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GABRIEL O PENSADOR | MAIO, 2003

Playboy Entrevista


O rapper carioca fala (muito!) de fugir da polícia no tempo de pichador,

do mico de dar show chapado, de ficar com fã

e da vida feliz com mulher e filho


Esta entrevista que se estenderá pelas próximas páginas parece grande, não? Tem cerca de 50 mil caracteres digitados, e quem mexe com Word no computador sabe que é um texto muito longo. Pois Gabriel Contino, o rapper Gabriel O Pensador, acaba de lançar CD e DVD ao vivo com seus maiores sucessos. O incrível é que todas as letras que ele canta no show, somadas, alcançam mais de 47 mil caracteres. Quase o tamanho desta entrevista. Em pouco mais de hora e meia, ele canta praticamente um pequeno livro.


Gabriel pensa, escreve, canta e fala muito. Lançou seu primeiro álbum em 1993, com 19 anos recém-completados. Foi um sucesso instantâneo, inserindo na MPB personagens como a Lôra Burra e o Playboy Filhinho de Papai. Se o grande público o aceitou facilmente, alguns rappers desconfiaram do garoto branco classe média que disparava críticas no ritmo que era praticamente propriedade exclusiva dos negros da periferia.


Totalmente na sua, o cantar e compositor, como ele gosta de preencher nas fichas de hotéis, seguiu sua carreira de guinadas, de altos e baixos. O segundo disco, mais "sério", sem os refrões fáceis que haviam conquistado até o público infantil, não foi bem. Mas veio então Quebra-Cabeça, seu álbum mais irreverente, que estourou: 1,5 milhão de cópias e dois hits cantados pelo país inteiro, 2345meia78 e Cachimbo da Paz (aquela da "maresia, sente a maresia..."). De lá para cá, mais dois CDs de estúdio e, agora, o registro ao vivo. Uma década de carreira, fama consolidada.


Fama que começou, na verdade, antes mesmo do primeiro álbum. Em 1992, no auge das manifestações pedindo o impeachment do então presidente Fernando Collor, Gabriel enviou a uma rádio a fita demo do rap Tô Feliz, Matei o Presidente. A censura baniu a música das rádios, mas os poucos dias no ar acenderam boa polêmica, ainda mais farte com o fato de a mãe do cantor, a jornalista Belisa Ribeiro, ter sido assessora de Collor.


O Gabriel que já falou em matar o presidente e atacou a "bundalização na TV" parece estar um pouco mais calmo fora dos palcos. Aos 29 anos, casado há oito com Aninha Lima, ex-colega de escola e cantara de sua banda, ele é pai de Tom, que comemora seu primeiro aniversário este mês. Entre a família, ensaios, shows e o surfe, arrumou tempo para um livro, Diário Noturno, com anotações e poemas.


Em oito horas de entrevista, divididas em sessões em São Paulo e no Rio, o editor sênior Thales de Menezes surpreendeu-se com Gabriel: "A primeira surpresa é que ele é alto, quase 1,90 metro, muito mais alto do que parece em shows ou clipes. E basta um pouco de conversa para admirar a capacidade de articulação e a simpatia do rapaz. Jeito de bom menino, lembra aquele garoto mais curioso da classe, o que conquista os professores com tanto interesse pelas aulas. Fala pelos cotovelos e fica se desculpando por não dar tempo para que o entrevistador cumpra seu papel. Quando cita alguma de suas canções, fica tímido e pede licença para cantá-la. Tudo o que ele cantarolou durante nossos encontros daria para editar um CD com performances inéditas.


É fácil perceber que Gabriel é do tipo que pára na rua e conversa com todo mundo. Sua adolescência passada entre tribos bem distintas, como a galera da Rocinha e os playboyzinhos da Barra da Tijuca, o deixa à vontade em qualquer canto do Rio, e é desse convívio que ele tira combustível para suas letras. Gabriel conta casos pessoais com sinceridade transparente. Chegou a se emocionar em vários momentos da entrevista. Recordou uma música que ele escreveu especialmente para um disco a ser lançado apenas em Portugal, país que o acolhe com carinho desde sua estréia. A canção, com o título Tás a Ver?, foi composta numa de suas viagens pela Indonésia, onde vai surfar com amigos quando a agenda e a conta bancária permitem. A letra fala de solidão, do sentido da vida, e Gabriel estava isolado, bem longe do filho pequeno quando a escreveu. Ele conseguiu cantá-la inteira, mas não evitou o choro.


Seu bom astral foi posto à prova durante a sessão de fotos para PLAYBOY, num hotel em São Paulo. Depois de posar pacientemente para a lente numa quadra de squash, Gabriel não percebeu a espessa parede de vidro transparente que delimita o fundo da quadra. Bateu farte, muito forte mesmo, com o rosto e o joelho. Teve de sentar no chão para não cair com a tontura e passou vários minutos com uma bolsa de gelo no rosto, o que não foi suficiente para evitar a enorme mancha roxa na testa. Mesmo sem estar totalmente recuperado, fez cara de durão e deixou o local caminhando sem ajuda, fazendo piada com todos à volta. Um bom humor inabalável".


PLAYBOY — Letras intermináveis, um livro lançado e um site oficial recheado de textos seus. Escrever é tão fácil assim para você?


GABRIEL — A palavra é minha ferramenta de trabalho. Cada vez mais eu fico fascinado pela música, quero muito aprender a tocar um instrumento, até hoje não aprendi, não precisei aprender. Por mais que eu queira tocar guitarra, saí do estúdio empolgado com isso, comprei urna guitarra e tal, cada vez mais eu me apaixono por escrever.


PLAYBOY — Você tem outros projetos de livro engatilhados?


GABRIEL — Eu estou escrevendo outras coisas depois do Diário Noturno, coisas de ficção. E uma viagem totalmente diferente escrever ficção, é algo que eu já experimentei em algumas letras, quando eu começo a viajar naquele personagem, mas numa letra de música é uma coisa mais curta, não tem tanta vida como quando você escreve um livro. Eu estou escrevendo um romance que tem o formato dividido em poesia e prosa. Tenho um projeto para um livro infantil, mas eu parei. Ontem pensei nele, deu saudade dos personagens.


PLAYBOY — Você foi daqueles moleques que escrevem desde cedo ou um dia teve um insight e começou a escrever?


GABRIEL — Eu gostava de escrever quando era moleque, mas não era daqueles compulsivos em termos de quantidade, de tempo dedicado a isso. Eu surfava, andava de skate, bicicleta...


PLAYBOY — Mas era do tipo que tirava boa nota em português, era aquele que a professora escolhia a redação para ler em voz alta para a classe?


GABRIEL — Rolava. Teve uma vez que os amigos questionaram se era minha mesmo aquela redação, acharam que eu tinha colado de algum lugar, porque tinha essa coisa da professora ler lá na frente e tal. Mas eu não era daquele tipo de moleque que fica enfurnado lendo e escrevendo. Eu queria ter lido mais, eu não li muito na minha vida e até hoje também não leio tanto, mas tive sempre professoras legais de literatura. Por isso eu dediquei meu livro às minhas professoras e à minha avó, que me incentiva, e à Tita, babá que também me incentivava muito. Ela me deu uma máquina de escrever elétrica, um presentão, eu era bem moleque ainda, tinha 11 anos, sei lá.


PLAYBOY — E continuou escrevendo? Quando veio a idéia de escrever letras de música?


GABRIEL — Eu parei de escrever por um bom tempo, só escrevia para a escola mesmo. Foi na minha época em São Conrado, época de surfe. Comecei a surfar com 12 anos, eu sempre falo que foi minha fase dos 12 aos 15 anos, quando convivi com a galera da Rocinha, no Cantão. Foi um tempo rico de aprendizado, de formação de personalidade, que eu acredito mesmo que tenha sido importante pra mim. Nessa fase eu estava muito mais esportista do que... pensador.


PLAYBOY — Como você se aproximou da música?


GABRIEL — Foi o rap que despertou isso em mim, quando eu tinha 16 anos. Não foi só rap, não. Bob Marley foi forte. Não sei se foi a música ou a minha idade, sei lá, mas eu comecei a querer me expressar, falar o que eu achava do mundo, o que eu achava dos jovens, das meninas e dos meninos, veio a Lôra Burra, o Playbov, comecei a fazer essas críticas e passei a mostrar pros amigos. Dali pra frente, eu não parei.


PLAYBOY — Suas primeiras músicas são dessa época?


GABRIEL — Não, é curioso lembrar que eu fiz umas musiquinhas quando tinha 11 anos, fico pensando como seria se eu não tivesse parado esses anos. Estudei num colégio, famoso até, o Senador Correia. Ele acabou, não existe mais. O colégio era muito liberal, tinha muito filho de artista estudando, o Moreno Veloso...


PLAYBOY — Era como o Equipe, em São Paulo, por onde passaram a maioria dos Titãs e outros futuros artistas.


GABRIEL — É, alguém comentou isso comigo, parece que tem a ver sim. A Aninha, minha mulher, estudava lá, a irmã dela, que também virou cantora, várias pessoas de lá viraram cantores, artistas, dançarinos, porque o colégio tinha aula de artes, de música, e as outras aulas eram muito... Bem, eu sempre fico com pena de falar que o ensino não era bom, fico chateado porque o dono do colégio vai ler, só estou falando isso porque o colégio fechou. Fiquei só um ano lá, depois eu fui para o Andrews, que é um colégio mais puxado, por isso eu posso comparar. Eu fiz a quinta série lá no Senador Correia e eu não me lembro de nada da aula de matemática, era uma aula moderna, tinha uns cubos, umas coisas que eu acho que eram experimentais ainda, eu não sei como passei de ano, tirei C e passei direto.


PLAYBOY — E ali você se interessou por música.


GABRIEL — Se por um lado o ensino era fraco, esse colégio tinha uma coisa legal voltada para a música, tinha sarau. Era o momento do Rock in Rio, eu comecei a curtir Blitz, ouvia muita rádio, Lobão, Camisa de Vênus, Ultraje a Rigor...


PLAYBOY — Você tinha uns 12 anos quando esse rock brasileiro estava no auge, não?


GABRIEL — Acho que eu tinha 11, por aí. Deixe eu ver, eu fiz 29 anos agora, dia 4 de março, acho que eu estudei lá no ano do Rock in Rio... Puxa, eu poderia até descobrir que ano foi, mas é uma conta meio complexa, minha matemática do Senador Correia não permite tanto, acho que eu preciso de uns cubos para poder calcular isso [risos]. Bom, eu comecei a curtir muito a Blitz e o Ultraje, aquela onda de letras diferentes, aquilo me chamava muito a atenção. Eu poderia citar outros, mas o importante é que eu comecei a me interessar por letra de música. Aí, com essa idade, eu fiz quatro musiquinhas, com melodia e letra.


PLAYBOY — Como você fazia melodia sem tocar nada? Cantarolava?


GABRIEL — É. Eu gravava numa fita cassete no meu quarto, ainda hoje eu faço desse jeito.


PLAYBOY — Canta a letra no ritmo que você quer e o que fica gravado já fica valendo?


GABRIEL — É. isso. Componho uns sambinhas assim. E o rap, que tem uma quase melodia, ele também sai assim, a letra não sai sem vida, fria, ela já sai com aquele andamento que deve ter, com sua métrica, seu formato, ou qualquer nome que a gente dê.


PLAYBOY — Você costuma escrever suas músicas de uma vez só, por inteiro, ou às vezes fica trabalhando uma idéia por um bom tempo, abandona e retoma várias vezes uma música?


GABRIEL — Varia muito. Eu acho que com texto em prosa eu sou mais chato, acho que tem que ser, demora um pouco, você dá uma relida, sempre acha alguma coisa para trocar. Se for ficção, fodeu, porque você pode ler e ter uma idéia totalmente diferente. Mas nas letras e nos poemas eu não mexo muito depois que estão prontos, eu já demoro mais em cada verso, de uma forma assim definitiva, sei lá. Há exceções, mas na música e na poesia a coisa costuma sair pronta. Numa outra resposta à sua pergunta, há casos em que a letra sai de uma vez, no carro, no ônibus, ou aquela que eu fiz na fila do alistamento militar, que eu acho que é o melhor exemplo, escrevendo na fila mesmo. Estava com medo de entrar, apesar de um pistolão que eu tinha, eu escrevi aquilo ainda preocupado de dar alguma zebra e eu ter de servir. Mas uma outra música, Sem Saúde, essa eu lembro de ter anotado algumas coisas que eu queria falar e organizar tudo depois, ela foi feita com mais calma, com mais frieza.


PLAYBOY — Todas as letras de seu show mais recente somam mais de 47 mil caracteres. Uma quantidade absurda, quase um pequeno livro. Você não esquece as letras no meio do show?


GABRIEL — Às vezes. Lembrei de uma coisa engraçada. Inevitavelmente você iria me perguntar sobre drogas, então vou falar dessa história, que eu não gosto de comentar se eu fumo ou não fumo. Bom, é assim. Eu não fumo, mas já fumei algumas vezes na vida. A única vez em que eu fumei antes de entrar num palco foi na turnê do primeiro disco, e foi a coisa mais ridícula da minha carreira. Porque o Tito, o cara que cantava comigo nessa fase, também não fuma.


PLAYBOY — Era uma opção bem definida, você nunca fumava mesmo?


GABRIEL — Eu não falo de uma rigidez total, de nunca tocar num baseado. Bom, nesse dia alguém ofereceu, acho que foi no Espírito Santo, sei lá... Nem me lembro, eu tava doidão... [gargalhadas]. E a gente aceitou, fumou um e foi fazer o show. Acho que foi um tapinha, nem sei se a gente fumou muito, é que eu sempre fui fraco pra bebida, pra fumo... Eu entrei no palco e, na hora da Lôra Burra, que todo mundo sabia cantar inteira, até as crianças, eu errei tudo.


PLAYBOY — Com o público cantando junto não fica mais fácil consertar?


GABRIEL — É, mas eu já comecei pela segunda ou terceira estrofe, eu pulei a primeira, olhei pro Tito, a gente ficou rindo, depois do refrão eu voltei a errar tudo. Quando fui cantar O Resto do Mundo, que é uma música triste, séria, que fala de um mendigo, deu ataque de riso, lamentável. Nem sei se devia estar contando isso, mas é para ilustrar os efeitos nocivos da droga. Foi horrível, a gente tentando prender o riso. Bom, mas mesmo sóbrio acontece de esquecer a letra. Aí eu improviso e até gosto de alguns resultados.


PLAYBOY — Voltando à escola. Você e a Aninha, sua mulher, se conheceram no Senador Correia. Vocês têm a mesma idade?


GABRIEL — Ela é um ano e meio mais velha. Eu estava na quinta série, ela estava na sétima, acho. Nesse ano em que estudei lá, fiz quatro musiquinhas, com melodia e letra. No ano seguinte, uma música minha foi inscrita no sarau que tinha todo ano, defendida por um amigo, e ela concorreu com uma música da Aninha. A minha ganhou, a dela ficou em segundo. Essa música minha tinha a ver com uma merda que eu fiz naquele colégio.


PLAYBOY — Conte essa história.


GABRIEL — No intervalo era permitido que a galera saísse para a rua, ficasse na padaria. Tinha uma onda de querer roubar pão de queijo na padaria e roubar doces nas Lojas Americanas, lá perto. A gente ia, roubava bala. Os garotos que pichavam muro roubavam giz, enfiavam no bolso. E eu já estava nessa. Um dia, eu peguei uma caixa de giz inteira e enfiei embaixo da camisa. O segurança viu e me pegou. Eu levantei a camisa e disse: "Eu vou comprar isso aqui, não vou, Rodrigo?", virando pro amigo que estava do meu lado. E não é que o filho da puta falou que não sabia de nada? Puxa, fui levado para um quartinho, o cara disse que só não me batia porque tinha um neto do meu tamanho. O diretor da escola foi chamado, deu uma merda fodida.


PLAYBOY — Você foi suspenso?


GABRIEL — Pior. A permissão de saída no recreio passou a ser exclusiva de quem tivesse autorização dos pais para isso. O cara mudou as regras por minha causa e me suspendeu por dois dias. Quando eu voltei para a aula, todo mundo tava querendo saber quem era o Pixote, meu apelido. Eu era conhecido da galera da minha idade, mas os outros, incluindo a Aninha, barrados no recreio, queriam saber quem era o Pixote e descobriram que era aquele pirralhinho. Todo mundo puto comigo, ela também, e é muito engraçado a gente ter se casado anos depois.


PLAYBOY — Você ainda se lembra da música?


GABRIEL — Era assim: "Fui na loja americana / com toda a pinta de bacana / mas na verdade sou pivete / só fui pra lá meter um jet [gíria de pichador para spray] / o segurança me olhou/ a minha cara ele marcou / mas logo ele deu mole e foi embora / aí eu vi que era a hora / peguei o jet e o meti / vi que ninguém estava ali / mas na saída tudo sujou / o segurança me pegou / é o fim da picada / ele me meteu a porrada..." Puxa, dizem que a galera foi ao delírio no sarau. "Ele me meteu a porrada / pegou o jet e me chamou de pivete / disse para eu não contar pra ninguém / senão me levava pra Funabem!"


PLAYBOY — Mas você e a Aninha só namoraram muito tempo depois?


GABRIEL — Eu perdi o contato com o pessoal desse colégio. Eu mudava muito de bairro e escola, então trocava de turma de amigos. Quando estava lá, estava começando com a pichação e descobrindo break dance, eu morava em Botafogo e queria dançar break. Mas aí eu mudei para São Conrado e virei surfista, só queria surfar e parei de fazer essas musiquinhas.


PLAYBOY — Você morou em muitos bairros do Rio, não?


GABRIEL — Tijuca, Ipanema, Humaitá, Lagoa, São Conrado, Barra... Mudei muitas vezes com a minha mãe e meu irmão, a gente acompanhava a evolução dela na carreira de jornalista. O casamento dos meus pais durou apenas seis meses depois de eu nascer. Eu costumo dizer que eu tive duas famílias muito diferentes. Meu pai se casou de novo e ficou casado por 25 anos, só foi se separar agora, há pouco tempo. Minha mãe teve outros casamentos, teve meu irmão, que é meu grande parceiro, o Tiago, três anos mais novo do que eu. Eu convivi bem com a estabilidade da família do meu pai e as mudanças constantes da minha mãe.


PLAYBOY — Você via muita TV quando era criança?


GABRIEL — Não, até que não. Eu gostava de programa de humor, do Jô Soares, do Chico Anysio. E muito programa de esporte, lia direto jornais de esporte. Sou flamengo fanático, gosto de jogar futebol. Hoje eu gosto de ver MTV, notícias, documentário, mas eu sou muito desorganizado, não marco horários. A não ser jogo do Flamengo. Sabe que hoje, se eu vou dar show em hora de jogo, eu armo o maior esquema para gravar e tento não ficar sabendo do resultado, aí eu posso assistir ao teipe com a mesma emoção de quem está vendo ao vivo. Mas o chato é que sempre aparece alguém para me dizer quanto foi o jogo e estraga todo o plano. Até no meio do show alguém da platéia já me falou.


PLAYBOY — E você se dava bem com seus irmãos?


GABRIEL — Sim, muito, sempre. Aliás, talvez o meu irmão se case com a minha irmã! [Pára e ri da expressão incrédula do entrevistador.] Deixe eu te contar isso, vai ser engraçado contar. Eu tenho uma irmã, a Joana, filha do meu pai. E o Tiago é filho da minha mãe com outro homem, não tem parentesco com a família do meu pai e nunca teve muito contato com eles. Agora eu descobri que ele está saindo com ela.


PLAYBOY — Como você reagiu?


GABRIEL — Foi engraçado. Eu fui a um desfile da grife que a minha irmã tem com uma amiga também chamada Joana. É a Casa da Mãe Joana. E lá no desfile eu encontrei o Tiago, achei estranho ele estar ali, só esperava encontrar a família do meu pai. Então, chega uma hora e ele vira para mim e diz: "Adivinhe com quem eu estou saindo? Com a Joana". E eu, maior otário, ainda perguntei: "Que Joana?" "Pô, tua irmã, cara!" Foi uma surpresa, mas todo mundo recebeu bem a coisa. Eles nunca tiveram convivência como irmãos, eles são irmãos só para mim, né? E no fundo eu acho que gostei. Afinal, a gente sempre é ciumento com a irmã, e dessa vez eu sei muito bem com quem ela anda saindo [risos].


PLAYBOY — Vamos voltar a São Conrado, quando você virou surfista.


GABRIEL — Minha fissura era o surfe, o skate também, nessa época eu só escrevia o que era necessário para a escola. Isso foi dos 12 até os 15 anos, era a turma do Cantão, gente da Rocinha. Eu era a exceção, o cara que tinha mais grana. A gente jogava videogame na minha casa, fazia uns pagodes, íamos a baile funk. Minha vida era bicicleta, skate e surfe. Aos 15, eu fui morar na Barra pela primeira vez. Eu tive uma adaptação esquisita lá, me enturmei com dois ex-pichadores, eu também era um, apesar de ter sido uma coisa bem de garoto mesmo, sabe? Era mirim. Ali eu virei um pichador de verdade, daqueles de tomar ônibus para pichar em outros bairros, aquela coisa mais arriscada.


PLAYBOY — Passou por algum apuro?


GABRIEL — Muitos. A gente sempre arrumava confusão, os seguranças odiavam a gente. Eu costumo falar que parei de pichar por causa dessas encrencas, mas nunca conto em detalhes como foi que aconteceu.


PLAYBOY — Por que não?


GABRIEL — Acho que não é legal falar, sei que pichar era uma coisa errada, mas era um vício. Teve uma fase na minha vida que tudo girava em torno da pichação, descobrir novos lugares... Olha, eu vou contar como foi toda a história, nunca falei disso numa entrevista. Já levei tiro da polícia. Fui com um amigo da Barra até a Cidade de Deus. Estava rolando um baile funk, do lado de um centro espírita. E o muro do centro tinha sido pintado há pouco tempo. A gente pegou o spray e foi pichar. Aí a gente ouviu uma gritaria no baile funk, uma correria, e de repente um monte de carros da polícia estacionaram atrás da gente. Saímos correndo e esse foi o nosso grande erro.


PLAYBOY — O que aconteceu?


GABRIEL — Os policiais vieram atrás. Meu amigo jogou o spray por cima do muro do centro espírita, mas corri com o meu na mão por alguns metros. Joguei a lata junto a uma árvore e continuei correndo. Os caras chegaram a atirar na gente, de metralhadora mesmo, e a gente acabou parando um pouco depois, cercados pelos policiais. Eles ficavam perguntando onde estava a nossa arma, a gente falava da pichação e a confusão foi geral. Só depois a gente soube que rolou um tiroteio no baile funk. Os policiais achavam que a gente tinha atirado e que o spray era uma arma.


PLAYBOY — Como vocês se safaram?


GABRIEL — Fomos para a delegacia, lá tinha uns caras que ficavam zoando com a gente, falando que a gente ia dormir na cela do Pica Grande, essas merdas. Mas eles foram percebendo que tinham cometido um engano, só que o policial que comandou a operação ficou puto e resolveu me levar para um reconhecimento no hospital. O cara que tinha tomado o tiro no baile iria dizer se eu era o cara que tinha atirado ou não. Comecei a pensar que o cara poderia ficar com medo e querer livrar a cara de quem realmente atirou. E se ele me apontasse como sendo o cara do tiro?


PLAYBOY — O que aconteceu?


GABRIEL — O sujeito tinha tomado um tiro no pé e estava dopadaço. O policial insistiu pra caramba, mas ele disse que não tinha sido eu. Voltamos para a delegacia e minha mãe já estava lá, na troca de esporros com os policiais.


PLAYBOY — Nessa fase você estava agressivo?


GABRIEL — Não. As gangues dos condomínios da Barra eram coisa nova pra mim, mas eu não brigava. Sempre fui crítico, tive então uma fase mais introspectiva, mais "pensador", né? Aí voltou a vontade de fazer música. Quando veio a faculdade, retomei o hábito de ler, embora repita que gostaria de ter lido mais. Eu lia no ônibus, no metrô...


PLAYBOY — O que você lia?


GABRIEL — Ficção. Nelson Rodrigues, Carlos Eduardo Novaes, também alguns livros de estudo que eu achava legais, livros do Roberto da Mata. Sabe, eu tenho uma certa curiosidade de tentar saber como seria se eu tivesse continuado na faculdade. Larguei bem no início. Eu estava numa onda pessoal de querer fazer a coisa direito, fazer a faculdade como se deve. Sabe como é, dá para levar na gaita, mas eu estava amarradão, queria fazer jornalismo, assistia a palestra do Caco Barcelos [jornalista], do Silvio Tendler [cineasta]. Uma vez assisti a uma do Leo Batista [veterano apresentador esportivo da TV Globo], depois da palestra eu pedi uma carona para ele, fiquei conversando um montão. Estava empolgadaço, mas aí pintou o sonho de gravar o disco, as apresentações amadoras...


PLAYBOY— Como veio a chance?


GABRIEL — Eu tinha uns 17 anos quando escrevi as primeiras letras, sem contar as musiquinhas da quinta série. Houve um luau em Ipanema e um baile funk na Rocinha, foram as primeiras vezes em que mostrei minhas músicas para estranhos, para gente que não fosse minha turma na faculdade. Acho que na Rocinha rolou antes do luau. Um amigo meu chamado Tripa, lá da Rocinha, conhecia um cara do baile funk, ele avisou que eu iria lá ligar uma bateria eletrônica e cantar em cima. Mas na hora eu vi que não tinha palco, eu cantei grudado nas caixas de som, a maior microfonia, muito ruim. Cantei duas músicas, uma era Tô Feliz, Matei o Presidente e outra, que criticava a polícia, o nome era Fodam-se as Autoridades que Abusam da Violência. O lugar era em frente a um posto de policiamento, eu vi que o cara do baile ficou preocupado, mas não empolgou a galera, o ritmo era rap, não o funk, o pessoal ficou escutando, não empolgou, mas foi a estréia.


PLAYBOY— E o luau, o que rolou?


GABRIEL — O luau foi depois, mas foi a primeira vez num palco de verdade. Sem a bateria eletrônica. Eu não estava programado para cantar. Fui lá, em Ipanema, com meu irmão Tiago e um amigo, Vinícius. De bobeira, só pra ver. Comecei a conversar com uns caras do morro do Cantagalo, por causa de um boné de hip hop de um deles. Falei que era rapper e um deles se empolgou, falou que era rapper também, começou a cantar uma música falando que era dele, mas eu sabia que era do Thaíde [rapper paulistano]. Ele cantou uns cinco versos e eu completei o sexto e disse: "Essa é do Thaíde, né?" Ele ficou constrangido.


PLAYBOY — Você desmascarou o cara.


GABRIEL — É. Mas essa conversa me empolgou e eu vi a oportunidade de cantar naquela noite. Foi anunciado um poeta no palco, que havia pedido na hora para se apresentar. Ele estava bebaço e declamou assim: "Me desculpe, meu pai, eu vou sair na rua pelado, de pau duro..." Falou um monte de merda e a galera vaiou. Um desperdício de palco. Entrei numa de querer entrar lá, fui atrás do organizador, numa escadinha que levava pro palco. Disse que era rapper, que ia cantar uma espécie de poema, e o cara ficou apavorado: "Poema? Ah, não vai dar, meu irmão! Não viu o cara que subiu aí, porra?" Eu insisti, expliquei que era um lance de música e acabei ficando horas nessa escadinha, atrapalhando todo mundo. Aí, atrasou alguma coisa, o organizador ficou sem saber quem chamar no palco, eu acenei para o cara e ele fez sinal para que eu entrasse. E ele me apresentou: "Com vocês, mais um POETA!" [Gargalhadas].


PLAYBOY — Deu para encarar?


GABRIEL — Fui recebido com uma vaia estrondosa! Aquele canhão de luz no meu rosto, eu gritei: "Tira esse holofote da minha cara!" E resolvi cantar uma música que era uma crítica a boa parte da galera que estava ali, que era Retrato de um Playboy. Subi lá de perna bamba, chinelinho, bermuda, boné. "Olha, não é poema, não. É rap, eu sou Gabriel O Pensador e vocês ainda vão ouvir falar muito desse nome. Essa letra tem muito a ver com a rapaziada que está aqui!" Nervoso pra caramba, mas cheio de marra, né? [risos]. E todo mundo prestou atenção. Teve gente que vaiou, alguns gostaram, mas foi uma barulheira boa.


PLAYBOY — E você desceu do palco sem problemas?


GABRIEL — É, fui dar uma volta na areia, encontrei uma gatinha que eu conhecia, mas ela não tinha me visto cantar. Mas pessoas que não me conheciam vieram falar comigo, um hippie apareceu e elogiou a minha mensagem. Acho que foi nesse dia que eu vi que a minha música podia agradar um monte de gente diferente.


PLAYBOY — A partir daí foi só sucesso?


GABRIEL — Não, a coisa começou a rolar mesmo quando eu conheci outros rappers e a gente batalhou lugares para cantar. Eu conheci o pessoal do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, o Ivanir dos Santos, ativista até hoje. Eles sempre criavam eventos ligados à causa negra. Tinha também o pessoal da UNE. Olha, eu sei que onde tinha brecha a gente pedia para cantar. Baile funk, festa, onde pintasse. Uma vez eu fui ao Disco Voador, que é um baile tradicional de charme no Rio. Depois de esperar um tempão para cantar, a gente teve o som cortado no meio da apresentação, acho que o cara não gostou da letra ou do ritmo mesmo, porque logo em seguida ele colocou mais charme para tocar.


PLAYBOY — Quanto tempo você ficou nesse circuito até gravar?


GABRIEL — Foi um período curto, principalmente se comparado a outros artistas e outras bandas que eu conheço, mas foi um tempo bom de relembrar. Eu fui para São Paulo, conheci a turma da estação São Bento do metrô, onde a galera dançava break, adorei. O break é um lance que ficou comigo desde moleque, eu nunca consegui dançar, nunca tive a competência, mas tem muito a ver com a pichação. Tudo para mim fazia parte de um grande universo hip hop.


PLAYBOY — Como você foi parar nas rádios?


GABRIEL — É, esse período de ir à luta coincide com a história de Tô Feliz, Matei o Presidente na rádio. Uma data marcante na minha carreira, setembro de 1992. Eu mandei uma demo dessa música para uma rádio, a RPC, do Rio, que não existe mais. A música ficou cinco dias no ar, era a mais pedida, e aí ela foi censurada. Isso me deu meus primeiros 15 minutos de fama.


PLAYBOY — E contribuía o fato de sua mãe trabalhar com Fernando Collor.


GABRIEL — Também, também. O governo tentou esconder que existira uma censura oficial, mas aí o Célio Boja, ministro da Justiça na época, teve de assumir para o Jornal do Brasil, foi um lance meio podre. Na verdade eles fizeram uma ameaça às rádios que tocassem a música. O pessoal de rádio conta que as emissoras foram ameaçadas de sofrer devassa fiscal, algo bem nojento. Isso o ministro não confirmou, mas disse que houve um pedido para que a música não fosse tocada porque poderia estimular um homicídio real. A música foi ao ar pela primeira vez no dia 9 de setembro, e o Collor deixou o governo menos de 20 dias depois.


PLAYBOY — Você ganhou a mídia.


GABRIEL — Rolou uma página na Veja, matéria na MTV, mas nada que me garantisse nenhuma expectativa junto às gravadoras. Eu cantei a música em alguns eventos em São Paulo, o pessoal gostava, eu cantava também Lavagem Cerebral, que é uma letra forte sobre racismo. A boa recepção da galera me dava confiança. O público já começava a cantar Lôra Burra junto comigo nos shows, eu sentia que ia rolar, que muita gente diferente gostava do que eu fazia. Era um público variado, na UERJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) era um tipo, no baile funk era outro. Por isso recusei um contrato com uma gravadora de São Paulo, porque vi que o esquema era restrito para um público de hip hop e eu sentia que poderia ter mais sucesso do que isso.


PLAYBOY — Como você chegou até a gravadora Sony?


GABRIEL — Quando fui lá, quem me recebeu foi o Sergio Lopes, responsável pelo setor internacional. Ele não tinha nada a ver com ouvir artista novo, e eu nem tinha fita demo. Eu cheguei com uma pastinha com as letras e uma fita com a batida, para eu cantar em cima. E eu convenci o cara a me ouvir.


PLAYBOY — Você cantou na sala dele?


GABRIEL — Foi, só fazendo isso para ele entender. A princípio ele pensou em me ajudar, mas fiquei esperando durante o Natal e o Ano-Novo por uma resposta. Ele veio então com uma verba da gravadora para que eu pudesse usar um estúdio para fazer a minha demo. Trabalhei com um produtor profissional, o Ary Sperling. A coisa deu certo, fui contratado, mas fiz o disco com o Fabio Fonseca, que a gravadora achava que combinava mais com meu estilo. E ele trouxe o Memê, que teve uma participação fundamental. O disco saiu rápido, foi para as lojas em maio.


PLAYBOY — E nessa época você ainda estava na faculdade?


GABRIEL — Tive que trancar, eu mesmo andava por aí fazendo minha divulgação, ia às redações dos jornais levar foto, descolava participação em programas. Na época do Tô Feliz, Matei o Presidente, fui ao Amaury Jr., em São Paulo. Fui de avião, podia levar acompanhante, então fui com um amigo rapper, ficamos num baita hotel. Aí eu cantei a música falando mal do Collor, disse umas coisas, e o Amaury nunca pôs no ar. Com essas e outras eu perdi muitas aulas, a coisa foi ficando complicada.


PLAYBOY — De onde veio o seu nome, Gabriel O Pensador?


GABRIEL — Eu inventei numa dessas letras em que eu me coloco na terceira pessoa, falo de mim como se fosse outro cara. Um amigo meu da Barra, quando eu disse a ele que realmente iria me tornar um rapper, perguntou qual seria o meu nome artístico, algo como MC Gabriel, ou coisa parecida, e eu respondi logo, "vai ser Gabriel O Pensador". Ele na hora achou que eu estava fodido com um nome desses, mas só me falou muito tempo depois.


PLAYBOY — Até hoje você se define mesmo como um rapper?


GABRIEL — Sim, acho que no começo da carreira eu estava mais alinhado com o rap do que estou hoje, até nas roupas que eu usava. Mas sempre fui rapper. Sei que uma parte do público estranhou quando eu lancei o terceiro disco, com a música que falava sobre molhar o biscoito e tal [2345meia78], era um álbum mais... engraçado, né? Mas os rappers, desde o pessoal old school, nos anos 80, também faziam música de sacanagem.


PLAYBOY — Quem são seus fãs?


GABRIEL — É difícil definir. Eu tenho até fã surdo. Sério. Estava dando autógrafos em Portugal e um casal veio falar comigo. Quer dizer, ela falava, dizia como ele gostava de mim e dos meus discos e tal. Eu achei que o cara era de outro país e não falava português, o que já seria estranho, né, um cara que não falasse português e gostasse do meu trabalho. Mas aí eu percebi a linguagem de sinais e vi que ele era surdo. Fiquei surpreso, e a ficha caiu mesmo quando ele perguntou por que eu não tinha colocado a letra de uma das músicas no encarte. Expliquei para ele que aquela era, na verdade, uma faixa instrumental. Incrível.


PLAYBOY — E o sucesso com as crianças?


GABRIEL — Olha, foi desde o primeiro disco, com Lôra Burra, Retrato de um Playboy e tal. Mas eu nunca iria imaginar que rolasse. Porque antes de eu estourar, com o disco na rádio, eu só tinha me apresentado em lugares como bailes funk, shows da UNE, apresentações no meio da madrugada. Quer dizer, nenhum contato com criança. E deu nesse sucesso todo, que rendeu uma história engraçada, quando fui convidado para fazer comercial de TV.


PLAYBOY — De que produto?


GABRIEL — Era um videogame, um console de game. Eles sabiam que as crianças se amarravam em mim e fizeram o convite, para que eu cantasse uma musiquinha no anúncio. Eu relutei, mas meu empresário achava uma boa ação naquele momento, resolvi topar, desde que eu pudesse escrever a musiquinha. E aí eu fiz uma música que, para dizer o mínimo, criticava o videogame. Falava que a vida era mais do que um jogo, coisas assim, e lógico que não passou e eu nunca fiz o comercial. Mas a verdade é que eu escrevi aquilo na boa, sabe? Sinceramente, não achava que eles não iriam gostar, fui ingênuo pra caramba.


PLAYBOY — O que você gosta de fazer longe da música, dos shows?


GABRIEL — Além de ficar com a família, eu gosto de surfar.


PLAYBOY — É daqueles que acorda às 5 da manhã para pegar onda?


GABRIEL — Não, eu acordo tarde, mas adoro surfar. Às vezes eu não consigo entender como é que eu fiquei uns anos sem o surfe, naquela fase da Barra. Hoje eu não fico sem. No dia em que eu abri o show do U2 aqui no Rio, eu fui direto da Prainha para o show. Passei na casa do Lazão, baterista do Cidade Negra, tomei um banho e fui para Jacarepaguá fazer o show. Uma sensação ótima.


PLAYBOY — Você está rico? Qual é a sua expectativa de vendas quando lança um disco?


GABRIEL — Bom, o artista ganha mais fazendo show do que vendendo disco. O disco é muito caro para as gravadoras, tem a produção, a divulgação. Por isso é justo que a maior parte do dinheiro vá para elas. Existem artistas que vivem bem vendendo pouco, mas constante, e ganham a vida mesmo na estrada. Eu vendi muito na estréia, uns 350 mil discos, fui surpreendido com o segundo disco, que não emplacou. Aí vendi 1,5 milhão de cópias do meu terceiro CD, Quebra-Cabeça, mas nunca mais repeti esse patamar, até porque toda a indústria retraiu, com a crise financeira e a pirataria. Acho que, mais importante do que vender, eu quero é que a minha música chegue até as pessoas, quero que as pessoas tenham o disco. Até porque no show não posso mostrar todo o repertório de um disco novo. E eu tenho uma vida boa, do lado financeiro.


PLAYBOY — Quais são seus sonhos de consumo?


GABRIEL — [Demora um pouco para responder, situação raríssima durante toda a entrevista. ] Viajar para surfar, já fui cinco vezes para a Indonésia, para ficar 15, 20 dias por lá. Isso é algo em que eu gasto algum dinheiro. Não sei se tem mais alguma coisa... Só fui comprar um aparelho de DVD agora, quando lancei o meu próprio DVD [risos]. Ah, eu tive um ataque de consumismo, comprei um aparelho de DVD para cada cara da minha banda. Eles mereciam, deram muito duro nos ensaios e na gravação do programa. Fui com a Aninha na loja e perguntei: "Tem um DVD maneiro aí, não muito caro? Ah, tem? E se eu comprar dez tem desconto?" Mas acho que eu não compro muita coisa mesmo.


PLAYBOY — Pranchas de surfe, talvez?


GABRIEL — Ah, não vale, porque eu ganho de graça. Não, uma vez eu comprei duas pranchas californianas, da Rusty, eu quis comprar, apesar de ganhar pranchas da marca Maresia. [Ele sorri malicioso; um de seus maiores sucessos, Cachimbo da Paz, tem o famoso refrão "maresia, sente a maresia".]


PLAYBOY — Qual a ligação entre você e a marca?


GABRIEL — Totalmente informal, a marca já existia antes da música, aí eles passaram a me mandar roupas e pranchas, como um agradecimento. A empresa é legal, investe mesmo nos atletas. Eu pedi, e eles mandaram roupas para dar de prêmio no campeonato de surfe da Rocinha. Bem, é natural que eles queiram dar esse apoio, pelo grande atleta que eu sou [risos].


PLAYBOY — Você surfa bem?


GABRIEL — Razoavelmente bem, surfo legal. Nessas viagens eu desenvolvo mais o surfe, depois passo um tempão parado e fico meio prego. Mas encaro ondas grandes, eu me benzo e vou.


PLAYBOY — Você é religioso?


GABRIEL — Estou numa fase meio devagar, mas todo dia eu faço uma coisa simples, um agradecimento antes de dormir, peço proteção. Antes de entrar no mar para surfar eu peço, eu tenho um Deus na minha cabeça. Mas quando você vê tanta desgraça acontecendo, fica difícil racionalizar essa fé. Quando criança eu era católico, mas na adolescência eu descobri o lado ruim da história da Igreja Católica. Parei de rezar as orações católicas e inventei um novo jeito de me benzer. Mas hoje eu admiro a luta da Igreja por causas sociais.


PLAYBOY — Falando em causas sociais, o que dá para fazer para consertar o Rio?


GABRIEL — A cidade está mesmo muito violenta. O que pode ajudar é o trabalho das ONGs nas favelas, com crianças e adolescentes. Só a inclusão social vai resolver, é preciso integrar o jovem com cultura e educação, com o esporte também. Só isso funciona. Combater a violência está cada vez mais difícil. O melhor é tirar essa galera da zona de exclusão, da terra de ninguém.


PLAYBOY — Você tem uma atuação direta?


GABRIEL — Estou trabalhando com uma ONG americana, chamada Dreams Can Be. A Lisa, presidente da ONG, me levou para conhecer alguns projetos, é uma ONG que ajuda a financiar projetos que já existem. Assim eu conheci um monte de ações legais, gente que saiu do crime para fazer circo, teve cara que evitou o crime indo lutar boxe, pegar onda. Na Rocinha há um projeto para manter a criança na escola. Isso é fundamental, porque essas estatísticas estão todas erradas.


PLAYBOY — Que estatísticas?


GABRIEL — Você lê por aí gente falando que 70% das crianças estão na escola, ou 90%, algo assim, mas quando eu paro no sinal e a moçada vem falar comigo: "Ei, Gabriel, e aí?", eu sempre pergunto se eles estão na escola. Muitos ainda mentem, mas tem aqueles que falam "parei, parei", moleques de 12, 13 anos. Eu arrumei uma história de montar um time de futebol, comprar uniforme, um projeto com essa ONG que eu falei, mas eu digo pra eles que só vai entrar quem estiver na escola, e então todos eles querem voltar. Eles saem porque não têm estímulo, é uma coisa triste, sem sentido. A gente até tentou colocar na escola um garoto que nunca estudou, um atleta da Rocinha, campeão de bodyboarding, de 14 anos, mais ou menos, porque também não sabe a data de nascimento. Ele não ficou, não teve o hábito. Tem casos muito difíceis, mas esse é o caminho.


PLAYBOY — Você já foi vítima da violência?


GABRIEL — Já, já fui assaltado quando era moleque, esse lance de roubar tênis, skate. Uma vez me safei de ser roubado no ônibus porque reconheci um dos carinhas da turma, o reconheci de uma noite de pichação. Já fui assaltado com arma, roubaram meu relógio. Essa coisa de roubarem meu skate foi engraçada, porque a gente tentou recuperar, eu e meu irmão, mas sem sucesso. Havia um garoto com o mesmo nome e a gente foi reclamar na casa errada, um horror, o pai quase bateu no moleque. Mas acho que tive sorte de não ter uma história pior. É só sorte mesmo. Quando acontece com um amigo próximo, vem aquela sensação de que poderia ter sido com você.


PLAYBOY — Apenas sorte? O combate à violência, como é feito hoje, não adianta nada?


GABRIEL — Não sei como combater a violência, não sou militar nem policial. Eles que se virem. Eu sei é que esses garotos que eu conheço, essa turma que fica no sinal perto de onde eu moro, eles estão a um pulo do crime. Um deles, de quem eu gostava muito, ele pegava onda, tinha sonho de ser surfista, eu perguntei por ele, porque o menino estava sumido, e aí me falaram que tinha virado bandido. É a falta de expectativa, a falta de tesão por outras coisas.


PLAYBOY — Você sempre conversa com esses garotos, não?


GABRIEL — Quero ouvir o que eles têm a dizer. Uma conversa interessante rolou num evento que eu fui a convite da Unesco, numa das casas de detenção de menores aqui do Rio. O Tito, o rapper que tocava comigo, tem um projeto de hip hop nesse local. Eu nem fui para cantar nem nada, mas cantei umas músicas no playback mesmo. Aí rolou uma conversa sobre a música Pra Onde Vai, que fala de um cara que foi assassinado por um assaltante. Alguns garotos ali são assassinos, mas eles pediram essa música, porque muitos deles já perderam também parentes e amigos, a morte está muito próxima de todos. Eles sabem que se eles ficarem nessa vida a morte vem cedo. Lá tem uma galera pesada, eles ainda não têm 18 anos, mas vão continuar no crime. E teve uma outra história que me marcou muito.


PLAYBOY — Pode contar?


GABRIEL — Eu conheci uma vez um garoto de 12 anos que já tinha matado três pessoas. Ele apareceu lá em São Conrado, vindo de São Paulo, fugiu dos traficantes da favela dele, porque ele matou um cara deles. A gente começou a conversar na praia, eu estava com amigos da Rocinha. Ele estava até com sangue na camisa. Me procurou ali na praia porque queria um colchão para continuar dormindo escondido, perto do hotel Sheraton. Ele foi pedir emprego no tráfego da Rocinha, mas não aceitaram.


PLAYBOY — Ele contou sobre os assassinatos numa boa?


GABRIEL — Primeiro tentou inventar uma outra história, mas depois confessou pra gente. O moleque já estava perdidão, entrou de cabeça no crime. Ele contou como matou a primeira vez, mandaram ele matar, como no filme Cidade de Deus, era uma prova para entrar no crime. O segundo caso foi num assalto, "eu acabei atirando", ele falou, contando de uma forma bem banal. A terceira vez foi essa, que deu o rolo. Mandaram o garoto matar o sujeito, e, do jeito que ele contava, dava para ver que era verdade mesmo.


PLAYBOY — O que aconteceu depois?


GABRIEL — Pensei em ajudá-lo de algum jeito, marquei um encontro com ele à noite na Rocinha. Conversei com pessoas das comunidades, tentando ver que tipo de ajuda poderia oferecer, mas ele não apareceu no encontro e nunca mais o vi. Puxa, pode me chamar de babaca, de emotivo, mas teve uma hora que marcou mesmo. Uma hora que ele disse não ser nenhum -grande homem, porque só matei três pessoas". Deu para sacar os valores invertidos, né? E emocionou mesmo quando eu perguntei se ele sabia fazer alguma outra coisa na vida, e ele respondeu: "Sei fazer mágica!" Porra, pode me chamar de ingênuo, mas vi o brilho nos olhos dele, coisa de criança mesmo, ele saiu pelas barracas na praia perguntando se alguém tinha um baralho para ele demonstrar os truques pra mim. Puxa, naquele momento, vi que ele era uma criança mesmo. Quer dizer, deu pra lembrar que ele era uma criança.


PLAYBOY — Você fica muito com seu filho?


GABRIEL — Fico, agora mais ainda. Porque tem uma fase inicial que é mais com a mãe, né? Ele está com quase 1 ano, nasceu no dia 5 de maio, às 51105, tudo com o número 5. Parto normal. Fico bastante com ele, mas eu acordo tarde, perco as coisas da manhã. Lá em casa tem um piano, que era dos pais da Aninha. Eu não sei tocar, mas sento e faço uns acordes e ele vem, por conta própria, engatinhando, querendo subir. Aí eu coloco o Tom no meu colo e deixo-o bater nas teclas. Ponho música para ele ouvir, a gente fica vendo MTV juntos. Coloquei para ele o meu DVD. Na primeira música, 2345meia78, é um momento do show em que aparece bastante a mãe dele. Ele fica louco. A gente bota pilha também, fica falando "mamãe, mamãe", ele gruda na tela da TV, pira mesmo. Ele vai aos ensaios também.


PLAYBOY— O que veio primeiro entre você e a Aninha, foi o trabalho ou o namoro?


GABRIEL — Ela já cantava com a Fernanda Abreu, mas eu não me aproximei dela por causa disso. Eu a vi na platéia de um show dos Paralamas, no Canecão, eu já era famoso. E vi a Aninha, gostei, fiquei de olho, e um amigo meu disse que ela tinha namorado. Depois de um tempo, fui a uma discoteca para ver o Shaquille O'Neal, o astro da NBA que estava no Brasil e também era rapper. Fui junto com o MV Bill, mas o Shaquille furou.


PLAYBOY — E a Ana estava lá?


GABRIEL — Ela estava dando uma festa ali, e eu encontrei a Mariana, que é irmã do meu irmão, Tiago. Pois é, ele também tem irmãs que não são minhas irmãs, só que nunca namorei nenhuma das duas [risos]. Ela era amiga da Aninha, que era a aniversariante. Ela tinha terminado o namoro um mês antes. Aí eu fui falar com ela, a gente lembrou do colégio e já teve assunto para a noite inteira, já demos uns beijinhos. Isso foi há nove anos.


PLAYBOY — Quando ela passou a cantar com você?


GABRIEL — Logo depois dessa festa, eu fui para Portugal. Sempre fiz muito sucesso lá, desde o primeiro disco. Um radialista português comprou o CD aqui e levou para tocar lá e houve uma empatia forte. Todos os meus discos venderam bem lá, ficam entre os dez mais vendidos. E, aí, voltando ao namoro, eu estava de viagem marcada para lá quando rompi ligamentos do pé jogando bola. A Aninha passou a cuidar de mim nessa fase, e eu pedi aos contratantes de Portugal uma passagem a mais, para que ela pudesse ir comigo.


PLAYBOY — Foi uma lua-de-mel?


GABRIEL — Foi importante pra caramba no nosso relacionamento, aí que passamos a ficar juntos 24 horas por dia. E lá, num daqueles shows que fiz em cadeira de rodas, ela deu uma canja, uma brincadeira. Na segunda turnê ela teve umas participações e, a partir do terceiro disco, eu reformulei a banda no palco, saiu o Tito, o rapper que cantava comigo, e eu passei a usar um casal de vocalistas. Aí a presença da Aninha ficou definitiva. Ela dança, a galera se amarra. Planejo fazer mais coisas com ela.


PLAYBOY — Casar cedo cria um escudo contra o assédio das fãs? Como você lida com isso?


GABRIEL — Quando eu era solteiro, acho que eu assediava mais as fãs do que elas me assediavam [risos]. Nunca tive muito grilo desse lance de ficar com Fá. Tinha 18 anos quando comecei a fazer sucesso, muitas fãs eram mais velhas do que eu.


PLAYBOY — E elas partiam para cima, desde o início?


GABRIEL — É, mas às vezes eu era chato pra caramba. No meio do show, eu ali cantando, umas meninas na primeira fila ficavam berrando sem parar: "Lindo! Lindo!" Eu ficava puto, entre um verso e outro eu olhava para elas e mandava: "Pô, se liga! Presta atenção na letra, caramba!" Nossa, que cara chato e marrento que eu era. Mas fora do show eu adorava.


PLAYBOY — Rolou um certo deslumbramento?


GABRIEL — Acho que foi tudo natural, eu curti bem essa fase de solteirice. Casei cedo, mas mesmo durante essa fase de amor livre, não só com fãs, com garotas descomprometidas... ou não [risos], acho que eu sentia solidão de alguma forma. Tinha relacionamentos carinhosos, mas era só ficar e tchau. Eu ficava com as garotas, mas não tentava namorar sério. Acabou acontecendo naturalmente com a Aninha. Eu saí de casa para morar com ela quando eu tinha 20, 21 anos. Ela se tornou um ponto de referência na minha vida. Agora, com o Tom, ficou mais forte.


PLAYBOY — Tom veio na hora certa, foi planejado?


GABRIEL — Veio. Teve uma gravidez anterior que não foi pra frente, foi triste pra caramba. A gente queria muito ter... Puxa, isso eu nunca contei em entrevista. Eu estava na Indonésia, sem a Aninha, fui surfar nessas viagens que não tem mulher. A menstruação estava atrasada, a Aninha ia fazer o exame. Na primeira manhã no barco, eu acordei e vi uns papéis enfiados por baixo da porta. Era um fax dela, lindo, simples, dizendo que eu ia ser pai. Ajoelhei no chão, uma maravilha, uma sensação indescritível. Liguei para ela, a gente comemorou por telefone. Aí escrevi um texto de cinco páginas, que começava "hoje é o dia mais feliz da minha vida, descobri que vou ser pai". Na volta, curtimos a gravidez, mas, na terceira ultrassonografia, veio a tristeza. Teoricamente, a gente deveria esperar uni pouco antes de tentar de novo, mas, por sorte, a gente se enganou lá e veio a gravidez do Tom. Ele nasceu no dia 5 de maio. A gente teve de ficar uma semana no hospital, e eu estava com meu laptop. O texto que eu tinha escrito na Indonésia estava dobrado na bolsa do laptop, eu nunca mais tinha lido. Então, de madrugada no hospital, sem nada para fazer, eu fui pegar aquele texto. Aí, puta, cara, o Tom nasceu dia 5 de maio de 2002, né? Eu peguei aquele texto e estava lá, escrito: "Bali, 5 de maio de 2001..." Que loucura! Acho que era para ser desse jeito mesmo.


POR THALES DE MENEZES

FOTOS CAIO GUATELLI


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