à injustiça social, à discriminação, à desigualdade, à exploração. Gente que não reage quan­do vê uma criança descalça, um mendigo na rua, ou milhões de pessoas famintas. Acho que quem passou a vida lutando contra a injustiça e a opressão, ajudando os outros, lutando por eles, pregando e praticando a solidariedade, não pode ser cruel. Diria que realmente cruel é uma so­ciedade — a capitalista, por exemplo, que não só é intrinsecamente cruel, como tam­bém força o homem a ser cruel. O socialis­mo é exatamente o oposto. Por definição, expressa a confiança e a fé no homem, na solidariedade entre os homens e na fraternidade humana, não no egoísmo, na am­bição, na competição e na luta, que são as próprias origens da crueldade.

PLAYBOY — Voltando à imagem que os Estados Unidos fazem de Cuba...

FIDEL — Realmente poderia se fazer um estudo sobre quanto espaço, quanto pa­pel e quantos meios de comunicação têm sido usados contra Cuba. Mas a despeito de seus imensos recursos tecnológicos e seus veículos de comunicação de massa — e digo isso com tristeza —, os america­nos são muito mal-informados sobre a realidade do Terceiro Mundo, da Ásia. da África e da América Latina. E isso é, na realidade, a raiz desses sentimentos anti-Cuba e anti-Castro. Mas gostaria de lembrá-lo de uma coisa: há vinte anos, di­ziam-se as piores coisas sobre a China, so­bre Mao Tsé-tung, o comunismo chinês e as ameaças que a China representava. Hoje isso não acontece mais. A imprensa já não publica artigos insultuosos contra o governo chinês e a República Popular da China. Muito pelo contrário. Há exce­lentes relações comerciais e um comércio florescente. Mas esse processo não começou na China de hoje. Começou no tem­po de Mao e da Revolução Cultural, quan­do um tipo extremo de comunismo era aplicado na China. Até Reagan já visitou a Grande Muralha, e tudo mudou. E por quê? Vocês podem me dizer? É que agora há dois tipos de comunistas: os comunis­tas maus e os comunistas bons. Evidente­mente, fomos classificados no primeiro ti­po, e eu sou o protótipo do comunista mau. E veja, o Mao Tsé-tung esteve incluí­do nessa categoria um tempão.

PLAYBOY — O que o senhor precisaria fa­zer para mudar sua imagem de comunis­ta mau para comunista bom?

FIDEL — Infelizmente, se para mudar o conceito de comunista mau tivermos que parar de denunciar as coisas que acha­mos erradas, deixar de ajudar as causas que consideramos justas, romper nossos laços de amizade com a União Soviética, e virar anti-soviéticos, então isso nunca vai acontecer. Se um dia os Estados Uni­dos reformularem a imagem de Cuba, e a opinião pública tiver a oportunidade de conhecer a verdade, terá que ser na base da sua capacidade de perceber que nem o povo cubano nem Fidel Castro são oportunistas. vira-casacas e passíveis de serem comprados.

PLAYBOY — E o senhor acha que os Esta­dos Unidos tratam o resto da América Latina como se fosse comprável?

FIDEL — Estou convencido de que esta po­lítica do governo dos Estados Unidos em relação à América Latina, tratando-a co­mo se fosse o proprietário dos povos des­te Hemisfério e desprezando-os, está evi­dente em tudo: nas coisas simples, em discursos, piadas e histórias; nos brindes e em contatos com líderes latino-america­nos. Tenho a impressão de que, quando Colombo, Cortei, Pizarro e os outros conquistadores europeus chegaram a es­te continente, eles trataram os índios qua­se do mesmo jeito, e com a mesma filoso­fia, que incluía a troca de espelhinhos e outras bugigangas por ouro. Acho que essa é a atitude americana. Até agora, os Estados Unidos têm tido a sorte de ter problemas apenas com países pequenos e isolados como Cuba, ou Granada e Ni­carágua, na América Central. Por isso, ainda podem se dar ao luxo de falar em invasões, intervenções e soluções baseadas na força, como já aconteceu, em 1965, com um pequeno país do Caribe, a República Dominicana. Mas quando se defrontarem com um problema desses num país médio ou grande do Hemisfé­rio Sul, os americanos não poderão resol­vê-lo. na base de intervenções, guerras su­jas e invasões, porque o resultado seria catastrófico. Quem sabe se quando os Estados Unidos estavam para invadir o Vietnã — o que fizeram com grande en­tusiasmo — alguém tivesse mostrado ao povo o que iria acontecer lá, essa pessoa não teria feito um grande favor ao povo americano? Diz-se, por exemplo, que se o The New York Times houvesse publica­do o artigo que já tinha pronto sobre a invasão da Praia Giron [Baía dos Porcos, onde em 1961 houve uma frustrada tentati­va de desembarque de um destacamento de exilados cubanos, treinados pela CIA], te­ria feito um grande favor a Kennedy e evitado um imenso erro. Agora, estamos fazendo a mesma coisa em relação à América Central. E acho que, na medida em que vejo os Estados Unidos, ou seu governo — pois não posso falar em ter­mos de povo americano, já que 72% são contrários a uma intervenção na América Central —, se preparando para fazer isso com o mesmo entusiasmo, não estou desservindo o povo dos Estados Unidos quando insisto em avisar sobre as consequências que recairão sobre todos.

PLAYBOY — Há, evidentemente, apoio a essa posição, endossada no bloqueio, por parte do Congresso, da proposta de Rea­gan no sentido de auxiliar os inimigos dos sandinistas. Mas isso não chega a ser um endosso aos regimes sandinista e cu­bano. De fato, há um sentimento geral de que o advento de um governo marxis­ta resultaria, inevitavelmente, em repres­são, restrição dos direitos humanos e pri­são de dissidentes políticos.

FIDEL — A despeito do que você possa ter ouvido, a ideia de que haja alguém preso em Cuba por pensar diferente da Revolu­ção é simplesmente absurda! [Fica de pé novamente, caminhando para lá e para cá.] Em nosso país, ninguém foi jamais puni­do por ser dissidente. Os atos que podem causar a prisão de um cidadão estão per­feitamente definidos no Código Penal. Temos nos defendido e vamos continuar nos defendendo. Não espero que meus inimigos me homenageiem ou que os con­tra-revolucionários erijam minha estátua. Mas, na verdade, durante a Revolução, e em toda minha vida, adotei uma conduta de absoluto respeito à integridade física do indivíduo. Se fosse preciso aplicar pu­nições — mesmo as mais drásticas —, nós as aplicaríamos. Mas, por mais que nossos inimigos falem, por mais que mintam e nos difamem, a história da Revolução não registra qualquer caso de maus-tratos ou torturas. Todos os cidadãos deste país, sem exceções, sabem disso.

PLAYBOY — Isso é uma negativa radical, senhor presidente. Quer dizer que todas as histórias sobre tortura ou prisão ilegal em Cuba são falsas?

FIDEL — Sim. Nunca recorremos a coisas ilegais: força, tortura ou crime. Em toda a história da Revolução, ninguém pode apontar sequer um caso de tortura, assas­sinato ou desaparecimento — coisas que ocorrem diariamente no restante da América Latina. Outra coisa: nunca uma passeata em Cuba foi dissolvida pela policia. Nunca, em 26 anos, a polícia usou bombas de gás; jamais bateu num cida­dão durante uma passeata ou lançou cães treinados contra o povo, ao contrá­rio do que acontece na América Latina e nos Estados Unidos.

PLAYBOY — E também na União Soviéti­ca e no bloco oriental. Mas por que o se­nhor afirma que Cuba é uma exceção?

FIDEL — Porque o povo apóia e defende o governo. A verdadeira repressão que eu mencionei ocorre em países cujos go­vernos são contra o povo: a Argentina, quando havia ditadura militar, Chile, El Salvador e outros, com órgãos de repres­são e esquadrões da morte treinados nos Estados Unidos. Eles precisam dessas práticas para se proteger do povo. Mas quando a Revolução é o próprio povo, quando é ele quem a defende, pode ter certeza de que não há necessidade de vio­lência ou injustiça. Nosso governo é o único neste Hemisfério — eu digo isso com orgulho — que nunca usou a polícia ou o exército contra a população, nunca usou de violência contra o indivíduo, nem jamais cometeu assassinato ou sequestro político.

PLAYBOY — O senhor está afirmando que a forma com que lida com dissidentes po­líticos resulta em liberdades maiores do que as existentes nos Estados Unidos?

FIDEL — Tenho certeza de que, todos os dias, cidadãos americanos vêem, em seu país, coisas nunca vistas aqui, tais como atos de violência contra o povo. Vêem muitas coisas que simplesmente não podem acon­tecer aqui. Aqui ninguém viu, nem verá, o assassinato de um campeão dos direitos ci­vis, como Martin Luther King. Apesar dis­so, não andamos por aí apregoando o espí­rito humanitário e respeitador dos direitos humanos da Revolução.

PLAYBOY — Afirma-se que Cuba tem am­pliado muito suas defesas militares nos últimos tempos. O senhor ainda teme um ataque ou uma invasão americana?

FIDEL — [Com multa intensidade] Não é se­gredo que temos aumentado nossa capa­cidade de defesa nos últimos quatro anos. Mais do que isso, revolucionamos o conceito de defesa. Nesses quatro anos, incorporamos mais de um milhão e meio de homens e mulheres às defesas do país, além do Exército regular e dos re­servistas. Treinamos dezenas de milha­res de quadros. Temos nos preparado para todas as possibilidades de agressão contra Cuba, inclusive nas condições mais adversas. A população está organiza­da, mesmo nos rincões mais remotos de Cuba, para lutar em quaisquer circunstân­cias, até sob ocupação. Por que fizemos tu­do isso? Obviamente, não por esporte ou por gostar de armas. Na verdade, eu pre­feria ter dito, como Hemingway. "Adeus às Armas". Foi a resposta a uma clara polí­tica de força e de ameaças contra Cuba, adotada pelo governo americano.

PLAYBOY — O senhor acha que os Esta­dos Unidos vão intervir militarmente na Nicarágua?

FIDEL — Não afasto uma intervenção mili­tar. É óbvio que o governo Reagan é ob­sessivo em relação à Nicarágua. Para ser mais preciso, o presidente dos Estados Unidos tem uma atitude obsessiva e um alto grau de comprometimento pessoal com esse assunto, que pode levar, em cer­to momento, a uma intervenção direta. Está muito evidente que o governo se prepara para isso. Construiu novos cam­pos de pouso em Honduras e recons­truiu e ampliou outros três. Estabeleceu instalações militares terrestres e maríti­mas. Criou centros de treinamento e co­locou tropas numerosas. Os exercícios e as manobras militares destinam-se clara­mente a criar condições para uma inva­são da Nicarágua, se a decisão for toma­da. Agora é possível: tanques, veículos ar­mados e outros equipamentos militares já estão disponíveis.

PLAYBOY — O senhor acredita que o go­verno Reagan realmente não deseja uma solução pacífica para a Nicarágua?

FIDEL — O objetivo do governo Reagan em relação à Nicarágua é esmagar a revo­lução sandinista. Em El Salvador, exter­minar até o último revolucionário: mais do que isso, destruir para sempre o espí­rito libertário desse povo da América Central. É como se o governo Reagan quisesse dar uma lição inesquecível, para que ninguém na América Central ou na América Latina jamais pense em se rebe­lar novamente contra os tiranos a serviço dos Estados Unidos; contra a fome, a ex­ploração, de forma que ninguém lute mais pela independência e a justiça social.

PLAYBOY — Washington argumentaria que a ameaça não está na forma como os cubanos e nicaragüenses governam seus países, mas sim em sua política de propa­gar a revolução para outras nações.

FIDEL — Eu disse uma vez que Cuba não tem foguetes nucleares, mas tem fogue­tes morais. Se os Estados Unidos sentem-se ameaçados pelo altruísmo dos profes­sores e médicos cubanos que trabalham em outros países, talvez tenham razão de se sentir ameaçados — porque esses trabalhadores estão demonstrando uma mo­ralidade superior. Se eles querem temer nossas ideias, então direi sim, eles estão certos ao temer nossas ideias. É por isso que foram inventadas tantas mentiras. Mas dizer que representamos uma amea­ça física aos Estados Unidos é absurdo! Como podem os cubanos e nicaraguenses ser ameaça a um país que tem 16 ou 17 porta-aviões, 300 bases em todo o mundo, milhares de armas nucleares? Como pode uma nação do Terceiro Mundo, que não produz sequer um avião, ameaçar um país que pensa em de­fesas tipo "Guerra nas Estrelas"? É ridí­culo. É lavagem cerebral.

PLAYBOY — Vamos discutir El Salvador. Seus críticos afirmam que Cuba está tra­balhando para derrubar o governo do re­cém-eleito presidente José Napoleón Duarte, inclusive fornecendo armas aos rebeldes. É verdade?

FIDEL — Não sei de onde vem essa ideia de governo legal. Todo mundo sabe que lá existe uma guerra civil. Todos sabem que, nos últimos seis anos, mais de 50 mil pessoas foram assassinadas pelos es­quadrões da morte e pelo próprio Exérci­to salvadorenho. Todo mundo sabe que está havendo um genocídio naquele país, com a participação do próprio Duarte. Na realidade, ele é cúmplice desses cri­mes, e não pode se eximir da responsabi­lidade do que vem acontecendo em El Salvador há cinco anos.

PLAYBOY — Mas não é verdade que o pre­sidente Duarte foi eleito pelo povo de El Salvador numa eleição livre?

FIDEL — Não. [Socos na mesa] Todo mun­do conhece as condições em que houve as eleições: em meio a uma feroz repressão, ao terror e à guerra. Todo mundo sabe que a campanha eleitoral foi planejada pelos Estados Unidos e financiada pela CIA. O atual governo e todas as outras instituições ditas legais são fruto da mani­pulação e das manobras dos Estados Uni­dos. O Pinochet, do Chile, também pode dizer que seu governo é legal, depois da constituição fascista que foi imposta ao povo num pseudoplebiscito. Na verdade, não se pode deixar de especular sobre co­mo os Estados Unidos conseguem consi­derar legais as eleições em El Salvador e totalmente ilegais as da Nicarágua. Ape­sar das eleições nicaraguenses terem sido sabotadas pelos americanos, o povo votou com entusiasmo, assegurando aos sandi­sintas mais de 70% dos votos. Isso foi tes­temunhado por mais de mil observadores de todas as partes do mundo.

PLAYBOY — Como o senhor mesmo diz, o assunto pode ser questionado nos dois sentidos. Mas a pergunta continua: não é fato que o senhor tem trabalhado ativa­mente para derrubar o governo do presi­dente Duarte? Nesse caso, qual o direito de Cuba intervir nos assuntos internos de outro pais?

FIDEL — Não estou nem um pouco preo­cupado com as acusações contra Cuba, em relação a nossa solidariedade a El Sal­vador. Já afirmamos que os Estados Uni­dos sabem perfeitamente bem como é di­fícil mandar armas aos revolucionários salvadorenhos. Na prática, é quase im­possível. Mas não tenho qualquer interes­se em esclarecer este assunto, pois consi­dero que, moralmente, é absolutamente justo ajudar os revolucionários salvadorenhos. Eles estão lutando por seu país. Não é uma guerra que vem de fora, co­mo a guerra suja que a CIA trava na Ni­carágua. É uma guerra nascida dentro do país, e que já dura vários anos. O que posso lhe assegurar é que, de fato, o maior fornecedor dos revolucionários sal­vadorenhos é o Pentágono, através das ar­mas dadas ao exército de El Salvador. Isso também aconteceu no Vietnã: os revolucio­nários tomaram grandes quantidades de armamentos fornecidos pelos Estados Uni­dos ao exército fantoche.

PLAYBOY — Que provas concretas o se­nhor tem da manipulação das eleições em El Salvador pela CIA? Não houve o mesmo tipo de fiscalização que na Nica­rágua, cujo processo eleitoral o senhor considera totalmente honesto?

FIDEL — Foi publicado — nos Estados Uni­dos, e a CIA admite publicamente — que a CIA deu dinheiro a todos os partidos; não apenas ao Democrata Cristão de Duarte, mas a todos os outros, e cobriu as despesas da campanha. Não se precisa de prova quando se tem uma confissão.

PLAYBOY — Como o senhor pode defen­der os soviéticos, no caso da invasão do Afeganistão, ao mesmo tempo que defen­de a teoria da revolução e da liberdade?

FIDEL — Acredito sinceramente que a Re­volução afegã foi justa e necessária, e não podíamos apoiar nada que a pusesse em risco. Acho, porém, que o Afeganis­tão poderia ser um país não-alinhado desde que se mantivesse o regime revolu­cionário. Se surgir alguma solução que force o país a retornar ao antigo regime e sacrificar a Revolução, creio que não haverá paz por um longo tempo. Portan­to, encontrar uma solução é do interesse de todos os países vizinhos, inclusive a União Soviética. E acredito que o respei­to à soberania do Afeganistão e a seu di­reito de fazer mudanças sociais, bem co­mo o de construir o sistema político que lhe pareça melhor e de ter um governo não-alinhado — como país do Terceiro Mundo — deve ser a base para a solução do problema.

PLAYBOY — O senhor descreve repetida­mente os Estados Unidos como a fonte de muitos problemas mundiais, ao passo que elogia e evita criticar a União Soviéti­ca. Contudo, muitos classificam a política externa soviética de belicista e expansionista. A invasão do Afeganistão e o esma­gamento do sindicato independente Soli­dariedade, na Polônia, parecem enquadrar-se bem nessa categoria.

FIDEL — Não se pode pedir à União Sovié­tica que fique impassível quando ela se sente realmente ameaçada. Creio que es­sas acusações de belicismo não têm qual­quer fundamento. Voltemos um pouco. Qualquer estudioso da Revolução Soviéti­ca não ignora que, enquanto o primeiro decreto de Lênin proclamou a paz — 24 horas depois da vitória da Revolução de 1917 —, o primeiro passo dado pelos paí­ses ocidentais foi invadir a Rússia. Foi Lê­nin quem disse, pela primeira vez, que as nações que formavam o velho império czarista tinham direito à independência.

PLAYBOY — Desculpe, mas...

FIDEL — [Cortando com um gesto a interrupção] Eu citaria o exemplo da Finlândia, que fazia parte do império e tornou-se uma nação independente. Sim, quem es­tudou História sabe que Lênin travou uma grande batalha defendendo esse princípio. Não se pode ignorar que, en­quanto isso ocorria, de todos os pontos do mundo ocidental partiam ações arma­das contra o povo soviético. Os alemães atacaram e penetraram até Kiev; os france­ses no Sul; os ingleses na região de Mur­mansk, ao Norte; o Japão e os Estados Unidos nos territórios orientais. Todas se junta­ram. A I Guerra Mundial já tinha termina­do, mas a intervenção na União Soviética continuou por muitos anos. O que aconteceu mais tarde é bem co­nhecido: a própria Finlândia foi usada pelos fascistas para atacar a União Sovié­tica. O país foi invadido e, creio, a Histó­ria contemporânea não registra outro exemplo de tantas mortes e destruições quanto as que o fascismo causou lá. Depois da II Guerra Mundial, a União Soviética foi cercada por dezenas e deze­nas de bases nucleares — na Europa, no Oriente Médio, na Turquia — instaladas em suas fronteiras. E também no Ocea­no indico, no Japão e em outros países orientais, assim como ameaçada por es­quadras próximas à sua costa no Mediter­râneo, no Índico e no Pacífico. Ninguém pode negar esses fatos: enfim, tornou-se um país inteiramente cercado. Como podem acusar a União Soviética de belicista e agressiva em face dessas realidades históricas? Como não enten­der as reações altamente sensíveis da União Soviética a tudo o que ocorre per­to de seu território? Quem é historicamente responsável por essa desconfiança dos soviéticos? Como se pode explicar a política internacional de forma tão super­ficial e simplista?

PLAYBOY — Muita gente acredita que a próxima guerra em larga escala explodi­rá na África do Sul. Como opositor do apartheid, o que o senhor acha que vai acontecer lá?


FIDEL — [Com a maior veemência de toda a en­trevista] O apartheid é o crime mais vergonhoso, inconcebível e traumático do mundo contemporâneo. Não conheço na­da mais sério, do ponto de vista moral e hu­mano, do que o apartheid. Sobretudo de­pois da luta contra o nazismo, depois da in­dependência das antigas colônias, a sobrevi­vência do apartheid é uma desgraça para a humanidade. Os principais países indus­trializados, inclusive os Estados Unidos, têm feito pesados investimentos e colabora­do econômica e tecnologicamente com o re­gime, inclusive fornecendo armas. Na ver­dade, a África do Sul é aliada do Ocidente, e é o Ocidente quem possibilita a sobrevi­vência daquele sistema. Os Estados Unidos têm-se oposto sistematicamente a todas as sanções contra o regime sul-africano.

PLAYBOY — Que medidas internacionais o senhor proporia para forçar a África do Sul a abandonar sua política de segre­gação racial?

FIDEL — Enquanto a África do Sul conti­nuar recebendo assistência tecnológica, econômica e militar, o regime se mante­rá inalterado, inflexível e chantagista. A África do Sul, como Pinochet, o outro aliado fascista do Ocidente, desfila dian­te do mundo ocidental como se fosse a grande porta-bandeira do anticomunis­mo e das outras mudanças sociais. Fico pensando: será que houve, nos últimos quarenta anos, algum regime fascista que não tenha sido aliado dos Estados Unidos? Na Espanha, Franco. Em Portugal, Salazar. Na Coréia do Sul, os milita­res fascistas. Na América Central, Somo­za, e as ditaduras militares na Guatemala e em El Salvador. E ainda Stroessner [no Paraguai], as ditaduras militares na Argentina, no Uruguai e no Brasil, bem co­mo o regime de Duvalier [no Haiti]. Não conheço qualquer estado fascista e reacio­nário que não tenha sido grande aliado dos Estados Unidos. Sim, o Ocidente é res­ponsável pela sobrevivência do apartheid. Como justificar as medidas subversivas e agressivas contra a Nicarágua, o bloqueio econômico a Cuba, que já dura 26 anos, e depois falar em relações construtivas com o regime do apartheid? Se a África do Sul fosse realmente isolada, com medidas eco­nômicas contrárias a ela implementadas com o apoio de todos, o sistema segrega­cionista sul-africano acabaria.

PLAYBOY — O senhor então seria favorá­vel a uma guerra internacional contra a África do Sul?

FIDEL — Não. Não estou dizendo que de­vam ser tomadas medidas violentas. Isso não é necessário. O que é preciso são pressões internacionais políticas, morais, tecnológicas e econômicas. Isso não vai prejudicar nem um pouco a vasta maio­ria da população sul-africana que vive em guetos e está sendo massacrada e as­sassinada todos os dias. Não há mês em que não ocorra um morticínio de propor­ções cada vez maiores.

PLAYBOY — O senhor fala apaixonada­mente sobre a África do Sul, mas Cuba tem sido muito condenada por seu am­plo envolvimento no continente africa­no. Como o senhor justifica o envio de tropas a países como Angola e Etiópia?

FIDEL — A primeira vez que mandamos tropas para fora do pais foi em 1975, exa­tamente quando a África do Sul invadiu Angola, no momento de sua independên­cia. Somos o único país que realmente lu­tou contra os racistas e fascistas da África do Sul. O único país do mundo, além de Angola, é claro, que esteve em combate. Você pode ter certeza absoluta de que to­dos os países africanos sempre tiveram ad­miração e gratidão por essa ação de Cuba. Nossas tropas ainda estão lá, para aju­dar a rechaçar qualquer outra operação sul-africana. Foi simplesmente isso: uma situação inesperada, na qual alguém ti­nha que lutar contra os racistas, e não um plano mais amplo da União Soviética, co­mo os Estados Unidos afirmaram.

PLAYBOY — E a Etiópia? Lá não houve in­vasão sul-africana.

FIDEL — Até muito recentemente, a Etió­pia vivia sob um regime feudal. Antes da revolução, havia até escravos. Sabemos da importância da revolução na Etiópia, um dos maiores países da África, com a mais longa tradição de independência, mas muito pobre, um dos mais pobres do continente. Logo depois da revolu­ção, estabelecemos contatos com os no­vos líderes etíopes. Apoiamos sua expe­riência socialista e também enviamo-lhes médicos, instrutores e armas. Então veio a invasão para tomar as ter­ras ricas em petróleo, por parte da Somá­lia, ao Sul, enquanto que no Norte agita­va-se o movimento separatista, auxiliado por aliados dos Estados Unidos, tais co­mo o Sudão e a Arábia Saudita, entre ou­tros. Foi um momento difícil para a Etió­pia. A revolução poderia ter desmorona­do. O povo etíope precisou de nossa aju­da, e a teve. Ninguém pôde ajudá-la no passado, quando foi invadida pelas tro­pas de Mussolini. Mas, desta vez, recebe­ram o apoio da pequena Cuba.

PLAYBOY — O senhor realmente afirma que as tropas cubanas continuam na Áfri­ca numa causa justa?

FIDEL — Apenas umas poucas unidades, mal-equipadas para combates, ainda per­manecem na Etiópia como símbolo da nossa solidariedade. E continuarão en­quanto o governo etíope achar conve­niente. Não é a situação de Angola, um país de menor população, com menos ex­periência e ameaçado pelo poderio mili­tar da África do Sul. Lá também a guer­ra suja foi organizada através dos sul-a­fricanos, que fizeram o mesmo que os Estados Unidos fazem na Nicarágua. Consi­dero que as tropas cubanas estão defen­dendo causas nobres, entre as mais no­bres da história da África.

PLAYBOY — O senhor tem reclamado amargamente dos 26 anos de bloqueio por parte dos Estados Unidos. Seus efei­tos — bem como os problemas internos do país — forçaram Cuba a reduzir mui­tos programas e serviços necessários, pro­metidos nos primeiros dias da revolução?

FIDEL — Não, absolutamente. Já sabemos o que vamos fazer nos próximos 15 anos nos campos de desenvolvimento econômico e social — e nos programas industriais, agrícolas, habitacionais, educacionais, des­portivos e médicos. E, apesar do blo­queio, há algumas áreas, como saúde pú­blica e educação, em que esperamos estar à frente dos Estados Unidos num futuro não muito distante. Ou seja: usamos racio­nalmente nossos recursos para conseguir contínuo desenvolvimento econômico em benefício do povo. Certamente não adota­remos medidas como o corte do auxílio aos idosos, redução da aposentadoria dos velhos, corte de remédios aos doentes ou diminuição de verbas para escolas e hospi­tais. Não sacrificamos programas sociais, como se faz nos Estados Unidos, para construir porta-aviões, mísseis MX e ou­tras máquinas de guerra.

PLAYBOY — O senhor está sugerindo que Cuba pode ostentar mais realizações no campo social do que os Estados Unidos?

FIDEL — O que estou sugerindo é que, en­quanto os Estados Unidos adotam a polí­tica de reduzir ou congelar seus progra­mas de assistência social, como aconte­ceu recentemente, esses assuntos são a maior prioridade em nosso país. Em vez de sofrerem cortes, como nos Estados Unidos, nossos programas aumentam a cada ano, na medida que nosso desempenho econômico melhora.

PLAYBOY — O senhor está dizendo tam­bém que, apesar dos problemas anterior­mente mencionados, Cuba não está en­frentando a crise econômica que assola outros países do Terceiro Mundo?

FIDEL — Exatamente. Devido aos fatores mencionados, somos o único país do Ca­ribe e da América Latina que não sofreu com a atual crise econômica. Não esta­mos expostos à crise, a não ser quando ela afeta os 15% de nosso comércio, reali­zado com os países ocidentais, que, evidentemente, cobram caro por seus pro­dutos, e pagam pouco pelos nossos, forçando-nos a pagar altas taxas de juros por nosso déficit comercial.

PLAYBOY — E, naturalmente, sua econo­mia está atrelada à do bloco soviético.

FIDEL — Oitenta e cinco por cento de nos­so comércio fica dentro da comunidade socialista, e é isso que nos dá uma sólida base para o contínuo crescimento de nos­sa economia. Por isso estamos moralmen­te capacitados a falar sobre a crise da dí­vida da América Latina. Não precisamos fazer silêncio. É exatamente por isso que a estamos denunciando. Mas podemos nos sentir seguros porque, felizmente, dependemos muito pouco do mundo oci­dental. E não dependemos em nada de relações econômicas com os Estados Uni­dos. Gostaria de saber quantos países po­dem dizer o mesmo.

PLAYBOY — Também pode-se dizer que Cuba apenas trocou uma antiga depen­dência aos Estados Unidos, por uma no­va — à União Soviética.

FIDEL — Essa questão é mais velha do que o tempo. Na verdade, consideramo-nos a mais privilegiada das nações, pois, num mundo em que todos dependem dos Esta­dos Unidos, há um país, Cuba, que não depende. Isso é um raro privilégio.

PLAYBOY — Mas vocês pagaram um pre­ço por isso: um pouco de sua indepen­dência.

FIDEL — Os soviéticos têm nos apoiado in­condicionalmente. Eles não dizem o que Cuba pode ou não pode fazer. Não consi­go lembrar de uma única vez, nesses 26 anos, em que os soviéticos tenham tenta­do nos dizer o que fazer, tanto em políti­ca interna, quanto externa. E nos criticar por nossa dependência aos soviéticos equivale a nos dizer: "Olha, nós afundamos o navio e vocês usaram o salva-vidas!" Nenhum país pode ser uma ilha econômica. Os Estados Unidos dependem da Arábia Saudita, do Kuwait e dos países do Golfo Pérsico em termos de petróleo. Nós dependemos de outros, em maior ou menor grau.

PLAYBOY — Vamos especular. O que aconteceria se os Estados Unidos reatassem relações comerciais com Cuba?

FIDEL — Francamente, os Estados Unidos têm cada vez menos coisas a oferecer a Cuba. Se pudéssemos exportar nossos produtos para os Estados Unidos, tería­mos que começar a planejar novas linhas de produção, voltadas para esse merca­do, pois tudo o que produzimos hoje e o que produziremos nos próximos cinco anos já está vendido. Teríamos que tirá-los de outros países socialistas para ven­dê-los aos Estados Unidos, e os socialistas nos pagam um preço bem melhor e têm conosco relações muito melhores do que os Estados Unidos. Há um ditado que diz: "Não troque sua vaca por um bode".

PLAYBOY — Ao longo desta entrevista, o senhor fez várias referências literárias. Voltando novamente para um assunto pessoal, já que estamos perto de acabar, o senhor continua a ser um devorador de li­vros? E ainda encontra tempo para ler?

FIDEL — Sim, embora minhas preferên­cias tenham variado com o tempo. Quan­do eu era mais jovem, é claro, obras lite­rárias e romances me interessavam mais do que hoje. Obviamente, um bom ro­mance é uma leitura agradável e relaxas­te. Por isso, li muitos romances. Lembro-me perfeitamente de que, durante os 22 meses em que estive na prisão, não havia livros suficientes para as 15 ou 16 horas que eu lia diariamente. Eu lia Literatura, Economia, História e Política, mas a vida toda preferi livros de História, biogra­fias, narrativas de viagens e livros sobre a natureza. Li muitas memórias. Das de Churchill, maçudas mas interessantes, com muitos dados históricos, até as de De Gaulle. Também li muito sobre guerras. Já li a maioria das obras que tratam das ações militares realizadas pelas potências oci­dentais e pelos soviéticos. Já li pratica­mente todos os livros — memórias, rela­tos — sobre ações militares, um gênero de leitura que me interessa muito. De vez em quando, mergulho nas raízes do idio­ma e releio o Dom Quixote, uma das mais esplêndidas obras já escritas. Não fosse pelas longas passagens narrativas que con­tém, tornando-o às vezes cansativo, eu le­ria um trecho todos os dias. Também li to­das as obras de Hemingway, algumas mais de uma vez. Lamento, realmente, que ele não tenha escrito mais. Também li a maioria dos romances, contos, traba­lhos históricos e artigos de Gabriel Garcia Marquez. Como somos amigos, dispenso os elogios. É espantoso pensar na enorme quantidade de boas publicações impres­sas a cada ano e na contradição entre o de­sejo de ler todas e a possibilidade real de só ler umas poucas.

PLAYBOY — O senhor mencionou o Dom Quixote. Há algo no personagem Dom Quixote com que o senhor se identifica?

FIDEL — Bem, acho que Dom Quixote se parece muito com um revolucionário, especialmente em seu desejo de justiça, no espírito da cavalaria andante, no propósi­to de desfazer agravos em toda a parte, de lutar com gigantes. Disseram que Dom Quixote foi escrito para ridicularizar os romances de cavalaria. Acho que foi escrito muito engenhosamente. Na ver­dade, acho que o livro é uma maravilho­sa exaltação do sonho e do idealismo hu­manos. E, acima de tudo, é muito interes­sante. Há dois personagens: Sancho, com os pés na terra, vendo os problemas e dando conselhos, um modelo de caute­la, que se lembra de todos os detalhes; e o outro, sempre sonhando com causas a defender. A loucura de Dom Quixote e a loucura dos revolucionários são seme­lhantes. O espírito é semelhante. Gosto muito desse personagem. Tenho certeza de que Dom Quixote não teria hesitado em enfrentar o gigante do Norte.

PLAYBOY — O senhor, alguma vez, já du­vidou de si próprio?

FIDEL — Quero afirmar, com toda a franqueza, que nunca tive dúvidas pessoais ou falta de confiança. Isso pode ser bom ou mau. Mas, se consideramos nossos atos como objetivamente corretos, não ter dúvidas é bom. Admito que algumas vezes o orgulho pode ter influenciado mi­nhas atitudes. Mas uma vez que eu con­cluo que a ideia é certa, passo a ter gran­de confiança pessoal nela. Isso não signifi­ca que eu não tenho autocrítica. Muito pelo contrário: questiono constantemente o acerto de meus credos e atos. Nesse senti­do, sou muito duro comigo mesmo. Nun­ca caí na armadilha da complacência. Mas tenho sempre perseverado.

PLAYBOY — Obviamente, o senhor não pode viver para sempre. Que planos, se é que existem planos, o senhor tem para sua sucessão? Há algum herdeiro aparente?

FIDEL — Bem, é claro que não tenho pla­nos de morrer. Mas lhe digo o seguinte: desde o início da Revolução, desde o pri­meiro ano, e particularmente quando co­meçamos a perceber que a CIA tinha pla­nos para encurtar minha vida, sugeri­mos a nomeação prévia de um outro companheiro, Raul Castro — hoje segun­do-secretário do partido —, que pudesse assumir imediatamente a liderança. Na minha opinião, o companheiro escolhido é o mais capaz, não porque é meu irmão, mas devido a sua experiência e méritos revolucionários.

PLAYBOY — O que aconteceria em Cuba se o senhor deixasse o poder?

FIDEL — No que diz respeito a isso, ainda não morri, certo? [Risos] Vou lhes dizer uma coisa. Se eu renunciasse amanhã a todas as minhas funções, teria que ha­ver, em primeiro lugar, um motivo ver­dadeiramente convincente para que a po­pulação pudesse entender. Isso é lógico, natural e justificável. Eu não poderia di­zer simplesmente "Vou deixar essas ativi­dades porque estou entediado, ou por­que quero ter uma vida privada". Seria difícil de explicar e difícil de o povo en­tender. O povo também está imbuído da ideia de que deve-se fazer todo o possí­vel, deve-se dar total prioridade às obri­gações revolucionárias. Não tenho a menor dúvida de que, em­bora eu ainda possa ser útil e dar novas contribuições à Revolução — ainda há coisas que precisam de algum tempo pa­ra amadurecer —, a opinião e o reconhecimento populares pelo papel que tenho desempenhado na Revolução seriam real­mente elevados se eu tivesse que largar tudo hoje. Isso não significa de maneira alguma que tudo tem sido perfeito, sem erros, ou qualquer coisa assim. Mas te­nho absoluta certeza de que haveria uma elevada opinião sobre os meus serviços. Estou absolutamente certo... não tenho a menor dúvida.

PLAYBOY — Vamos raciocinar com uma nota hipotética, com uma nota de imagi­nação. Eis algo maravilhoso do seu pon­to de vista: suponha que o governo dos Estados Unidos cancelasse a dívida da América Latina, como o senhor propôs, oferecesse uma substancial ajuda ou se propusesse a tratar o Hemisfério com a justiça que o senhor acha devida. O que o senhor faria? Reavaliaria suas opiniões?

FIDEL — Se o governo dos Estados Uni­dos fizesse espontaneamente isso que vo­cês estão dizendo — se esse sistema neo­colonialista tão inerentemente egoísta fosse capaz dessa generosidade — teria acontecido um verdadeiro milagre, e eu precisaria começar a meditar sobre o fenômeno. Talvez tivesse até que consul­tar alguns teólogos e rever algumas de minhas opiniões nessa área. Se isso acon­tecesse, eu podia até entrar para um convento.

PLAYBOY — No começo desta entrevista, nós perguntamos se o senhor se conside­rava um ditador. O senhor ainda refuta a acusação?


FIDEL — Eu diria que sou um tipo sui ge­neris de ditador. Um ditador que foi sub­metido aqui à opressão, à tortura, às exi­gências e imposições de um jornalista e de um parlamentar dos Estados Unidos, e que mostrou sua boa vontade para dis­cutir qualquer assunto de maneira aber­ta, clara e séria.

Semanas atrás, para a parte brasileira da entrevista, Fernando Morais conversou das oito às nove e meia da noite de um sába­do com Fidel. Na véspera, ele já estivera duas vezes com o presidente cubano. A pri­meira foi no Palácio das Convenções de Ha­vana, na abertura do encontro de jornalistas sobre a dívida externa dos países do Ter­ceiro Mundo. Fernando chegou a iniciar uma rápida entrevista, que acabou interrom­pida por solicitações de outras pessoas a Fi­del, mas que vale registrar:

PLAYBOY — Como o senhor vê a possibili­dade do reatamento de relações diplomá­ticas entre Brasil e Cuba?

FIDEL — Não nos cabe precipitar ou for­çar qualquer decisão do governo brasilei­ro a esse respeito. Esta é uma decisão que cabe ao governo do Brasil, e a ele cabe de­cidir o melhor momento de fazê-lo.

PLAYBOY — Do ponto de vista comercial, o restabelecimento de relações com o Bra­sil poderia trazer benefícios a Cuba?

FIDEL — Sim, mas a verdade é que já es­tamos comprando algumas coisinhas de vocês.

PLAYBOY — O quê?

FIDEL — Por exemplo, acabamos de com­prar algumas dessas vacas mecânicas que vocês inventaram. É um engenho muito inteligente, porque produz leite de soja a um custo muito baixo. Temos utilizado is­so para nossas crianças com um potencial nutriente excelente...

No mesmo dia, à noite, no Palácio de la Revolución, sede do governo, Fernando Mo­rais encontrou-se novamente com Fidel, du­rante o jantar. O líder de Cuba falava — bem — de seu casal de cães de fila, que rece­beu de presente, anos atrás, do próprio Fer­nando e do compositor Chico Buarque. Fernando aproveitou para cobrar de Fidel a res­posta a algumas perguntas que PLAYBOY en­viara por telex a Havana e que ele, no pri­meiro encontro, prometera responder ao vi­vo. Fidel disse que não queria falar sobre questões como o eventual reatamento de rela­ções com o Brasil sem meditar. O repórter brincou: Acho que o senhor não está querendo dar a entrevista... Fidel, rápido: Que es esto, chico! Yo tengo pala­bra, tu sabes. No dia seguinte, sábado, finalmente, a en­trevista. Horas antes, depois de falar longa­mente aos jornalistas reunidos no congresso, Fidel retirou-se para um pequeno escritório no Palácio das Convenções, chamou Fer­nando com um gesto e fez um sinal a um se­gurança para que o deixasse passar. O re­pórter entrou, já com um pequeno gravador em punho. Fidel disse: — Não, vamos deixar esse negócio de en­trevista para mais à noite, porque agora es­tou te chamando para tomar um chá. Vendo uma garrafa de Chivas Regal pe­la metade num cantinho da mesa de Fidel, Fernando perguntou: — Tem que ser chá ou pode ser um uis­quinho? Fidel: Dale, viejo. Dale. Tomate tu uisque! Na conversa, o líder cubano interessou-se por PLAYBOY, fazendo perguntas sobre as re­lações da revista com a PLAYBOY americana e sobre a percentagem de mulheres brasilei­ras que aparecem em suas páginas. No mesmo escritório foi realizada a entre­vista. Fernando relata: "Com os cabelos ficando grisalhos e a barba bem maior do que há três anos, quando eu o vira pela úl­tima vez, e já quase completamente branca, Fidel Castro tomou xícaras e mais xícaras de chá com gotas de limão, enquanto luta­va com um pequeno isqueiro de metal para manter aceso seu charuto — um Cohiba convencional, que pode ser comprado por um dólar em qualquer tabacaria de Hava­na. Ele falou longamente sobre assuntos ge­rais antes de entrar na entrevista, e ele pró­prio pediu para encerrá-la, lembrando que praticamente não dormira nos últimos dias e tivera diversas reuniões naquele dia. Umas quatro horas depois disso, porém, en­quanto eu brigava com uma máquina de te­lex Narodni Podnik soviética para passar a entrevista à sede da revista, em São Paulo, ele apareceu na cabina para me dar um abraço e saber se PLAYBOY havia deixado um operador de plantão no domingo para receber o material. Antes de sair, ainda mandou um segurança me trazer um copinho de rum". A entrevista:

PLAYBOY — Como o senhor avalia os pri­meiros quatro meses do governo civil do presidente José Sarney no Brasil?

FIDEL — Bem, a abertura democrática no Brasil foi recebida com muito interesse, com muita esperança na América Latina e no mundo todo. Principalmente por­que veio precedida da abertura democrá­tica na Argentina e no Uruguai. A soma desses três processos em países tão impor­tantes, sobretudo o Brasil e a Argentina, sem esquecer o Uruguai, nem tanto por seu tamanho e sua capacidade econômi­ca, mas até por seu simbolismo, é um dos acontecimentos políticos mais importan­tes dos últimos vinte anos. É claro que eu não posso deixar de expressar a tristeza que produziu em todos nós a tragédia que coincidiu precisamente com o mo­mento de mudança do governo: a doloro­sa enfermidade e a morte de Tancredo Neves. É indiscutível que Tancredo havia despertado uma grande confiança no po­vo e que gozava de grande prestígio e au­toridade. Eu imagino que, nessas condi­ções, não deve ter sido fácil substituir Tancredo. No entanto, vi que o presiden­te Sarney realizou um esforço enorme pa­ra ganhar a confiança da nação e cumprir da maneira mais eficiente possível as grandes responsabilidades que caíram so­bre seus ombros. Daqui de longe — você sabe que ainda não temos relações com o seu país —, e valendo-me apenas das informações que recebo pelos telegramas de agências, vejo que se ampliou extraordi­nariamente a esfera dos direitos democrá­ticos no Brasil. Tem havido um grande avanço nesse sentido: todos os partidos fo­ram legalizados sem nenhuma discrimina­ção e se iniciaram algumas reformas de natureza econômica, que produziram, de um lado, esperança, e, de outro, irritação nos setores que se sentiram afetados por elas. É possível identificar, a meu juízo, um esforço do presidente José Sarney pa­ra seguir as linhas propostas por Tancre­do. A tudo isto eu poderia acrescentar que têm sido publicadas notícias alentado­ras sobre as perspectivas de um imediato reatamento de relações diplomáticas en­tre o Brasil e Cuba. Creio que a base disto está no grande número de questões de in­teresse comum entre os dois países como países da América Latina e países do Ter­ceiro Mundo. Tudo isto, claro, está acima das diferenças de sistema político, acima da diferença ideológica, a partir do fato de que a América Latina e o Terceiro Mundo estão sofrendo uma grave tragé­dia derivada da enorme dívida externa, da crise econômica internacional, do in­tercâmbio desigual que nos afeta cada vez mais, das políticas protecionistas, do dum­ping, dos juros altos, da supervalorização do dólar e de toda uma série de circuns­tâncias que, na minha opinião, tendem a unir em uma ação comum mais de cem países do Terceiro Mundo — entre os quais o Brasil está fadado a jogar um pa­pel de muita importância.

PLAYBOY — O senhor acredita que o fa­to de que o Brasil carregue hoje uma dí­vida externa de 104 bilhões de dólares, e tenha à frente um governo civil e demo­crático, pode afetar a relação da Améri­ca Latina com o sistema financeiro inter­nacional, com o Fundo Monetário Inter­nacional?

FIDEL — Bem, efetivamente, a dívida ex­terna do Brasil equivale hoje a trinta por cento da dívida total da América Latina. Por outro lado, o Brasil não obtém rique­zas com facilidade. Não é, por exemplo, um país exportador de petróleo, o que o leva a realizar um enorme esforço para in­crementar a produção petroleira e econo­mizar, com isto, grandes gastos em divi­sas. As exportações do Brasil se baseiam em seus produtos agrícolas e nos produtos de seu recente processo de industriali­zação. Quer dizer que cada centavo ou ca­da dólar da exportação que o Brasil pro­duz é conseguido à custa do investimento de esforço, de suor, de sacrifícios. Por ou­tro lado, a população do Brasil cresceu ex­traordinariamente nos últimos anos — já são por volta de 135 milhões de pessoas. E eu sei que nesse período acumularam-se grandes, enormes necessidades de em­pregos, de educação, de saúde pública, de habitações. Sei disso porque tenho bas­tante informação sobre o Terceiro Mundo e sei que essas necessidades são muito grandes: há milhões de desempregados, milhões de crianças abandonadas e re­giões do país, como o Nordeste, com gran­des problemas; há grandes setores da população que vivem em favelas; grandes e urgentes necessidades sociais a satisfazer. E, até pela própria experiência do nosso país, onde temos realizado um enorme es­forço no desenvolvimento social ao longo destes vinte e seis anos de revolução, eu sei quanto custa, quanto esforço requer assegurar educação, saúde, casas e empre­gos a uma população que cresce rapida­mente. Então, há que investir os recursos disponíveis em primeiro lugar no desen­volvimento, mas é preciso investi-los na solução desses problemas sociais. E nós, cubanos, além disso, temos que investir na defesa do país diante das agressões e das ameaças dos Estados Unidos, e como um país bloqueado que somos.

PLAYBOY — Mas como fazer face a essas necessidades e pagar a dívida?

FIDEL — Eu compreendo perfeitamente bem as dificuldades que o Brasil deve ter para promover seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, resolver esses enormes problemas acumulados durante tanto tempo, pagando mais de dez bilhões de dólares por ano, com uma dívida de 104 bilhões de dólares, com o dólar supervalo­rizado e com juros altos. Eu tenho a mais absoluta convicção de que nem o Brasil, nem a Argentina, nem o Uruguai, nem o México e nem a imensa maioria dos paí­ses latino-americanos têm condições de pagar suas enormes dívidas. Inclusive é bom dizer que mesmo os países que dis­põem de mais recursos do que o Brasil e a Argentina, por serem exportadores de petróleo, têm também as suas dificulda­des, já que as reduções que têm ocorrido nos preços do petróleo tornam pratica­mente impossível o pagamento da dívida. Quatro dólares a menos em cada barril, a partir dos preços atuais, seria uma catás­trofe. E isso, sem dúvida, também não aju­daria a resolver os problemas dos países subdesenvolvidos importadores de petró­leo, que teriam que pagá-lo ainda a um preço alto, de mais de vinte dólares por barril.

PLAYBOY — Mas qual é, então, a saída?

FIDEL — Não se trata apenas do montante da dívida, que é inconcebivelmente gran­de, que é impagável. Aliás, ela não é só im­pagável, ela é incobrável. Porque as mas­sas têm cada dia mais consciência de que pagar é impossível e de que isto não per­mitiria mais a mínima possibilidade de desenvolvimento econômico e social. A meu juízo não existe nenhuma fórmula técni­ca, nenhuma solução do tipo técnico. Este é um problema político. Temos que tratá-lo politicamente ou estaremos à beira do precipício, envolvidos numa enorme catástrofe. O mundo capitalista não saiu de sua crise e, na minha opinião, está muito longe de sair dela. Do meu ponto de vista não há outra saída que não seja apagar a dívida.

PLAYBOY — Mas isso seria suficiente?

FIDEL — Não, sem dúvida só isso não seria suficiente. Teríamos de ir às causas que originaram essa dívida, às causas que ori­ginaram o subdesenvolvimento. Seria imprescindível alcançar a nova ordem eco­nômica internacional estabelecida pelas Nações Unidas faz dez anos, para pôr fim ao injusto sistema de relações econômicas imposto ao Terceiro Mundo. Ainda as­sim, faria falta um terceiro fato, que seria a integração econômica da América Lati­na. Porque, se até países como a Inglater­ra, altamente industrializada, exatamente onde surgiu a indústria moderna, não po­de desenvolver-se sem a integração ao Mercado Comum Europeu, não concebo como se possa pensar em desenvolvimen­to isolado dos povos da América Latina, sem um mercado comum e sem uma inte­gração econômica. Creio que estes são os pilares básicos, sem os quais jamais os po­vos da América Latina chegarão à verda­deira independência.

PLAYBOY — O senhor acredita que a rede­mocratização do Brasil, da Argentina e do Uruguai poderá alterar as relações da América Latina com os Estados Unidos?

FIDEL — Acho que sim. Pelo peso que têm esses três países, entendo que ocorreu uma mudança na correlação de forças — ou pelo menos surgiu a possibilidade de uma mudança na correlação de forças. O que aconteceu nesses três casos foi um processo de abertura democrática em que o povo passou a jogar um papel impor­tantíssimo. E não existe a menor possibili­dade, nessas circunstâncias, de que os Es­tados Unidos possam manejar a seu gosto e na medida de seus interesses a política desses países latino-americanos — e isto acaba se juntando a um processo de maior democracia e maior independên­cia em outras áreas da América Latina.

PLAYBOY — Antes desta entrevista o se­nhor me falava das vaquinhas mecânicas que Cuba comprou do Brasil. Além de­las, o que mais Cuba poderá comprar do Brasil se as relações forem reatadas?

FIDEL — Bem, muita coisa. Primeiro que­ro lhe dizer que não compramos só as va­cas mecânicas até agora. Já compramos equipamentos industriais, componentes mecânicos e muitos outros produtos. Há uma infinidade de áreas onde se pode de­senvolver a colaboração econômica entre Brasil e Cuba. Vocês são um país mais avançado do que Cuba na indústria mecâ­nica, na produção de equipamentos e de projetos industriais completos, o que já pode servir de base para o comércio entre os dois países. Além disso, o Brasil é produtor de vários artigos agrícolas, não apenas açúcar, mas cereais, soja, e outros grãos protéicos e oleaginosos que podem ser de interesse para nós. Há mais: a in­dústria eletrônica brasileira, que avança e nos interessa. Mas, além do que eu lhe dis­se, podemos estabelecer colaboração eco­nômica em áreas em que estamos avança­dos, como em engenharia genética e bio­tecnologia, o que certamente permitiria intercâmbio científico entre nós.

PLAYBOY — Saindo um pouco de política e economia: a atriz Regina Duarte, de­pois de ter estado em Cuba, onde rece­beu um prêmio por sua série Malu Mu­lher, falou no Brasil que estranhou a exis­tência de machismo em Cuba e referiu-se à preocupação que notou nesse sentido. Há machismo em Cuba?

FIDEL— Tive a honra e o prazer de conhe­cer Regina e de conversar com ela, que goza de grande simpatia em nosso país. Ela pôde registrar, efetivamente, a pre­sença de traços de machismo ainda em nosso país. Mas, se ela tivesse visitado Cu­ba há 27 anos, teria se assombrado muito mais com o nível de machismo que existia aqui; assim como em outras sociedades la­tino-americanas. Nesse campo nós temos avançado extraordinariamente, numa lu­ta tenaz para alcançar a igualdade da mu­lher na sociedade. Do ponto de vista legal não existe nenhuma discriminação. Do ponto de vista econômico, muito menos. Aqui não existe um só caso de mulher que por igual trabalho receba salário me­nor do que o de um homem. Criamos cre­ches, pré-escolas e escolas de todo tipo, que têm ajudado muito a família. Cria­ram-se possibilidades de estudo e de tra­balho para a mulher, que se refletem em um dado: 54% da força técnica do nosso país é constituída por mulheres; a maio­ria dos estudantes das nossas universida­des é mulher. A mulher tem uma conside­rável participação na administração da economia, no Estado e na vida política do país, mas nós ainda não nos sentimos satis­feitos e lutamos e lutaremos incansavel­mente para que a participação da mulher seja ainda maior.

PLAYBOY — A que o senhor atribui esse machismo, então?

FIDEL — O fato de que num país revolucio­nário como Cuba ainda sobrevivam tra­ços como esses, apesar das leis, apesar dos grandes avanços, dá uma ideia de como é dura e difícil a luta para erradicar esses costumes ancestrais, centenários, que nós indiscutivelmente herdamos da coloniza­ção. E até da parte que temos de espa­nhóis. E até da parte de cultura árabe que os espanhóis receberam e que nos trans­mitiram. Eu tenho apoiado a luta das mulheres com muita perseverança e aprecio quando se avança um pouco. Mas eu pos­so lhe assegurar que, mesmo que ainda nos restem traços de machismo, segura­mente estamos muito mais avançados que qualquer outro país da América Latina.


POR MERVYN M. DYMALLY, FEFFREY M. ELLIOT E KIRBY JONES

FOTOS GIANFRANCO GORGONI


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