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FLORES PARA RITINHA


Ficção


A amiga das mil noites merecia dele, pelo menos a lágrima falsa da dor


POR DALTON TREVISAN


Beijou a mulher no portão, voltou-se da esquina para acenar e, uma corruíra trinando no peito, postou-se debaixo do poste, à espera do ônibus. Súbito um grito abafado e o táxi freou pouco adiante. Da janela a mãozinha enluvada o chamava. Aproximou-se relutante — se a mulher estivesse ainda no portão?


Um pé na rua, outro na calçada, inclinou-se para a rainha da noite.


— Serginho, sabe o que aconteceu? Outra corruíra respondia ali no poste.


— Que foi?


Já viu uma dona da noite ao sol das dez da manhã? Terrosa, cinérea, esverdinhada, bem a noiva do conde Nelsinho suspirosa na valsa dos vampiros da meia-noite.


— Ai, que desgraça. Não sabe quem morreu? A Ritinha.


— Mas como? Não pode ser. Sábado estive com ela.


Depois do hotel, deixou-a no Bar do Luiz, a famosa canja das cinco da manhã. Ela aceitou o convite de um gordo que, bêbado, capotara o carro, ambos mortos.


— O enterro quando é?


— Agora. Quer ir com a gente?


Antes que gaguejasse uma desculpa:


— Não era o teu grande amor?


— Só telefonar. Depois eu vou.


No portão do cemitério sete ou oito bailarinas, uma de cara lavada, outra de olho negro e lábio encarnado, qual a mais pavorosa?


— Serginho, o que fizeram... Tadinha da Ritinha!


Todas o olhavam — era o homem. Só faltava a morta, o coche fúnebre retardado.


— Que desgraça, meu Deus.


Uma com braçada de copos-de-leite, outra com feixe de palmas, a maioria com maços de velas. Duas de perucas, loira e ruiva, algumas de lenço colorido na cabeça de medusa. Sardentas, perebentas, feridentas, todas de preto. Três de óculos escuros, o da cantora era capacete de astronauta. Assassina, espirrando faísca das pedras, o próprio Jack Palance com duas pistolas na cinta de ilhoses reluzentes:


— Ainda bem que veio, Serginho. Nem um puto teve coragem.


Olheiras fundas do velório, a uma e outra conhecia de vista, todas o chamavam pelo nome. Meio esquerdo, calça amarela, camisa xadrez, sapato marrom.


Surgiu o carro negro, logo rodeado pelas carpideiras. Ó, decepção! Ritinha não era, mas o parceiro do desastre, por sinal casado. A viúva de luto fechado, uma menina em cada mão. Os homens solenes de paletó e gravata. Cruzaram o portão sob os punhais de ódio das bailarinas. Margô em voz alta:


— Foi esse o culpado. O gordo bêbado... Ele que a matou.


AGORA SÓ FALTAVA A MORTA: RITINHA, COMO SEMPRE, ATRASADA

Ritinha como sempre atrasada, os dois táxis apinhados de damas. Ali do cemitério poderiam ir todas para o bordel das normalistas. Disputavam uma alça do caixão, a da frente reservada para ele, que abria o cortejo. Como é que, tão leve nos seus braços, pesava tanto no caixão? Sem fim a longa avenida, aqui as mil velas da milagrosa Maria Bueno, ali a cruz das almas.


O sol rebrilhava no mármore negro, nos medalhões coloridos, nas letras douradas. Deixavam para trás os túmulos soberbos, as capelas luxuosas das grandes famílias. No pomposo mausoléu do menino, atrás da porta envidraçada, a coleção de ricos brinquedos. Eras na vida a pomba predileta, á doce putinha.


Ele tropeçou ao dar com o túmulo do sogro e, que não o visse, baixou a cabeça. Os saltos altos retumbando nas lajes, desceram, subiram, outra vez desceram. Quase no subúrbio do cemitério, a ruazinha nem era calçada. Às suas costas, a voz rouca de Margô:


— Não apareceu no velório nem no enterro. Só mandou oferecer dinheiro, o grande filho...


Cafetão não oferece dinheiro. Só podia ser o velho coronel. Dois coveiros esperavam debruçados na pá vermelha de barro. Ali perto o túmulo do gordo, entreviu a viúva que, sem chorar, assistia o pedreiro rebocar os tijolos.


Com um suspiro descansaram o caixão ao pé da cova — um pouco de água no fundo. Agitavam-se as bailarinas com suas palmas, copos-de-leite, maços de velas.


— Tem fósforo, Serginho? Estendeu a caixa para Margô, que o olhou firme: — Não viu a Ritinha?


Última homenagem à sua menina bem querida. Foi protestar, era tarde: espremido, rodeado de bailarinas, não podia recuar. Já soltavam as borboletas da tampa, uma empurrando a mão da outra. Sem virar o rosto, a hora da verdade: todas lhe cobravam uma lágrima de dor.


A tampa de um para outro lado, afinal de pé contra um túmulo. Tinha de olhar e, mãe do céu, o que iria ver? Ali a amiga das mil noites de paixão.


Primeiro o vestido de cetim amarelo, que ele não conhecia (e pensava conhecer todos), ocultando os sapatos prateados. Meio torta, soltas as mãos, os braços sem articulação de boneca quebrada. E, grande alívio, o rosto coberto por lencinho branco de renda.


Margô olhava para ele, não para a defunta. Como não chorasse, foi rápido o gesto e teatral: ela afastou o lencinho e descobriu o rosto. Graças a Deus não tão desfigurado. Lábio muito pintado, nunca fora discreta. Era mesmo a sua Ritinha e, maior surpresa, quase linda não fossem as manchas roxas. Só a cabeça fora de esquadro, mal-encaixada no pescoço. O médico legista de mão leve para o corte e costura.


Todas o olhavam reclamando a lágrima da saudade. E, mais de susto que tristeza, enxugou uma gota furtiva do suor que escorria na testa.


Única que beijou a morta foi Margô. Não na fronte, mas na boca, a sequiosa lésbica. Ainda ela que, na voz rouca de cantora, atacou a ave-maria e o padre-nosso. Aqui e ali um soluço abafado das carpideiras. Ele baixou a cabeça, pigarreou, cruzou as mãos.


Fixada a tampa, os coveiros tinham pressa: no súbito silêncio o eco surdo dos torrões. Bem alto Margô repetiu o padre-nosso para abafar o do outro enterro. Uma corruíra se uniu ao dueto dos coveiros.


Em volta do pequeno monte de terra corriam as rainhas, abrindo os copos-de-leite, espalhando as palmas, rasgando os pacotes. Eram tantas velas, um milagre não ateassem fogo às vestes, oferenda de tochas humanas. De repente a Margô:


— A coroa? Onde está?


Com grito de raiva:


— Ah, já sei... Que desgraçado. Pouca vergonha!


Afastou-se abalando os anjinhos de gesso com a fúria dos saltos dourados. Lá do enterro vizinho chegaram vozes indignadas, discussão logo extinta. De volta exibia em triunfo a formosa coroa:


— Eu não disse? Era a nossa coroa. Que estava lá. Desaforo, já se viu?


Entre dois túmulos espiava um senhor de luto — seria do outro enterro ou o velho coronel?


Ainda bem tudo acabado, Serginho olhava as flores murchas, as velas derretidas, os papéis rasgados, restos do piquenique fúnebre. As damas ostentaram as enormes bolsas de couro, onde levam de tudo, uma penteadeira, até muda de roupa.


— Vem com a gente, Serginho?


De repente aflitas, antes que se desfizessem ao sol, as noivas exangues que já não refletem a imagem no espelhinho de mão. Caras roxas e verdosas de afogadas na água podre do aquário, não fosse o cigarro sangrento da boca.


— Fico mais um pouco.


Uma por uma lhe apertaram a mão — era o viúvo. No beijo de Margô sentiu o travo de conhaque.


Esperou que ao longe se perdessem os Lázaros violáceos há quatro dias fora da sepultura, rostos ainda envoltos nos lenços festivos, mãos e pés ligados com luvas e botinhas. Enfim só com Ritinha.


Dos batalhões que cavalgaram o pobre corpo estropiado, só ele, o ginete solitário. A faca no coração ao lembrar o fosforescente lombinho branco debaixo do chuveiro. As outras se negavam a deixar, não ela. Em adoração manipulava o pezinho, fonte de prazeres proibidos. O par de seios róseos — como não escureciam nos maus tratos? Não a catinga de cadela molhada, ó cheirinho doce da prima da infância. Carinhosa, só o chamava de minha criança. E, puro requinte, como a Milady dos três mosqueteiros, a pequena falha do pré-molar superior esquerdo. No sábado a porta da cozinha fechada mas de luz acesa — seria o cafetão?


— Não se assuste, minha criança. É só uma amiga.


Confessou depois que era a filhinha de cinco anos que, como o vestido amarelo, ele não conhecia. No último beijo o agridoce de cigarro, tristeza, vinho tinto.


Mais perto o velho de luto insinuava-se por entre os túmulos. Envergonhado, Serginho virou o rosto, agora uma lágrima de verdade.


 

DALTON TREVISAN conseguiu, em cerca de dez anos, restabelecer o prestigio do conto no Brasil, inclusive como gênero de sucesso de vendas. Entretanto, antes de conseguir vencer o I Concurso Nacional de Contos do Paraná, em 1967, o próprio Trevisan, que já publicara alguns de seus melhores trabalhos em Novelas Nada Exemplares, não era exceção no pouco caso que os editores davam aos contistas. Nascido em 1925, na localidade de Colombo, perto de Curitiba, Dalton é hoje reconhecido como um escritor perfeito no gênero. Seus livros descrevem geralmente os problemas sociais e sexuais da baixa classe média curitibana. Entre eles: O Vampiro de Curitiba (1968), Guerra Conjugal (1969), O Pássaro das Cinco Asas (1974) e Faca no Coração (1975). O conto inédito que publicamos mostra o melhor Trevisan em ação: o mundo equivoco das noites provincianas, a tragicomédia das emoções, tudo sob um estilo depurado e conciso.


ILUSTRACÃO OLIVEIRA MONTE


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