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GILBERTO GIL | JUNHO, 2007

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o músico e ministro da Cultura sobre controle do audiovisual, cachê estratosféricos, a beleza de Diogo Mainardi e o dia em que os jogadores da seleção se transformaram, literalmente, em canarinhos na Copa.

Ao completar 65 anos este mês, Gilberto Gil se mantém na linha de frente da cultura nacional. O artista que começou como uma das cabeças do tropicalismo nos anos 1960 ao lado de Caetano Veloso seguiu por mais três décadas como um compositor influente e cantor de sucesso até coroar, no início deste século, uma carreira política, iniciada como secretário de Cultura de Salvador em 1987, com a posse no Ministério da Cultura, cargo que exerce desde o começo do primeiro governo Lula. Muita coisa, portanto, mudou desde a última vez que Gil falou à PLAYBOY. Em 1983. Para dissecar essas mudanças, o editor Jardel Sebba foi ao encontro do ministro numa paradisíaca ilha localizada a 20 minutos de Salvador. A saga para entrevistá-lo começou bem antes, em julho do ano passado, quando o primeiro convite foi feito e cordialmente recusado pelo fato de o ministro se encontrar em férias na Europa. Seis meses depois, na Bahia, em clima de pré-Carnaval, parecia que tudo conspirava para que o encontro acontecesse. Engano. Por uma falha de comunicação entre as partes envolvidas, Gil não havia sido informado da entrevista, e concluiu, apropriadamente, que uma conversa dessas pedia um lugar mais reservado, longe dos afoxés. Afável, se comprometeu a receber a reportagem em uma outra ocasião, em outro ambiente, com a devida calma. A promessa se cumpriria dez dias depois, quando Gil abriu dois espaços na sua concorrida agenda, cujo principal desafio é conseguir conciliar o que parece inconciliável: sua bem-sucedida carreira de artista internacional com os muitos afazeres de um ministro de Estado.


O primeiro encontro ocorreu em São Paulo, depois do lançamento do projeto Programadora Brasil, que reúne material audiovisual nacional para pontos não-comerciais. Gripado, Gil foi mais contido que o normal. Parecia desconfiado. Só se animou quando, com o gravador já desligado, o papo descambou para a discografia do saxofonista Sonny Rollins. No dia seguinte, a conversa foi retomada no escritório do MinC no Rio. Mais à vontade e livre da gripe, o ministro falou abertamente de governo, música, maconha e família. O mais interessante em quatro horas de conversa com Gil é prestar atenção aos detalhes tão peculiares do ministro, como sua desenvoltura nos gestos — suas mãos interagem o tempo todo — e na escolha das palavras, especialmente aquelas que soariam estranhas na voz de qualquer outra pessoa, mas que, na dele, parecem normais. Confira todas elas aqui.


PLAYBOY — Cultura é algo relegado ao segundo plano no governo de um presidente que celebra a própria ignorância?


GILBERTO GIL — O que você quer dizer com celebrar a própria ignorância? O fato de não ter uma formação acadêmica formal? Eu também não tenho. Minha vida acadêmica se restringe a quatro anos da escola de administração. O presidente preza muito a noção contemporânea de cultura, que é dada pelo conjunto das subjetividades em movimento. No ministério, tentamos ver a cultura com essa diversidade. Isto também faz com que ele não cobre aquele Ministério da Cultura com verbas gordas para o atendimento ao repertório clássico. A cultura hoje é muito mais que isso. Os jogos eletrônicos, por exemplo, estão batendo à porta, e você não pode ficar pensando só no Museu Imperial, que é importante, mas não é só.


PLAYBOY — O presidente Lula conhece sua obra como cantor?


GILBERTO GIL — Talvez uma coisa ou outra. Nunca tive curiosidade de investigar em que medida. "Andar com Fé" acho que é a minha música que ele mais gosta, talvez por ser uma das mais populares. O presidente é um homem muito afeito ao gosto popular.


PLAYBOY — Ele é muito popular e o senhor tem uma linguagem muito rebuscada. O presidente tem dificuldade de entender o que o senhor diz?


GILBERTO GIL — Não, ele é muito adestrado na variedade semântica dos discursos, nas falas preparadas para ele. As falas preparadas pelas assessorias diferem muito do modo espontâneo de cada um, e a variedade de nomenclaturas técnicas, políticas, institucionais e protocolares à qual ele é submetido lhe dá o adestramento para a compreensão, para significados muito variados.


PLAYBOY — O senhor promoveu uma reunião do presidente com artistas na sua casa durante a campanha pela reeleição que ganhou repercussão graças a uma declaração do ator Paulo Betti, de que "não dá para fazer [política] sem botar a mão na merda". O senhor precisou fazer isso no Ministério da Cultura?


GILBERTO GIL — Sartre dizia isso, né? É uma opinião meio generalizada para todos que compreendem a dureza do realismo da vida. O exercício da política é o convívio com uma diversidade enorme de interesses e maneiras de se colocar diante desses interesses. Portanto, você tem que estar disposto a se defrontar com tudo.


PLAYBOY — O senhor sujou as mãos?


GILBERTO GIL — Isso é analogia, metáfora. Por exemplo, eu vejo a lama como uma substância que é usada generalizadamente [sic] para se referir ao mundo do incorreto, do ilícito, do ilegal, do ilegítimo. Nesse sentido, a merda é que nem a lama.


PLAYBOY — O senhor foi um dos principais defensores do governo Lula durante a crise do mensalão. Não temeu pela sua credibilidade em nenhum momento?


GILBERTO GIL — Nem sei se fui. Defendi o governo naquilo que achava defensável. Mas quem está na vida não pode ter questões de credibilidade. A credibilidade vem do crédito que lhe é dado e é negado, e eu sei que sempre terei algum crédito e algum descrédito. Não é dizer que não me preocupo, mas o preocupar-se é intrínseco ao fato.


PLAYBOY — Um dos pivôs da crise foi o ex-ministro José Dirceu, seu amigo. Ele continua seu amigo? O senhor concorda com o projeto do PT de tentar anistiá-lo politicamente?


GILBERTO GIL — Eu continuo me dando bem com Dirceu, embora o contato seja muito menos frequente do que quando ele estava no governo. Quanto à intenção de anistiá-lo, é natural que seja assim, o partido quer a maior disponibilização possível dos seus quadros para a atividade política, e Dirceu é um dos quadros efetivos do partido.


PLAYBOY — O senhor acredita que José Dirceu teve responsabilidade nos casos de corrupção no governo?


GILBERTO GIL — Não me cabe especular sobre isso. Todas as questões foram tratadas no plano da institucionalidade [sic] republicana, nas instituições de controle, nas instituições de fiscalização. As responsabilidades foram apuradas na medida das possibilidades institucionais de apurá-las. Eu, pessoalmente, vou achar o quê? Não posso achar nada.


PLAYBOY — O presidente Lula costuma dizer que encontrou um país quebrado. E o senhor, encontrou um ministério quebrado depois de oito anos de gestão Francisco Weffort?


GILBERTO GIL — Não. Em função da readequação administrativa que foi feita, encontramos disfunções, gargalos, sobreposições, mas nada que não fosse o que deveria ser objeto do nosso trabalho. Não encontramos nenhum grande problema, nenhuma grande questão a ser resolvida. O ministério anterior tinha uma forma de trabalhar e nós temos outra.


PLAYBOY — O problema do ministério é dinheiro?


GILBERTO GIL — É um deles. Porque criar programas, suprir carências, reformar museus, contratar pessoal especializado, tudo isso demanda recursos. Eu tenho 0,6% do orçamento da União, e diria que, com 1%, a gente talvez tivesse condições de tocar mais facilmente alguns programas. Agora, é preciso pensar que as demandas são crescentes e elas não se estabilizam rapidamente. Para atendê-las é preciso mais dinheiro. Uma das coisas que o Estado precisa compreender é que ele não pode ser um provedor exclusivo de recursos para a ativação da vida social. A sociedade também tem suas incumbências. O PAC [Plano de Aceleração do Crescimento] é um exemplo disto, de estímulos vindos dos orçamentos governamentais que visam alavancar interesse privado que resulte em investimento, em comprometimento empreendedor por parte do setor privado. Na área cultural é assim também.


PLAYBOY — Essa falta de dinheiro causa reconhecida falta de atenção do ministério a alguma área específica?


GILBERTO GIL — O que a gente procura fazer é distribuir o pouco que se tem entre todos que necessitam. É evidente que você tem de escolher, vai dar mais para algumas áreas e menos para outras. Mas a gente procurou distribuir os recursos da forma mais equânime. Não tivemos que abandonar certas áreas para atender outras. A área de audiovisual, cinema por exemplo, teve recursos e programas multiplicados. Você há de me perguntar qual o milagre para não deixar nenhuma área no abandono absoluto. Eu diria que, ainda que modesto, houve aumento no orçamento. Saímos de 0,2% em 2003 para 0,6%, com aumentos gradativos ao longo desses quatro anos. E houve também melhoria de gestão. O ministério ganhou em produtividade.


PLAYBOY — Então o ministério não era tão produtivo na gestão Weffort?


GILBERTO GIL — Eu acho que não, se você fizer a comparação pelos números, eficácia dos programas, âmbitos do atendimento. Tenho a impressão de que o ministério hoje está melhor do que estava antes.


PLAYBOY — Quando o senhor assumiu o ministério, disse que não poderia viver com os então 8.500 reais de salário. Se arrepende de ter dito isso?


GILBERTO GIL — Não, meu padrão de vida é bastante alto. Eu sou um pequeno-burguês, tenho uma vida pequeno-burguesa que se estabeleceu como patamar há 20 anos, pelo menos. O consumo que faço, ligado à minha vida, não é fausto, não está ligado a uma visão perdulária, muito pelo contrário, mas os meninos vivem, viajam, consomem, estudam em colégios caros.

PLAYBOY — Então, como complementou sua renda?


GILBERTO GIL — Com alguns shows, esporádicos. Vinte por cento dos shows que eu fazia antes. E, evidentemente, há um resíduo autoral, mas principalmente shows.


PLAYBOY — Shows durante viagens e eventos oficiais, como alguns o acusam de ter feito?


GILBERTO GIL — Não. Nos eventos oficiais eu faço shows oficialmente, não profissionalmente. Na Copa da Cultura na Alemanha, por exemplo, na época da Copa do Mundo, eu estava de férias, como estive no ano anterior, como estive também no primeiro ano, em 2003. Naquele ano, tirei um mês de férias e fiz um mês de shows na Europa com a Maria Bethânia. Em 2004, fiz outra turnê também durante as férias, assim como em 2005 e 2006. Shows profissionais, somente durante as minhas férias. Quando cantei, por exemplo, na Bastilha, em Paris, foi oficial, mas gratuito. Não tive remuneração.


PLAYBOY — A revista Veja revelou que seu cachê, durante o período no governo, subiu de 70 para 200 mil reais. Qual é o seu cachê?


GILBERTO GIL — Meu cachê é variado como sempre foi, pode ser 20 mil reais, ou 10 mil reais, ou gratuito. Canto por um preço para uns e por outro para outros. Se é uma grande empresa rica que está me pagando, é um preço; se é uma associação de bairro ou uma atividade beneficente, é outro.


PLAYBOY — Chega a 200 mil?


GILBERTO GIL — Não, nunca. Aqui no Brasil chega a 150 mil, que é um cachê que cobro em festas especiais, de empresas ricas. Quem pode mais, paga mais.


PLAYBOY — A Lei Rouanet permite a captação de recursos por artistas consagrados, como Daniela Mercury e Ana Carolina, e por espetáculos caros, como o Cirque du Soleil. O senhor inclusive se manifestou contra a captação por parte deste último. Não há uma distorção aí?


GILBERTO GIL — Primeiro vamos esclarecer uma coisa: eu nunca me manifestei contra a captação de recursos, seja do Cirque du Soleil ou de quem quer que fosse, desde que essa captação de recursos seja feita pelos processos regulares, formais, admitidos e acolhidos pela lei. A legitimidade é que talvez possa ser discutida, se é correto que uma lei de renúncia fiscal conceda essa possibilidade a projetos desse tipo, mas esta é outra questão, a lei está lá.


PLAYBOY — O senhor acha legítimo esse tipo de captação, enquanto há tão poucos recursos e tantas áreas menos assistidas?


GILBERTO GIL — A minha opinião é irrelevante nesse caso por duas razões. Primeiro, porque o aperfeiçoamento da lei para que as distorções sejam minimizadas, se não totalmente suprimidas, é uma iniciativa que o ministério já tem. Ele vem tentando e conseguindo em muitos sentidos aperfeiçoar a Lei Rouanet. Mas há uma série de complementos desse processo que depende do Congresso, que é a modificação da lei propriamente dita, que se não foi proposta até agora é porque houve uma expectativa quanto à continuidade ou não do trabalho. Não necessariamente coma minha pessoa, mas como ministério do governo Lula. E, em segundo lugar, porque a lei, tal como ela existe hoje, permite o atendimento a projetos desse tipo. Eu posso discordar da lei.


PLAYBOY — O senhor discorda da lei?


GILBERTO GIL — Sim, no sentido de que algumas áreas são, digamos assim, mais financeiramente sustentáveis, precisam menos de recursos públicos, e podem financiar seus projetos.


PLAYBOY — Quando pessoas como João Donato e Carlinhos Brown solicitam 1,5 milhão de reais de recursos públicos para fazer um disco juntos, não o incomoda o fato de ambos serem seus amigos?


GILBERTO GIL — Os amigos são cidadãos, são pessoas. Na medida em que um amigo meu pleiteie qualquer coisa de qualquer área do governo, seja ele federal, municipal ou estadual, por meio de processos legítimos e legais, o que eu vou ter com isso? Nada, não tenho nada a ver com isso. Não sou eu, não depende da minha caneta.


PLAYBOY — E no caso da Ancinav [Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual], foi um erro ter proposto a criação de um órgão regulador no setor audiovisual?


GILBERTO GIL — Não. A necessidade de um órgão regulador nesse setor é uma demanda crescente, uma necessidade que aumenta a cada dia. Uma proposição aqui ou ali talvez estivesse deslocada, mas o principal é que o jogo dos interesses ainda não estava apaziguado naquele momento com a idéia de um sistema regulador equidistante, acima de todos. Mas a necessidade continua cada vez maior.


PLAYBOY — Jogo de interesse de quem?


GILBERTO GIL — Das grandes corporações de mídia, dos cineastas, da radiodifusão, de tudo.


PLAYBOY — Alguns viram ecos de autoritarismo no projeto. O senhor não?


GILBERTO GIL — Não. Esse campo da formulação do direito é sempre um terreno movediço. Uma palavra que você põe ali pode significar intolerância, intervencionismo ou discriminação para uns, e nada disso para outros. O que poderíamos ter feito, e não fizemos, naquele momento era estabelecer essas formulações de uma maneira mais compartilhada. Mas esse é um dos riscos políticos que se corre sempre: se você faz algo compartilhado, corre o risco de não chegar à conclusão devido ao conflito de interesses que há na base. Se tenta interpretar em nome de todos, na melhor confluência de interesses, vira autoritário.


PLAYBOY — Ser particularmente chamado de autoritário o ofende?


GILBERTO GIL — Nesse diálogo institucional entre sociedade e governo, essas questões do plano pessoal não são levadas em consideração. O que há é o jogo frio da retórica ou das retóricas. Eu não me magôo.


PLAYBOY — O senhor costuma adotar atitudes conciliadoras até com quem faz questão de ser agressivo com o senhor, como o Lobão [o cantor chamou o ministro de "triste figura", "demagogo" e o qualificou como uma "raposa cuidando do galinheiro"]. Não se ofende com ninguém?


GILBERTO GIL — A agressividade é dele, é ele quem tem que lidar com ela. Eu não gosto muito de interferir. Quem sabe de mim sou eu, aquele abraço...


PLAYBOY — Mas não se irrita quando o Diogo Mainardi, por exemplo, escreve na revista Veja que o melhor que o senhor poderia fazer pela cultura brasileira seria parar de cantar?


GILBERTO GIL — Não. No caso do Diogo então é que não, porque todo domingo eu o assisto. Eu gosto de vê-lo porque acho ele bonito, mesmo dizendo essas coisas todas. Ainda que considere que ele trabalha com categorias com as quais não tenho nenhum interesse de trabalhar, de ser do contra e dedicar o mais veemente do seu ímpeto para demonstrar essa contrariedade, eu gosto do modo como ele busca uma certa compostura para esse exercício. Além do mais, acho que ele é conscientemente caricato, e vem cada vez mais explicitando isso. Tem uma dimensão picaresca naquilo tudo que me faz desconfiar da sua malignidade.


PLAYBOY — E belo, além de tudo?


GILBERTO GIL — Além do mais, é muito bonito [risos].


PLAYBOY — E quando alguém como o Caetano faz uma crítica ao senhor?


GILBERTO GIL — Muito menos com Caetano, que está mais autorizado do que quem quer que seja nesse mundo a me fazer críticas [risos].


PLAYBOY — Numa dessas ocasiões, o senhor disse que era impossível brigar com Caetano. Não seria o caso de tentar mais e melhor?


GILBERTO GIL — Caetano é uma inteligência monumental, um compromisso ético de uma extraordinária solidez, uma capacidade retórica extraordinária, uma memória prodigiosa. Eu não sou páreo para Caetano [risos].


PLAYBOY — O poder os afastou?


GILBERTO GIL — Não, continuamos bastante próximos, amigos. O mundo, sim, nos afastou, o fato de cada um ter a sua agenda e de uma agenda ministerial ser muito diferente de uma agenda puramente artística. Hoje convivemos menos por conta do ministério, mas não por questões políticas.


PLAYBOY — Por falar em proximidade, o senhor e o Caetano sempre mantiveram uma relação próxima ao senador Antônio Carlos Magalhães...


GILBERTO GIL — Quebrada, no meu caso, em alguns momentos de discórdia...


PLAYBOY — Mas nunca rompida. O senhor acha que o governo dos aliados dele na Bahia foi um momento de prosperidade para o estado?


GILBERTO GIL — Sempre encarei nossa relação como de consideração mesmo. Na minha avaliação, o período de governo dos aliados foi bastante próspero, ainda que os métodos de gestão pudessem levantar questões aqui ou ali. Mas o senador sempre foi visto como um defensor intransigente dos interesses da Bahia. Uma das críticas que ele tem feito a mim é exatamente pelo fato de eu não demonstrar o interesse que ele gostaria pela Bahia, mas isso é questão de estilo. O que ele traduz como interesse pode não ser necessariamente a maneira como eu traduzo, e eu já disse isso a ele. Uma vez estávamos eu, ele, o [ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Luiz Fernando] Furlan, entre outros, e ele disse de Furlan e de mim: "Esses dois ministros que estão aqui, eu gostaria que fossem mais interessados na Bahia, principalmente o ministro Gil, porque é baiano". Eu sou ministro do Brasil.


PLAYBOY — O senhor costuma falar com outro baiano ilustre, o compositor João Gilberto?


GILBERTO GIL — De vez em quando. Ele fala muito com a Flora [mulher de Gil há 26 anos]. Ele sempre liga no Carnaval porque fica com a coisa de ir para o trio elétrico. Já faz uns três anos que ele fala: "Vou para o trio elétrico", e não vai. Ele liga por outras razões também. Às vezes eu ligo para ele. Há uns dois anos não o vejo. A última vez foi na Europa, mas tenho desejado encontrá-lo porque tenho tido vontade de conversar com ele coisas em particular, coisas de música. Tenho curiosidade em saber como ele acompanha, e se acompanha, a minha vida no ministério. Eu queria que ele pudesse participar tocando violão no meu disco de samba.


PLAYBOY — O senhor tem algum fã devoto no primeiro escalão?


GILBERTO GIL — O [assessor especial da Presidência] Marco Aurélio Garcia conhece um bocado de coisa da minha obra, deixe-me lembrar quem mais...


PLAYBOY — A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff?


GILBERTO GIL — Não, se ela for fã da minha obra, não revela, não...


PLAYBOY — Ela ficou brava pelo fato do senhor ter afirmado que ela tinha um lado macho?


GILBERTO GIL — Brava propriamente não, mas não sei, talvez... Um pouco.


PLAYBOY — Ela reclamou?


GILBERTO GIL — Diretamente a mim, não, mas vi pelos jornais.


PLAYBOY — Isso atrapalhou de alguma forma a relação de vocês?


GILBERTO GIL — Não, pelo contrário, acho que ficamos mais amigos.


PLAYBOY — O senhor é contratado de uma gravadora multinacional, a Warner. Isso tem alguma interferência na hora de tomar partido em questões relacionadas à pirataria?


GILBERTO GIL — Olha, essa questão ética começa consigo mesmo. Quando trato da coisa pública, a primeira pessoa descartada como indivíduo sou eu, depois o mais próximo de mim, o medianamente próximo de mim e daí por diante. Quando assumi o ministério, uma das coisas que deixei claro era que eu, como tantos artistas brasileiros, tinha sido ao longo dos anos um dos beneficiados pelos projetos da pasta, inclusive pela Lei Rouanet. A política pública deve ver o público como anônimo. E isto vale para mim, para a gravadora que está próxima de mim, para o amigo que tenha esse ou aquele interesse.


PLAYBOY — O senhor já baixou música?


GILBERTO GIL — Não.


PLAYBOY — Tem um iPod?


GILBERTO GIL — Não, nem tenho vontade de ter. Não sou um ouvinte habitual de música programada, não tenho esse hábito. Ouço música aleatoriamente, quando me cai às mãos um disco ou estou interessado em algo muito específico. Nesse caso, vou e ouço. Mas essa coisa do iPod, do consumo programado de música, não. Eu não me programo para ouvir música.


PLAYBOY — E acredita que quem baixa música deva ser processado pela indústria e preso por isto?


GILBERTO GIL — Isto está na contramão da própria ambição do mundo produtivo e tecnológico. O ambiente digital e todos estes derivativos afluem para um campo de compartilhamento necessário, para um campo de socialização automática, natural. Eu costumo dizer que as tecnologias são cada vez mais anárquicas, e a gestão dessas tecnologias, por outro lado, reivindica uma posição mais conservadora, com regulações sob comando, menos espontâneas. É questão de mais dia, menos dia para que esses conflitos acabem sendo solucionados.


PLAYBOY — O senhor se sentiria roubado se um jovem baixasse o disco Refazenda gratuitamente na internet?


GILBERTO GIL — Eu não. Já estou disponibilizando diretamente, por meio de licenças especiais, acessos parciais, usos compartilhados da minha obra. Sou particularmente a favor de mais compartilhamentos.


PLAYBOY — Mas o senhor só compartilhou até agora um de seus discos, O Sol de Oslo. Pretende compartilhar sua obra inteira?


GILBERTO GIL — Na medida do possível, na medida em que seja detentor da propriedade dos meus fonogramas. Tenho vontade de compartilhar bastante, não sei se tudo, mas boa parte.


PLAYBOY — Mas se o senhor não for dono de seus fonogramas, ninguém mais será, ministro...


GILBERTO GIL — E quase nenhum artista brasileiro é de fato, já que a maioria está presa a contratos. No meu caso, os fonogramas que foram produzidos pela gravadora ainda são de propriedade da gravadora. O único que é meu mesmo é O Sol de Oslo.


PLAYBOY — Nos últimos anos o senhor lançou homenagens a Bob Marley, Luiz Gonzaga e discos ao vivo. Está vivendo uma crise criativa?


GILBERTO GIL — Eu vivi isso lá atrás, em 1982. Depois, dos anos 1990 pra cá, nunca mais. O último resíduo desse tipo de angústia criativa foi no disco Quanta [de 1994], que levei três anos fazendo, mas tinha muito a ver com o próprio gigantismo da coisa que me impus, falar de arte e ciência e dessa angulação pós-acadêmica que o mundo quântico oferece. Até me desculpo esses resíduos de angústia criativa por causa disso. Foi a tarefa mais complexa que me impus.


PLAYBOY — Quantas músicas compôs nesses quatro anos de governo?


GILBERTO GIL — Duas, ambas com Jorge Mautner, "Os Pais" e "Outros Viram". A primeira é uma balada sobre a contradição entre liberdade e repressão, e a outra é sobre o Brasil como um polo especial de aglutinação de novidade, de inventividade histórica, e o fato de que Walt Whitman, Maialcovski, Theodore Roosevelt citaram o país nesse sentido, reconhecendo o seu potencial em relação a outros povos.


PLAYBOY — Quando sua filha Preta Gil ficou nua na capa do disco dela, o senhor se manifestou contrário. Sua filha o constrange?


GILBERTO GIL — Não gostei quando ela ficou nua, mas não me constrange, não. Eu convivo com o histrionismo excessivo da Preta há muitos anos. Preta é igual, ela era assim quando tinha cinco, seis anos, montava o palco no jardim da nossa casa e passava horas cantando, representando, inventando personagem. Ela sempre foi assim.

PLAYBOY — Gostou do disco dela?


GILBERTO GIL — Musicalmente gosto, gosto da voz. No primeiro disco fiz algumas restrições, e conversei com ela sobre isso. Ela tinha uma espontaneidade, mas também uma certa negligência em relação à técnica. Por exemplo, ela tem uma voz tendente ao contralto muito mais que ao soprano, que a levava a escolher tonalidades baixas para determinadas músicas que, pela própria composição, exigiam tonalidades mais altas para poder manifestar sua qualidade como canção. Eu chamei a atenção, fui aos shows, e no segundo disco ela corrigiu esse problema.


PLAYBOY — O senhor concorda com a Rita Lee, que disse que a volta dos Mutantes era uma atitude de um bando de velhinhos ganhando dinheiro para pagar seus geriatras?


GILBERTO GIL — Ela inclusive, né? Está pagando por outros consultórios, como nós todos... Eu gostei muito. Não vi a volta, não assisti a volta, mas gostei do evento, da notícia.


PLAYBOY — Não há o risco de expor o Arnaldo Baptista, que ainda apresenta algumas sequelas de saúde, ao ridículo?


GILBERTO GIL — Afinal de contas, o que é isso agora, contra os portadores de deficiências, quaisquer que sejam? Eles não têm direito ao gozo pleno das suas deficiências? Não podem estar na vivência dos limites? Quando Arnaldo, que tem aqui e ali disfunções motoras ou quaisquer que sejam — e são irrisórias no caso dele —, pode tocar, se alegrar, alegrar outras pessoas, fazer-se veículo da musicalidade, criar polos linguísticos com outras pessoas e dialogar com elas, o que há de ridículo nisso? Não vejo ridículo algum.

PLAYBOY — No ano passado, o Carlinhos Brown reclamou com o senhor sobre o "apartheid escroto" que o Carnaval baiano teria se tornado. O senhor sente segregação no Carnaval baiano, entre cordas e abadas?


GILBERTO GIL — Não é que eu sinta, é uma segregação. Isso vem do período imperial, quando o povo fazia o Carnaval na frente dos palácios, e depois nos clubes. O Carnaval sempre foi uma festa ligada à nobreza, ao mundo católico, uma janela permissiva dentro das interdições da vida católica. Aqui é assim também, foi feita assim, com o povo participando e compartilhando da festa em vários níveis.


PLAYBOY — O seu camarote, o Expresso 2222, é parte dessa segregação?


GILBERTO GIL — Parcialmente sim, parcialmente não. Como é que a gente tenta equilibrar as coisas? Fazendo com que ele seja aberto. Ele não é pago, e nós temos o controle da distribuição dos convites. Então minha cozinheira vai, meu jardineiro vai, muita gente vai, muitos negros pobres da Bahia vão, convidados por nós. Vai o ministro Furlan e vai o Antônio, meu jardineiro, e eles ficam juntos, conversam, bebem cerveja. Fazemos um trio sem cordas, abrimos mão de uma possibilidade de remuneração maior, com a exploração de um espaço privado, para poder fazê-lo mais democraticamente. O que Flora ganhou nos Carnavais que fez é quatro, cinco vezes menos que qualquer um desses artistas médios. É uma opção que a gente faz.

PLAYBOY — Mas sua esposa ganha dinheiro com o Carnaval?


GILBERTO GIL — Ganha pouco. Ano passado, por exemplo, ela perdeu dinheiro, teve de botar do dela para equilibrar as contas. Então é muito variado, as pessoas não sabem da missa a metade...


PLAYBOY — Às vésperas dos 65 anos, sexo ainda é importante na sua vida?


GILBERTO GIL — Eu responderia como que Caetano costuma dizer: sexo é tudo, ainda que tudo não seja sexo.


PLAYBOY — Mudou sua percepção sobre esse assunto?


GILBERTO GIL — Mudou, ficou mais amigo o sexo, mais próximo, mais interior. Mais no corpo e menos na cabeça, mais manifestação física, energética, natural do que especulação estética.


PLAYBOY — O senhor sente a idade no que refere à energia sexual?


GILBERTO GIL — Eu diria que não, ela flui e aflui de maneira muito forte, muito densa, o que não corresponde à idealização do enfraquecimento do tônus sexual com a idade. Vou fazer 65 anos e tenho intimidade sexual, o desejo é maior, é mais intenso, está em todos os poros, prescinde da mediação mental. Eu era de formação católica, tinha a história do pecado. Hoje em dia não tenho nada disso. Masturbação era pecado quando eu era menino. Na adolescência, fazer sexo fora do casamento, ir à zona com uma prostituta, transar com uma namorada mais generosa, tudo isso era pecado. Depois, quando adulto, essas coisas não eram mais pecado, mas a sombra estava ali. Você se livra da noção do pecado, mas e a sombra? As palavras têm eco, e o eco permanece durante muito tempo. Só agora essas coisas estão silenciando.


PLAYBOY — O senhor disse que parou de fumar maconha aos 50 anos. Por quê?


GILBERTO GIL — Foi por acaso. Eu estava fazendo 50 anos e tinha todo um conjunto de considerações em relação à vida que se referia àquilo. Já vinha acompanhando o que era o hábito em mim, como ele se dava, as consequências, o bem-estar psíquico e o mal-estar físico, e então percebi que isso não vinha sendo resolvido de forma satisfatória. Eu continuava muito dilacerado pela confrontação entre bem-estar e mal-estar. Taquicardia e excitação excessiva no início da presença da substância e muito enfraquecimento do tônus no final. Havia um conflito muito forte, muito claro, e achei que não queria mais viver aquilo.


PLAYBOY — E o senhor usava com frequência?


GILBERTO GIL — Com frequência habitual, hábito, é o que estou dizendo. Todos os dias, ou quase todos os dias, ou várias vezes ao dia, qualquer coisa. Aquilo que pode caracterizar o habitual na consideração desse termo na nossa vida. Fumar, beber, fazer ginástica, comer, todas essas coisas. Para mim já foi habitual três refeições diárias, por exemplo, hoje é uma, no meu padrão de hábito. Foi um hábito adquirido aos 22, 23 anos.


PLAYBOY — Sente falta da maconha?


GILBERTO GIL — Não. O que não quer dizer que eu não possa eventualmente vir a fumar. Não me policio para não fazê-lo. Não tenho o hábito, nem o desejo.


PLAYBOY — A maconha tinha a ver com criação?


GILBERTO GIL — Tinha, me dava muita fluência na percepção dos meandros, nuances e cromatismos sonoros. E eu diria semiótico também, na coisa das palavras e tal. Teve influência nas composições, nos arranjos, na suavização, nos modos de tocar guitarra ou violão, nos usos da voz. Era um transformador de estado de consciência, com suas qualidades específicas, mas como qualquer outro.


PLAYBOY — Se o senhor ainda fumasse maconha, estando hoje no cargo que está, omitiria esse fato ou lidaria com isso com tranquilidade?


GILBERTO GIL — Eu não sei. Se eu diria? As exigências protocolares de uma função pública, se elas contam ou não contam? Acho que devem contar, né? Ao ser investido numa função em torno da qual existe um mundo de protocolos, você assina protocolos, e quando assina se compromete a obedecê-los.


PLAYBOY — Em Londres, onde morou no fim dos anos 1960, o senhor experimentou quais outras drogas?


GILBERTO GIL — Nunca experimentei heroína, vi muita gente usando mas nunca tive curiosidade. Cocaína eu experimentei numa viagem à Colômbia, há muitos anos, e não gostei. Aquela relação entre bem-estar e mal-estar era ainda mais crítica do que com a maconha. Já o ácido eu experimentei muitas vezes, na Inglaterra especialmente. Mas deixei. A última vez foi aqui no Brasil. Sei de gente que teve as famosas bad trips, paranóias, mas as minhas viagens foram todas muito suaves e prazerosas. Mas os take offs eram difíceis, com consequências físicas. Chegou um momento em que percebi que aquele custo-benefício não estava dentro da minha economia.


PLAYBOY — Também serviu à criação?


GILBERTO GIL — A viagem do ácido não me dava a mesma abertura de percepção que a maconha. A maconha é muito musical. O ácido levava para um mundo de fantasias, de imagens mentais e intervenções no senso de realidade. Lembro de uma viagem de ácido em que uns amigos que estavam numa sala desapareceram na minha frente, literalmente. Havia o choque daquela percepção, mas ao mesmo tempo um certo encantamento, uma certa curiosidade. Para onde tinham ido aquelas pessoas? Saí procurando pela casa e, de repente, estavam todos na cozinha [risos]. Mas para mim eles tinham evaporado numa nuvem do gênio da lâmpada. Esse era o mundo do ácido.


PLAYBOY — O senhor passou um tempo vendo pessoas desaparecerem?


GILBERTO GIL — Deixa eu te contar uma história. No jogo Brasil e Inglaterra, na Copa de 1970, eu tinha tomado um ácido e estávamos todos vendo o jogo na sala da nossa casa em Londres. Estávamos eu, Caetano e quem mais você imaginar. De repente, senti um certo fastio, não havia explicação. O jogo naquela tela já não estava dizendo nada, eu já não me comunicava com aquilo por algum motivo. Aquilo se tomou uma coisa blank, como diriam os ingleses. Deixei a multidão na sala e fui para o meu quarto. Sentei num canto, em posição de ioga, e fiquei ali, quieto, meditando. Um minuto, dois, cinco, sei lá, um tempo. De repente, alguma coisa me reconectou e disse: "Desça! Está na hora!". Então eu desci e sentei na frente do televisor, atrapalhando os outros. Comecei a ver os jogadores brasileiros como se fossem canários, e eles eram literalmente canários para mim! E me veio naturalmente: está na hora! Está na hora! Quanto mais a idéia do "Está na hora" chegava, evidentemente a hora do gol, eu ciscava. Eu dizia: "Cisca! Cisca! Cisca! Cisca!", e esfregava minhas unhas no carpete da sala. As pessoas se assustaram num primeiro momento, mas estava todo mundo concentrado no jogo...


PLAYBOY — E não devia ter ninguém muito careta naquela sala, né?


GILBERTO GIL — Também. Havia outros viajando de ácido ali. O "cisca, cisca, cisca" terminou com o gol do Brasil e foi um a zero, um único gol. Quando aconteceu o gol, acabou. Veio, conectou na hora do gol, desconectou na hora certa, tudo bem, ok [risos]. Isso é o ácido lisérgico, maconha é outra coisa, não tem nada a ver com isso...


PLAYBOY — Quando foi regravar as canções do Bob Marley na Jamaica, não deu vontade de voltar a fumar?


GILBERTO GIL — Mas ao mesmo tempo não precisava, eu já estava ali gravando aquela música, naquele mundo. E tenho essa decisão, não tenho muita vontade, a não ser que excepcionalmente venha a senti-la, de passar por esse dilema novamente, por esse conflito entre mal-estar e bem-estar.


PLAYBOY — O senhor é a favor da descriminalização de todas as drogas?


GILBERTO GIL — Sou, de todas, para que não haja problemas policiais e tráfico. Essa é uma questão de saúde pública. Passaria a ser um problema tratado como a dengue, o tabaco, a poluição.


PLAYBOY — O senhor fica até o fim do governo ou mistério sempre há de pintar por aí?


GILBERTO GIL — Mistério sempre há de pintar por aí. Eu estava lendo esses dias sobre o jogo finito e o jogo infinito. O finito é jogado para ganhar, e o infinito, para jogar. Eu jogo o jogo infinito.


PLAYBOY — Mas o senhor não tem grandes planos políticos para depois que deixar o ministério?


GILBERTO GIL — Nem pequenos [risos].


POR JARDEL SEBBA

FOTOS DARYAN DORNELLES


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