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JOÃO MARCELLO BOSCOLI | MARÇO, 1995



O filho de Elis Regina e Ronaldo Bôscoli fala de TV, música, tietes enlouquecidas e, é claro, do pai e da mãe


POR IVAN MARSIGLIA

FOTOS MAURÍCIO NAHAS


A cena se repetiu mais de uma vez na vida daquele menino de 11 anos. Ele arrumava as roupas na mala, pulava o muro e saía, os pés miúdos a escolher seus próprios caminhos. Fosse da casa de um bem-intencionado tio materno, ou a de um pai de última hora, este pequeno retirante sentia-se órfão o bastante para escolher seu destino. Não é nada fácil desatar laços familiares, especialmente quando se é fruto da união de dois tótens da música popular brasileira: Elis Regina e Ronaldo Bôscoli.


A maior cantora brasileira de todos os tempos e o autor de O Barquinho encontraram-se num tempestuoso casamento que gerou um único filho. O carioca João Marcello Boscoli (sem acento no "o" por um erro do escrivão) é, aos 24 anos, um homem independente. Músico, ele idealizou e apresenta o programa Cia. da Música, que a Gazeta/CNT exibe nas noites de domingo. João Marcelo é também diretor musical da agência de publicidade paulista DPZ, compõe vinhetas musicais para a Rede Bandeirantes, está escalado para produzir duas faixas do novo CD de Ivan Lins e ainda escreve uma coluna mensal sobre música na revista CAPRICHO. "Sem exagero, trabalho umas dezoito horas por dia", diz ele, que, apesar disso, não tem a aparência típica de um workaholic, com 1,74 metro de altura, 72,5 quilos e visual discretamente pop.


Toda essa atividade profissional é muito bem recompensada. Ao final de cada mês, João Marcelo abocanha algo em torno de 114.000 dólares, renda que, entre outros confortos, lhe permite circular ao volante de uma Omega Suprema ano 1994. Isso sem contar o espólio fonográfico de Elis Regina, que a cada três meses lhe traz, no mínimo, 3.000 dólares, quantia que pode chegar a 50.000 e é repartida com dois outros irmãos maternos, Pedro, de 18 anos, e Maria Rita, de 16 — filhos do segundo casamento de Elis, com o pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano. E com o irmão Pedro que João Marcelo divide um apartamento de três suítes no bairro paulistano do Morumbi.


O filho de Elis Regina começou a carreira muito cedo, aos 12, um ano depois de perder a mãe, tocando bateria no álbum Comissão de Frente, de João Bosco. Aos 15, trabalhou na produção do Festival dos Festivais, da Globo, e aos 17 excursionou com Jorge Benjor e a Banda do Zé Pretinho. Sua formação musical foi influenciada também por Cesar Camargo Mariano, que praticamente o adotou aos 6 anos e é a pessoa a quem chama de pai: "Ele foi meu bilhete premiado na vida", diz João Marcelo, num sorriso gengival que lembra incrivelmente Elis Regina, a quem se refere ora como "minha mãe", ora como "Elis". Do pai propriamente dito, morto em 18 de novembro último — "Ronaldo", como prefere dizer, e a quem, curiosamente, se refere com freqüência no presente —, João herdou o topete, em ambos os sentidos, e a incontinência verbal.


Foi em seu escritório na DPZ que João Marcelo Boscoli conversou com Ivan Marsiglia, repórter de PLAYBOY.



1. Ser filho da Elis Regina ajuda? Tome o meu irmão, que é cantor, como exemplo. As pessoas acham, "ah, ele é filho da Elis, então é uma teta". Não é uma teta. Ele está seguindo o caminho natural: grava, faz demo, sai atrás de show. Mas, quando ele abre a boca, se garante. E não tem essa de ficar puxando pedigree toda hora.


2. Em que você se parece mais com seu pai e com sua mãe? O que mais herdei dos dois é a velocidade — sou muito rápido. Agora, me considero um cara privilegiado. Nasci no ninho da cobra: sou filho da Elis Regina com o Ronaldo Bôscoli e o Cesar Mariano ajudou na minha formação musical. Eu vi tudo, cara.


3. Que tipo de música você gosta de ouvir? Ah, ouço tudo. Eu tinha a fina flor da MPB em casa — vi Milton, Gil, Djavan mostrando música para a minha mãe. Bossa nova é do caralho! Agora, é importante que o cara trabalhe a bossa nova hoje, não fique só tocando vassourinha na lista telefônica, como se fazia antigamente. É engraçado que os caras de fora são os que mais estão apontando novas direções para a bossa nova, ou pelo menos trabalhando com seus elementos no mercado pop. A [cantora nigeriana criada na Inglaterra] Sade, com Smooth Operator, o [grupo britânico] Matt Bianco...


4. Como é que surgiu o programa Cia. da Música? Muito naturalmente. O Oscar Rodrigues Alves, que trabalhou na TVA e na Globo, eu e o [letrista] Bernardo Vilhena sentávamos pra bater papo, e foram surgindo as idéias. Tinha uma linha mestra, que era a música ao vivo. Aí pensamos: o que as pessoas gostam mais de ver? Making of, bastidores. Então vamos botar o making of na frente do programa. Eu venho de uma vivência de camarim, já vi coisas do arco-da-velha.


5. A Rede Globo nunca encontrou uma boa fórmula de programa para o público juvenil. Trouxe nomes carismáticos da MTV, como Maria Paula e Luis Thunderbird, que caíram no ostracismo ou viraram coadjuvantes de outros programas. Por que isso acontece? Você já foi à MTV? Do porteiro ao dono da emissora eles são aquilo, pô! Não estão fingindo. E a Globo não é. Não é a área deles. Agora, o padrão de qualidade da Globo é excelente.


6. Você disse que viu ou ficou sabendo de coisas do arco-da-velha nos bastidores da música. Dê um exemplo. O Ronaldo me contou que tinha ido compor com o Vinicius [de Moraes]. Eles se encontraram, o Vinicius mexeu no bolso daquele casaco dele, puxou um papel todo amassado [imita o gesto com uma folha amarrotada]: "Vamos fazer essa aqui, Neguinho, 'olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...' Ah, não, essa aqui é pro Tom!" [Risos.]


7. Você gosta do trabalho de seu pai como compositor? Se E Tarde Me Perdoa e Canção Que Morre no Ar são músicas maravilhosas. E A Morte de Um Deus De Sal, que ele fez em homenagem ao cara que dirigia o barquinho. Eles costumavam sair para pescar em Cabo Frio [RJ]. Uma dessas ocasiões, estava tocando O Barquinho no rádio e o Ronaldo falou pra esse marinheiro: "Essa música quem fez fomos eu e o [compositor Roberto] Menescal." O marinheiro não acreditou. No final da música, entra o locutor [imita voz afetada]: "O Barquinho, de Menescal e Bôscoli..." O Ronaldo disse "tá vendo?" E ele: "Ah, e ocê acha que tem só um Menescal e Bôscoli?" [Gargalhadas.]


8. A música chegou cedo em sua vida. A primeira experiência com uma mulher também foi assim? Foi aos 13 anos — quer dizer, na média, né? Com uma menina do prédio onde eu morava, no Rio. Graças a Deus, era linda de morrer, uma princesinha, aquela coisa que andava na praia e todo mundo ficava assim, ó [fica de queixo caído]. O Ronaldo era um grande conquistador, né? Eu nem poderia ser o mesmo, porque tenho mais ciúme de mim do que ele tinha dele. São outros tempos, também. Não posso hoje cair matando por aí, senão vou morrer.


9. Mas é de se imaginar que um monte de mulher "caia matando" em você, que é músico, filho de gente famosa, trabalha na DPZ... Não é assim. Sem falsa modéstia, ocorre que as mulheres são muito mais educadas nesse sentido do que os homens. Aquilo que o Caetano cantou na música do Benjor: "O seu jeito fiel e sutil de lutar." E você transa com uma mulher porque ela resolve te dar. Quem decide a hora em que começa e acaba um relacionamento é a mulher.


10. Como foi excursionar com a Rita Lee, quando você era adolescente? Com a Rita eu excursionei sem tocar. Ela queria que eu tocasse, mas fiquei com medo, tinha só 12 anos! Minha mãe era muito amiga dela. Quando a Rita foi presa, a gente ia visitá-la na cadeia. Era barra-pesada. Minha mãe levava as crianças junto porque pensava: "Não é possível que vão matar a mim e as crianças." Rita Lee compôs Doce Pimenta para a Elis e uma pessoa, desastrosamente, gravou antes dela. Minha mãe ficou puta, enterrou a pessoa em vida. Se eu não me engano foi a [cantora carioca] Olívia Byington... Poucas vezes vi minha mãe tão puta da vida, ela achou uma invasão.


11. Mais tarde, você excursionou com a banda do Jorge Benjor. Acontecia muita loucura nessas viagens? Quando chega um artista numa cidade do interior é uma loucura, cara. As mulheres piram, enlouquecem. Mas não é com você, é com a situação. Mais recentemente, trabalhei no Hollywood Rock. Vinham aquelas menininhas de 16 anos, uns filezinhos, umas divindades, e diziam: "Faço qualquer coisa se você me deixar ver o Bon Jovi, transo com você." Mas não tem nada a ver, desse jeito, não vejo muita graça.


12. Ô João Marcello, conte uma historinha daquelas turnês para a gente! [Ri.] No interior de São Paulo, não me lembro o nome da cidade, eu tinha tocado com o Benjor e estava todo excitado. O Benjor é um cara careta, não fuma, muito ligado à família, super-tranqüilo. Agora, os músicos, bicho... Enfim, demos o show, sentei no camarim e vi uma loura, cara! Que mulher, uma coisa maravilhosa! Sabe aquelas que você olha e não acredita que existe? Estava meio mirando em mim e eu não tinha sacado. Todo mundo falando: "Ô garotão, vai embrulhar ou como é que é?" Fiquei meio constrangido porque sou um cara tímido. Mas o papo rolou e até as 7 da manhã foi aquela energia! [Risos.]


13. Na época em que você tocava com o Benjor, com 17 anos, esse tipo de coisa devia ser bem interessante, não? Uma loucura. Se você quiser, leva quatro mulheres para o quarto. Mas é legal uma vez, duas, três, cinco, oito... Depois, começa a enjoar, porque não tem roteiro, nenhum tipo de envolvimento: gozou, acabou. Como sou do meio, vejo essas menininhas que não cantam, não atuam, não fazem nada, com olhos de "I know who you are". "Porque eu sou atriz e tal..." Atriz é Fernanda Montenegro, Débora Bloch, Regina Casé. Minha mãe tinha amigas modelos, mas que eram pessoas de muita classe. Falavam duas línguas, tinham formação, status. Hoje em dia é uma zona, a mulher enfia um barbante no rabo e diz que é manequim.


14. Você citou grandes atrizes. E as grandes cantoras? Qual delas se compara a Elis? Gal Costa, por exemplo? Não tem comparação. A Gal é do caralho, a Bethânia também, a Simone já foi ótima — agora, a Elis é um Pele. O que eu posso fazer? Ela só lançou clássicos, tinha os melhores músicos, era a mais inteligente, a mais afinada, a de melhor temperamento, de mais carisma, a mais tudo. Não sou eu quem diz. Liga pro Paul McCartney e pergunta pra ele. O McCartney fez uma música para a Elis, pô! [Imita sotaque americano.] "Brazil, samba, Carnaval", mas feita especialmente pra ela. Diana Ross, Barbra Streisand, Quincy Jones, são todos fás da Elis. A carga dramática de Elis você só encontra nas grandes cantoras americanas. Nas grandes. Porque Whitney Houston, Diana Ross, esquece. Se quiser comparar, num nível comum estão Billie Holiday, Elis Regina, Aretha Franklin e Sarah Vaughan.


15. Como sua mãe, você também é um tanto intempestivo? Eu peco por excesso, nunca por omissão. Meu lance é energia. Por que até hoje as pessoas lêem o texto do [filósofo alemão Friedrich] Nietzsche? O que levou o [psicólogo suíço Carl Gustav] Jung a ler algo de um cara que escreveu há mais de 150 anos? É a energia. Como num texto do [poeta português] Fernando Pessoa: você pode até não entender a metáfora, mas sente a força. Olha só... [Mexe nas gavetas e apanha um livro, Os melhores poemas de Fernando Pessoa. Abre a esmo e começa a recitar]: "No plaino abandonado/Que a morna brisa aquece,/De balas traspassado/ — Duas, de lado a lado —, /Jaz morto, e arrefece." [Primeira estrofe do poema O Menino da Sua Mãe.] Antes do entendimento, vem o feeling. Se a Elis não fosse cantora, teria ganho o Oscar de melhor atriz.


16. Ronaldo Bôscoli também tinha personalidade forte? O que o Ronaldo gostava era de ser irônico. Só que se você faz ironia durante cinqüenta anos aquilo acaba te envenenando. Acho que isso aconteceu e ele corroeu a si mesmo. Sabe aquele cara que não deixa passar uma? Que faz piada todas as vezes? Ele era assim.


17. Você amava seu pai? [Dispara.] Amava. Mas acontece que fui muito atacado por ele. Pô, ele deixou um livro [a autobiografia Eles e Eu] dizendo que meu negócio não é música, e sim escrever. Se eu estivesse menos estabelecido, menos seguro, ele ia me desmoralizar. Eu sempre disse, o Ronaldo colocou a inteligência dele a serviço de coisas ridículas. É um intelectual de bar. Mas, apesar de parecer, não tenho nenhum rancor. Eu o amo, claro. Me amo e o fato de eu me amar significa amar o Ronaldo. Mas, pô, ele escreve que eu ficava trancado no quarto ouvindo Michael Jackson o dia inteiro, como se isso fosse uma coisa patológica! Vá tomar no cu, não bastou eu ter passado por tudo aquilo? O Ronaldo é uma vítima da própria inteligência. Ele era muito sedutor com as mulheres, mas comigo não foi. Pessoalmente, ele me ligava, nós conversávamos bastante. Se ele vivesse mais dez anos, acho que a gente podia se dar muito bem. No livro ele diz que a relação que tinha comigo era muito parecida com a que tinha com minha mãe. O Ronaldo foi um dos melhores professores que tive, uma das pessoas com maior velocidade de pensamento, um absurdo. Eu rebolava pra acompanhar. Foi também um grande anti-exemplo para mim. Eu via nele traços que vivo tentando eliminar em mim, como a preguiça, por exemplo, e um tipo de humor. Mas ele não era carinhoso, nunca me fez carinho. [Faz uma pausa.] Só que eu vou te confessar uma coisa do fundo do coração: depois que ele morreu, comecei a me sentir um pouquinho mais pesado espiritualmente. Não tenho brilhado tanto quanto antes. Não sei se estou ainda inconscientemente triste... Ao contrário, pensar na minha mãe é uma coisa que me infla de energia.



18. Em Eles e Eu, seu pai diz que ficou mais de três anos sem vê-lo porque a Elis não deixou. Olha, sinceramente, conhecendo o Ronaldo, acho que ela fez bem. Porque o Ronaldo é aquele cara que diz "vamos brigar?", pega o lápis e enfia no teu olho. O que tem na mão vai. E minha mãe quis me tirar desse vale-tudo.


19. Um assunto chato: podemos falar sobre a morte da sua mãe? Claro. Ela acordou cedo, conversou comigo, disse "vamos ao shopping à tarde". Entrou no quarto e depois o Samuel [McDowell de Figueiredo, então namorado de Elis] apareceu correndo, desesperado. Vi minha mãe saindo desacordada, nos braços dele, mas jamais imaginei que ela fosse morrer. A mãe dos outros é que morre, não a nossa, né? Fiquei muito triste, queria morrer também, e ainda por cima o Ronaldo não quis que eu morasse com o Cesar. Um dia me enchi o saco, peguei a malinha de roupa, pulei o muro e fui a pé pra casa do Cesar.


20. Qual a sua versão sobre a morte de Elis? Olha, cara, sendo frio, adulto, posso dizer duas coisas. A Elis, todo o mundo sabe, era uma pessoa do Sul, careta, do tipo que mudava de hotel quando tinha gente fumando maconha num quarto. Ou ela foi experimentar e aconteceu um acidente, ou é realmente uma farsa, uma armação como muitas que já houve no Brasil. Como é que uma pessoa morre por causa de cocaína, nas proporções que falaram, e você vai no quarto dela e não encontra nada? Minha mãe tinha problemas cardíacos. Mas a versão que todo mundo agarra mais é a do laudo médico, do Harry Shibata. O Samuel foi o advogado que provou que o laudo do Shibata — que atestava a morte do [jornalista] Vladimir Herzog como sendo suicídio — era falso. Shibata jurou vingança. Na hora, o caso da minha mãe caiu justo na mão dele. Disseram que foi ordem de Brasília. O Samuel me preveniu: "Vai sair um monte de besteiras, não acredite em nada disso." Se você pegar o histórico político da minha mãe, ela chamou os militares de gorilas, gravou hinos contra a ditadura, ia nas delegacias e botava o dedo na cara de todo mundo. Mas, sinceramente, isso não muda muito o que aconteceu.


CABELO E MAQUIAGEM VAN REBECCA


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