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JOSÉ SARAMAGO | OUTUBRO, 1998

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o escritor português sobre as vantagens do Prêmio Nobel, do comunismo, do pessimismo e da juventude aos 76 anos


O cidadão português José de Sousa Saramago é um daqueles casos nada comuns de alguém que, já na idade madura, deu uma guinada radical na vida. Vinte anos atrás, estava ele, cinqüentão, solidamente estabelecido em Lisboa e num segundo casamento; vivia de traduções e tinha atrás de si uma breve experiência como jornalista. Nas horas vagas, administrava uma discreta carreira literária, iniciada na juventude com o romance Terra do Pecado, interrompida em seguida por quase duas décadas e desdobrada, a partir de 1966, numa dezena de livros que não chegaram a fazer barulho, a maioria deles coletâneas de poemas e de escritos jornalísticos. Nada permitia supor que José Saramago viria a se tornar quem hoje é: às vésperas de completar (no mês que vem) 76 anos de idade, um romancista lido e admirado em todo o mundo, traduzido para 21 idiomas e insistentemente apontado, desde 1994, como um dos favoritos para ganhar Prêmio Nobel de Literatura, tradicionalmente anunciado no mês de outubro e que seria o primeiro concedido a um autor de língua portuguesa.


Pois foi aí, já quase sexagenário, que a vida de José Saramago — menino pobre que não teve um livro antes dos 19 anos e que na juventude trabalhou como mecânico de automóveis (embora não saiba dirigir) — se pôs a trepidar, num benfazejo terremoto que em pouco mais de uma década haveria de redesenhar a sua paisagem existencial. Aos 57 anos, para começar, ele finalmente decolou como escritor ao publicar o romance Levantado do Chão. Aos 64, encontrou o que acredita ser o seu definitivo amor em alguém 28 anos mais jovem, a jornalista sevilhana María del Pilar del Río Sánchez. Aos 70, transplantou-se das margens do Tejo para uma ressequida ilha vulcânica espanhola onde não corre um ribeirão sequer e toda a água tem que ser tirada do mar, Lanzarote, a mais oriental das sete Canárias, com 50.000 habitantes e 805 quilômetros quadrados.


Ali, numa casa que vem a ser a primeira e até agora única propriedade desse persistente militante comunista, foram escritos seus livros mais recentes, Ensaio sobre a Cegueira e Todos os Nomes, além dos diários intitulados Cadernos de Lanzarote, encorpando uma obra na qual já se destacavam os romances Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra e O Evangelho Segundo Jesus Cristo. No Brasil, onde o melhor de Saramago já foi publicado, apenas este último título vendeu 85.000 exemplares.


A virada na vida do escritor foi engatilhada de maneira acidental, em 1975, quando, demitido do cargo de diretor-adjunto do Diário de Notícias ele decidiu não procurar emprego, abrindo assim espaço para que a sua criação literária deslanchasse em regime de dedicação exclusiva.


José Saramago, que tem uma filha, Violante, bióloga, de seu primeiro casamento, e dois netos, Ana e Tiago, já era autor consagrado em 1992, quando o ateísmo contundente de O Evangelho Segundo Jesus Cristo desaguou num episódio de censura que acabou determinando a sua mudança para Lanzarote, onde se instalou em fevereiro de 1993. O editor sênior Humberto Werneck, de PLAYBOY, lá esteve para entrevistar o escritor e conta:


"Branca, com dois pavimentos, a casa de José Saramago se chama exatamente isso, 'A Casa', conforme se lê junto ao portão de entrada. Fica no número 3 da Rua Los Topes, numa esquina da minúscula cidade de Tías, mas pode ser que o visitante tenha dificuldade em encontrá-la, pois o dono de A Casa, tendo lido sobre a história do lugar, decidiu restabelecer a sua antiga denominação, hoje inteiramente esquecida, Las Tías de Fajardo.


"Os carteiros de Lanzarote já se conformaram com a esquisitice, e não é impossível que o mesmo acabe acontecendo com os demais lanzarotenhos, sobretudo se o ilustre forasteiro vier a ganhar o Prêmio Nobel. Já são provavelmente maioria os nativos capazes de reconhecer aquele senhor alto, desempenado e sobrancelhudo, com óculos grandes demais para o seu rosto e cabelos grisalhos que escasseiam no alto e abundam, um tanto alvoroçados, na parte de trás da cabeça. Saramago ganhou faz um ano o título de 'filho adotivo' da ilha e só não é 'o' escritor de Lanzarote porque lá vive o romancista espanhol Alberto Vásquez-Figueroa, com quem fez camaradagem.


"Reservado, porém afável, de pouco riso mas longe de merecer a fama de mal-humorado que o persegue, José Saramago acumula as características a princípio excludentes de homem a um tempo caseiro e viajador: duas vezes por mês, em média, ele abandona a paisagem lunar de Lanzarote para atender a compromissos profissionais, sempre em companhia de Pilar del Río, hoje a sua tradutora para o espanhol e revisora das antigas traduções.


"Quando está na ilha, o escritor pouco sai de sua casa, plantada num jardim atapetado de picón, cascalho fino de origem vulcânica de cor preta ou tijolo escuro. A vegetação esparsa inclui duas oliveiras que o escritor quis ter ali por serem as árvores de sua infância na Azinhaga, povoado da região portuguesa de Ribatejo onde nasceu, filho de pais camponeses muito pobres, e onde viveu até mudar-se para Lisboa, aos 2 anos de idade.


"Num dos cantos do jardim há uma piscina (coberta, por causa do vento forte) com 7 metros e meio de comprimento, que o escritor atravessa pelo menos trinta vezes todos os dias -- uma das explicações para a excelente forma física em que se encontra a apenas quatro anos de tornar-se octogenário. O mesmo se diga, aliás, da bela e simpática Pilar del Río, que aos 47 anos, mãe de um rapaz de 21, Juan José, que mora com o pai em Sevilha, não aparenta mais que 35.


"Marido e mulher têm, cada qual, seu escritório, e o de Saramago, no segundo piso, deixa ver o mar. As edições portuguesas e estrangeiras de seus livros espremem-se numa estante com quatro prateleiras e bom metro e meio de comprimento. Numa fotografia, uma tabuleta em francês provoca o ateu empedernido: "Dieu te cherche" — Deus te procura. Nesse escritório (onde foram gravadas, em três rodadas, as 7 horas desta entrevista), usando um laptop Canon acoplado a um monitor Samsung, Saramago escreve pela manhã e no final da tarde a sua quota diária de literatura, nunca mais de duas páginas, ao som de Mozart, Bach ou Beethoven, e responde a algumas das cartas, cerca de 100, em média, que lhe chegam todos os meses de vários cantos do mundo.


"Depois do almoço, já embarcado no hábito espanhol da siesta, ele cochila ou apenas relaxa na sala, no andar térreo. Nesses momentos nunca lhe falta a companhia da fauna canina doméstica: o cão d'água português (espécie de poodle) Camões, a yorkshire Greta e o poodle Pepe. À noite, na cozinha, vai repetir-se um ritual: sentam-se os três diante de seu dono, que, faca na mão, distribui rodelas de banana. Pepe foi batizado pelo escritor na esperança de que não sobrasse para ele próprio esse apelido a que, na Espanha, praticamente todos os Josés se acham condenados. Camões assim se chama porque apareceu na casa no dia de 1995 em que Saramago ganhou o Prêmio Camões, concedido anualmente pelos governos de Lisboa e Brasília a um escritor de língua portuguesa e que já distinguiu os brasileiros Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz e Antonio Candido. Camões adora livros: comeu duas biografias do presidente sul-africano Nelson Mandela, em diferentes línguas, e ultimamente se dedicava a roer as bordas de um grosso álbum de pinturas de Goya.


"Ao contrário de outros autores lusitanos, Saramago exige que seus livros sejam publicados no Brasil exatamente como saíram em Portugal, sem concessões destinadas a facilitar o entendimento do leitor brasileiro. Na transcrição desta entrevista, PLAYBOY não chega a adotar a ortografia vigente em Lisboa, mas busca não abrasileirar a fala do escritor. Como, ó pá, ninguém é de ferro, algumas palavras ganharam 'tradução' entre colchetes."


PLAYBOY — Aos 70 anos, o senhor veio parar nesta ilha, com outra língua, outra cultura. É um exílio?


SARAMAGO — A palavra é demasiado dramática. Se estou aqui, isso se deve a uma decisão absurda, estúpida do governo [português] de então [chefiado pelo ex-primeiro ministro António Cavaco Silva], em 1992, quando um subsecretário [António Sousa Lara] de Estado da Cultura — imagine, da Cultura... — decidiu que um livro meu, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não podia ser apresentado como candidato ao Prêmio Literário Europeu, porque, segundo ele, ofendia as crenças religiosas do povo português. Fiquei bastante desgostoso, indignado — e foi nessa altura que a minha mulher me disse: "Por que nós não fazemos uma casa em Lanzarote?"


PLAYBOY — Por que Lanzarote?


SARAMAGO — Nós tínhamos estado aqui no ano anterior e gostamos muito. Mas quando minha mulher sugeriu fazermos a casa, reagi como seria natural: "Pilar, por favor..." Mas ao cabo de dois dias eu estava a dizer: "Essa idéia afinal de contas não é má..." São duas reações masculinas típicas. Quando a mulher diz ao marido: "E se nós fizéssemos isto assim, assim?", em geral ele responde: "Não, que idéia!" A segunda reação é dizer, 24 ou 48 horas depois, como quem condescende: "Olha que essa tua idéia afinal de contas não é tão má..."


PLAYBOY — Uma mudança como essa traz problemas de adaptação...


SARAMAGO — Sim, mas adapto-me muito facilmente a situações novas.


PLAYBOY — E é chegado a experiências tardias na vida, não?


SARAMAGO — Tenho que reconhecer que as coisas boas da minha vida aconteceram um pouco tarde. Quando publico o Memorial do Convento, em 1982, estou com 60 anos, e com 60 anos o escritor normalmente tem sua obra feita. Não é que não continue, mas a parte central da sua obra já está feita. Eu tinha alguns livros, mas é com o Memorial do Convento que tudo ganha outra força.


PLAYBOY — A sua estréia foi lá atrás, aos 25 anos.


SARAMAGO — Tenho um livro que foi reeditado agora — o meu editor teimou e a minha mulher ajudou nisso —, um romance que publiquei em 1947. Chama-se Terra do Pecado. Não está mal escrito, mas tem pouco a ver comigo hoje. Ainda escrevi um outro livrinho [o romance A Clarabóia], que está por aí, mas, enfim...


PLAYBOY — Não será publicado?


SARAMAGO — Em vida minha, não. Depois, se quiserem...


PLAYBOY — Do que se trata?


SARAMAGO — É a história de um prédio onde há seis inquilinos, e é como se por cima da escada houvesse uma clarabóia por onde o narrador vê o que se passa embaixo. Não está mal, mas não quero que publiquem.


PLAYBOY — Depois de Terra do Pecado o senhor ficou quase vinte anos sem escrever. O que houve?


SARAMAGO — Se eu tivesse tido êxito com aquele primeiro livro... Mas também seria difícil esperar que tivesse. Vivi sempre muito isolado, nunca pertenci a grupos literários, pelas próprias condições sociais em que vivia, sem grandes meios. Sou uma pessoa que não passou pela universidade, portanto não criou amigos nessa roda que se supõe ser de intelectuais. Vivi sempre assim, à margem.


PLAYBOY — A sua formação literária foi um pouco errática, não é?


SARAMAGO — Nem sequer errática [ri]... Eu diria condicionada pela minha situação material. Depois da instituição primária, entrei no liceu [ginásio], onde estive só dois anos. A família não podia levar-me até o fim do curso. A partir daí estive numa escola industrial e tirei o curso de serralharia e mecânica. E aos 17, 18 anos fui trabalhar numa oficina de automóveis, onde estive por dois anos.


PLAYBOY — O que fazia lá?


SARAMAGO — Desmontava e consertava motores, regulava válvulas, condicionava, mudava juntas de motores. Agora, o que há talvez de importante aí é que nesse curso industrial havia uma disciplina de Literatura, coisa um pouco estranha, e que me abriu o mundo da literatura.


PLAYBOY — O seu primeiro livro foi mal recebido?


SARAMAGO — Não. Mas é um livro entre muitos, não tem muita importância. Naquele impulso ainda escrevi A Clarabóia. Não sei se naquela altura tive consciência de que não tinha grandes coisas para dizer e que, portanto, não valia a pena. O melhor que me aconteceu foi ter uma vida suficientemente larga para que aquilo que tinha que chegar chegasse.


PLAYBOY — Dá a impressão de que o escritor tem um manancial que pode ser explorado seja na juventude, seja na idade madura. Pode-se dizer que está jorrando agora uma coisa que ficou represada?


SARAMAGO — Se esse manancial existia, pelo menos eu não tinha consciência dele. Nunca fiz uma lista de assuntos e disse: "Vou fazer tudo isso". Cada vez que acabo um livro, fico sem saber o que vai acontecer depois. Cheguei ao ponto a que cheguei dando um passo de cada vez, e esses passos não estavam planeados. Agora, isso tem outra vantagem: me dá uma sensação de... não quero dizer de juventude, mas de...


PLAYBOY — ... vitalidade.


SARAMAGO — Talvez de uma capacidade imaginativa que pode não ser muito comum quando se chega à idade que tenho. Provavelmente é isso que me leva a dizer: "Que sorte eu tive, de tudo o que tinha a fazer de mais importante estar a fazê-lo nesta fase da minha vida". Porque se tivesse feito aos 50 anos, provavelmente agora não tinha mais nada para dizer. Se nós tivéssemos a certeza de ter uma vida longa, talvez valesse a pena guardar para a parte final dela aquilo que temos realmente para fazer. É a circunstância em que nós nos achamos que nos obriga a decidir, e há dois momentos importantíssimos na minha vida. Um é o aparecimento da Pilar. Foi um mundo novo que se abriu. O outro foi em 1975, quando era diretor-adjunto do Diário de Notícias e, por causa de um movimento que se pode chamar de contragolpe [político], fui posto na rua.


PLAYBOY — O que foi que houve?


SARAMAGO — No dia 25 de novembro de 1975 há, de uma parte dos militares, uma intervenção que suspende o curso da revolução [a chamada "Revolução dos Cravos", que a 25 de abril de 1974 pôs fim a 48 anos de ditadura salazarista] tal como ela se vinha desenvolvendo e que põe um travão àquilo que estava a ser o movimento popular. Foi o primeiro sinal de que Portugal iria entrar na "normalidade". O jornal pertencia ao Estado e os responsáveis, então, demitem a redação e a administração. E aí é que tomo a decisão de não procurar trabalho. Tinha muitos inimigos e não era fácil que fosse encontrar trabalho. Mas nem sequer tentei.


PLAYBOY — Inimigos no mundo jornalístico ou no mundo das letras?


SARAMAGO — Inimigo nas letras eu tenho é agora. Naquela altura eu não era ninguém.


PLAYBOY — O senhor se considerava um jornalista ou um escritor?


SARAMAGO — Nunca me considerei um jornalista. Porque entrei nos jornais sempre pela porta da administração, nunca pela porta da redação. Nunca fiz uma entrevista, uma reportagem, nunca escrevi uma notícia. Também é certo que não me considerava tão escritor assim, porque aquilo que tinha feito não me dava um estatuto de escritor. No fundo, era apenas alguém que estava à espera de que as pedras do puzzle do destino — supondo-se que haja destino, não creio que haja — se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: "Não vou procurar trabalho". Tinha uma idéia vaga, queria escrever um livro sobre a vida dos camponeses. Comecei a pensar o que faria sobre o lugar onde nasci, mas as circunstâncias me levaram para o Alentejo [região a leste de Lisboa]. Fui para lá em 1976, fiquei semanas ouvindo pessoas, tomando notas, e isso veio a dar no livro Levantado do Chão, que se publicou em 1980.


PLAYBOY — O que pretendia quando começou a escrever? Fama? Dinheiro?


SARAMAGO — Eu não queria nada. Queria apenas escrever. E quanto a isso de querer ser rico, eu nem agora penso em ser rico.


PLAYBOY — O senhor não está rico?


SARAMAGO — Não. Ao olhar para estas paredes, diga: "Estão feitas com livros". Não tenho bens de outra natureza. Se quisesse ser rico, tinha permitido que se adaptasse o Memorial do Convento a uma novela brasileira.


PLAYBOY — Houve uma proposta?


SARAMAGO — A [falecida atriz] Dina Sfat, em Lisboa, disse-me: "Queremos fazer o Memorial do Convento". Eu disse nessa altura: "Não tenho qualquer razão para querer ser rico". Evidentemente que se dirá hoje: "Ah, mas você vive bem". Vivo relativamente bem. Mas isso não é como resultado de um projeto para enriquecer.


PLAYBOY — O senhor recusou a proposta de Dina Sfat mas aceitou outra, para adaptação cinematográfica de A Jangada de Pedra.


SARAMAGO — Esse foi um caso em que eu cedi. Mas não cedi a nada senão à simpatia da própria pessoa [a professora húngara Yvette Biró, da Universidade de Nova York]. Ela mostrou um interesse tão grande, de uma forma tão inteligente... O guião [roteiro] está feito, ela está à procura de um produtor, parece que está bastante adiantado — mas a verdade é que não dou seguimento a nada, como se no fundo quisesse que tudo isso abortasse. Há outras situações, como, por exemplo, a que se refere ao Ensaio sobre a Cegueira. Oito produtoras norte-americanas e uma inglesa estão a ler o livro. Já disse ao meu agente: "Deixa-os lá fazer propostas, mas não será adaptado o livro".


PLAYBOY — Nem se for uma proposta extremamente tentadora?


SARAMAGO — É preciso pensar sobre o que produtores norte-americanos fariam de um livro como esse.


PLAYBOY — O que eles fariam?


SARAMAGO — Aproveitariam o que no livro há de mais exterior, que é a violência e o sexo. E aquilo que é importante, a interrogação sobre como é que nós nos comportamos, que uso fazemos da nossa razão, que cegueira nossa é essa que não é dos olhos mas do espírito, que relações humanas são essas a que chamamos humanas e que de humanas têm tão pouco. A lição que o livro pretende dar desapareceria completamente.


PLAYBOY — Mesmo nas mãos de um cineasta sensível, um Antonioni?


SARAMAGO — Bom, há dois ou três nomes que provavelmente me fariam pensar duas vezes. A verdade é que os grandes realizadores [diretores] desapareceram. Os realizadores, hoje, são meros funcionários que fazem aquilo que os produtores mandam. Costumo resolver isso dizendo que não quero ver a cara das minhas personagens. Pois se nem eu as descrevo...


PLAYBOY — Mas o senhor deve ter imagens na cabeça quando escreve.


SARAMAGO — Não tenho ninguém na cabeça. Sento-me diante do computador com a idéia de uma história que quero contar, mas não necessito inspirar-me em figuras reais.


PLAYBOY — É verdade que todos os seus livros partiram de um título?


SARAMAGO — Foi assim praticamente com todos. Foram títulos dados, não sei por quem, não sei por quê. O Ano da Morte de Ricardo Reis nasceu em Berlim. Eu tinha ido aí com uns quantos escritores e num fim de tarde, cansado, deixo-me cair na cama — e nesse momento caem-me do teto, quase, estas palavras: "O ano da morte de Ricardo Reis".


PLAYBOY — E O Evangelho Segundo Jesus Cristo?


SARAMAGO — Esse nasceu de uma ilusão de óptica, em Sevilha. Atravessando uma rua na direção de um quiosque [banca] de jornais e revistas, naquele conjunto de títulos e manchetes pareceu-me ler "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Continuei a andar, depois parei e disse: "Isso não pode ser" — e voltei atrás. De fato, não havia nem evangelho, nem Jesus nem Cristo. Se eu tivesse uma boa visão, se não fosse míope, provavelmente esse livro não existiria. O Ensaio sobre a Cegueira nasce num restaurante. Estou sentado, à espera de que me sirvam, e nesse momento, a propósito de nada, penso: "E se fôssemos todos cegos?"


PLAYBOY — É verdade que Todos os Nomes nasceu no Brasil?


SARAMAGO — Nasceu quando fui receber o Prêmio Camões [em janeiro de 1996]. O avião já estava descendo em direção ao aeroporto de Brasília — e de repente passa-me pela cabeça isto: "todos os nomes". Nada disso é definido, aparece como idéias vagas que passam, e algumas delas foram para mim tão claras, ou pelo menos tão insinuantes, que me permitiram dizer: "Isto significa qualquer coisa". Custa trabalho encontrar, depois, um caminho para chegar aonde eu quero. Todos os Nomes, por exemplo, foi bastante complicado e provavelmente não existiria se não tivesse coincidido com a procura dos dados da vida e da morte do meu irmão [Francisco de Sousa]. Eu queria saber as circunstâncias da breve vida desse meu irmão, tem que ver com um livro para o qual tenho já muito material recolhido, que é uma autobiografia...


PLAYBOY O Livro das Tentações?


SARAMAGO — Sim. Uma autobiografia que vai só até os 14 anos.


PLAYBOY — Não é curioso o senhor ter começado pelo pecado ­ Terra do Pecado — para cinqüenta anos depois chegar à tentação?


SARAMAGO — Não, mas são outras tentações. Se é uma autobiografia que vai até os meus 14 anos, que tentações podem ser essas? Não as tentações da carne, nem as do poder, da glória, não. Nasce uma criança, e o mundo todo, que está aí para ser conhecido, é como uma tentação. Ora bem, esse irmão mais velho morreu com 4 anos quando eu tinha 2. Se vou escrever um livro sobre a minha vida, tenho que falar nele. Não sabia praticamente nada dele, então pedi um certificado de nascimento — e aí é que começam as surpresas: a data da morte não está lá. Do ponto de vista burocrático, meu irmão está vivo...


PLAYBOY — Para quem não acredita na vida eterna, hein?


SARAMAGO — Realmente, não acredito na vida eterna, embora vá inventando formas de dar-lhe alguma eternidade à vida. Quando invento [em Todos os Nomes] uma conservatória [arquivo do Registro Civil] onde estão todos os nomes e um cemitério onde estarão todos os mortos, no fundo é uma forma de dar eternidade àquilo que não é eterno, ou pelo menos dar-lhe permanência. Se não fosse essa história do meu irmão, talvez escrevesse um livro chamado Todos os Nomes, mas seria outro totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me leva, no romance, a dar numa conservatória. Parece haver uma espécie de predestinação em tudo aquilo que faço. Há coisas que acontecem e que suscitam outras idéias, portanto é tudo uma questão de estar com atenção ao modo como essas idéias se desenvolvem. Algumas delas não têm saída, mas há outras que encontram seu próprio caminho. Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações...


PLAYBOY — Se é verdade que um escritor está sempre dizendo a mesma coisa, como há quem sustente, qual seria o núcleo daquilo que o senhor vem dizendo em seus livros?


SARAMAGO — Preferiria responder de outra maneira. Há outra pergunta que muitas vezes é feita numa entrevista ao escritor: por que escreve?


PLAYBOY — Vamos a ver: por que o senhor escreve?


SARAMAGO — [Ri.] Vamos a ver. Até há uns anos a minha resposta era esta: "Escrevo porque quero que as pessoas me queiram bem". Depois, comecei a dar outra resposta: "Escrevo porque no fundo não quero morrer". Mas agora nem sequer isso. E tenho isto muito, muito dentro de mim: "Escrevo para compreender". Compreender o quê? Tudo. Quem somos nós? O que é isso de ser um ser humano? À luz do processo do desenvolvimento do animal que somos, isso está mais ou menos claro. A antropologia diz de onde é que viemos, por que fases passamos até chegar àquilo que somos. Mas a minha pergunta é esta: e aquilo que somos tinha forçosamente de ser o que é? Em que momento desse processo nós tomamos por um caminho que nos veio dar a isso? Quantos caminhos possíveis teriam que existir que fariam de nós outras pessoas? Dizemos que somos seres humanos e que aquilo que nos separa dos animais é que temos razão e os animais, instinto. E aonde é que nos levou a razão? E que é isto das raças, das crenças, das religiões, das ideologias, das superstições, dos preconceitos, essa máquina alienante em que vivemos e que cada vez nos afasta mais de uma relação humana regida pelo princípio fundamental do respeito do outro?


PLAYBOY — Qual de seus livros lhe deu menos trabalho?


SARAMAGO — Há livros que se deixam escrever mais facilmente. A Jangada de Pedra é um desses casos em que só há que levar a história ao seu final. Agora, o Ensaio sobre a Cegueira, todos os outros...


PLAYBOY — O senhor disse que esse livro e o seguinte, Todos os Nomes, se distinguem daquilo que fez antes, ao ponto de parecerem pertencer a outro autor. Distinguem-se em quê?


SARAMAGO — Há um estilo mais conciso — aquilo que se chamava certa escrita barroca, ornamentada, diminui muito tanto no caso do Ensaio sobre a Cegueira como no de Todos os Nomes. Mas a grande diferença não é essa. Costumo dizer o seguinte: até O Evangelho Segundo Jesus Cristo, foi como se eu tivesse estado a descrever uma estátua. A partir do Ensaio, é como se eu tivesse passado para além da superfície, entrado na pedra. Quero com isso dizer que, nesta altura da vida, o que me interessa é ir às questões que são essenciais.


PLAYBOY — A impressão que fica é que escrever é um sofrimento.


SARAMAGO — Não, eu não chamaria um sofrimento.


PLAYBOY — É prazeroso?


SARAMAGO — Não, também não. Há quem fale do prazer da escrita. Confesso que não tenho nenhum.


PLAYBOY — O senhor poderia não escrever?


SARAMAGO — Sim, acho que sim.


PLAYBOY — Há escritores que se sentiriam morrer se não escrevessem.


SARAMAGO — [Cortando.] Acho que há muito romantismo nessas declarações. Para mim, escrever é um trabalho. E tenho sempre cuidado cada vez que leitores, com uma certa ingenuidade e com as melhores intenções, crêem que o autor é uma pessoa que paira lá noutras alturas.


PLAYBOY — As pessoas tendem a ver o escritor como uma fonte de sabedoria, não é?


SARAMAGO — Acho que uma fonte de sabedoria temos nós todos. Sabemos muito, muitíssimo mais do que aquilo que imaginamos. É evidente que, quantitativamente e qualitativamente, sei muito menos do que o Einstein sabia; mas o que sei ou qualquer pessoa sabe é tão digno de consideração quanto aquilo que o Einstein tinha para dizer. E dou já um exemplo próximo. O meu avô materno, que está ali [aponta para uma foto], que se chamava Jerónimo, era pastor de porcos. Ele e minha avó [Josefa] viviam numa casa muito pobre, o chão de barro, telha-vã. Meu avô teve um acidente vascular pequeno, meus pais levaram-no para se tratar em Lisboa e ele morreu poucos dias depois. Quando saiu de casa para ir para estação do caminho de ferro... Ao lado da casa havia um quintal onde se cultivavam umas figueiras e oliveiras. E meu avô, analfabeto, homem simples, sem nenhuma das sofisticações da civilização, nem, aparentemente, das sofisticações dos sentimentos, foi de árvore em árvore, abraçou-se a cada uma delas, chorando. Ele adivinhava que não voltaria. Por que é que conto isso? É que o meu avô, ao fazer isso, estava a dizer a mim que ele sabia muito mais. E esse saber não é o saber coisas, não é o saber dados. É outra coisa, tem que ver com a relação que há entre a pessoa e o mundo, e é dessa relação que, no fundo, tento falar com os meus livros.


PLAYBOY — É desse avô aquela história do canudo para urinar?


SARAMAGO — Não, esse era meu avô paterno. Eu entrei num táxi em Lisboa e o condutor a certa altura perguntou: "Você é fulano de tal?" "Sou." "Ah, eu sou da família Campestre" — era uma família conhecida lá na minha aldeia —, "sou o Manoel Campestre". Então me contou essa história passada com meu avô João, que era guarda de uma herdade no Ribatejo. Havia uma barraquita de pau onde ele ia descansar no meio da noite. Para não ter que se levantar e vir cá fora quando lhe desse vontade de urinar, tinha arranjado uma cana [bambu], que furou para que fosse contínua. Essa cana atravessava a parede da barraca e, quando lhe dava vontade de urinar, metia o pênis no canudo e urinava cá para fora. Era um sistema de canalização [risos] que no fundo não é muito diferente daquele que usamos nas nossas casas. Uma noite o Manoel Campestre foi tapar a extremidade do canudo que estava cá fora, e a urina, como não tinha saída, voltou para trás [risos].


PLAYBOY — Um desastre hidráulico...


SARAMAGO — Estão a acontecer neste momento quantidades de histórias que vão desaparecer. No fundo, o tempo é uma espécie de grande mar aonde vão todas essas coisas. O que tem de bom isso de escrever é que as histórias ficam. O meu avô parecia que não tinha futuro nenhum, mas ao escrever sobre ele estou a dar-lhe, ainda, vida. Portanto, a gente, no fundo, escreve para prolongar a vida.


PLAYBOY — Ainda sobre a sua família: o senhor é Saramago, mas seu pai, não. Era o apelido da família e virou sobrenome.


SARAMAGO — Às vezes se sabe por que as pessoas têm alcunhas [apelidos], mas nesse caso, não. Também não sei dizer por que a família da minha mãe era os "Caixinhas". O meu avô materno era Jerónimo "Melrinho", de pequeno melro. Era uma alcunha. No registro civil ele era Jerónimo só, sem mais. O "Melrinho" veio não sei de onde. Como não sei também de onde veio o Saramago. Antigamente não havia nas aldeias família que não tivesse as suas alcunhas, que eram muito mais conhecidas [que os sobrenomes]. O meu pai, que era José de Sousa, era o Saramago.


PLAYBOY — E ele não gostava disso.


SARAMAGO — Não gostava nada.


PLAYBOY — Era depreciativo?


SARAMAGO — Não. Porque, enfim, o saramago é uma planta e ele poderia chamar-se José de Sousa Oliveira, oliveira é outra planta. Achava que, tendo deixado a aldeia e ido viver para Lisboa, tinha mudado, tinha acabado essa coisa de ser um camponês, agora era um citadino e, portanto, já não usava alcunhas. Tanto é assim que assinava só José de Sousa, que é como ele era de fato no registro civil. Tinha todo o direito de não querer ser chamado de Saramago, embora a família fosse conhecida como tal. E tinha muita sorte, porque na aldeia havia três famílias que tinham as alcunhas mais disparatadas do mundo. Uma era os "Caralhanas" [risos]. Outros se chamavam os "Currotos". E outra, mais divertida ainda, era os "Pichatadas".


PLAYBOY — "Picha" vem a ser...


SARAMAGO — ...o pênis, claro. Eram os Pichatadas, os Caralhanas e os Currotos. Felizmente que não calhou-me nenhuma dessas [risos]. Imagine que eu pertencia a uma dessas três famílias e que o empregado do Registro Civil tinha feito isso, tal como fez com a alcunha de Saramago...


PLAYBOY — É verdade que esse funcionário estava embriagado?


SARAMAGO — Isso diziam os meus pais. Que ele estava embriagado e por isso é que tinha acrescentado o Saramago no meu registro. Daí a surpresa enorme, lá na escola onde eu estava sendo inscrito, quando meu pai se dá com essa coisa absurda de ter um filho que se chama Saramago. Teve que fazer uma declaração dizendo que ele também usava o nome. A família esteve na ignorância de que eu era Saramago até os meus 7 anos, quando foi preciso um documento de identidade. Sou o primeiro Saramago da família. E sou aquele que deu o nome ao pai [risos].


PLAYBOY — O senhor costuma visitar a sua aldeia?


SARAMAGO — Até os 16, 17 anos, voltava constantemente, ia nas férias. A primeira coisa que fazia era tirar os sapatos. Sonhava com o dia em que lá chegava para tirar os sapatos.


PLAYBOY — Qual foi a última vez que o senhor esteve lá?


SARAMAGO — Foi há uma meia dúzia de anos.


PLAYBOY — Já como um homem célebre, portanto.


SARAMAGO — Sim, digamos. Tenho o nome em uma das ruas de lá.


PLAYBOY — E que tal a sua rua?


SARAMAGO — É uma ruazinha. Em Santarém, que é a capital do distrito a que pertence a Azinhaga, também há uma avenida que tem meu nome.


PLAYBOY — Isso dá uma grande alegria, não dá?


SARAMAGO — Não direi que a alegria é grande, mas se a gente pensa que andei por lá descalço, atrás dos porcos do meu avô...


PLAYBOY — No início da conversa falávamos de suas experiências tardias. Houve também o casamento com Pilar, já depois dos 60 anos.


SARAMAGO — E com uma diferença de idade de 28 anos. Acho que tudo isso resulta do fato de eu aceitar as coisas que se me apresentam. Como é que eu conheci a minha mulher? Ela tinha lido livros meus e um dia, em 1986, telefona de Sevilha: "Sou fulana de tal, admiradora sua, estou a pensar em ir a Lisboa, porque li O Ano da Morte de Ricardo Reis e gostaria de percorrer os lugares por onde ele andou..." Mostrei-lhe um pouco Lisboa. Mantivemos uma correspondência, nos telefonávamos — e chegamos à conclusão de que valia a pena.


PLAYBOY — Ela se apaixonou pelo escrito e só depois pelo escritor...


SARAMAGO — Eu não diria isso. Evidentemente, ela não se apaixonou por todos os autores por cujas obras tinha se apaixonado [risos]. Quero pensar que o homem que ela encontrou não a decepcionou, depois de ter lido os livros que ele tinha escrito. Achamos que era importante para nós essa relação. E mais tarde achamos que não tinha sentido nenhum, para estarmos juntos, que eu, como não conduzo [dirijo], tivesse que ir de autocarro [ônibus] de Lisboa a Sevilha, uma quantidade de horas. E ela algumas vezes foi a Lisboa.


PLAYBOY — Que tal é estar casado com uma feminista?


SARAMAGO — A Pilar é uma feminista bastante atípica. Uma feminista como penso que deveriam ser as feministas. Tem uma grande consciência da situação social e cultural das mulheres, luta na medida das suas forças e das suas possibilidades para que isso mude. Mas não caiu nunca no folclore, na caricatura.


PLAYBOY — Sendo feminista, ela cobra uma divisão de tarefas em casa?


SARAMAGO — Não. Pelo contrário, ela quer que eu não faça mais nada senão fazer o meu trabalho. Sabe que sou incapaz de preparar a minha comida. Assume isso naturalmente, como mulher e como esposa. Pode-se, portanto, dizer que ela vive nessa contradição. Mas é uma contradição que não lhe causa a ela nenhum problema de consciência. Aqui vivemos bem, harmoniosamente.


PLAYBOY — Quem compra as suas roupas?


SARAMAGO — [Ri.] Praticamente é ela que me compra tudo, que me aparece com as camisas que acha que me assentam bem.


PLAYBOY — Ela fez uma reforma no seu visual?


SARAMAGO — Algumas coisas. Aceito com naturalidade. O gosto dela e o meu harmonizam-se facilmente.


PLAYBOY — As mulheres são obstinadas quando querem mudar um hábito masculino. O senhor se lembra de alguma coisa que usava ou fazia e que ela tenha batalhado para mudar?


SARAMAGO — Quando nós nos conhecemos, eu usava umas patilhas [costeletas] até aqui [mostra um ponto bem baixo na lateral do rosto], ainda tenho retratos disso... E ela, passado um tempo, disse: "Ah, eu não gosto disso". "Mas, Pilar, sempre usei isso assim, deixa lá." Mas tanto andou que por fim eu disse: "Vou tirar isso". E de fato ela tinha toda a razão.


PLAYBOY — Há uma entrevista em que o senhor deixa supor que Pilar del Río teria sido a sua descoberta do verdadeiro afinamento amoroso.


SARAMAGO — Acho que sim. É difícil falar dessas coisas, pois a gente quer explicar e não tem palavras. O que tenho claro é que é um sentimento que eu não conhecia, e que julgava conhecer. Os amores que vivi antes, vivi-os plenamente, crendo até que era aquilo, mas a verdade é que...


PLAYBOY — Duraram muito seus casamentos anteriores?


SARAMAGO — Me casei pela primeira vez [com a artista plástica Ilda Reis] em 1944, durou 25, 26 anos. A segunda ligação [com a escritora Isabel da Nóbrega] não foi casamento, mas foi como se fosse, e durou qualquer coisa como dezesseis anos.


PLAYBOY — O senhor se desconectou de suas ex-mulheres ou elas continuam a fazer parte de sua vida?


SARAMAGO — Da minha primeira mulher, que morreu este ano e que era uma excelente gravadora, depois do eclipse das relações, que durou bastantes anos, retomamos o contato. Tenho uma filha dela e a acompanhei muito. No segundo caso, não, tivemos um corte, foi radical.


PLAYBOY Nos Cadernos de Lanzarote o senhor diz que é dotado de pouco sentimento de família. Como é isso, na prática?


SARAMAGO — Evidentemente que tenho um sentido da família, mas talvez não tanto quanto seria natural. Ou talvez não tenha tido, antes, tanto quanto seria natural, por uma espécie de sensação de isolamento. Estava na minha família, mas sempre com a sensação de estar em trânsito. Tinha o comportamento normal do pai, do marido, do filho, mas interiormente era como se dissesse: "Ainda não é isso". Hoje não é tanto assim. Digo: "Tenho a minha mulher" — mas acrescento: "Mas a minha mulher não é a minha família, é outra coisa".


PLAYBOY — O senhor tem contatos freqüentes com sua filha?


SARAMAGO — Não muito, porque ela vive no Funchal [na Ilha da Madeira], nos vemos de vez em quando, ela vem às vezes passar férias aqui.


PLAYBOY — Vocês estiveram estremecidos durante um tempo, não foi?


SARAMAGO — Sim, por razões de ordem política — no caso de uma relação entre pai e filha, completamente disparatadas, absurdas. Mas não quero falar sobre isso.


PLAYBOY — Em que língua o senhor fala com a sua mulher?


SARAMAGO — Nós nos comunicamos em castelhano, é claro [ri]. Ela entende perfeitamente [o português], lê, mas diz que tem vergonha de falar. Às vezes digo, por brincadeira, quando quero falar em português: "Vou falar com os cães" [risos].


PLAYBOY — O que a mudança para Lanzarote lhe trouxe?


SARAMAGO — Sou caseiro e vir viver em Lanzarote acentuou essa característica. Nunca fui pessoa de bares nem de tertúlias noturnas. Sempre pensei que a noite é para dormir e que o dia é para trabalhar. Normalmente, à meia-noite estou na cama.


PLAYBOY — E acorda cedo?


SARAMAGO — Acordo aí por volta das 8 horas. Mas a verdade é que não me levanto antes das 9. É que entre as 8 as 9 horas a Pilar tem um programa na rádio [do qual participa por telefone, em casa], e convém estar isolada e tranqüila. Tomo o meu pequeno almoço [café da manhã] — e faço questão de prepará-lo desde o princípio. É a minha única contribuição, digamos, na cozinha... Como uma coisa de que gosto muito e que me veio por conhecimento da Pilar: torradas com azeite e, por cima, açúcar. Tenho amigos que olham para mim com um ar absolutamente escandalizado [ri]: "Mas isso é uma coisa absolutamente repugnante!" Não é.


PLAYBOY — Fica anotado, para experimentar hora dessas. Como é o resto do seu dia?


SARAMAGO — Normalmente sento-me aqui a trabalhar por volta das 10h30 e vou até 1h30. Depois disso vou nadar um bocado, uma meia hora. Almoça-se sempre tarde aqui, nunca antes das 2 horas. À tarde, como a ilha convida muito à sesta, fico sentado aí no sofá, durante meia hora, três quartos de hora, com os olhos fechados, às vezes chego mesmo a dormitar. É um modo de estar tranqüilo. Por volta da 5 horas, 5h30, regresso ao trabalho, e trabalho geralmente até 8, 8h30 da noite.


PLAYBOY — Quanto o senhor produz por dia, em média?


SARAMAGO — Não escrevo mais que duas páginas. É como uma disciplina que tenho. Ao fim da segunda página, paro, mesmo que pudesse continuar. As coisas têm que amadurecer dentro da cabeça, e se eu, em vez de escrever as duas páginas, escrever cinco ou seis, talvez estivesse a precipitar a narração. Segundo entendo, duas páginas são aquilo que se pode fazer de fato. É suficientemente maduro e pensado num dia, e para o dia seguinte ficarão mais duas páginas. Parece pouco, mas duas páginas por dia, todos os dias, ao fim do ano são quase oitocentas, não é?


PLAYBOY — A crítica tem tratado bem a sua obra e a sua pessoa?


SARAMAGO — Tem, tem. A minha pessoa, enfim, não tem que ver com a crítica literária. Sei que tenho, para algumas pessoas, má reputação: sou intratável, orgulhoso, mal-humorado. Há uma quantidade de pessoas que têm de mim essa idéia. Há coisas que dificilmente se suportam em mim. Uma delas é a coerência política. Não me vendo por coisa nenhuma. O que pensava, continuo a pensar; o que era, sou.


PLAYBOY — O senhor tem um certo número de desafetos literários.


SARAMAGO — [Rápido.] Sim, mas não falo deles.


PLAYBOY Nos Cadernos de Lanzarote o senhor fala.


SARAMAGO — Falo deles uma vez, depois não volto a falar, o que falei já está falado [ri]. Não se suporta que eu continue a escrever e que até agora não tenha escrito livros maus.


PLAYBOY — E o leitor? As cartas que recebe dão uma idéia de quem está na outra ponta da linha?


SARAMAGO — Não são simples cartas de admirador. Isso é provavelmente o que outros não têm, e por isso é que me invejam, porque não sou só o escritor que tem um certo êxito. Sou também um escritor a quem os leitores querem.


PLAYBOY — O senhor tem leitores também na Real Academia da Suécia, já que o seu nome tem sido falado para o Prêmio Nobel...


SARAMAGO — Ah, o Prêmio Nobel... Há três ou quatro anos que, cada vez que se aproxima a data [do anúncio da premiação], um dos nomes que aparecem é o meu. Nunca fiz nada para que isso sucedesse.


PLAYBOY — Por favor, não diga que tanto faz ganhar o Prêmio Nobel.


SARAMAGO — Não, não, não é tanto faz. O que digo é que o Prêmio Nobel, em primeiro lugar, não acrescenta nada à obra, seja ela qual for. O Nobel, enfim, é quase 1 milhão de dólares, é muito dinheiro. E, no fundo, é disso que se trata, porque se fossem 10.000 dólares ninguém falava dele. Agora, se vem o Prêmio Nobel...


PLAYBOY — ...o senhor o aceita resignadamente, não é? [Risos.]


SARAMAGO — Sim, posso dizer, resignadamente... [Risos.]


PLAYBOY — O que o senhor faria com 1 milhão de dólares?


SARAMAGO — Ah, resolvia aí uns quantos problemas. Não satisfaria nenhuma necessidade minha, porque a verdade é que o fato de termos hoje uma situação bastante confortável não nos levou a criar necessidades novas. Portanto, o Prêmio Nobel não mudaria nada. Agora, evidentemente, com esse dinheiro... Ele daria a mim mais tranqüilidade quanto ao futuro da minha mulher. Em segundo lugar, podia resolver-se uns quantos problemas de pessoas que me estão próximas. Se o Prêmio Nobel não vem, espero que os meus livros continuem a ser lidos — e isso, no fundo, é o que conta.


PLAYBOY — Por que o senhor faz questão de que seus livros saiam no Brasil com ortografia portuguesa?


SARAMAGO — Pela mesma razão por que quero ler os escritores brasileiros como eles escrevem e publicam no Brasil. Não escrevi "terno", escrevi "fato". Dir-me-ão: "Ah, mas é que o leitor brasileiro assim não entende". Pois deve entender, da mesma maneira que tenho a obrigação de saber que "fato", no Brasil, é "terno". Recebo quantidade de cartas do Brasil e ninguém até hoje me disse: "Ah, o senhor escreve de uma maneira que eu não entendo".


PLAYBOY — Nós, brasileiros, achamos bizarras algumas palavras usadas em Portugal. "Bicha" para significar "fila", por exemplo. E vocês, portugueses, acham graça em alguma palavra que usamos no Brasil?


SARAMAGO — Sabe o que acontece? Tomo as coisas todas a sério, e estas muito mais, porque têm que ver com a língua, falada e escrita. Ao fato de dizer que "bicha", que vocês dizem "fila", é também o homossexual, eu diria: pois vocês também chamam "veado", que para nós é um animal.


PLAYBOY — Existe algum brasileirismo que o senhor tenha adotado?


SARAMAGO — [Pausa.] Creio que não. [Pausa.] Há uma palavra que uso bastante, quando me despeço de alguém, que é "ciao". Mas também não tenho a certeza se isso me veio pela Itália ou pelo Brasil. Fora isso, não creio que tenha... Como não vejo as novelas brasileiras, que é por onde entram todas essas palavras, então não se me pegam certas expressões.


PLAYBOY — Muitos intelectuais portugueses se queixam de que as novelas brasileiras estão contaminando o português falado em Portugal.


SARAMAGO — Bem, a mim isso não me incomoda em nada, por uma razão muito simples: eu olho a língua portuguesa como um todo. Portugal, Brasil, África, tem toda essa área lingüística. Enriquece-me a mim, fico a saber mais.


PLAYBOY — No Brasil se repete, desde sempre, que somos povos irmãos. Somos mesmo?


SARAMAGO — Não, acho que não. E talvez seja melhor que não sejamos. Melhor que irmãos é amigos. De resto, bem sabemos que algumas das grandes tragédias acontecem no interior das famílias... Então deixemos irmandades, que, no fundo, têm mais de retórica do que de realidade, e procuremos coisas que podemos fazer juntos, no interesse dos dois povos. Acabemos com certos preconceitos, de que o português é bruto, cheira mal, usa bigodes...


PLAYBOY — ... é objeto de anedotas...


SARAMAGO — ...objeto de constantes anedotas, e anedotas que são sempre depreciativas. Creio que devíamos acabar com isso. Evidentemente que nós, em Portugal, também contamos anedotas de brasileiro. Mas tudo isso o que é? Significa que as pessoas acham que são superiores aos outros, significa manifestações de inveja ou de despeito? Seja o que for, positivo não é. De qualquer forma, há uma coisa certa: acho que o Brasil não precisa de Portugal para nada.


PLAYBOY — E Portugal, precisa do Brasil?


SARAMAGO — Não sei. Nós não encontramos ainda a maneira de ver até que ponto precisamos uns dos outros. Nunca tivemos um plano de trabalho conjunto com objetivos muito claros. Veja o que se está a passar com a CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Aquilo funciona? Não funciona. Isso foi criado há dois anos, ou talvez mais, e nada, e ninguém sabe que aquilo existe. Mas isso já estava a suceder antes, entre nós e os brasileiros. Muito banquete, muito discurso, de vez em quando um acordo, de vez em quando um tratado, todas essas coisas — mas, na prática, nada.


PLAYBOY — E houve uma crispação entre os nossos países, não é?


SARAMAGO — Tudo são motivos para crispações — as telenovelas, o acordo ortográfico, os dentistas...


PLAYBOY — O senhor entregaria seus dentes a um dentista brasileiro?


SARAMAGO — Olhe, se tratei dos meus dentes há poucos meses, aqui, com um dentista alemão, por que é que não trataria com um dentista brasileiro, que merece garantias de ser um profissional competente?


PLAYBOY — O senhor se ofendeu quando o presidente Fernando Henrique, sem citar o seu nome, criticou-o por se manifestar a respeito da questão dos sem-terra no Brasil?


SARAMAGO — Não, não me ofendi nada. Espero que ele não se tenha ofendido com o meu comentário [ri]. O presidente Fernando Henrique Cardoso se queixou de que eu não deveria estar a meter-me onde não era chamado. A minha opinião é contrária, acho que devo me meter, em primeiro lugar, em tudo quanto acho que deva meter-me, e muito mais em relação a um país que me está tão próximo, como é o Brasil. Aquilo que acontece lá interessa-me a mim. O que não se pode dizer é que o escritor português fulano de tal, que foi ao Brasil, que é recebido no Brasil, que é lido no Brasil, que é conhecido no Brasil, que dá entrevistas no Brasil, não pode opinar sobre uma coisa tão importante como é o problema dos sem-terra no Brasil.


PLAYBOY — Os intelectuais de esquerda já foram mais numerosos. O senhor não tem a impressão de pertencer a uma espécie em extinção?


SARAMAGO — Não diria espécie em extinção, mas olho algumas vezes para mim como um sobrevivente.


PLAYBOY — Não sente que há hoje uma enorme decepção em relação ao socialismo?


SARAMAGO — Há muitas diferenças entre o capitalismo e o socialismo, mas há sobretudo uma fundamental: o capitalismo nunca promete nada a ninguém. Se diz alguma coisa, é apenas isto: "Arranja-te como puderes. O mundo está aí, luta, triunfa, ganha, perde. Tudo isso é lá contigo, não tenho nada que ver com isso". O socialismo, não, ele nos diz: "Vamos fazer isso, vamos fazer aquilo, resolver esse problema, resolver aquele outro". Promete, e, se não cumpre, decepciona. Mas não há ninguém que possa dizer que está decepcionado com o capitalismo — porque, se ele não promete, como é que decepcionaria?


PLAYBOY — O senhor disse há algum tempo: "o capitalismo, nenhum, comunismo, outro". Existe no mundo alguma coisa que se pareça com esse comunismo que o senhor vê?


SARAMAGO — Tenho que dizer que nada. Digo às vezes que ser-se socialista, ou ser-se comunista, é um estado de espírito...


PLAYBOY — O senhor se diz socialista ou comunista?


SARAMAGO — Eu sou comunista. De qualquer forma, estou perfeitamente consciente de que só se é verdadeiramente comunista numa situação de organização comunista de uma sociedade. Não houve até hoje, conhecida, uma sociedade de que se pudesse dizer que era comunista. Isso significaria, provavelmente, o desaparecimento do Estado, coisa que não se verificou em parte alguma — pelo contrário, nos países do chamado socialismo real a autoridade do Estado intensificou-se e exacerbou-se, limites que poderíamos considerar aceitáveis foram ultrapassadíssimos. São os fatos que mostram isto: setenta anos de construção do socialismo na União Soviética não chegaram para fazer comunistas. Onde é que estão os homens novos que a revolução de 1917 prometeu? O [presidente russo Boris] Ieltsin é esse homem novo? Desde quando ele deixou de ser comunista? Quando digo que é um estado de espírito, é a isso que me refiro. Há um momento em que se perde o estado de espírito. Depois da queda da União Soviética, todos os partidos comunistas, ou quase todos, deixaram de chamar-se assim, substituíram seus emblemas, as suas siglas, passaram a ser outra coisa. Então me pergunto: mas é possível ter sido e deixar de ser? Claro que sim, as pessoas mudam. Mas mudaram todos assim, e mudaram todos ao mesmo tempo? Então eram antes? Quando é que deixaram de ser? Quando é que ainda pareciam ser e já não eram? Vivemos de fato em um tempo em que as ideologias se fragmentam, todas elas.


PLAYBOY — Seu comunismo data de quando?


SARAMAGO — Não sei. Talvez entre os 25 e os 30 anos tornou-se muito consciente que a opção político-ideológica que me convinha era essa. Mas só muito mais tarde, em 1969, fui convidado a entrar [no Partido Comunista Português].


PLAYBOY — Chegou a ter um posto de destaque no seu partido?


SARAMAGO — Não. Fui sempre o chamado militante de base.


PLAYBOY — Enfrentou a prisão ou constrangimentos no tempo da ditadura salazarista?


SARAMAGO — Constrangimentos, sim. Nunca fui preso. Tive sorte, e isso digo como uma grande homenagem a camaradas meus com quem trabalhava e que, apesar de torturados, nunca disseram meu nome. Três ou quatro camaradas meus foram sendo sucessivamente presos no final de março e em abril de 1974. Estava a se aproximar a revolução. Eu soube, depois, que na polícia política havia indicações para prender-me no dia 29. Por isso às vezes digo que a revolução do dia 25 de abril foi feita para que eu não fosse preso [risos].


PLAYBOY — Que obrigações lhe impõe o fato de ser filiado ao partido?


SARAMAGO — Bem, vivendo longe [de Portugal], não me impõe as mesmas obrigações além daquilo que é normal, que é o pagar a anuidade.


PLAYBOY — A militância comunista, em toda parte, implica uma disciplina rígida, contra a qual não cabe muita discussão. No Brasil, queriam que Graciliano Ramos fosse pichar muros, por exemplo.


SARAMAGO — Sei disso, evidentemente. É a tentação do que nós chamávamos obreirismo. O intelectual deveria estar ao serviço de pontos de vista que supostamente seriam os pontos de vista da classe operária. Daí certos equívocos, como seriam o de reclamar ou de exigir, da parte dos escritores, que escrevessem de maneira compreensível para as massas.


PLAYBOY — Alguma vez lhe pediram isso?


SARAMAGO — Não, não, nunca, jamais. Com isso, como nós sabemos, não ganhavam as massas, nem ganhava a literatura. A mim, nunca o meu partido disse: "Deves fazer isto", ou "Não gostamos do que estás a fazer".


PLAYBOY — E se dissessem?


SARAMAGO — Eu não aceitaria. Poderia reconhecer autoridade política e ideológica em quem o dissesse, mas não autoridade literária. E então, mesmo com o risco de contrariar a pureza ideológica, continuaria a fazer meu trabalho como eu entendo.


PLAYBOY — Tem gente que não crê em Deus mas tem ligação com algum santo. Acontece com o senhor?


SARAMAGO — Não. Se me fossem dadas razões para crer na existência de Deus...


PLAYBOY — O senhor gostaria?


SARAMAGO — Não, nem gostaria, nem deixaria [de gostar]. Mas se me provassem que ele existe, pois pronto: a partir daquele momento Deus passava a existir. Depois seria o momento de eu começar a perguntar-me para o que é que ele existia. Existia só porque tinha criado o universo? Ou, não tendo criado ele o universo, tinha escolhido este planeta para pôr aqui uma espécie animal a mais? Se me dissessem: "Esse Deus existe", eu continuaria a discutir: por que e para quê? Mas aquilo que eu preferiria seria que me demonstrassem a existência de um Deus criador efetivamente do universo, com tudo aquilo que está nele. E só assim é que eu entenderia. Se o universo foi criado, isso tem necessariamente que pressupor a existência de um criador. Então alguém me mostraria: "Aí está o criador". Mas se há alguma coisa que prove para mim o absurdo da relação do ser humano com aquilo que não sabe, é a impossibilidade de reconhecer que, se há Deus, só pode haver um Deus — não faz sentido que haja por aí trinta ou quarenta deuses. Se há Deus, só há um Deus. Se esse Deus é criador, então é responsável por toda a criação. O que eu não consigo entender é que, estando todos os que crêem em Deus obrigados, pela própria lógica, a reconhecer que se há Deus é só um Deus, tenhamos tido que chegar à tristíssima conclusão de que as religiões nunca serviram para aproximar os homens [enfático] e que, pelo contrário serviram para provocar carnificinas, horrores de toda espécie. Isso não prova que Deus não exista. Mas não me entra na cabeça que esse Deus criador tivesse, como sua criação suprema, isso que nós chamamos humanidade. E, por outro lado, se Deus existe e criou o homem há não sei quantos milhões de anos, a pergunta é esta: o que é que ele fez desde então? Não parece que tenha feito grande coisa.


PLAYBOY — O senhor parece mais bem-humorado quando fala de Deus.


SARAMAGO — Eu não chamaria humor. É ironia, como arma crítica.


PLAYBOY — Como naquela ocasião em que sugeriu uma vida eterna também para as plantas.


SARAMAGO — E para os meus cães! Se existisse uma vida eterna, além de querer comigo a minha mulher, também gostaria de ter lá os nossos cães, sem falar, evidentemente, na minha filha, nos meus netos, nos amigos — você mesmo, por que não haveria de estar lá comigo na vida eterna?


PLAYBOY — Sem entrevista, dessa vez [risos].


SARAMAGO — Sem entrevista... Eu diria que é todo o meu ser que rejeita uma crença em Deus. Claro que as pessoas inventam saídas: "Não, não se trata de um Deus antropomorfizado, trata-se de uma força, uma força que rege o Universo e tudo o mais". Bom, mas essa força que rege o Universo provavelmente pode definir-se por leis físicas, suponho eu. Deus existiu sempre? Que é sempre? Deus criou-se a si próprio para depois começar a criar o Universo? E onde é que estava Deus quando criou-se a si próprio? E como é que alguém se cria a si próprio? Do nada, passando do nada ao ser? Se o nada existiu, tudo o que veio depois estava contido no nada. Mas se estava contido no nada, então o nada não existia. Isso pode prestar-se a todas as acrobacias mentais que se quiser. Agora, o que eu não consigo entender é que tudo isso se possa reduzir a um senhor que criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou; que, passado um quanto tempo, olhou cá para baixo e viu que estava cheio de pecados e mandou o filho; mandou o filho para morrer — o que não tem sentido nenhum. Tudo isso me ultrapassa.


PLAYBOY — Por que o senhor escreve tanto sobre Deus?


SARAMAGO — Não escrevo sobre Deus, escrevo sobre os homens que crêem em Deus, o que é bastante diferente. Os livros que escrevo em que se fala de Deus ou da Igreja não são conseqüência de um problema que eu tenha tido com a Igreja, uma crise, nada disso. Sou alguém que nunca passou pela Igreja.


PLAYBOY — O senhor foi batizado?


SARAMAGO — Fui batizado, claro, como toda a gente daquela época.


PLAYBOY — Sua mulher é religiosa?


SARAMAGO — Ela diria melhor o que é. A Pilar foi monja, talvez entre os seus 14 anos e seus 21 ou 22. Ela sempre achou que está neste mundo para servir aos outros.


PLAYBOY — Ainda é católica?


SARAMAGO — Acho que já não. É possível que conserve algo dessa crença, mas de qualquer forma não pratica rigorosamente nada.


PLAYBOY — O senhor está em boa forma física, mas o tempo passa para qualquer pessoa. Como encara a idéia de estar envelhecendo?


SARAMAGO — Eu não me sinto envelhecer. Não posso correr como corria, não tenho tanta força quanto tinha, mas não sinto que meu corpo esteja velho. Coisa bastante desconcertante numa pessoa que está para fazer 76 anos. Sei que isso não vai durar, vai ter que acabar um dia desses, mas olho para mim, penso e digo: "Pois, não há nada em ti que possas dizer que pertença a um velho". Nem mentalmente, nem fisicamente.


PLAYBOY — Numa entrevista o senhor disse que houve uma longa preparação para chegar aonde chegou. O senhor se sente na plenitude?


SARAMAGO — Sim. Eu me vejo como uma pessoa que está em seu melhor momento em todos os aspectos.


PLAYBOY — O senhor é feliz?


SARAMAGO — Sou, sou.


PLAYBOY — No entanto, costuma dizer que o mundo nunca será feliz.


SARAMAGO — Não, o mundo não pode ser feliz. Porque haverá sempre alguém que não o é. Não há condições que sequer permitam às pessoas pensar em felicidade. Já lhes custa trabalho pensar na sobrevivência.


PLAYBOY — O senhor segue sendo pessimista.


SARAMAGO — Ah, sim. O mundo em que vivemos não dá qualquer lugar ao otimismo. E digo: é pena que não sejamos todos pessimistas, porque os pessimistas diriam: "Não se pode viver assim, vamos mudar isso". Já os otimistas estão contentíssimos. Acham que o mundo é tão bom que não há mudanças a fazer.


POR HUMBERTO WERNECK

FOTOS BEATRIZ HERNÁNDEZ


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