top of page

JOHN LENNON E YOKO ONO | DEZEMBRO, 1980

Playboy Entrevista


Uma conversa com o ex-Beatle e sua mulher sobre sucesso, riqueza, drogas, homossexualismo, rock, John Lennon, Yoko Ono e a intimidade do maior grupo de música popular de todos os tempos.


Starting Over, anunciava o título de seu novo hit. Começar de novo, começar sempre, dar a volta por cima. Cinco anos depois de se retirar da cena pública, John Lennon reaparecia, ao lado da inseparável Yoko Ono, para trazer boas novas: um LP, o fim da reclusão, a disposição de falar de tudo do passado, sem restrições, coração aberto. PLAYBOY fez com ele uma das mais longas e intrigantes entrevistas exclusivas de toda a sua história.


Perseguido por incompreensões do passado, de quem jamais o perdoou por ter trocado Paul, George e Ringo pelo amor de Yoko, John propunha, em Starting Over, primeira faixa do LP, uma espécie de carta de princípios — a ressurreição de um novo John e o início de uma nova década.


Double Fantasy, o disco, é um diálogo entre duas pessoas apaixonadas, que, correndo o risco de parecerem ingênuas, tentam recuperar, com os olhos do futuro, alguns velhos valores do passado. John Lennon voltava à cena para celebrar as virtudes do amor e anunciar um futuro de trabalho e otimismo. "Ainda tenho quarenta anos pela frente", profetizava. Ironicamente, as balas de um exibicionista assassino iriam desmentir esse otimismo. John Lennon morreu, na madrugada do dia 9, diante do prédio que tinha sido seu refúgio — sempre ao lado de Yoko.


Descrever a turbulenta história dos Beatles, ou a importância musical e cultural de John Lennon, seria o mesmo que exercitar o óbvio. Todo mundo sabe que Lennon era o líder dos Beatles — que, por sua vez, promoveram o maior fenômeno de comunicação de massas dos anos 60, até o controvertido rompimento, em 1970. Foi Lennon, aliás, quem decidiu pela separação; e há quem não o perdoe por isso, a ele e, sobretudo, à sua segunda mulher, a japonesa Yoko Ono, acusada de exercer uma influência exorbitante sobre ele — e com quem Lennon passou a trabalhar desde então. Em 1975, o casal se recolheu a uma vida eminentemente doméstica, enclausurada, de onde só veio a sair uns meses atrás, para a gravação de um novo LP e para esta entrevista a PLAYBOY, a mais longa de todas as entrevistas que John e Yoko jamais concederam. O repórter David Sheff, indicado para a tarefa, conta as dificuldades:


"Havia uma excelente chance para que esta entrevista nunca se realizasse. Quando os meus contatos com o pessoal de Lennon e Yoko começaram, um dos assessores de Yoko me telefonou, para perguntar a sério: 'Qual é o seu signo?' A entrevista aparentemente passaria a depender da interpretação que Yoko fizesse de meu horóscopo, assim como se diz que muitas das decisões de negócio tomadas pela família Lennon são ditadas pelas estrelas. Eu me via explicando para meu editor: `Sinto muito, mas minha Lua está em Escorpião — nada de entrevista'."

"Mas a fortuna sorriu para os meus astros: veio a ligação — a entrevista estava marcada. Assim, encontrei-me subitamente em Nova York, cruzando pontes e as barreiras de segurança que existem no quartel-general dos Lennon, o famoso prédio Dakota, no Central Park West, onde o casal mora, com o filho Sean, de 4 anos, e Yoko Ono reina, diariamente, de 8 da manhã em diante."


"Yoko é um mistério para o público. Talvez essa imagem enfumaçada venha de relatos — corretos ou não — sobre suas atitudes artísticas e filosóficas; talvez seja pelo fato de que ela não sorri nunca. Ou talvez tudo se baseie no ressentimento e na suspeita de que ela é uma feiticeira que controla a vida de John. A imagem veio sobrevivendo ao longo dos anos, desde o dia em que ela o conheceu, e, como não a desmentiu expressamente ou insiste em não sorrir, pode ser até que, no fundo, não se importe com isso. Era em coisas assim que eu pensava, enquanto descalçava meus sapatos — instruções de Yoko, informaram-me — e me preparava para caminhar pelo tapete que conduziria aos aposentos dos Lennon, e à nossa primeira conversa."


"Yoko foi me dando as instruções, enquanto dois agitados secretários circulavam feito vespas pela sala, atendendo os telefones e interrompendo eventualmente o que ela dizia. Respondendo a uma referência sobre outras celebridades que haviam sido entrevistadas por PLAYBOY, reagiu: 'Gente como Carter representa só o seu país. John e eu representamos o mundo'. Finalmente, explicou que os astros tinham, de fato, dito que estava tudo bem — tudo muito bem, na verdade. Quem era eu para discutir? Assim, no dia seguinte já me via sentado diante de um John Lennon ainda sonado e com a barba por fazer e de uma fartura de cappuccinos."


"Os cappuccinos, com o passar das horas e ao longo das futuras conversas, se revezariam com sushis, sashimis — 'peixe morto' , assim diz Lennon —, cigarros franceses e chocolate com amêndoas. Bastaram poucas horas de entrevista para que Lennon pusesse abaixo qualquer ideia preconcebida a seu respeito. Esteve mais aberto, cândido e irônico do que eu teria o direito de imaginar. Como Yoko tinha dado o sinal verde, ele estava preparado para falar de tudo, francamente. Para explodir — seria a expressão mais adequada. Se suas sessões de terapia de grito-primal eram seu desafogo emocional e intelectual dez anos atrás, pode-se dizer que esta entrevista teve o mesmo efeito agora."


"Após uma semana de conversa com Lennon e Yoko, juntos e separados, não havia mais dúvida de que a complicada e incompreendida relação entre ós dois é um fator básico, primordial na vida de ambos. 'Por que as pessoas não nos acreditam, quando dizemos que simplesmente nos amamos?', indaga John. O enigma Yoko Ono foi se diluindo à medida que a entrevista avançava, e as verdades emergiam — assim como se deu numa manhã em que ela foi surpreendida por um prosaico soluço no meio de um inflamado discurso contra o capitalismo. Perplexa, começou a gargalhar. E na gargalhada revelou toda sua vulnerabilidade, sua timidez e seu bom humor — não propriamente o que se poderia esperar de uma criatura que veio do Oriente para fazer uma lavagem cerebral em John Lennon."


Yoko nasceu em Tóquio, em 1933, de família de banqueiros e magnatas. Esteve nos Estados Unidos, pela primeira vez, no final dos anos 30 — para ser apresentada ao pai, que vivia fora do Japão desde que ela tinha um ano de idade. Adolescente, voltou aos EUA, onde fez o colégio e se casou, em 57, com um músico japonês, Toshi Ichiyanagi. Divorciada em 64, voltou a se casar com Tony Cox, que assumiu a paternidade de sua filha, Kyoko. Os dois se separaram em 67, dois anos antes do casamento com John.


Lennon é sete anos mais moço. Nasceu em outubro de 1940, foi abandonado pelo pai antes mesmo de vir ao mundo, e acabou sendo educado pela tia, em Liverpool, Inglaterra. Em 56, num festival de música promovido por uma congregação religiosa, conheceu um garoto chamado Paul McCartney. No ano seguinte, os dois formaram sua primeira banda, a Nurk Twins, precocemente falecida. Em 58, John formou os Quarrymen, convidou Paul e ainda aceitou a adesão de um amigo de Paul, chamado George Harrison. Os Quarrymen se dissolveram no ano seguinte, mas voltaram a se reagrupar, com o nome de Johnny and the Moondogs; e, depois, de The Silver Beatles. Tocavam em cabarés, fazendo fundo musical para strip-teases, até que conseguiram chegar ao renomado Cavem Club, de Liverpool. Pete Best foi contratado como baterista e os Silver Beatles partiram para Hamburgo, Alemanha, onde tocavam oito horas por noite, no Indra Club. Passaram. a se chamar simplesmente The Beatles e, em 60, de volta à Inglaterra, a banda já era o orgulho de Liverpool.


John casou-se, em 62, com Cynthia Powell, que lhe deu um filho, Julian. Divorciaram-se em 1968. No início de 62, Richard Starkey — nome artístico, Ringo Starr —substituiu Best como baterista dos Beatles e o resto — como John gosta de dizer, sarcasticamente — é novela.


PLAYBOY: Comecemos por John. O que você andou fazendo desde 1975?


JOHN LENNON: Andei fazendo pão e cuidando do bebê.


PLAYBOY: O quê?


LENNON: Cansam de me perguntar: "Mas o que mais você tem feito?" Eu respondo: "Você está brincando? Toda dona de casa sabe que bebês e pães são um trabalho de tempo integral".


PLAYBOY: Por que você se tornou um homem caseiro?


LENNON: Dos 22 aos 30 anos, passei minha vida envolvido em contratos e compromissos. Eu não era um homem livre. Meus contratos eram uma manifestação física de uma prisão. Passou a ser mais importante para mim me encarar e encarar a realidade do que prosseguir no mundo do rock'n'roll — e ficar oscilando de acordo com os caprichos de meu próprio desempenho ou da opinião pública. O rock já não tinha graça para mim. Decidi não seguir os caminhos habituais de quem lida com o negócio — ir para Las Vegas e cantar seus sucessos, se você está feliz; ou ir para o inferno, que é para onde foi Elvis Presley.


PLAYBOY: Muita gente teria continuado a trabalhar, ainda assim. É porque não consegue achar uma saída?


LENNON: Muita gente não vive com Yoko Ono.


PLAYBOY: Quer dizer...


LENNON: Muita gente não tem uma companhia que lhe diga a verdade e se recuse a viver com um artista de merda, que é o que eu sei muito bem ser.


PLAYBOY: Yoko, como você se sentiu ao ver John se tornando um homem caseiro?


YOKO ONO: Quando John e eu saíamos, as pessoas se aproximavam e perguntavam: "John, o que você anda fazendo?" Mas nunca perguntavam a mim, pois, como sou mulher, nunca se espera que eu faça alguma coisa.


LENNON: Enquanto eu limpava a sujeira do gato ou alimentava Sean, Yoko se sentava à mesa, em salões enfumaçados, com executivos de terno e colete que mal conseguiam abotoar, de tão gordos.


YOKO: Eu me encarregava dos negócios — a Apple, a Maclen [respectivamente, a gravadora e a editora dos Beatles] — e dos novos investimentos.


PLAYBOY: Você tinha alguma experiência de negócios?


YOKO: Eu aprendi. De início, meu próprio contador e meu advogado não conseguiam encarar o fato de eu lhes dizer o que fazer.


LENNON: Mais ou menos a atitude de quem diz: "Esta é a mulher de John, mas ela não pode estar realmente representando-o".


YOKO: Você ficaria assustado se soubesse como fui insultada por eles.


LENNON: Eles não aguentavam. Mas têm de aguentar, pois é ela quem nos representa [sorri]. Eles são machos, você sabe: imensos e gordos, bebedores de vodca, fanfarrões, iguais a cães amestrados — treinados para atacar, todo o tempo. Recentemente, Yoko fez o possível para fechar um negócio que nos daria um monte de dinheiro, inclusive a eles, mas eles lutaram e lutaram para que ela não o fizesse, porque a ideia era dela e ela é uma mulher. Mas ela acabou fazendo, e um dos rapazes lhe disse: "Bravo! John Lennon ataca outra vez". Mas John Lennon não tinha nada a ver com aquilo.


PLAYBOY: Por que vocês estão de volta às gravações e à vida pública?


LENNON: Há hora para aspirar o ar; há hora para soltar o ar. Sentimos vontade de voltar, agora que temos coisas a dizer. Yoko e eu tínhamos tentado fazer música juntos, muito tempo atrás, mas as pessoas achavam que os Beatles eram uma coisa sagrada que não devia ser abandonada. Agora, ou as pessoas já se esqueceram disso ou ficaram adultas. Não será mais a história do maravilhoso príncipe do rock'n'roll que compõe estranhas baladas ao lado daquela exótica mulher-dragão do Oriente.


PLAYBOY: Como vocês reagiram aos comentários negativos dirigidos, anos a fio, à "mulher-dragão", como diz você?


LENNON: Nós dois somos pessoas sensíveis e ficamos muito magoados. Não podíamos compreender. Quando você está apaixonado e vem alguém e diz: "Como você pode estar com aquela mulher?", você só tem a responder: "O que você quer dizer? Estou com a deusa do amor, a plenitude de toda a minha vida. Por que você quer atirar uma pedra nela ou me punir por estar amando-a?"


PLAYBOY: Mas o que dizer da acusação de que John Lennon está sob o feitiço de Yoko, sob seu controle?


LENNON: Isso é baboseira. Ninguém me controla. Sou incontrolável. Sou o único a me controlar, mesmo assim...


PLAYBOY: Muita gente acredita nisso.


YOKO: Não...


LENNON: Olhe, se alguém tiver que me impressionar, seja um Maharishi ou uma Yoko Ono, chega a hora em que o imperador fica nu. Há um ponto em que passo a perceber. Portanto, vocês aí que pensam que estou de olhos vendados, isto é um insulto a mim. Não que vocês estejam menosprezando Yoko, pois isso é um problema de vocês. O que conta é o que eu penso dela. Pois fodam-se! Vocês não sabem o que está acontecendo.


YOKO: Naturalmente, é um insulto total a mim...


LENNON: Ela não precisa de mim. Não precisa de um Beatle. Quem precisa de um Beatle?


PLAYBOY: Por que, então, dizem isso?

LENNON: As pessoas querem se apegar a alguma coisa, a alguém. Mas quem diz ter algum interesse em mim, como um artista individual ou mesmo como um dos Beatles, e não consegue entender por que eu estou com Yoko, então é porque não entendeu nada de mim. Essa gente só quer tietar — não importa com quem seja. Mick Jaegger ou outro qualquer. Vão tietar o Mick Jaegger, então. Eu não preciso disso. Vão perseguir os Wings. Me esqueçam. Se é isso que vocês querem, vão atrás de Paul ou de Mick. Não estou aqui para isso.


PLAYBOY: Você...


LENNON: Espere um minuto; às vezes, não consigo me desvencilhar desse assunto [fica de pé]. Ninguém nunca insinuou que Paul me dominasse ou que eu dominasse Paul! Nunca alguém achou que isso fosse anormal, dois rapazes juntos, quatro rapazes juntos! Ninguém nunca se perguntou: "Poxa, mas como esses rapazes não se separam? O que se passa nos bastidores? Qual é a de John e de Paul?" Nós passamos mais tempo juntos, naqueles dias, do que eu já passei com Yoko: nós quatro dormindo no mesmo quarto, praticamente na mesma cama, no mesmo carro, vivendo lado a lado, dia e noite, cagando e mijando juntos! Ninguém disse uma palavra sobre domínio ou controle. Veja, estão cumprimentando os Stones por estarem juntos há 112 anos. Viiivaaa! Na década de 80, a pergunta é: "Por que esses caras ainda estão juntos? Não podem se virar sozinhos? Por que têm de ficar em bando? Olha-se para os Beatles e para os Stones e toda essa rapaziada começa a parecer relíquia. Os dias em que havia essas bandas masculinas serão coisa de documentário. Haverá filmes mostrando aquele rapaz de batom remexendo a bunda e os quatro carinhas com maquiagem negro-pavor nos olhos, tentando parecer repelentes. Será uma piada, no futuro — não um casal cantando junto, ou vivendo e trabalhando junto. Quando você tem 16 anos, está certo ter companhias e ídolos masculinos. É a coisa da tribo, do grupo, tudo bem. Mas, quando você ainda faz isso aos 40, significa que, na cabeça, você ainda não passou dos 16.


PLAYBOY: Do início: como o príncipe encantado e a mulher-dragão se conheceram?


LENNON: Foi em 1966, na Inglaterra. Já falei sobre esse "acontecimento" — a artista japonesa de vanguarda que chega dos Estados Unidos. Eu vagava por uma galeria de arte e havia uma escada para se subir. Parecia coisa de louco. Você subia e, no topo, via só a palavra SIM. Naquela época, vanguarda era destruir pianos com martelos, quebrar escultura ou virar anti-anti-anti-anti. Era aquele absurdo de negatividade, entende? E foi aquele SIM que me fez ficar na galeria cheia de maçãs e pregos. Havia um sinal que dizia: BATA UM PREGO. Aí, eu disse: "Posso martelar um prego?" Mas Yoko disse que não, pois a mostra só estaria aberta no dia seguinte. Mas o dono veio até ela e sussurrou: "Deixe-o pregar. Ele é um milionário. Pode ser que ele o compre". Aí houve uma pequena discussão e, enfim, ela disse: "OK, você pode pregar o prego por 5 shillings". Aí o espertinho aqui disse: "Bom, vou te dar 5 shillings imaginários e pregar um prego imaginário". E foi assim que nos conhecemos realmente. Como se diz em todas as entrevistas, o resto é história.


PLAYBOY: O que aconteceu, então?


LENNON: Eu era um Beatle, mas as coisas começavam a mudar. Em 66, pouco antes de a gente se conhecer, fui a Almería, Espanha, para fazer o filme How I Won the War (Ah, Que Delícia de Guerra). Fez muito bem a mim. Fiquei seis semanas. Lá escrevi Strawberry Fields Forever. Me deu tempo para pensar, longe dos outros. Daí para a frente, passei a procurar um caminho para seguir, mas não tinha o ímpeto de pular para fora do barco por minha conta e empurrá-lo para longe. Quando me apaixonei por Yoko, meu Deus, foi uma coisa diferente de tudo o que eu tinha conhecido. Foi indescritível.


PLAYBOY: Apaixonar-se por Yoko e deixar os Beatles são duas coisas interligadas?


LENNON: Como disse, eu começava a querer sair, mas quando se conhece Yoko é como conhecer a primeira mulher de sua vida. Deixa-se os companheiros de bar. Não se vai mais ao futebol. Nem jogar sinuca. Nós nos casamos três anos depois, em 69. Era o fim da turma. Aconteceu de os rapazes serem conhecidos, e não apenas companheiros de bar. Todo mundo ficou tão irritado! Jogaram muita merda na gente. Muito ódio.


YOKO: Até hoje. Acabei de ler que Paul disse: "Compreendo que ele queira estar com ela. Mas por que tem de estar com ela todo o tempo?"


LENNON: Yoko, você ainda tem de carregar essa cruz? Isso foi anos atrás.


YOKO: Não, não e não. Ele disse isso recentemente. Fui para a cama com o cara de quem eu gostava e, de repente, na manhã seguinte, vejo aqueles três irmãozinhos lá na minha frente.


LENNON: Sempre achei que havia algumas insinuações de Paul em Get Back. Quando estávamos no estúdio, gravando, cada vez que ele cantava "Get back to where you once belonged" [Volte para o lugar que foi seu um dia], ele olhava para Yoko.


PLAYBOY: Você está brincando.


LENNON: Não, mas talvez ele diga que eu sou paranóico.


[A parte seguinte da entrevista se deu com Lennon sozinho.]


PLAYBOY: Falemos dos "irmãozinhos". Por que é tão impensável a ideia de que os Beatles voltem a fazer música juntos?


LENNON: Você quer voltar ao ginásio? Por que eu haveria de recuar dez anos só para dar a ilusão de uma coisa que não existe?


PLAYBOY: Esqueçamos a ilusão. Por que não fazer apenas bela música juntos? Você admite que os Beatles fizeram bela música?


LENNON: Por que os Beatles teriam de oferecer mais? Não deram tudo nessa bendita terra, por dez anos? Não se deram? Você é do tipo do fã amor e ódio, que diz: "Obrigado por tudo — mas não daria mais? Só um milagre?"


PLAYBOY: Não estamos falando de milagres — só de boa música.


LENNON: Dean Martin e Jerry Lewis tinham de ficar juntos só porque eu gostava deles juntos? Por que fazer as coisas só porque os outros querem? A própria ideologia dos Beatles era: faça o que bem quiser — assumir sua própria responsabilidade.


PLAYBOY: Perfeito. Mas você não acha que os Beatles criaram o melhor rock jamais produzido, e assim...?


LENNON: Não. Os Beatles — veja bem, estou muito envolvido com eles, não consigo vê-los com objetividade. Mas não me satisfaz nenhuma porra de disco que os Beatles fizeram. Não haveria um só que eu faria de novo. Fizemos boa coisa, mas fizemos coisa ruim.


PLAYBOY: Muita gente acha que nenhuma das canções que Paul fez sozinho se compara às que ele fez como Beatle. Você acredita que suas canções —nos discos da Plastic Ono Band — terão a perenidade de Eleanor Rigby ou Strawberry Fields?


LENNON: Imagine, Love e aquelas músicas da Plastic Ono Band estão no nível de qualquer música que eu fiz como Beatle. Pode ser até que se leve vinte, trinta anos para apreciá-las.


PLAYBOY: Parece que você está querendo dizer: "Era apenas uma boa banda fazendo boa música". Mas o mundo inteiro diz: "Não era só boa música, era a melhor".


LENNON: Bem, e daí? Não será mais! Todo mundo fala de uma coisa boa que acaba como se a vida estivesse no fim. Mas, veja, eu já terei 40 anos quando esta entrevista for publicada. Paul tem 38. Elton John, Bob Dylan... Somos relativamente jovens. O jogo não acabou. Se Deus quiser, ainda haverá quarenta anos de produtividade pela frente.


PLAYBOY: Não acha que seria interessante — nada transcendental, só interessante — vocês se reunirem, com essas novas experiências, e promoverem esse cruzamento de talentos?


LENNON: Não seria interessante trazer Elvis de volta para seus anos iniciais? Mas não quero tirá-lo do túmulo. Os Beatles não existem e não podem existir de novo. John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Richard Starkey podem fazer um concerto, mas não serão mais os Beatles, porque não temos mais 20 anos. Não podemos ser o que não somos. Teremos de ser crucificados outra vez? De andar sobre as águas de novo, só porque um bando de idiotas não assistiu à cena na época, ou não acreditou naquilo que via? Nunca. Não dá para voltar para uma casa que não existe mais.


PLAYBOY: Fora os milhões que ofereceram a vocês para um concerto conjunto, o que você achou da "generosa" oferta de 3.200 dólares para aparecerem juntos no programa Saturday Night Live?


LENNON: Paul e eu estávamos vendo o programa em minha casa. Quase corremos para o estúdio, só de sacanagem.


PLAYBOY: Você e Paul vendo TV juntos?


LENNON: Foi um período em que Paul chegava em casa, e simplesmente batia. Eu o deixava entrar. Até que lhe disse: "Por favor, telefone antes. Não estamos mais em 1956 e abrir a porta não é a mesma coisa". Ele ficou irritado com isso, mas eu não o disse por mal. Só queria dizer que a gente ficava o dia inteiro cuidando do bebê e que, de repente, chegava um cara batendo à porta...


PLAYBOY: Foi a última vez que você viu Paul?


LENNON: Sim, mas eu não queria isso.


PLAYBOY: Muita gente quer saber se o Quarteto Fantástico é composto por inimigos mortais ou pelos melhores amigos.


LENNON: Nem uma coisa nem outra. Não vejo nenhum dos Beatles há não sei quanto tempo. Alguém me perguntou o que eu achava do último disco de Paul e eu disse que parecia deprimido e triste. Aí percebi que não tinha ouvido toda a coisa. Ouvi uma faixa, Coming Up, que acho um bom trabalho, e mais alguma coisa que me deu essa impressão. Mas não acompanho o trabalho dele. Não sei dos Wings. Estou cagando para o que os Wings estão fazendo, assim como George, Ringo, Elton John ou Bob Dylan. Não é dor de cotovelo; é que ando muito ocupado com minha própria vida.


PLAYBOY: Você não ouve o trabalho de Paul e não fala com ele desde aquela noite no seu apartamento?


LENNON: Falar realmente com ele, não. Estive fazendo outras coisas e ele também. Ele teve 25 filhos e uns 20 milhões de discos. Como ainda teria tempo para conversar? Está sempre trabalhando.


PLAYBOY: Então, falemos do trabalho de vocês juntos. Como funcionava a parceria Lennon-McCartney?


LENNON: Bem, talvez se pudesse dizer que ele oferecia a claridade, o otimismo, enquanto eu sempre tendia para a tristeza, um cortante pessimismo. Houve um período em que eu pensei que não escrevia melodias, que Paul fazia todas, e eu, só rocks diretos e estridentes. Mas é claro que, quando me lembro de In My Life, ou mesmo coisa velha como This Boy, vejo que também sabia fazer melodias. Paul tinha muita técnica, podia tocar um monte de instrumentos. Ele dizia: "Por que você não mudou isto aqui? Você já usou esta nota cinquenta vezes". Mas era eu quem desenvolvia, levava em frente uma canção — que, em geral, Paul começava.


PLAYBOY: Por exemplo?


LENNON: Michelle. Paul e eu estávamos em algum lugar, e ele caminhava e ruminava os primeiros acordes, já com letra, sabe? [Cantarola "Michelle".] E disse: "Daí para a frente, para onde ir?" Eu tinha estado ouvindo uma cantora de blues, Nina Simone, que dizia algo como "I love you!" em uma de suas canções e foi o que me fez pensar no miolo de Michelle [canta] "I love you, I love you, I lo-ove you..."


PLAYBOY: Quem fazia as letras?


LENNON: Sempre me dei bem com as letras, embora Paul seja um letrista bem mais capaz do que ele próprio haveria de pensar. Hey Jude é uma letra dos diabos! Nos primeiros tempos, porém, nós não ligávamos muito para a letra, desde que a canção falasse de um desses temas vagos — ela te ama, ele a ama, eles todos se amam.


PLAYBOY: Um exemplo de letra que você e Paul trabalharam juntos.


LENNON: Em We Can Work It Out, Paul fez a metade inicial, eu fiz o fecho. Você tem Paul escrevendo: "We can work it outlwe can work it out" [Nós podemos resolver isso! Podemos resolver isso] — muito otimismo, percebe? E eu, impaciente: "Life is very short and there's no time for fussing and fighting, my friend..." [A vida é muito curta e não há tempo para futrica e briga, meu amigo...].


PLAYBOY: Você não andou dizendo que vocês faziam a maioria das canções separados?


LENNON: Estava mentindo [ri]. Estava ressentido. Mas, na verdade, muitas das músicas foram feitas cara a cara.


PLAYBOY: Mas outras eram feitas a parte, não eram?


LENNON: Eram. Sargeant Pepper foi ideia de Paul. Lembro-me de que ele trabalhou muito na coisa, até me chamar para dizer que estava na hora de compormos alguma música. Sob a pressão de apenas dez dias de trabalho, eu me arranjei para fazer Lucy in the Sky e Day in the Life. A gente não se comunicava muito, sabe? Foi por isso que fiquei ressentido com toda a história. Hoje, entendo que era o eterno jogo da competição.


PLAYBOY: Você não acha que aquela magia entre vocês dois é algo que vocês perderam, em seu trabalho individual?


LENNON: Não sinto perda alguma. Não quero que isso soe negativo, como se eu não tivesse precisado de Paul, porque, quando ele estava lá, obviamente a coisa funcionou. Mas não posso... É mais fácil dizer o que eu dei a ele do que o que ele me deu. E ele diria o mesmo.


PLAYBOY: Não é possível que, com vocês, tenha sido o caso de um todo criativo maior do que a soma das partes?


LENNON: Não sei se isso irá surpreender você: quando os Beatles tocaram nos Estados Unidos, pela primeira vez, era pura técnica. No sentido de que já eram putas velhas. A excitação tinha se dissipado após tantas apresentações e tanto tempo.


PLAYBOY: Mudemos para Ringo. O que você pensa dele musicalmente?


LENNON: Ringo era um astro em Liverpool. Um baterista profissional que cantava e executava, tinha o conjunto Ringo Startime, um dos melhores da Inglaterra. O talento de Ringo desabrocharia, de uma forma ou de outra — como ator, baterista, cantor, não sei. Havia algo de promissor nele e ele teria despontado com ou sem os Beatles. Ringo é um demônio de baterista. Não é tecnicamente bom, mas penso que a bateria de Ringo é subestimada, assim como o baixo de Paul. Paul foi um dos mais inovadores baixos de qualquer época. E metade do que ele faz agora é amadurecimento do período dos Beatles. Ele é egocêntrico em tudo que lhe diz respeito, mas sempre foi menos orgulhoso do que deveria ser em relação a seu baixo. Paul e Ringo não eram tecnicamente uma beleza... Nenhum de nós era técnico de música. Nenhum de nós lia partitura. Nem escrevia.


PLAYBOY: E que tal o solo de George?


LENNON: All Things Must Pass era bom. Mas ele foi um pouco longe demais.


PLAYBOY: Você fala do processo em que ele foi acusado de ter feito em My Sweet Lord um plágio de He's So Fine?


LENNON: Bem, foi ele quem quis. Ele sabia o que estava fazendo.


PLAYBOY: Conscientemente, você acha?


LENNON: Não é tão tolo assim. Poderia ter mexido numas partes da música e ninguém mexeria com ele, mas ele deixou assim e pagou o preço. Talvez pensasse que Deus o tiraria dessa.


PLAYBOY: Você não falou muito de George nesta entrevista.


LENNON: Fiquei magoado com o livro de George, I, Me, Mine. Portanto, este é um recado para ele. Ele publicou um livro sobre sua vida e, graças a omissões propositais, diz que minha influência na sua vida foi absolutamente zero.


PLAYBOY: Por quê?


LENNON: Porque a relação de George comigo era a de um jovem discípulo com um cara mais velho. Ele tem três ou quatro anos a menos do que eu. É uma relação de amor e ódio e eu acho que George ainda acumula ressentimentos contra mim, pois fui o pai que deixou a casa. Não quero ser egocêntrico, mas ele era quase um discípulo meu, quando começamos. Eu já estudava arte quando Paul e George ainda estavam no ginásio. Há uma grande diferença, então. Eu me lembro do dia em que ele me chamou para pedir uma ajuda em Taxman. Dei uns toques, já que ele havia pedido. Ele veio a mim porque não podia ir a Paul, pois Paul não o teria ajudado. Eu não queria fazer. Pensei: Oh, não. Não me diga que vou ter de dar uma mão no trabalho de George. Basta o meu e o de Paul. Mas, como eu gostava dele e não queria feri-lo, quando ele me chamou eu disse: "Está certo". George ainda não tinha se firmado como compositor. Como cantor, a gente permitia a ele uma faixa em cada LP. Se você escuta os primeiros LPs, dos Beatles, na edição inglesa, verá que ele ganhava sempre uma faixa. As músicas que ele e Ringo cantavam, a princípio, eram músicas que costumavam ser as mais fáceis de cantar. Portanto, eu me magoei um pouco com o livro de George. Mas não se enganem. Eu ainda amo esses caras. Os Beatles acabaram, mas John, Paul, George e Ringo continuam.


PLAYBOY: E se vocês se reunissem num concerto gigante de caridade?


LENNON: Eu não gosto de caridade.


PLAYBOY: Como?


LENNON: Por que é sempre roubalheira. Eu não me apresento para ganho pessoal desde 66, a última apresentação dos Beatles. Desde então, cada concerto Yoko e eu fizemos para obras de caridade específicas. Cada concerto que a gente fez foi uma massada ou uma roubalheira. Hoje, a gente prefere dar dinheiro a quem a gente quer. Sabe o que é dízimo?


PLAYBOY: É dar uma percentagem fixa de sua renda.


LENNON: Perfeito. Eu vou fazer isso, de maneira privada. Não quero ficar aprisionado nesse negócio de salvar o mundo no palco. O show é sempre uma balbúrdia e o artista sempre se apresenta mal.


PLAYBOY: E o concerto por Bangladesh, com George e outros caras como Dylan?


LENNON: Bangladesh foi uma merda. É tudo roubalheira. Melhor esquecer. Vocês aí que estão me lendo, não se abalem em me mandar todo esse lixo: "Venha salvar os índios, venha salvar os negros, os veteranos de guerra!" Todo aquele que eu quiser salvar, será salvo pelo dízimo, exatamente dez por cento de tudo o que nós ganhamos.


PLAYBOY: Mas isso não é nada diante do que um empresário, Sid Bernstein, disse que vocês poderiam levantar, através de um concerto televisado para todo o mundo. Ele calcula uns 200 milhões de dólares numa única noite.


LENNON: Isso é uma espécie de comercial para Sid Bernstein, que eu não compro.


PLAYBOY: Mas 200 milhões para um país miserável da América Latina...


LENNON: De onde as pessoas tiram essa ideia de que os Beatles deviam dar 200 milhões de dólares para a América Latina? Olha, os Estados Unidos já despejaram bilhões em lugares como esse. Não significou nada. Depois que os 200 milhões se forem, o que acontecerá? É um círculo vicioso. Pode-se despejar dinheiro infinitamente. Depois do Peru, o Harlem; depois, a Inglaterra. Não haverá um concerto. Teríamos de dedicar o resto da vida a uma excursão mundial, e eu não estou preparado para isso. Não nesta vida, pelo menos.


[Yoko volta à conversa.]


PLAYBOY: O New York Post disse recentemente que você admitiu que sua fortuna está em 150 milhões de dólares...


LENNON: Nunca admiti nada.


PLAYBOY: O Post disse que admitiu.


LENNON: O que o Post diz... Está certo. Então nós somos ricos. E daí?


PLAYBOY: Vocês são socialistas, não?


LENNON: Na Inglaterra, só há duas coisas a ser, basicamente: ou você está com o movimento operário ou está com os capitalistas. Se você é da classe de onde eu venho, ou você se torna um troglodita de direita, ou você se torna um socialista por instinto, como eu era. Quer dizer: eu achava que as pessoas tinham o direito de ganhar suas dentaduras e ter sua saúde bem cuidada, e todo o resto. Fora isso, eu trabalhava para ganhar dinheiro, e queria ser rico.


PLAYBOY: Seja qual for sua política, vocês têm jogado muito bem o jogo capitalista.


YOKO: Não há dúvida de que nós ainda vivemos no mundo capitalista. Acho que, para sobreviver e mudar o mundo, a gente tem primeiro de cuidar da gente mesma. Eu não tenho um tostão, é tudo de John, eu sou dura. Mas eu uso o dinheiro dele e tenho de encarar essa hipocrisia. Costumava pensar que dinheiro é obsceno, que os artistas não têm de pensar em dinheiro. Mas, para mudar a sociedade, há dois caminhos: pela violência ou pelo poder do dinheiro dentro do sistema.


PLAYBOY: É como jogar o jogo sem cair na armadilha — o dinheiro pelo dinheiro?


YOKO: Não há um limite. Deve ser paralelo ao nosso nível de segurança. Dá para entender? Falo de segurança emocional, também.


PLAYBOY: Já se chegou a esse nível?


YOKO: Não, ainda não. Não sei. Pode ser que sim.


PLAYBOY: Você quer dizer: com 150 milhões de dólares? É uma estimativa confiável?


YOKO: Não sei quanto temos. Fica tão complexo que você precisaria de dez contadores trabalhando por dois anos para descobrir o que você tem. Digamos que a gente tem mais conforto agora.


PLAYBOY: Sessenta milhões de dólares só em gado leiteiro. É verdade?


YOKO: Não sei. Não sou uma máquina calculadora. Não vou pelos números. Vou pela excelência das coisas.


PLAYBOY: Mas por que 150 milhões? Não bastariam 100? Ou um milhão?


LENNON: O que você sugere que eu faça? Desistir de tudo e cair na vida? Os budistas dizem: "Livre-se do sentimento de posse". Fugir do dinheiro não ajudaria a chegar lá.


PLAYBOY: Mas como se chega lá?


LENNON: Leva tempo para se livrar de todo esse lixo que eu vinha carregando e que influenciava meu modo de pesar e de viver. Devo muito a Yoko, que me mostrou que eu ainda estava possuído. Fisicamente me libertei quando me apaixonei por Yoko, mas mentalmente tive esses dez últimos anos de luta. Eu aprendi tudo com Yoko.


PLAYBOY: Uma relação professor- aluno.


LENNON: É uma relação professor-aluno. As pessoas não entendem. Ela é o mestre e eu, o aluno. Eu sou o famoso, aquele que supõe saber tudo, mas ela é minha professora. Ela já estava lá quando eu não estava em lugar algum, quando eu não passava de um zé-ninguém. Ela é meu Don Juan [o mestre índio yaqui de Carlos Castaiteda]. É o que as pessoas não querem entender. Sou casado com o porra do Don Juan, o que é a dificuldade. Don Juan não tem de rir, não tem de ser charmoso; Don Juan só é. E o que se passa em volta de Don Juan é irrelevante para Don Juan.


PLAYBOY: Como ele te ensinou?


LENNON: Quando Don Juan disse... Quando Don Yoko disse: "Saia! Você não está pegando a coisa!", foi como ser enviado para o deserto. E a razão pela qual ela não deixava que eu voltasse era que eu não estava preparado para voltar. Eu tinha de experimentar as coisas dentro de mim mesmo. Quando eu estava preparado, ele me deixou voltar.


PLAYBOY: Você está se referindo à sua separação.


LENNON: Sim. Nós estivemos separados no início dos anos 70. Ela me deu um pé na bunda. De repente, eu estava numa jangada, sozinho no meio do universo.


PLAYBOY: O que aconteceu?


LENNON: Bem, a princípio, pensei: hip-hurra! Você sabe: vida de solteiro. Viva! Então, acordei um dia e pensei: "Que é isso? Quero ir para casa!" Mas ela não me deixou voltar. Foi por isso que foram dezoito meses de separação, em vez de seis. Falávamos todo o tempo por telefone e eu dizia: "Não estou gostando disso, é uma enrascada. Gostaria de voltar para casa, por favor". E ela dizia: "Você não está preparado". O que dizer? Está bem — e mais um trago.


PLAYBOY: O que ela queria dizer com "não está preparado".


LENNON: Ela tem os métodos dela. Sejam místicos ou práticos. Quando ela disse que eu não estava preparado, eu não estava preparado.


PLAYBOY: E aí mais um trago?


LENNON: Na bebida, eu tentava esconder o que sentia. Estava simplesmente maluco. Foi um fim de semana perdido que durou dezoito meses. Nunca bebi tanto na vida.


PLAYBOY: Por que você deu um pé em John, Yoko?


YOKO: Muitas coisas. Sou do tipo de mulher que vai embora; há uma música no nosso novo álbum que diz isso. Em vez de lidar com os problemas de uma relação, prefiro ir embora. É por isso que sou das poucas mulheres que sobrevivem. As mulheres tendem a ir mais fundo, mas eu não... Achei que devia mudar porque estava sofrendo estando com John.


PLAYBOY: Por quê?


YOKO: A pressão do público, pois fui eu quem levou os Beatles à ruptura e quem impediu que eles estivessem juntos de novo. Meu trabalho artístico também ficou prejudicado. Pensei em deixar de ser a sra. Lennon e achei que seria uma boa idéia ele ir para Los Angeles e me deixar sozinha um pouco. Eu tinha aguentado a barra por muito tempo. Mesmo antes, quando John era um Beatle, nós dois num quarto, na cama, porta fechada e tudo mais, mas se alguém esquecesse de fechar a porta, um dos assistentes dos Beatles era capaz de entrar e falar com ele, como se eu não estivesse lá. Eu era invisível. As pessoas em torno de John me viam como uma terrível ameaça. Ouvi dizer que havia planos para me matar. Não os Beatles, mas o pessoal em volta deles.


LENNON: Quando Yoko e eu começamos a fazer coisas juntos, convocamos a imprensa para anunciar nossos projetos. Mas, antes mesmo da primeira entrevista, um assessor dos Beatles, do mais alto escalão, virou-se para Yoko e disse: "Você não precisa trabalhar, não é? Já tem bastante dinheiro, agora que é a sra. Lennon". A mesma coisa acontecia nos estúdios. Ela dizia para um engenheiro de som: "Gostaria de ter um pouco mais de agudo"; ou: "Vocês estão carregando muito nos graves"; e eles me olhavam e perguntavam: "O que você disse, John?" Naqueles dias, eu nem percebia. Hoje eu sei.


PLAYBOY: Como vocês se reencontraram?


YOKO: Lentamente, comecei a perceber que John não era lá um problema. John é uma ótima pessoa. Era a sociedade que tinha se tornado insuportável. Achamos graça disso hoje, mas começamos a namorar de novo. Queria estar segura. Estou agradecida à inteligência de John...


LENNON: Reparem essa palavra.


YOKO: Ele foi inteligente para saber que esse era o único caminho pelo qual poderíamos salvar nosso casamento, não porque não nos amássemos, mas porque estava ficando pesado demais para mim. Nada teria mudado se eu tivesse voltado a ser a sra. Lennon.


PLAYBOY: Mas o que mudou?


YOKO: Foi bom entrar nos negócios e recuperar meu orgulho de fazer alguma coisa. E foi bom saber de que John precisava, exatamente o oposto do que parecia bom para ele, naquela época.


LENNON: E aprendemos que é melhor para a família se ambos trabalharmos para ela, Yoko tratando dos negócios e eu servindo de mãe e esposa. Reordenamos nossas prioridades. A prioridade número 1 é Yoko e a família . O resto gira em torno.


YOKO: É um trabalho duro. A sociedade, hoje em dia, prefere gente só. Os apelos são para o divórcio ou para a separação, para o homossexualismo ou para a solidão. As empresas querem gente só — que trabalhe mais, já que não tem vínculos de família. Essa gente não precisa se inquietar se está à noite em casa, ou nos fins de semana. Não há muito espaço para emoções familiares ou relações pessoais. O novo álbum...


LENNON: Voltemos ao disco, ótimo...


YOKO: O disco briga por essas coisas. As mensagens são um pouco antiquadas — família, relacionamentos, crianças.


PLAYBOY: O álbum obviamente reflete suas novas prioridades. Como as coisas têm andando desde então?


LENNON: Retomamos a vida em conjunto, decidimos que ter um bebê era importante para nós e que tudo o mais era secundário. Batalhamos muito pela criança. Os médicos diziam que não podíamos ter um filho. Quase desistimos. Disseram que havia algo de errado com meu esperma, que eu tinha abusado tanto na adolescência que não tinha mais jeito. Yoko estava com 43 anos, e eles diziam: não dá. Ela teve muitos abortos, quando era jovem — não havia pílula. Mas então houve um acupunturista, em San Francisco, que disse: "Vocês comportem. Nada de droga. Nada de bebida. Vocês ter filho em dezoito meses". Nós dissemos: "Mas os médicos ingleses disseram... " Ele disse: "Esquecer o que eles dizem. Vocês ter filho".


PLAYBOY: Houve problemas por causa da idade de Yoko?


LENNON: Não por causa de sua idade, mas por causa de uma cagada do hospital e do preço fodido da fama. Alguém fez uma transfusão de sangue errado em Yoko. Ela começou a ficar rígida, depois a tremer, de dor e pelo choque. Corri para a enfermeira e disse: "Chama o doutor!" Eu segurava firme a mão de Yoko e aí o cara entra na sala do hospital, caminha na minha direção, sorri, aperta minha mão e diz: "Sempre quis conhecê-lo. Sempre gostei de sua música". Comecei a gritar: "Minha mulher morrendo e você vem falar de minha música! Meu Deus!"


PLAYBOY: Agora que Sean tem quase cinco anos, ele sabe que seu pai foi um Beatle ou vocês lhe ocultaram essa fama?


LENNON: Eu não disse nada. Os Beatles nunca foram mencionados. Não havia razão: nunca tocamos discos dos Beatles em casa, ao contrário da história que circula, de que eu passei os últimos anos ouvindo discos dos Beatles e revivendo o passado, como se fosse uma espécie de Howard Hughes. Sean viu Yellow Submarine na casa de um amigo, aí eu tive de explicar-lhe o que minha figura fazia num desenho animado.


PLAYBOY: Seu filho, Julian, do primeiro casamento, deve ser um adolescente. Você o tem visto?


LENNON: Bem, Cyn ganhou a guárda, ou sei lá como se chama. Fiquei com o direito de vê-lo nas férias, e pelo menos ficou uma linha aberta. Não é o melhor relacionamento entre pai e filho, más é alguma coisa. Ele tem 17 anos.


PLAYBOY: Voê diz que Sean é seu primeiro filho. Não se importa de magoar Julian?


LENNON: Não vou mentir a Julian. Noventa por cento das pessoas deste planeta, especialmente no Ocidente, nasceram de uma garrafa de uísque numa noite de sábado — são acidentes. Não conheço ninguém que seja um filho planejado. Todos nós somos embalos de sábado à noite. Julian faz parte dessa maioria, tanto quanto eu. Sean é um filho planejado, e aí está a diferença. Não amo Julian menos, como filho, mesmo que tenha saído de uma garrafa de uísque, mesmo que não houvesse pílulas naquela época. Ele está aqui, pertence a mim e sempre me pertencerá.


PLAYBOY: Yoko, e sua filha?


YOKO: Perdi Kyoko quando ela tinha 5 anos. Eu era uma mãe diferente, mas tínhamos ótima relação. Eu não tomava conta dela assim muito de perto, mas ela estava sempre comigo — no palco ou em exposições de arte, tudo isso.


PLAYBOY: O que aconteceu, quando ela tinha 5 anos?


YOKO: John e eu passamos a viver juntos e eu me separei de meu marido [Tony Cox]. Ele levou Kyoko embora. Foi um caso típico de sequestro e nós tentamos pegá-la de volta.


LENNON: O caso clássico de machismo. A atitude de Tony era: "Você ganhou minha mulher, mas não ganhará minha filha". Nessa guerra, Yoko e a criança ficaram absolutamente esquecidas. Sempre me senti mal com isso. Parecia faroeste: Cox fugiu para as colinas e se escondeu e o xerife e eu fomos buscá-lo. Primeiro, ganhamos na Justiça a custódia. Yoko não queria ir à Justiça, mas os homens, Allen Klein [advogado da Apple] e eu, o fizemos.


YOKO: Allen ligou, um dia, dizendo que tinha vencido na Justiça. Deu-me um pedaço de papel. Eu disse: "O que é esse papel? Foi isso que ganhei? Não tenho a criança". Sabia que levá-los à Justiça iria atemorizá-los e, de fato, eu os atemorizei. Assim, Tony desapareceu. Ele se sentia muito forte, pensando que os capitalistas, com seu dinheiro, advogados e detetives, o estavam perseguindo.


LENNON: Caçamos Tony por todo o, mundo. Portanto, se você está lendo isso, Tony, é hora de esclarecer. Acabou. Não queremos caçá-lo mais, porque já fizemos bastante estrago.


YOKO: Tínhamos detetives particulares procurando Kyoko. Um carinha chegou a contar: "Foi incrível. Quase os pegamos. Estávamos num carro atrás deles, mas eles aceleraram e sumiram". Fiquei histérica: "O que você quer dizer com pegá-los? Estamos falando de minha filha".


PLAYBOY: Quantos anos ela tem agora?


YOKO: Dezessete, o mesmo que Julian.


PLAYBOY: Talvez ela ainda te procure.


YOKO: Ela está totalmente amedrontada. Houve uma vez, na Espanha, que um advogado e John acharam que a gente devia sequestrá-la.


LENNON: [suspirando] — Antes eu tivesse cometido haraquiri.


YOKO: Nós, de fato, a sequestramos e fomos ao juiz. Que fez uma coisa muito sensata — levou-a até a sala e perguntou-lhe com qual dos dois ela queria ficar. Claro que ela quis ficar com Tony. Nós a tínhamos amedrontado mortalmente. Ela ainda deve ter medo de que, se vier me ver, nunca mais veja o pai.


LENNON: Quando tiver seus 20 anos, ela entenderá que nós fomos idiotas e que nós sabemos que fomos idiotas.


YOKO: [para John] Em parte, as coisas ficaram tão ruins em relação a Kyoko porque eram você e Tony que lidavam com a história. Homens. Em relação a seu filho Julian, eram mulheres — havia muito mais entendimento entre eu e Cyn.


PLAYBOY: Poderia explicar melhor?


YOKO: Por exemplo, havia uma festa de aniversário de Kyoko e nós dois fomos convidados, mas John se sentiu nervoso e não foi. Não queria estar com Tony. Mas nós fomos convidados para o aniversário de Julian e fomos os dois.


LENNON: Lá vem tudo de novo!


YOKO: Ou quando eu era convidada a ir sozinha à casa de Tony, eu não podia ir; quando era John na casa de Cyn, ele ia. Fica mais fácil para Julian, pois as coisas acontecem naturalmente.


LENNON: Já rezei milhões de penitên­cias. O que mais posso fazer?


PLAYBOY: Yoko, e ainda assim você deixa Sean ser educado por John?


YOKO: Tenho clareza sobre minhas emoções nesta área. Não me sinto culpa­da. Faço do meu jeito. Pode não ser como as outras mães, mas faço como pos­so. Em geral, as mães têm um forte sen­timento de mágoa com os filhos, mesmo com essa mentira de sentimento mater­nal. Eu disse para John...


LENNON: Sou o marido favorito dela...


YOKO: ..."Eu carreguei o bebê nove meses. Basta. Agora é com você." Soa co­mo uma observação cruel, mas realmen­te penso que a criança pertence à socie­dade. Se a mãe pare o filho e o pai edu­ca, a responsabilidade é dividida.


PLAYBOY: O que significa o título de seu novo álbum, Double Fantasy?


LENNON: É o nome de uma flor, um tipo de iridácea. Mas o que significa pa­ra nós é que, se duas pessoas projetam na cabeça a mesma fantasia, ao mesmo tempo, é este o segredo.


PLAYBOY: Estão dizendo que as fanta­sias de que vocês falam são sexuais.


LENNON: E como quando fizemos o bed-in em Toronto, em 1969. Veio todo mundo pensando que nós estaríamos lá trepando. Obviamente, estávamos só sentados, fazendo sinais de paz.


PLAYBOY: Foi essa a famosa "perfor­mance da cama"?


LENNON: Nossa vida é nossa arte. É o que são esses bed-ins. Quando nos casa­mos, sabíamos que, de alguma forma, nossa lua de mel seria um assunto públi­co, aí sentamos na cama e conversamos com repórteres por sete dias seguidos. Foi hilariante. Na verdade, nós estáva­mos fazendo um anúncio pela paz na primeira página de todos os jornais, em lugar dos habituais anúncios de guerra.


PLAYBOY: Vocês ficaram na cama?


LENNON: Sim. Nós respondíamos às perguntas. Um cara insistiu no assunto Hitler: "O que vocês fariam com os fascistas? Como se pode ter paz com um ca­ra como Hitler?" Yoko respondeu: "Iria para a cama com ele". Ela disse que só precisaria de uns dez dias para conver­tê-lo. Todo mundo adorou.


YOKO: O ponto é este: não se vai mu­dar o mundo pela briga. Talvez eu fosse ingênua sobre os dez dias com Hitler. Pois levou 13 anos com John Lennon [ri].


PLAYBOY: E o novo disco, como é?


LENNON: Resumindo: é sobre coisas ordinárias entre duas pessoas ordinárias. As letras são diretas. Simples e obje­tivas. Já passei pela minha fase dylanes­ca há muito tempo, com músicas como I Am the Walrus: o truque de nunca dizer o que você quer dizer, para dar a im­pressão de algo mais. Uma boa brinca­deira.


PLAYBOY: De que tipo de música você gosta?


LENNON: Bem, gosto de qualquer mú­sica. Não distingo estilos de música ou pessoas, por si próprias. Não posso dizer que aprecie os Pretenders, mas gos­to de seus discos. Gosto dos B-52s, pois os vi tocando Yoko. Foi magnífico.


YOKO: Fizemos muita coisa punk, anos atrás.


LENNON: Adoro essa coisa punk. É pu­ra. Só não sou fanático em relação a pes­soas que se destroem a si mesmas.


PLAYBOY: Você discorda do que Neil Young diz: "É melhor explodir que es­morecer"?


LENNON: Detesto isso. Não gosto do culto da morte, de um James Dean mor­to, de um John Wayne morto. Eu cultuo as pessoas que sobrevivem. Gloria Swanson, Greta Garbo. Estão dizendo aí que John Wayne desafiou o câncer — que lutou contra ele como um verdadei­ro homem. Sinto muito que ele tenha morrido, mas ele não lutou contra o cân­cer; o câncer é que lutou contra ele.


PLAYBOY: John, você escuta seus dis­cos?


LENNON: Menos ainda.


PLAYBOY: Nem os seus clássicos?


LENNON: Você está brincando? Nun­ca os ouviria, por minha própria iniciati­va. Quando os ouço, só me lembro das circunstâncias em que foram gravados — é como um ator que se visse num fil­me velho. Quando chego a ouvir tais 6 músicas, fico me lembrando do estúdio de Abbey Road, a gravação, quem bri­gou com quem...


PLAYBOY: Suas músicas são ainda mui­to tocadas. Como você se sente?


LENNON: Fico sempre orgulhoso e sa­tisfeito. Me dá prazer, mesmo porque muitas das minhas músicas não são lá es­sas coisas. Vou a um restaurante e a ban­da logo ataca de Yesterday. Até autogra­fei o violino de um sujeito, na Espanha, depois que ele tocou Yesterday.


PLAYBOY: Como é sentir que se in­fluenciou tantas pessoas?


LENNON: Não fui eu realmente — ou nós. Foi a época. Aconteceu o mesmo co­migo, na década de 50, quando eu ou­via rock'n'roll. Não tinha a menor ideia de fazer da música um meio de vida, até que o rock me agarrou.


YOKO: Tenho certeza de que há gente cuja vida é afetada porque ouviu música indiana, Mozart ou Bach. Mas, mais do que tudo, foi a época e o lugar que pro­duziram os Beatles. Foi uma espécie de reação química. Era como se várias pes­soas estivessem sentadas em torno de uma mesa e um fantasma aparecesse. Os Beatles eram como médiuns. Não foi algo que se forçasse. Foram as pessoas, a época, sua juventude e entusiasmo.


LENNON: Não importa que vento esta­va soprando, na época, mas ele condu­ziu os Beatles, também. Não estou dizen­do que não fôssemos a bandeira no mas­tro do navio; mas todo o barco estava em movimento — talvez os Beatles esti­vessem na vigia, gritando "Terra à vis­ta".


YOKO: Os Beatles eram um fenômeno social não desligado daquilo que esta­vam fazendo. De certa forma...


LENNON: [suspirando.] Esse assunto Beatles me enche mortalmente o saco.


YOKO: ... Eles eram médiuns. Não es­tavam conscientes do que diziam, mas as coisas vinham através deles.


PLAYBOY: O que vocês diriam àqueles que insistem que todo o rock, depois dos Beatles, é cópia dos Beatles?


LENNON: Toda a música é cópia. Só existem algumas notas. São variações so­bre o tema. Tente dizer à garotada dos anos 70, que vibra com os Bee Gees, que a música deles é só cópia dos Bea­tles. Não há nada de errado com eles.


PLAYBOY: As músicas dos Beatles não eram pelo menos mais inteligentes?


LENNON: Os Beatles eram mais inte­lectualizados, por isso eles se destaca­vam nesse nível, também. Mas o apelo básico dos Beatles não era a inteligên­cia; era sua música. Só depois que al­guém do Times de Londres disse que ha­via cadências eólicas em It Won't Be Long é que a classe média passou a prestar atenção — pois alguém tinha inventado uma etiqueta para a coisa.


PLAYBOY: Há cadências eólicas em It Won't Be Long?


LENNON: Até hoje não tenho a menor ideia do que seja isso. Serão pássaros exóticos?


PLAYBOY: Como você reage às más in­terpretações de suas músicas?


LENNON: Por exemplo...


PLAYBOY: O exemplo mais óbvio é aquele episódio de "Paul está morto". Você disse isso em Glass Onion. E, em I Am the Walrus, você não disse "eu enter­rei Paul" [I buried Paul]?


LENNON: Eu disse "molho Cranberry" [Cranberry sauce]. Foi isso. Há quem gos­te de ping-pong, há quem goste de ficar escavando túmulos. Há quem faça tudo para não viver o aqui e agora.


PLAYBOY: E quando suas canções leva­vam a atitudes destrutivas, como ocor­reu com Charles Manson, que dizia que as suas letras eram mensagens para ele?


LENNON: Não tinha nada a ver comi­go. É como essa figura, o Filho de Sam, que trocava idéias com um cachorro. Manson era uma versão extremada des­sa gente que entendeu que as iniciais de Lucy in the Sky with Diamonds eram LSD e que eu estava falando de ácido.


PLAYBOY: De onde surgiu Lucy in the Sky?


LENNON: Meu filho Julian veio um dia da escola com um desenho, feito por ele, de uma colega chamada Lucy. Ele tinha rabiscado algumas estrelas no céu e chamou o retrato de Lucy in the Sky with Diamonds. Simples, não?


PLAYBOY: As outras imagens na can­ção não eram inspiradas por droga?


LENNON: Eram de Alice no País das Ma­ravilhas.


PLAYBOY: E In My Life.


LENNON: Foi a primeira canção que escrevi conscientemente relacionada com minha vida [canta]: "Há lugares de que eu me lembrarei / por toda minha vi­da, embora alguns tenham mudado..." Antes, a gente escrevia canções à Everly Brothers, canções pop com nenhuma idéia dentro delas. In My Life começava como se fosse um passeio de ônibus, da minha casa, na Menlove Avenue, 250, até a cidade, mencionando todos os lu­gares que eu podia recordar. Escrevi e ficou chato. Aí eu resolvi deixar pra lá e as palavras foram voltando, com os ami­gos e amores do passado. Paul ajudou.


PLAYBOY: E Yesterday?


LENNON: Sempre recebi os maiores elogios por Yesterday. Mas é uma música de Paul — filha de Paul. Muito bem feita. Bela — mas nunca desejei que fosse minha.


PLAYBOY: With a little Help from My Friends.


LENNON: É de Paul, com uma peque­na ajuda minha. É meu: "O que você vê quando apaga a luz / Eu não posso lhe di­zer, mas sei que é meu..."


PLAYBOY: I Am the Walrus.


LENNON: A primeira linha foi escrita num fim de semana, durante uma via­gem de ácido. A segunda, no fim de semana seguinte, na viagem de ácido se­guinte. E foi terminada depois que eu conheci Yoko. Parte dela criticava o Ha­re Krishna, Allen Ginsberg, por exem­plo. A referência "pinguim elementar" é a atitude elementar, ingênua, de se sair cantando "Hare Krishna", ou de jo­gar toda sua fé em qualquer ídolo. Eu estava escrevendo de forma obscura, à Bob Dylan, naquela época.


PLAYBOY: E o walrus [leão marinho]?


LENNON: É de Alice no País das Maravi­lhas.


PLAYBOY: E She Came in Through the Bathroom Window?


LENNON: Foi escrita por Paul quando estávamos em Nova York formando a Apple e ele conheceu Linda. Talvez fosse ela a tal que entrou pela janela do ba­nheiro. Só pode ter sido ela. Não sei. Al­guém entrou pela janela do banheiro.


PLAYBOY: I Feel Fine.


LENNON: Sou eu, inclusive o acorde de guitarra que foi o primeiro feedback jamais gravado. Desafio qualquer um a me mostrar um disco anterior — a me­nos que seja um velho disco de blues dos anos 20 — que tenha um feedback.


PLAYBOY: When I'm Sixty-Four.


LENNON: Paul, completamente. Nun­ca sonharia em escrever nada parecido.


PLAYBOY: A Day in the Life.


LENNON: Exatamente o que diz: eu estava lendo o jornal, um dia, e notei duas histórias. Uma, sobre o herdeiro da Gui­ness que se matou num carro. Era a manchete. Morreu em Londres numa batida de carro. Na página seguinte, ha­via a notícia sobre os quatro mil buracos de Blackburn, Lancashire. Isto é, nas ruas de Blackburn. Iam tapá-los todos. A contribuição de Paul foi o belo e pe­queno arranjo na hora em que se fala "I'd like to turns you on". Eu tinha o nú­cleo da canção e a letra, mas ele contri­buiu com essa passagem.


PLAYBOY: I Wanna Be Your Man.


LENNON: Paul e eu ,completamos essa para os Stones. Brian (Epstein, o empresá­rio] nos levou até o clube onde eles esta­vam tocando, em Richmond. Eles que­riam uma música e nós fomos ver que ti­po de coisa eles faziam. Paul tinha um trecho da música e nós a cantarolamos para eles. Eles disseram: "OK, é o nosso estilo". Mas era realmente só um trecho, tanto que Paul e eu fomos para um can­to da sala e completamos a canção, en­quanto eles estavam lá, papeando. Volta­mos para Mick e Keith, que disseram: "Meu Deus, vejam isto. Eles foram lá e já terminaram". Demos a música para eles. Uma esmola. Isso mostra a impor­tância que a gente atribuía a eles: Nós não lhes daríamos algo que fosse real­mente estrondoso, não é? Era o primei­ro disco dos Stones. De qualquer forma, Mick e Keith disseram: "Se eles podem fazer uma música assim tão facilmente, nós podemos tentar".


PLAYBOY: Strawberry Fields Forever.


LENNON: Strawberry Fields é um lu­gar real. Depois que deixei de viver em Penny Lane, mudei-me para a casa de minha tia, nos subúrbios de Londres, um lugar simpático, meio isolado, com um jardim, e médicos, advogados, essa gente, como vizinhança — não exata­mente a promíscua imagem de miséria que todas as histórias sobre os Beatles haviam projetado. Na escala social, seria um ponto acima de Paul, George e Rin­go, que moravam em casas populares fi­nanciadas pelo governo. Nós tínhamos nossa casa e um jardim. Perto, havia Strawberry Fields, uma casa próxima de um reformatório para rapazes, onde eu costumava ir, quando criança, às festas, com meus amigos Nigel e Pete. Íamos lá, nos divertíamos e comprávamos gar­rafas de limonada por um tostão. Era di­vertido Strawberry Fields.

PLAYBOY: E a letra? Por exemplo: "Vi­ver é fácil..."?


LENNON [cantando] "Com os olhos fe­chados, confundindo tudo o que você vê." É ainda assim, não é? Eu não digo a mesma coisa hoje em dia? A ideia que eu aparentemente tentava expressar era — digamos que eu sempre fui, de certa forma, sabido. Era sabido no jardim de infância, era diferente dos outros. Fui diferente toda a minha vida. O segundo verso diz: "Acho que não há ninguém na minha árvore". Bem, eu era muito tí­mido e inseguro. Ninguém parece ser tão diferente como eu, era o que eu di­zia. Portanto, devo ser um louco ou um gênio — "Acho que deve ser tudo ou na­da", diz o verso seguinte. Era assusta­dor, pois eu não tinha bem como me ex­pressar. Nem minha tia, nem meus ami­gos, ninguém percebia o que eu perce­bia. Era muito assustador e o único con­tato que eu tinha era com a leitura so­bre Oscar Wilde, Dylan Thomas ou Vin­cent van Gogh — todos aqueles livros de minha tia, falando do sofrimento des­sa gente. Pessoas torturadas pela socie­dade, por tentarem expressar o que eram. Eu sentia o que era a solidão. Por causa da minha .atitude, os pais de todos os meninos, inclusive o de Paul, diziam: "Afastem-se dele". Talvez eu tivesse inveja de não ter aquilo que se chama um lar. O que, na verdade, eu tinha. Tinha uma tia e um tio e uma bela casa de subúrbio, muito obrigado. Escute isto, tia. Ela ficou sentida com a observação que Paul fez recentemente, de que, se eu estava ficando em casa com Sean agora, é porque eu nunca tinha tido uma família. E uma asneira total. Havia cinco mulheres que eram minha família. Cinco mulheres decididas, inteligentes. Cinco irmãs. Uma, por acaso, era minha mãe. Era a mais nova. Ela não tinha experiência de vida. Teve um marido que fugiu para a Marinha, a guerra seguia seu curso e ela não sabia como lidar comigo. Quando eu tinha 4 anos e meio, fui viver com sua irmã mais velha. Essas mulheres eram fantásticas. Minha mãe estava viva e morava a quinze minutos de caminhada de mim. Eu a via frequentemente.


PLAYBOY: Ela ainda vive?


LENNON: Não. Foi atropelada por um lira fora de serviço e bêbado, quando saía da casa da tia onde eu morava. Eu não estava lá, na hora. Ela estava tranquilamente no ponto de ônibus. Eu tinha 16 anos. Foi um outro trauma enorme para mim. Eu a perdi duas vezes: quando me mudei para a casa de minha tia, e então, quando ela morreu. Isso me tornou mais amargo, minha rebeldia cresceu. Estava estabelecendo minha relação com ela e ela morre.


PLAYBOY: E seu pai? Voltou a vê-lo?


LENNON: Não voltei a vê-lo até que me enchi de dinheiro e ele voltou.


PLAYBOY: Quantos anos você tinha?


LENNON: 24 ou 25. Abri o Daily Express e lá estava ele, lavando prato num hotelzinho bem próximo de onde eu morava, em Stockbroker, fora de Londres. Ele tinha me escrito antes, tentando um encontro comigo. Eu não queria vê-lo. Ainda estava muito irritado com o que ele tinha feito comigo e com minha mãe, e irritado com o fato de ele voltar agora que eu estava rico e famoso. Assim, não ia vê-lo de forma alguma, mas ele de certo modo me chantageou pela imprensa, dizendo aquilo de ser um pobre coitado que lavava pratos enquanto eu vivia luxuosamente. Eu cedi, fui vê-lo e chegamos a ter alguma relação. Morreu poucos anos depois, de câncer.


PLAYBOY: E Help!?


LENNON: Quando Help! surgiu, em 65, eu estava realmente pedindo socorro. Muita gente pensa que é só um rock pauleira. Eu não cheguei a perceber, na época; escrevi a música porque tinha assumido o compromisso com o filme. Mais tarde é que senti que estava, de fato, pedindo ajuda. Foi meu período negro. Veja o filme: ele — eu — está gordo, muito inseguro, completamente perdido. Hoje em dia sinto-me muito mais positivo, é isso, embora ainda passe por fossas profundas, daquelas que dão vontade de pular pela janela.


PLAYBOY: Por que o desespero, em Help!?


LENNON: O fenômeno Beatles estava passando dos limites de nossa compreensão. Fumávamos maconha como café da manhã. A gente se enchia de fumo e era impossível alguém entrar em contato com a gente, pois era o tempo todo aquela história de olhos esgazeados, sorrisos bestificados. Estávamos sempre na nossa.


PLAYBOY: I'm a Loser é coisa pessoal?


LENNON: Uma parte de mim suspeita de que sou um perdedor; a outra acha que eu sou Deus Todo-Poderoso.


PLAYBOY: Você ainda toma drogas?


LENNON: Não. Se alguém me passa um baseado, eu até fumo, mas não vou atrás.


PLAYBOY: E cocaína?


LENNON: Já cheirei coca, mas não gosto. Os Beatles tinham demais, mas é uma droga idiota, pois você têm de cheirar de novo a cada vinte minutos. Toda sua concentração se resume em ficar esperando pelo toque seguinte.


PLAYBOY: E ácido?


LENNON: Estou sem, há anos. Um cogumelozinho ou mescal ainda vá lá, umas duas vezes por ano. Já não se fala tanto sobre isso, mas as pessoas continuam viajando pelo cosmo. Não podemos deixar de agradecer à CIA e ao Exército pelo LSD. Eles inventaram o LSD para controlar as pessoas e o que nos deram foi a liberdade. Se você dá uma olhada nos relatórios oficiais sobre ácido, percebe que todos aqueles que pulam pela janela ou se matam sob efeito de LSD na verdade já tinham tentado antes.


PLAYBOY: Qual é a sua dieta, além de sashimi, sushi, e cappuccinos?


LENNON: Somos basicamente macrobióticos, mas às vezes saímos para comer uma pizza.


PLAYBOY: Mas vocês fumam um bocado.


LENNON: A macrobiótica não crê que o fumo seja mau. Claro que, se a gente morrer, é porque estava errado.


PLAYBOY: Voltemos às músicas: Hey Jude, de Paul.


LENNON: Ele disse que é sobre Julian. Ele sabia que eu estava rompendo com Cyn e deixando Julian com ela. Paul era como um tio para Julian. E ele compôs Hey Jude. Mas sempre a entendi como um recado para mim. Estou até parecendo um daqueles fãs que ficam buscando coisas nas letras... Pense sobre isto: Yoko tinha acabado de entrar em cena. Paul diz: "Hey, Jude" — "Ei, John". Inconscientemente, ele dizia: "Vá em frente, deixe-me". No nível consciente, ele não queria que eu fosse em frente. O anjo que há dentro dele dizia: "Deus te abençoe". O demônio dentro dele não queria perder o parceiro.


PLAYBOY: E Because?


LENNON: Estava deitado no sofá, em casa, ouvindo Yoko tocar a Sonata ao Luar, de Beethoven. Aí eu pedi: "Você pode tocar esses acordes de trás para a frente?" Ela tocou e eu fiz Because a partir daí. A letra é clara, nenhuma merda, nenhuma referência obscura.


PLAYBOY: Por que as músicas eram sempre atribuídas a Lennon-McCartney?


LENNON: Paul e eu fizemos um trato quando tínhamos 15 anos. Nunca houve um contrato jurídico, só um trato, que fizemos quando decidimos fazer música juntos.


PLAYBOY: Do You Want to Know a Secret.


LENNON: A ideia veio de uma coisa que mamãe cantava para mim, quando eu tinha um ou dois anos. Era de um filme de Disney: "Você quer saber um segredo? Prometa não dizer / Você está próximo do poço dos desejos". Assim, com isso na cabeça, escrevi uma canção e dei para George cantar. Pensei que seria um bom veículo para ele, pois a música só tem três notas e ele não é o melhor cantor do mundo. Esta é uma das razões pelas quais fiquei magoado com o livro dele. Nunca tive um tostão de qualquer música de George ou de Ringo. Nunca pedi nada pelas minhas contribuições às músicas de George, como Taxman. Nem mesmo o reconhecimento. É por isso que eu posso ter ressentimentos de George e Ringo.


PLAYBOY: Happiness Is a Warm Gun.


LENNON: Não, não é sobre heroína. Havia lá uma revista de armas, com um revólver fumegante na capa e um artigo, que eu nunca cheguei a ler, chama do Happiness is a Warm Gun.


PLAYBOY: E os trocadilhos sexuais: "Quando sinto meu dedo no teu gatilho"?


LENNON: Foi no início de minha relação com Yoko e eu vivia com ideia fixa sobre sexo, na época. Quando não estávamos no estúdio, estávamos na cama.


PLAYBOY: Across the Universe.


LENNON: Os Beades não fizeram uma boa gravação de Across the Universe. Acho que, inconscientemente, nós... Acho que Paul inconscientemente tentou destruir minhas melhores músicas. Nós ficávamos fazendo foguetes experimentais em cima das minhas melhores obras, como Strawberry Fields, que eu sempre considerei muito mal gravada. Funcionou, mas não era o que devia ter sido. Eu permitia, contudo. Passamos horas depurando minuciosamente as músicas de Paul, mas quando chegava nas minhas, nascia uma certa atmosfera de preguiça e de experimentação.


PLAYBOY: Sabotagem?


LENNON: Inconsciente. Fiquei magoado... Paul vai negar, pois ele tem rosto suave e dirá que isso não existiu.


PLAYBOY: E Revolution?


LENNON: Gravamos a música duas vezes. Os Beatles estavam realmente ficando tensos uns com os outros. Fiz a versão mais lenta e queria editá-la como compacto: como um pronunciamento sobre a posição dos Beatles diante do Vietnam e da revolução. Por anos, nas turnês dos Beatles, Epstein tinha nos impedido de dizer algo sobre o Vietnam ou a guerra. Ele não permitia perguntas a respeito. Aí eu disse: "Eu vou falar sobre a guerra. Não podemos ignorá-la". Eu fazia questão de que os Beatles dissessem alguma coisa. A primeira versão de Revolution... bem, George e Paul disseram que não tinha suficiente pique. Se a gente for aos detalhes sobre o que faz de uma música um sucesso ou não, talvez fosse verdade. Mas os Beatles deveriam ter lançado em compacto a versão lenta, mais fácil de ser entendida. Independente de ser disco de ouro ou disco de pau. Mas isso contrariou o carrossel Apple, pois eles já estavam nervosos com a chegada de Yoko e com o fato de que eu estava voltando a ser tão criativo e dominante como no início, depois de dois anos de pasmaceira.


PLAYBOY: Foi a inspiração de Yoko?


LENNON: Ela inspira tudo em mim. Não que ela inspirasse minhas canções; ela me inspirava. As afirmações de Revolution eram minhas. A letra ainda é atual. É ainda esse o meu sentimento a respeito da política: quero ver a coisa no papel. Era o que eu costumava dizer a Abbie Hoffman e a Jerry Rubin. Não contem comigo para a violência. Não me esperem ver atrás de barricadas, a menos que elas sejam de flores.


PLAYBOY: O novo álbum tem uma música: Os Tempos Duros Acabaram (Por Enquanto). O que diz?


LENNON: Não é uma mensagem nova: dê uma chance para a paz — nós não estamos sendo lunáticos, só dizendo: "Dê uma chance". Com Imagine, a gente dizia: "Pode-se imaginar um mundo sem países ou religiões?" É a mesma mensagem, de novo.


PLAYBOY: Deve haver gente esperando por seu disco como obra de um profeta. Antecipando: "Assim como Lennon definiu os anos 60 e 70, ele vai definir os anos 80". Como você se sente?


LENNON: É muito triste. Não estamos dizendo nada de novo. Primeiro, porque já dissemos antes. E 100 milhões de pessoas já disseram também.


PLAYBOY: Mas suas canções têm mensagens.


LENNON: O que estamos dizendo é: "Eis o que está acontecendo conosco". É. como um cartão postal. Não queremos que seja: "Eu sou o iluminado; vocês são o rebanho a quem eu mostrarei o caminho".


PLAYBOY: O que você sente ao saber que até alguém como Dylan entra nessa de misticismo?


LENNON: Seja qual for a razão, é uma coisa pessoal e ele deve precisar disso. Mas todo esse negócio de religião sofre do mal do "Avante, soldados de Cristo!" Há muita conversa sobre soldados, marchas e conversões. Não estou incluindo o budismo, embora eu não seja budista tanto quanto não sou cristão. Mas há algo que admiro no budismo: não há proselitismo.


PLAYBOY: Você era um fã de Dylan?


LENNON: Não, deixei de ouvir Dylan depois de Highway 64 [sic] e, mesmo na época, eu ouvia porque George me fazia sentar e ficar lá, escutando.


PLAYBOY: Yoko, o compacto que você e John retiraram do novo álbum parece estar voltado para o futuro.


YOKO: Sim, Starting Over é uma canção que me faz sentir vontade de chorar. Os anos 60 nos deram o sabor de liberdade — sexual e tudo o mais. Foi uma orgia. Aí, após este grande encontro que todos nós tivemos, homens e mulheres de certa forma perderam a pista uns dos outros e muitas famílias e muitas relações se romperam. Eu penso realmente que o que ocorreu nos anos 70 pode ser comparado com o que aconteceu com as famílias judias sob o nazismo. Só que a força que determinou a ruptura, agora, veio de dentro, não de fora. Tentamos racionalizar a coisa como o preço que estamos pagando pela nossa liberdade. John diz, em sua música: certo, nós tínhamos energia, nos anos 60; nos anos 70 nós nos separamos, mas comecemos tudo de novo, nos 80. Ele está reencontrando a mim, a mulher. E o reencontro, após tudo o que aconteceu, sobre o campo de batalha de famílias dizimadas, é muito mais difícil, desta vez. Do outro lado do disco há uma música minha, Kiss Kiss Kiss, que é o outro lado da mesma questão. Há o ruído de uma mulher que chega ao orgasmo, e ela grita para ser possuída, para ser tocada. É controvertida, pois as pessoas ainda acham que é menos natural ouvir os ruídos de uma mulher que faz amor do que, digamos, o barulho de um Concorde, matando a atmosfera e poluindo a natureza. No todo, os dois lados do disco são uma prece para mudar os anos 80.


PLAYBOY: Qual é o sonho dos anos 80 para você, John?


LENNON: Bem, você faz seu próprio sonho. É a história dos Beatles, não é? É a história de Yoko. É o que eu digo agora. Faça seu próprio sonho. Se você quer salvar o Peru, vá salvar o Peru. É bem possível fazer alguma coisa, mas não dotá-lo de líderes ou parquímetros. Não espere que Jimmy Carter ou Ronald Reagan ou John Lennon ou Yoko Ono ou Bob Dylan ou Jesus Cristo venha e o faça por você. Você tem de fazê-lo sozinho. É o que os grandes mestres têm dito desde que os tempos começaram. Eles podem apontar o caminho, deixar indicações e instruções em variados livros que são chamados de sagrados e venerados por suas capas, e não por aquilo que dizem, mas as instruções estão aí para que todos as vejam. Sempre estiveram e sempre estarão. Não há nada de novo sob o sol. Todos os caminhos levam a Roma. E as pessoas não podem fazê-lo por você. Eu não posso te despertar. Você pode se despertar. Eu não posso te curar. Você pode se curar.


PLAYBOY: O que impede as pessoas de aceitarem essa mensagem?


LENNON: O medo do desconhecido. É o medo dele que impele todo mundo para os sonhos, as ilusões, as guerras, a paz, o amor, o ódio, tudo isso — é ilusão. É isso o desconhecido. Aceite o desconhecido e será uma viagem tranquila. Tudo é desconhecido — aí você estará à frente do jogo. É o que é. Certo?


430 visualizações0 comentário
bottom of page