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JOÃOSINHO TRINTA | FEVEREIRO, 1998

Playboy Entrevista


Uma conversa franca com o carnavalesco supercampeão sobre crime

organizado, mulher na Presidência, paixões e, claro, escolas de samba.


"A moça magra e alva se aproxima e insinua: "Sabe, meu sonho sempre foi desfilar numa escola do Rio de Janeiro..." Do alto do seu metro e cinquenta e poucos, Joãosinho Trinta, carnavalesco da escola de samba Viradouro, responde de bate-pronto: "Então, procure a Mangueira". A moça pisca, sem saber se escutou direito, mas Joãosinho prossegue: "Você não tem condições de ir ao Rio um mês antes do Carnaval para ensaiar, tem? Pois então. Na Viradouro, não vai dar".


Afora a alfinetada na escola mais tradicional do Carnaval carioca e o ar de feitor que zela pelo seu trabalho, não foi nada pessoal. A moça fazia parte dos 300 executivos que foram ao hotel Maksoud Plaza, em São Paulo, ouvir uma palestra sobre criatividade do carnavalesco supercampeão — oito primeiros lugares, seis segundos e dois terceiros em 35 anos de desfiles, 24 deles como titular. Como o resto da plateia, ela recebeu de bom grado tudo o que Seu Mestre falou, da experiência profissional à trajetória de menino pobre, filho de operários, que deixou São Luís do Maranhão para ser bailarino no Rio de Janeiro e acabou se tornando a marca registrada do maior espetáculo brasileiro. Mais até, tornou-se uma chancela de sucesso.


João Clemente Jorge Trinta, 64 anos, acha que começou a desabrochar aos 11, quando descobriu a biblioteca pública da cidade natal. Folheando um livro do matemático grego Pitágoras, leu a frase que o levou a crer que era mesmo um predestinado: "Até onde a mente humana chegar, alcançará sempre os números um, três e sete". Ele, que tem um múltiplo de três no nome, se encheu de confiança e foi para a vida. Antes mesmo de completar 18 anos pegou um navio e desembarcou "numa cidade de sonho", como diz. No Rio, foi auxiliar de escritório, estudou balé, passou fome, mas conseguiu entrar para o corpo de baile do Teatro Municipal, onde se aposentou em 1990. Do palco para os bastidores foi uma pirueta: tornou-se chefe do guarda-roupa, cenógrafo e encenador de óperas, até que seu talento chamasse a atenção de Fernando Pamplona e Adindo Rodrigues, cenógrafos que já trafegavam entre a elite do Municipal e os barracões das escolas de samba.


Em 1974, com dez anos de Salgueiro, Joãosinho estreou como carnavalesco principal e faturou o primeiríssimo lugar. No ano seguinte, deu o bicampeonato para a escola. Em 1976, contratado pela Beija-Flor de Nilópolis, cidade-dormitório pobre do Grande Rio, elevou uma agremiação até então obscura à categoria luxo e foi colecionando títulos, louros, fama internacional — a ponto de encenar espetáculos em lugares de culturas tão diferentes quanto México, França, Inglaterra, Portugal, Estados Unidos, Mônaco, Itália, Bélgica, Japão e Jordânia.


Mas, se para consumo externo e interno Joãosinho é a cara do Carnaval, para si próprio a imagem é mais de um artista multimídia. Pois sempre aceitou de bom grado não apenas as palestras como convites para fazer um rótulo comemorativo da água mineral francesa Perrier, dar aulas no curso de moda da Universidade Veiga de Almeida, no Rio, e montar festas de réveillon por encomenda expressa do rei Hassan II, do Marrocos. Claro que tudo isso, mesmo para Joãosinho Trinta, era trabalho demais. Em agosto de 1996, no barracão da Viradouro (onde já atuava há dois Carnavais), sofreu a isquemia que paralisou seu braço direito, atrasou o seu andar e deixou-lhe uma certa dificuldade na fala. Os amigos, no entanto, nem tiveram tempo de lamentar: Joãosinho meteu-se num programa severo de fisioterapia e nutrição (que segue até hoje), fez o carnaval da Viradouro e mais uma vez venceu, dando o primeiro título à escola, com um enredo sobre a teoria do Big Bang, Trevas! Luz! A Exposão do Universo — aquele em que bateria dava uma paradinha, transformando momentaneamente o samba em funk.


Joãosinho — com "s" mesmo, desde 1994, quando achou melhor buscar os bons fluidos da numerologia — inventou muita moda: carros alegóricos piramidais, mulheres nuas sobre eles, fantasias embriagantes. Seu projeto mais ambicioso, porém, foi uma solene derrota: o projeto Flor do Amanhã, para recuperar e dar formação profissional a menores de rua. Foi disso que o carnavalesco se ocupou quando deixou a Beija-Flor, em 1990. Dois anos depois, Joãosinho era acusado pelo Juizado de Menores de dirigir um antro de promiscuidade e sujeira. Nesta entrevista, concedida à editora-contribuinte Rosangela Petta, pela primeira vez ele fala abertamente sobre o caso, dá nomes aos inimigos e revela detalhes sobre o que aconteceu. Rosangela conta:


"Não foi fácil gravar quase 9 horas de conversa, boa parte no barracão da Viradouro, um galpão perto da Praça Mauá, onde eram as antigas docas do Rio de Janeiro, ironicamente separado do barracão da Beija-Flor apenas por uma parede. O barulho dos ferreiros, marceneiros e soldadores era o de menos. Ficamos trancados numa sala minúscula, interrompidos a toda hora pelo telefone (um jornalista querendo saber se a escola importa matéria-prima, uma amiga pedindo bolsa de estudos para a filha), mas isso também não atrapalhou. Duro mesmo é o próprio Joãosinho.


"Ele sabia que iríamos tocar em assuntos delicados, como sua homossexualidade, seus conflitos familiares e, sobretudo, o episódio espinhoso do Flor do Amanhã. Além disso, o humor dele varia muito: as feições de zangado abrem espaço para um sorriso, em seguida se fecham outra vez, aí os olhos se arregalam, ameaçadores. Com as limitações impostas pelo novo ritmo de vida — bem mais calmo desde a isquemia —, tínhamos de adaptar horários e nem de longe interromper os preparativos do desfile deste ano, com o enredo O Orfeu Negro do Carnaval, que será filmado pelo diretor Cacá Diegues.


"Ao final, já em São Paulo, num almoço que durou até o anoitecer, o sorriso de Joãosinho já havia perdido o ar desconfiado. Na semana seguinte, ele se submeteria a uma cirurgia que plantou duas pontes de safena em seu peito. Está tudo bem, Joãosinho não joga a toalha nunca. Nem quando é questionado sobre a autoria da célebre frase — Povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual'."


PLAYBOY: Circulou nos meios jornalísticos, por um bom tempo, a versão de que essa grande frase, tão emblemática do Brasil, não seria exatamente sua, mas do jornalista Elio Gaspari, que a teria colocado na sua boca.


JOÃOSINHO TRINTA: Não tenho nenhuma lembrança de ter lido isso. Onde é que está escrito?


PLAYBOY: Que foi o Elio Gaspari quem criou a frase?


JOÃOSINHO: Sim.


PLAYBOY: Nenhum lugar, é uma história que corre entre jornalistas.


JOÃOSINHO: Mas está escrito?


PLAYBOY: Não.


JOÃOSINHO: Eu me lembro de ter articulado, de ter tido base para dizer essa frase, de que formulei essa frase justamente para responder a quem dizia que eu não retratava a realidade brasileira e fazia carnavais de luxo.


PLAYBOY: O que se diz é que o jornalista teria resumido seu pensamento.


JOÃOSINHO: [Incomodado] Mas o jornalista escreveu?


PLAYBOY: Teria escrito, como se fosse uma fala sua.


JOÃOSINHO: [Irritado] Escuta, só vou dizer "tudo bem" quando me mostrarem essa frase escrita pelo Elio Gaspari.


PLAYBOY: "Assinado, Elio Gaspari", você quer dizer?


JOÃOSINHO: Sim!


PLAYBOY: Tudo bem, deu pra entender. Em todo caso, essa filosofia trouxe-lhe mais críticas ou admiração?


JOÃOSINHO: Tive um problema que é até bom você explicar agora. Em 1974, 75, eu andava na companhia de Pamplona, Arlindo, [a produtora] Teresa Aragão, [o poeta maranhense] Ferreira Gullar, todos de esquerda. Por isso mesmo chamava a Beija-Flor de "Unidos da Arena" [Aliança Renovadora Nacional, partido situacionista criado pelo golpe militar de 1964 e transformado em PDS em 1979, vindo a desembocar no atual PPB do ex-prefeito paulistano Paulo Maluf], que vinha com enredos como Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização, uma das bandeiras do regime militar]. Foi a época de muitos intelectuais chateados com a Beija-Flor. Em 1976, descontente porque eu queria fazer um trabalho com a comunidade e o Osmar Valença [banqueiro do bicho e patrono do Salgueiro] não atendia, resolvi sair da escola. Quando anunciei isso, ainda era chefe do guarda-roupa do Teatro Municipal e a porta dos fundos parecia reunião de banqueiros do bicho, todos lá querendo falar comigo. Mas eu não queria ir para escolas grandes porque sabia que elas não fariam um trabalho social. A Beija-Flor só tirava os últimos lugares e perguntei ao Anísio [Aniz Abraão David, banqueiro do bicho e patrono da Beija-Flor]: "Por que a Beija-Flor só faz temas falando de Funrural e Pis/Pasep? [Risos] Vocês tem alguma ligação com o governo?" O Anísio disse que não, o máximo que recebiam era um telegrama de uma autoridade elogiando — mas é claro que tinham alguma ajuda porque o [jornalista] Haroldo Costa me falou que recebia ordem da televisão para não meter o pau na Beija-Flor. Aí, iniciei na Beija-Flor um novo período, ganhando outros carnavais. O último [vitorioso] foi em 1983, quando se dá a abertura [política] e o [ex-exilado e então governador do Rio de Janeiro Leonel] Brizola começa a construir o Sambódromo, declarando que não era para as escolas de direita, já estigmatizando a Beija-Flor.


PLAYBOY: Quer dizer que a Beija-Flor sofreu perseguição política?


JOÃOSINHO: Todo mundo sabia quem venceria o Carnaval de 1984, a Mangueira, porque o Banerj [Banco do Estado do Rio de Janeiro, então estatal] tinha um contrato com a escola. Até publicaram um grande cartaz: "Brizola na cabeça e Mangueira no pé", uma paródia com [a gíria] "brizola", cocaína. Não deu outra, ganhou Mangueira.


PLAYBOY: Você acha mesmo que foi marmelada? A Mangueira veio linda e deu uma solução para a incômoda Praça da Apoteose, fazendo a volta e retornando à concentração.


JOÃOSINHO: Mesmo que a Mangueira tivesse vindo pessimamente, de qualquer maneira ganharia.


PLAYBOY: A esquerda ainda fecha com a Mangueira?


JOÃOSINHO: Fecha. O tema deste ano? Chico Buarque!


PLAYBOY: Chico Buarque não é um enredo?


JOÃOSINHO: Qualquer enredo é bom, depende da maneira como você o realiza. A Mangueira também fez os quatro baianos [homenagem a Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil, em 1994] e ficou em 11° lugar. Mas havia um policiamento [contra a Beija-Flor], sim.


PLAYBOY: Contra a fama de direita da Beija-Flor, contra a montanha de dinheiro que o Anísio pôs na escola ou contra você, que decretou o laxo?


JOÃOSINHO: Era tudo junto. Na época, a figura do carnavalesco não aparecia muito, quem aparecia era o diretor de harmonia. Meu nome teve expressão porque, com a vitória da Beija-Flor, uma escola pequena, se rompeu aquele ciclo.


PLAYBOY: Aí é que está: não só o público aprovou, como os jurados. Você não acha que essa reclamação contra a esquerda é um tanto injusta?


JOÃOSINHO: Vou dar dois exemplos. Houve um carnaval que ganhei disparado, com A Criação do Mundo na Tradição Nagô [1978], e só não recebi nota 10 do [dramaturgo] Bráulio Pedroso. O segundo fato é o maior testemunho desse patrulhamento e está escrito com todas as letras, com as palavras do [falecido cineasta] Leon Hirszman. Em 1986, ele julgava [o quesito] evolução. Meu enredo era O Mundo é uma Bola, sobre o futebol. Na hora em que a Beija-Flor entrou na avenida, caiu um toró. Os críticos diziam que era muito luxo e pouco samba no pé, mas na hora da chuva saí dentro da escola incentivando, e a platéia não arredou pé. As alegorias ficaram prejudicadas, mas se revelou o samba. Pamplona até me levantou pelas pernas e disse: "Isso não foi um desfile, foi uma emoção!" Só perdemos o carnaval pela nota do senhor Hirszman.


PLAYBOY: Quanto ele deu?


JOÃOSINHO: Oito. Ficamos em segundo lugar. E ele declarou num folheto de justificativa: "Jamais darei nota 10 para uma escola que fez o elogio da revolução [do golpe de 1964]". Esse é um esclarecimento que tem de ser feito. Pena que o Hirszman esteja morto.


PLAYBOY: Como você se sente hoje, num barracão colado ao da Beija-Flor, onde trabalhou por dezessete anos?


JOÃOSINHO: Nunca tive curiosidade de ver o carnaval de outras escolas. É uma convivência pacífica.


PLAYBOY: Sério? Não tem espiões que vêm dar uma olhadinha?


JOÃOSINHO: Todo mundo sabe que ninguém copia ninguém. Cada carnaval é completamente diferente do outro. Não dá pra aproveitar nem a experiência de um ano pra outro porque você vai trabalhar com outra história, outro conceito, outra estética. Todos os anos é um desafio, começa do zero.


PLAYBOY: É isso o que você ensina nas palestras para executivos?


JOÃOSINHO: Depende do enfoque. Fiz uma palestra em Recife para vendedores e gerentes sobre como envolver pessoas, como dar participação e como trabalhar com material barato num momento de crise. Tudo se encaixa perfeitamente porque uma escola de samba não deixa de ser uma grande empresa, mesmo levando em conta que a estrutura é muito folclórica.


PLAYBOY: As escolas ainda têm um lado improvisado?


JOÃOSINHO: Setenta por cento. A começar pela própria forma de obter dinheiro, que depende do banqueiro do jogo do bicho ou outros meios. Porque só a verba destinada à escola não dá: metade da venda das arquibancadas, mais o direito de transmissão [pela TV], que é uma miséria, e sem direito a merchandising. Hoje, todo espetáculo, seja balé, teatro ou Fórmula 1, tem merchandising. O único que não tem é a escola de samba. Não é permitido porque as televisões têm um contrato com a Liga [Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro] que é muito mesquinho, paga muito pouco, quando elas, em cima do espetáculo, ganham milhões.


PLAYBOY: E as TVs ainda vendem fitas de vídeo, não?


JOÃOSINHO: É onde elas ganham. Cheguei à Jordânia e tinha fita da Globo!


PLAYBOY: Quanto custa pôr uma escola, com o seu padrão, na Avenida?


JOÃOSINHO: Olha, aconteceu de esses anos todos eu só ter trabalhado com escolas que têm banqueiro [do jogo do bicho] pra segurar. E essa questão, quanto realmente gasta a escola, nunca chega ao nosso conhecimento.


PLAYBOY: Nos anos 80, o Anísio disse que seria algo por volta de 2 milhões de dólares.


JOÃOSINHO: Não posso garantir nada porque eles têm um departamento de compras, mas é deles. Aqui, pelo menos, é o Monassa [José Carlos Monassa Bessil, banqueiro do bicho e patrono da Viradouro] que autoriza o pagamento, que gerencia o dinheiro, a gente não sabe.


PLAYBOY: Dentro dessa comparação da escola com uma empresa, você também passa pelas pressões que um executivo sofre para cortar gastos?


JOÃOSINHO: Ah, claro. Quando uma coisa é muito cara, eles chegam e dizem que não existe verba, então a gente tem que podar muitas coisas. O tempo todo estamos espremidos, trocando, improvisando, criando. Não é uma programação em que aquilo que se desenha é o que se vai fazer.


PLAYBOY: Você é famoso por criar carros monumentais. É por causa das dimensões do sambódromo, com grandes platéias, ou pelo efeito que causa na transmissão pela televisão?


JOÃOSINHO: Aí tem uma história. Antes de fazer Carnaval, eu vivi no Teatro Municipal. Sou diplomado em danças clássicas, mas me interessei pelo espetáculo como um todo e montei várias óperas. Ora, a visão que eu tinha da ópera, como espetáculo audiovisual de todas as artes, me fez enxergar no desfile de escola de samba a mesma estrutura. A ópera começa, repousa e se desdobra num libreto; a escola tem o enredo. Esse enredo tem letra e música; é o que acontece na ópera. A ópera tem a orquestra; a escola tem a bateria. A ópera tem o corpo de baile e o corpo coral; a escola tem os passistas — que cumprem o mesmo padrão do corpo de baile, que não canta, só dança —, enquanto a parte coral canta e se movimenta, como as alas, mas não executa passos como o bailarino. A ópera tem o cenário; a escola tem os carros alegóricos. Na ópera temos as figuras principais; na escola são os destaques. E, portanto, um espetáculo audiovisual igual à ópera, grandioso, com começo, meio e fim. E o carro alegórico permite uma maior visualização do enredo, uma melhor divisão da escola, como os capítulos de uma história. Fica mais criativo, visualmente mais rico.


PLAYBOY: Foi você quem introduziu a figura do destaque?


JOÃOSINHO: Fui, exatamente no abre-alas do Salgueiro, no ano de 1974 [com o enredo O Rei de França na Ilha da Assombração]. Botei mulheres, passistas. Alguns destaques [que tradicionalmente vinham no chão] ficaram horrorizados com aquilo — os das outras escolas, né? [Risos] Me perguntaram: "Ué, agora nós viramos alegoria?" Ora, o destaque é uma alegoria viva! Com aquela roupa enorme, não pode dançar, quando muito pode cantar, mas se movimenta mal.


PLAYBOY: A partir daí, os destaques acharam legal?


JOÃOSINHO: No ano seguinte, todas as escolas fizeram isso. Foi uma idéia lúcida que tornou o desfile suntuoso na elaboração dos carros, nas fantasias, porque coloquei golas e esplendores. Hoje, ninguém pensa em não colocar destaques nos carros. Existe até uma figura folclórica do carnaval, o chamado "marido de destaque".


PLAYBOY: Pior que Mãe de Miss?


JOÃOSINHO: É igual. Ele ajuda a bordar a roupa, banca tudo, carrega a fantasia, ajuda a mulher a se vestir. E, se a mulher faltar, ele é capaz de vestir a roupa e desfilar [risos].


PLAYBOY: Quando estreou no Carnaval, você já queria inventar moda?


JOÃOSINHO: Fui pro Salgueiro em 1963, mas já fazia com o Pamplona e o Arlindo [mestres de Joãosinho e carnavalescos] a decoração da cidade, do Copacabana Palace, fazia parte da equipe. Eu tinha muita habilidade manual para máscaras e adereços, sempre foi a minha tônica, desde criança. Me lembro de ter ganho somente três brinquedos: um bondinho de lata, uma flauta e um boneco de baquelite [um tipo de plástico duro]. O resto, eu fazia. Muito bem, fiquei dez anos no Salgueiro ajudando, trabalhando, aprendendo. Em 1973, Pamplona e Arlindo foram para a Mocidade [Independente de Padre Miguel] e fiquei sozinho. Desde 1971 estavam lá [as carnavalescas] Maria Augusta, a Rosa [Guimarães] e a Lícia [Lacerda]. E no meu primeiro enredo eu queria contar a história da invasão francesa no Maranhão — aí começaram as grandes mudanças.


PLAYBOY: Quais?


JOÃOSINHO: Até essa época, o desfile era regido por um Estatuto do Estado Novo [período da ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945] que obrigava a fazer temas nacionais. Apesar de ter obedecido, enfoquei a invasão através dos olhos de uma criança, o rei Luís XIII, pois na época [da invasão] ele tinha 8 anos de idade e quem preparou a invasão foi a mãe dele, Maria de Médici. Então, joguei para a imaginação o que ele via: os preparativos, as histórias sobre terras distantes cheias de ouro, a terra fantástica. Fiz as palmeiras assim: os troncos como os espelhos do Palácio de Versalhes, as copa como candelabros. Foi um Carnaval surrealista [risos]. Ganhei disparado.


PLAYBOY: Você usou o seu imaginário de menino do Maranhão?


JOÃOSINHO: Foi. Pamplona é quem diz que eu lancei o imaginário no Carnaval. Abri as portas da imaginação mesmo obedecendo ao Estatuto. Histórias de assombração são uma constante no folclore brasileiro e nunca tinham sido feitas [no desfile das escolas de samba]. Eu contei duas: a do Touro Coroado nas praias dos Lençóis Maranhenses, que é a figura de Dom Sebastião [rei de Portugal], que desapareceu na África e, diz a lenda, surgiu na praia como touro negro coroado...


PLAYBOY: Qual a outra assombração que você abordou?


JOÃOSINHO: Nhá Jança, corruptela da Senhora [Ana] Jansen, escrava que se casou com o dono das ilhas de ouro e de prata e se tornou uma mulher poderosa, mas muito perversa. Ela fazia tráfico [de escravos] dos próprios irmãos e conta a lenda que, quando morreu, a alma dela ficou presa numa carruagem que em noite de lua cheia, pelas ladeira de São Luís, ia arrastando as almas penadas dos escravos. Sabia que essa senhora é tataravó do [empresário carioca Joaquim] Baby Monteiro de Carvalho?


PLAYBOY: É mesmo?


JOÂOSINHO: Quando fiz o enredo, ele me mandou chamar à casa dele porque Nhá Jança era sua parenta, e me ofereceu um livro — que, até hoje, não me deu [risos]. Bem, senti logo que não podia fazer a ala das almas penadas. Começaram a interrogar o que eram assombrações, surgiu até um mal-estar com o presidente da escola porque disseram que a comissão de frente vinha com um lençol e dois buracos [risos]. Quem ia querer sair de fantasma? No carnaval, eles querem sair bonitos! Raciocinei: a maioria das nações africanas era constituída de nobreza. Ora, se tinham aqui na terra sua hierarquia, por que, quando passavam para o outro lado, deviam ser almas penadas? Absolutamente! Então, criei a ala dos príncipes africanos e todo mundo gostou [gargalhadas]. Foi uma ação ao povo, que sofre o ano todo, no carnaval quer sonhar.


PLAYBOY: Como define bom gosto?


JOÃOSINHO: A verdade, seja qual for a roupagem dela. Por exemplo, a verdade do Carnaval de Santo Antônio do Leverger [MT], que tem dois blocos: Seu Cu Que Brilha e Seu Pau Brilhoso [risos]. Isso, pra mim, é de um bom gosto muito grande. Porque fazer um pau brilhoso e um cu que brilha é transformar uma parte do corpo que sempre é encoberta pelos preconceitos como coisas sujas, menores, de meu gosto.


PLAYBOY: Apesar de gostar do brilho, você trouxe mendigos com Ratos e urubus, Larguem a Minha Fantasia, em 1989, talvez o seu enredo de maior impacto até hoje.


JOÃOSINHO: Eu quis fazer uma denúncia porque, quando cheguei ao Rio de janeiro, em 1951, Copacabana era um local de encantamento. E, de repente, estava suja, uma feira de peixe, me revoltei ao ver tanta família dormindo debaixo dos viadutos. [Irônico] E os críticos diziam que eu não retratava a realidade brasileira...


PLAYBOY: Carnaval deve retratar a realidade brasileira?


JOÃOSINHO: Não. Sempre respondi que ser pobre num Brasil tão farto, tão rico é que é irreal. Os ratos e urubus eram os que me criticavam.


PLAYBOY: Existe muita rivalidade entre os carnavalescos?


JOÃOSINHO: [Vago] Não... Apareceram uns novos, que não vou citar, falando que eu estava ultrapassado, que não ganharia mais Carnaval. Calaram a boca [em 1997] e eu respondi que a frescura passa, eu fico.


PLAYBOY: Então era a crítica ideológica que incomodava você?


JOÃOSINHO: Incomodava porque eu sabia o que era miséria. Lá no morro, percebi a chegada do tóxico, da violência, das crianças abandonadas. Nitidamente, a causa da decadência do Rio de janeiro tinha sido o êxodo provocado pelo abandono do campo, criando esses bolsões de miséria que são as favelas, as palafitas, as baixadas. Vi o presidente de uma ala de crianças, um garoto que conheci, Pedro Marreco, de 11 anos, e quatro anos depois ele era o maior bandido. Traficante, bandidão mesmo.


PLAYBOY: Você chegou a ter problemas quando o crime organizado tomou conta dos morros?


JOÃOSINHO: Ao contrário. Uma pessoa que me protegia e até me auxiliava no Carnaval era o Iêia. Tinha acabado de Sair da prisão de Ilha Grande, matou mais de trinta pessoas, mas era tão apaixonado pelo Salgueiro que dizia pra mim: "Olha, prejudica muito essa gente que entra na hora com fantasia que não é da escola. Você vai na frente, bem no começo, e nós vamos atrás. Quando olhar para alguém e fizer uma cara de que a pessoa não é da escola, nós já sabemos que é pra tirar". Isso porque, naquela época, não havia organização, entravam bêbados, sujavam a escola. Então, a primeira coisa que eles [a gangue de Iêia] faziam era rasgar a roupa toda [do penetra], pegar a pessoa e jogar pra cima. Aquele, além de não ter roupa, ficava todo quebrado. E assim o Salgueiro vinha limpinho...


PLAYBOY: Método um tanto radical, não?


JOÃOSINHO: Uma vez colocaram um rapazinho muito quieto pra me fazer companhia, como um guarda-costas, porque eu trabalhava muito à noite. Quando fui elogiá-lo, disseram: "Joãosinho, ele já matou cinco". Mas nunca presenciei tiro. Fiquei no morro do Salgueiro até 1975, não havia isso.


PLAYBOY: Você precisava de guarda-costas? Sua fama é de ter pulso muito firme.


JOÃOSINHO: Eu era inibido, travadíssimo. Comecei a explodir no barracão do Salgueiro, já substituindo o Arlindo. Mas ele tinha mais prática e domínio do barracão, era muito mais velho do que eu e me lembro de que reclamavam comigo porque eu não falava nem "merda" [risos]. Senti um certo boicote porque mandava fazer as coisas e não obedeciam.


PLAYBOY: Quem, os artesãos?


JOÃOSINHO: Sim, o pessoal do morro, ainda mais sem eu dizer "merda", sem falar grosso, sem ter comando. Hoje, acho que era um teste para ver a minha capacidade de liderança. E fatalmente tive uma úlcera. A úlcera dá murros pra dentro, você fica segurando, agoniado. O Carnaval se aproximando e tudo atrasado... O Arlindo vinha de madrugada, passava a responsabilidade pra mim, me cobrando, e eu aumentando a minha úlcera. Passava horas na privada do barracão, com dores terríveis. Um dia, estava lá e comecei a sentir que ia desfalecendo, aí me passou pela mente um estado de morte. Dizem que, quando você está no limite da morte, tem uma percepção da vida em frações de segundo. Pois isso aconteceu comigo. Entendi rapidamente que estava me matando, botava tudo pra dentro, não estourava, não gritava. Sabe qual foi a minha reação?


PLAYBOY: Não.


JOÃOSINHO: Senti meu corpo em volta de mim, um círculo colorido, feito de outros círculos menores que se filtravam uns nos outros, aí me levantei e abri a porta do banheiro aos berros: "Buceta, filho da puta, veado, caralho!" Havia umas 100 pessoas ali, o barracão todo parou. Metade dizia: "Joãosinho tá doido!"


PLAYBOY: E a outra metade?


JOÃOSINHO: Dizia: "Não, isso é santo, ele tá com santo". [Risos.] Num segundo aprendi a botar os palavrões nos seus lugares: "Seus veados, filhos da puta, vocês vão sacanear a puta que os pariu porque eu acabei de receber meus trinta exus!!!" Eu nem sabia direito o que era exu [entidade do candomblé], mas eles tinham medo [risos].


PLAYBOY: E se tornou linha-dura?


JOÃOSINHO: Duríssima, ditador.


PLAYBOY: O que você não admitia no barracão?


JOÃOSINHO: Nada que não estivesse sob o meu controle. Até hoje é isso, mas mudei muito. Outro dia, tomei banho e pedi a um garoto que enxugasse os meus pés porque não consigo me abaixar. Ele é engraxate e eu tentava explicar para ele pegar a toalha com as duas mãos e passar entre os dedos, mas ele não entendia, eu ficando nervoso, comecei a reclamar: "Você é muito burro". Quando ele entendeu, disse: "Ah, era só ter falado pra flanelar!" [Risos.] Eu ri e disse: "Olha só como eu sou ignorante. Era só falar a linguagem dele!" Então, aprendi muito. Tenho uma tendência para explodir, mas é momentânea, explode e passa, depois peço desculpas, reconheço.


PLAYBOY: Você sabe ouvir?


JOÃOSINHO: Sei! Vou contar um fato sobre a calvície: a razão de as pessoas perderem cabelo é serem muito controladoras. Eu metia a mão na cabeça e saía um punhado de cabelo.


PLAYBOY: Olhando bem, até que você é cabeludo.


JOÃOSINHO: Porque estudei, prestei atenção, me observei. Eu era altamente controlador, fazendo carro alegórico pessoalmente. Minha insegurança era grande e eu não confiava nas outras pessoas. Era aquele caos. Perdi carnavais por isso. Mas aprendi a não ser obsessivo. Se não saísse 100% como eu tinha imaginado, mas 70%, estava ótimo. Hoje, até 60% eu aceito [risos].


PLAYBOY: Foi a isquemia que fez você mudar?


JOÃOSINHO: Quando vejo uma pessoa com uma vida igual à minha, desejo uma boa isquemia. Porque eu renasci, aprendi, foi um Big Bang para mim. Vieram coisas fantásticas de auto-análise, de revisão... Louise Haye, uma pesquisadora americana que trabalha com doenças psicossomáticas, tem um livro, Cure Seu Corpo, que hoje é a minha Bíblia. Constatei que as doenças são sempre desarmonias emocionais ou psíquicas. Não existem doenças, existe é o doente. E a isquemia e o derrame cerebral são justamente decisões do corpo para provocar mudança de vida. Realmente, recebi a isquemia com a maior felicidade, porque estava carregando, aos 63 anos, padrões erradíssimos.


PLAYBOY: Por exemplo?


JOÃOSINHO: Ah, eu me alimentava mal, não tinha hora, comia qualquer coisa ou não comia nada, não dormia, trabalhava até de madrugada, compulsivamente...


PLAYBOY: Algum vício, drogas?


JOÃOSINHO: Nunca. Me lembro que, quando o Salgueiro ganhou um Carnaval, fui lá, todo mundo me abraçou e um guarda me perguntou: "Joãosinho, e o cheirinho de loló?" E eu: "O quê???" E ele: "Ah, Joãosinho..." [Risos.] Meu trabalho era tão sério que, mesmo vivendo no morro, ninguém se aproximava de mim com cheirinho de loló [espécie de lança-perfume caseiro, à base de clorofórmio]. Se você colocar na minha frente tapioca, cocaína e talco, não sei distinguir — o que é um erro, um dia quero experimentar, sei que não vou me viciar. Acho terrível, aos 64 anos, não saber distinguir uma cocaína de uma tapioca [risos].


PLAYBOY: Você fumava, bebia?


JOÃOSINHO: Nunca fumei, tenho horror do cheiro da maconha. E a única bebida de que gosto é vinho — tinto, nem do branco eu gosto. Não gosto de cerveja também.


PLAYBOY: Nunca tomou um porre?


JOÃOSINHO: Já! E, uma vez, cheirei lança-perfume. Foi uma sensação tão fantástica, mas quando terminou a viagem me senti tão arrasado fisicamente que não tive coragem de experimentar outra vez. Tenho que empregar meu corpo para trabalhar.


PLAYBOY: Que outras descobertas a isquemia trouxe a você?


JOÃOSINHO: Uma dessas revisões foi o seguinte: eu nasci no dia 23 de novembro de 1933 — e quem nasce em novembro, tirando os meses de gestação, foi concebido em fevereiro, certo? Imagina minha mãe, viúva há dois anos, com três filhas crescidas vivendo numa cidade pequena como São Luis do Maranhão em 1933. Não sei se ela conheceu meu pai no Carnaval, mas a verdade é que eles me conceberam nessa época. Tenho uma vaga lembrança de que vim ao mundo cheio de colorido, luzes, perfumes, trombetas, a glória! Mas minha fisioterapeuta, que faz uns testes musculares, disse que aos três meses [de gestação] é que aconteceu o meu grande trauma. Depois do Carnaval, minha mãe deve ter descoberto que tava com filho. Ora, uma viúva, naquela época e em São Luís, imediatamente deve ter pensado em me abortar. Está provado que o feto sente tudo, é um ser vivo. Então, aos três meses, começou o meu conflito. Eu não entendia minha retração com a figura da minha mãe, uma mulher tão carinhosa, tão batalhadora. Eu sentia uma rejeição. Depois que entendi o porquê, passei a tê-la como um ser de luz. Mas posso avaliar o que é ser ameaçado de morte ainda no ventre materno.


PLAYBOY: Pode falar um pouco das suas origens?


JOÃOSINHO: Minha mãe era Trinta. Júlia Jorge Trinta, de descendência síria. Acredito que o nome Trinta, português, seja cristão-novo — portanto, judeu. Então tenho em mim uma mistura de judeu com árabe. Da parte do meu pai deve ter sangue índio, negro...


PLAYBOY: Como ele se chamava?


JOÃOSINHO: É... José. Mas, hã... Sou filho já do... [Pausa.]


PLAYBOY: Do segundo casamento de sua mãe?


JOÃOSINHO: [Embaraçado.] Não houve casamento.


PLAYBOY: Da segunda união, então.


JOÃOSINHO: É, segunda união. Eu e meu irmão somos filhos desse homem. Mas não conheci meu pai, estava com 2 anos quando ele faleceu e aí... Tem mil problemas, né? Eu estou relutando em contar... [Pausa.]


PLAYBOY: Você não gosta de lembrar da sua infância?


JOÃOSINHO: Não, até gosto. [Pausa.] É que, uma vez, dei uma entrevista no Colégio Freudiano, aqui no Rio eles gostaram e resolveram publicar [em livro]. O Jornal do Brasil foi fazer a reportagem e me causou o maior problema porque comentou trechos de fatos que tinham de ser contados na íntegra para entender. [Na matéria, de janeiro de 1985, Joãosinho falou da sensação de horror quando viu uma de suas irmãs bater a cabeça de outra irmã na parede durante uma briga.] É um problema, tenho muito cuidado porque minha irmã é traumatizada até hoje por isso. Fui criado por quatro mulheres, todas poderosas dentro de sua tônica. Minha mãe era uma mulher dinâmica, que lutou para sustentar cinco filhos, trabalhou em fábrica de tecidos, uma guerreira que nos deu educação sem um deslize, sem nos faltar nada. Minha irmã mais velha é uma superdotada e me iniciou na literatura. Li Camões com 8 anos, ela me mostrava o livro todo sublinhado com lápis azul e vermelho: uma cor era o objeto direto, a outra o objeto indireto.


PLAYBOY: Como era o Carnaval da sua infância?


JOÃOSINHO: A imagem que tenho é de uma coisa colorida, era o tempo das marchinhas do rádio, em que se levavam as cadeiras para a calçada, um movimento de mil figuras, os blocos... Era fantástico!


PLAYBOY: Você se fantasia?


JOÃOSINHO: Não. Mas meu cunhado frequentava o clube português e eu brincava nos bailes infantis. Ficava caçando mil namoradinhas, uma coisa muito gostosa. Dançar e tirar as garotas pra dançar, sempre gostei.


PLAYBOY: Você teve namoradas?


JOÃOSINHO: Na fase de 11 para 12 anos, tive duas paixões. Por isso digo: [Enfático] eu sei o que é a paixão de um homem por uma mulher! Fui loucamente apaixonado pela filha do diretor do colégio, uma menina muito bonita, Lígia, da minha turma. Sempre era escolhido para recitar poemas com ela no Dia dos Pais, era a maior emoção — não pela leitura, mas por estar junto dela. Eu amava aquela menina! Me lembro que tinha um botequim perto de casa, com um vidro cheiro de balas molhadas, vendia uma quantidade por 1 tostão. Eu comprava, levava pra casa, secava as balas, só pra esperar a Lígia. [Emocionado] Me lembro que pedia tanto a Jesus Cristo, com toda a fé, pra me casar com ela...


PLAYBOY: E a outra paixão?


JOÃOSINHO: Minha irmã mais velha se casou com um português e fui morar com ela. À tarde vinha uma costureira — porque meu cunhado era um homem rico, tinha uma mercearia — e tinha a filha dessa costureira, Cristina. Eu falava pra ela que nós viríamos pro Rio e iríamos dançar juntos.


PLAYBOY: Ela também queria ser bailarina?


JOÃOSINHO: [Rindo.] Não, ela nem sabia do que eu estava filando. [Pausa.] A Cristina, eu encontrei recentemente, trabalha num Ministério em Brasília. A Lígia, nunca mais vi.


PLAYBOY: Foi com elas que você começou a descobrir o sexo?


JOÃOSINHO: Não, não! E... [Cuidadoso.] Justamente por essa ausência do padrão masculino e a vivência de quatro padrões femininos fortíssimos, é claro que me deu... Eu não enxergava que... Não digo que seja problema homossexual, porque nunca enxerguei como problema. Sempre raciocinei que a minha atenção pelos meninos, e mais tarde pelos rapazes, era a solução de uma parte que faltava para mim.


PLAYBOY: Então, você não conheceu o amor carnal de uma mulher?


JOÃOSINHO: Não, cheguei a ter umas experiências mais tarde. Com a cozinheira da minha irmã eu já estava tendo uma iniciação. Eu chegaria a... [pausa]. Mas fui podado.


PLAYBOY: O que aconteceu?


JOÃOSINHO: Quando estava naquele frisson, naquela excitação de cantar pras empregadas o que tinha aprendido no colégio [declama]: "Coelhinho, se eu fosse como tu, tirava a mão do bolso e..." Aí, nem cantava mais, morríamos de excitação só nisso [risos]. Você tem que calcular que estávamos nos anos 40, né? Por isso admiro muito as crianças de hoje em dia, já nascem mandando à puta que o pariu. Eu, com essa idade, levei uma surra! Esse corte na minha iniciação sexual me bloqueou muito. Eu já trazia a situação, minha estrutura era boa, era normal, tanto que quando encontrei aquelas duas meninas meu eu interior veio à tona, sobrepujou a falta de meu pai.


PLAYBOY: Você dava beijo na boca?


JOÃOSINHO: Nããão! Nem pegava na mão! Era uma coisa platônica, mas de uma vibração intensa, intensa... Passava o dia inteiro pensando nela, dormia pensando nela. Eu sei o que é paixão. Foi muito forte. Não esqueço.


PLAYBOY: E quando foi que você descobriu sua homossexualidade?


JOÃOSINHO: Já era desde criança, mas não tinha consciência. Depois, no Rio, estava tão envolvido com a dança que isso não me passava pela cabeça. Eu não tinha atividade sexual. Era fechado, estava num lugar diferente e, cinquenta anos atrás, o ambiente não levava a uma cobrança sexual, nem eu me lembro de ter tido impulsos sexuais na minha juventude. Quando minha irmã me podou naquela iniciação com as empregadas, eu me retraí, mas sem passar para o outro lado. Não tinha contato com rapazes, nada.


PLAYBOY: Não teve aquele troca-troca de moleques?


JOÃOSINHO: Ah, isso sim, era uma brincadeira constante na minha infância, aconteceu muito, mas nem analiso como homossexualidade. Quantos homens machíssimos, casadérrimos e com filhos deram a bunda quando criança? E a brincadeira era com meninas também. Tinha uma menina no meu grupo que todo mundo ia em cima dela, eu inclusive, fazia parte.


PLAYBOY: Ninguém dava em cima de você?


JOÃOSINHO: Não me lembro, é capaz [risos].


PLAYBOY: Você disse que teve experiências heterossexuais. Quando?


JOÃOSINHO: [Longa pausa.] Muito depois, aqui no Rio.


PLAYBOY: Mas não achou muita graça?


JOÃOSINHO: [Rindo.] Ah, não vai dizer que eu não achei graça! É que havia aquele problema de ter projetado a figura da minha mãe e da minha irmã que... [Pausa.]


PLAYBOY: Que atrapalhava?


JOÃOSINHO: Atrapalhava. Você passa a buscar o oposto, mas nunca coloquei como problema, não tenho vergonha de falar. É problema para quem não entende, para quem não se aceita. Minha natureza era sadia, normal.


PLAYBOY: Você começou com alguma namorada ou com profissionais do ramo?


JOÃOSINHO: Tinha algumas bailarinas de quem gostei muito, mas não chegou a ser paixão. Foram várias colegas e já havia a consciência de que eu nunca partiria para os finalmentes.


PLAYBOY: Puxa, está difícil [risos]. Você não quer mesmo contar quando foi a sua primeira vez?


JOÃOSINHO: Quando? Foi um dia qualquer, levei uma mulher pro quarto do hotel, outro dia estive na companhia de um rapaz que eu não me lembro... Tive muitas aventuras.


PLAYBOY: É muito namorador?


JOÃOSINHO: [Firme.] Sou. Minha parte afetiva, durante muito tempo, oscilou entre aventuras. Hoje estou mais voltado para mim mesmo, entende? Passei por uma isquemia, isso força a reavaliações. Leva bastante tempo para você se aprumar, para decantar, é um tempo muito seu.


PLAYBOY: Você está querendo dizer que a isquemia lhe deixou alguma sequela sexual?


JOÃOSINHO: Não tive problema sexual, mas... É que não sou de ter uma vida particular, de ter uma pessoa. Minha vida sempre foi mais aberta.


PLAYBOY: Hum, é um galinha...


JOÃOSINHO: [Sorrindo.] É assim que eu sou. Nunca me dediquei a uma pessoa, a não ser àquelas duas paixões de infância. E, por saber o que é paixão, não sinto necessidade de experimentar novas paixões. Não me arrisco.


PLAYBOY: Por quê?


JOÃOSINHO: Pelo comprometimento mesmo. [Paixão] requer uma atenção à pessoa, um tempo que eu não tenho. Emprego minha energia em outras coisas.


PLAYBOY: Não sente falta de um companheiro?


JOÃOSINHO: Não. Eu namoro o mundo inteiro — no mundo e o mundo inteiro [risos]. Em qualquer lugar, com as mais variadas pessoas. Me fascina essa disponibilidade. São as duas colunas do sagitariano: justiça e liberdade. Quando sinto que alguém está me prendendo um pouquinho, ah, dou um coice e vou-me embora. Então, por ter essa consciência, e por respeito e cuidado com as outras pessoas, é que até considero isso amor. Ninguém aguentaria uma pessoa que se divide, que gosta da aventura, da novidade.


PLAYBOY: Você não sofre com a solidão?


JOÃOSINHO: De jeito nenhum: Eu pago pra ficar sozinho porque minha vida é tão tumultuada, tem sempre tanta gente em volta... Em casa eu tô feliz, tenho meu mundo próprio. Adoro a solidão, que não é vazia, mas preenchida pelas minhas próprias interrogações, minhas pesquisas. É solidão no sentido de ficar sozinho na companhia de muitas coisas.


PLAYBOY: E onde fica o prazer?


JOÃOSINHO: O prazer, desde criança eu sabia que existia, estava presente em mim. Não com essa violência como, talvez, seja nos dias de hoje.


PLAYBOY: Você acha que o sexo foi banalizado?


JOÃOSINHO: E banalizaram por quê? Porque tem revista PLAYBOY.


PLAYBOY: PLAYBOY segue um padrão de alta qualidade, não tem nada de banalização.


JOÃOSINHO: Não tem, mas é uma facilidade. Garanto que, se na minha época tivesse a revista PLAYBOY, eu teria procurado muito mais mulheres. Porque está mostrando, estimulando. Eu não tive estímulos, tive a repressão.


PLAYBOY: Foi por isso que você quis ser bailarino e deixar São Luís?


JOÃOSINHO: Não me lembro por quê, mas já estava muito envolvido com teatro, participei de grupos amadores e, quando desci pro Rio, era para estudar dança. Saí de lá emprgado de uma companhia de capitalização. Era mais do que um [office] boy, faxia tudo no escritório, e consegui uma transferência para a filial.


PLAYBOY: Foi um choque cultural chegar ao Rio de janeiro?


JOÃOSINHO: Levei um baque, em ver o sonho se realizar. Cheguei exatamente no dia de Carnaval do ano de 1951. O navio que me trouxe tinha passado por Recife e trouxe o Vassourinhas, um conjunto de frevo, o navio veio todo dançando. Desembarquei na Praça Mauá em pleno Carnaval e fui pra pensão onde ia ficar hospedado na Rua São Clemente, casa de uma senhora maranhense. E quem estava lá, dono da outra vaga no quarto? O [então governador do Maranhão e senador Epitácio] Cafeteira!


PLAYBOY: Que mundo pequeno...


JOÃOSINHO: Ele trabalhava no Banco do Brasil e era engraçado porque o Cafeteira gostava muito de corrida a cavalo, de jóquei clube. Queria me convencer a frequentar as corridas, pagaria o meu curso de jóquei e dizia que nós iríamos ganhar muito dinheiro. Porque eu era pequeno, tinha o biotipo do jóquei. Felizmente, não escutei o Cafeteira [risos]. Bom, mas eu cheguei, botei a maleta na pensão e fui para a frente da Galeria Cruzeiro. Nesse dia tive minha primeira plateia porque comecei a dançar o frevo, que ninguém conhecia.


PLAYBOY: Dava tempo de trabalhar e estudar balé?


JOÃOSINHO: Ah, dava, porque o curso era de noite. Comecei com Eduardo Sena, numa academia em Copacabana, depois fui pro Balé da Juventude, na Praia do Flamengo, da antiga UNE [União Nacional dos Estudantes], até fazer o concurso para o Teatro Municipal, em 1956. Passei e, aí, tem um dos lados mais marcantes da minha vida. Pensei que seria contratado logo para o corpo de baile, então pedi demissão do meu emprego. Morava numa pensão no Flamengo, e o dinheiro deu pra pagar um mês. Mas, no segundo, acabou e a mulher da pensão não deixava mais eu entrar — e o Teatro Municipal não me chamava! Comecei a dormir no bonde 11, que ia do Tabuleiro da Baiana, no centro da cidade, até o Leblon. Eu dormia no último banco, ele ia e vinha, e só quando amanhecia é que eu ia para o Balé da Juventude. Assim se passaram dois meses, sem um tostão.


PLAYBOY: Chegou a passar fome?


JOÃOSINHO: Mas com-ple-ta! Não tinha coragem de entrar num restaurante e pedir um copo d'água.


PLAYBOY: Nem para um amigo?


JOÃOSINHO: Eu estava agastado [zangado] porque aconteceu um fato que me traumatizou muito. A dança, para mim, era uma coisa divina. Era tudo o que eu queria fazer, tinha uma nobreza, o ambiente do Rio de Janeiro era de paz, de beleza. No Balé da Juventude tinha estudantes de toda parte do Brasil. Eu estava vivendo meu sonho, nas nuvens, feliz, realizado... e o meu cunhado veio ao Rio me dizer que eu era a vergonha do Maranhão.


PLAYBOY: Vergonha por quê?


JOÃOSINHO: Porque eu estudava balé! Ele disse isso e foi embora. Fiquei arrasado! Ser a vergonha do Maranhão me deprimiu profundamente. Eu, que já era tímido, carreguei aquela vergonha comigo. Então, no período de fome, me lembro de que na Avenida Marquês de Abrantes, esquina com a Praia de Botafogo, vi numa lata de lixo um pedaço de mamão — mas não peguei porque via maranhenses por todos os lados [risos]. A única coisa que eu comia eram as amêndoas da Praça Paris, pegava as que caíam das árvores, que nem são para comer, mas não tinha outra coisa. Um dia... O Hotel Glória tem uma escadinha e, na época, ainda não existia o Aterro do Flamengo, os ônibus passavam encostados. Eu estava ali, tão desesperado de fome, sem forças, que pedi com uma voz interior: "Meu Deus, me ajude!" Pois nesse exato momento vi a roda de um ônibus trazer toda aquela poeira de lixo e um papel veio pousar nos meus pés. Agachado, caído, segurei o papel: era uma nota de 50 cruzeiros, daquelas roxinhas, com a figura do princesa Isabel.


PLAYBOY: Quanto valeria hoje?


JOÃOSINHO: Ah, muito, uns 100 reais. Deu pra aguentar até o Municipal me chamar.


PLAYBOY: Sua vida melhorou no corpo de baile?


JOÃOSINHO: Eu fazia o que queria, e ganhando para isso. Era muito mais do que sonhei. O Rio era a capital federal, o Municipal tinha temporadas de óperas alemãs, italianas, francesas, inglesas — e nós, do corpo de baile, participávamos tanto das montagens brasileiras como das internacionais. Assisti às maiores maravilhas do mundo, o Covent Garden de Londres, os balés russos, grandes espetáculos shakespearianos... O contato com todo esse mundo artístico era de uma dimensão incomensurável. Eu chegava ao teatro às 7 [da manhã] e só saía de madrugada.


PLAYBOY: Sua história é cheia de surpresas, não?


JOÃOSINHO: Sou Sagitário com ascendente em Áries e um congresso [de astrologia] aqui no Rio publicou uma síntese de cada signo. O meu: nunca vai ser rico, mas já nasceu de maleta pronta. Pois já dei duas voltas ao mundo sem pagar uma passagem, um hotel, sempre de primeira classe e sem dinheiro no bolso. Nem desfaço minha mala. Passei uma semana na Europa, vim para o Brasil, fui para o Rio Grande do Sul, para o Maranhão, depois segui para Londres, Paris, Viena, Amsterdã, voltei, fui para o Recife, São Paulo... De Mônaco fui pra Jequié [Bahia].


PLAYBOY: Você vai a Jequié com o mesmo ânimo com que vai a Mônaco?


JOÃOSINHO: Ah, no avião me sinto à vontade! Adoro viajar. Lido desde com a classe Z, da escola de samba, até com reis e rainhas.


PLAYBOY: E fica à vontade com a nobreza?


JOÃOSINHO: Muito à vontade. Aprendi a ser tratado pelo rei Hassan II do Marrocos como um amigo. Enquanto todo o mundo árabe se jogava aos pés dele — pois descende direto de Maomé, é uma divindade na face da Terra —, ele me abraçava. É uma experiência muito boa [risos].


PLAYBOY: Como eram as festas de Ano Novo do rei do Marrocos?


JOÃOSINHO: Estreei lá doze anos atrás. O palco era um tablado no salão dividido ao meio, a parte das mulheres separada da dos homens por um biombo e, na frente, o trono do rei. Havia a corte toda, rainhas e princesas lindíssimas, carregadas de joias, uma coisa deslumbrante. Eu, de smoking branco e uma echarpe colorida, ia falar em francês, mas fiquei sabendo que o rei fala espanhol e entende perfeitamente o português, então falei no nosso idioma. Disse que nós vínhamos de um país cuja geografia tinha o formato de um grande coração. Que esse coração tinha começado a bater quando aqui se encontraram três sangues: do dono da terra, o índio, do descobridor europeu e, finalmente, o fortíssimo sangue negro vindo ali da África. Que a mistura desses três sangues criou a civilização brasileira, envolvida numa energia muito poderosa, a alegria que oferecemos aos nossos ancestrais, ao rei do Marrocos, Hassan II, sangue vivo de Maomé. O rei ficou de pé, foi aquele alvoroço. Pensei: "Bom, já arrepiei o bicho". [Risos.] Então, eu disse que essa alegria vinha por meio de uma criança. Aí saiu de trás de mim um garoto de 8 anos, passista fantástico. E a orquestra começou [canta]: "Brasil, meu Brasil brasileiro..." O rei subiu ao palco, me deu um abraço e pegou um surdo que estava perto da bateria.


PLAYBOY: O rei do Marrocos tocou surdo na sua festa???


JOÃOSINHO: Ele ficou esperando a introdução da música. Quando o tamborim entrou, deu a batida certa e começou a tocar! Pensei: "Sou amigo do rei!" [Risos.] Esse foi o primeiro, depois fiquei dez anos fazendo réveillon no Marrocos. Quando saí da Beija-Flor toquei o projeto Flor do Amanhã, não pude mais voltar, dá muito trabalho.


PLAYBOY: Você diria que o Flor da Amanhã só lhe deu dor de cabeça?


JOÃOSINHO: Não. O Flor da Manhã me deu o avanço mental que lamentaria se não tivesse acontecido. Em junho de 1992, durante a ECO [reunião mundial sobre meio ambiente realizada pela Organização das Nações Unidas e sediada no Rio], o Dalai-Lama, um dos maiores líderes espirituais do mundo, quis visitar o Flor do Amanhã, que ainda estava sendo organizado. Não tínhamos verba porque foi aquele período do [então presidente Fernando] Collor, todo mundo sem dinheiro, mas alguns empresários queriam ajudar — a Shell pagou o escritório, a imprensa deu apoio, o Ministério da Fazenda cedeu um galpão com 10.000 metros quadrados, mas todo podre porque foi a primeira doca do Rio. Pois bem, quando o Dalai-Lama foi visitar, aconteceu uma cerimônia lindíssima, havia imprensa do mundo inteiro, canto sânscrito, um momento divino. Ninguém toca no Dalai-Lama, nem ele toca nas pessoas, mas tenho fotografias dele me abraçando e tudo. Na saída, ele me disse seriamente, olhando nos meus olhos: "Sobre esse projeto recairão forças malignas e incomensuráveis. Você vai ter de ter muita energia para aguentar". Falou isso claramente, em inglês, traduzido pelo intérprete.


PLAYBOY: O que você achou dessa previsão?


JOÃOSINHO: Fiquei atordoado. Conheço a história do Dalai-Lama desde 1956, quando frequentava a Sociedade Teosófica Brasileira, onde estudava a história do Oriente, e tinha-o como um ser excepcional, Mas, naquele momento, duvidei da clarividência do Dalai-Lama. Afinal, estava tudo bem! No dia 9 de setembro de 1992, o juiz Liborne Siqueira, com outras forças malignas que hoje identifico claramente, fez uma representação para o Flor do Amanhã dizendo que havia muita promiscuidade. Queriam a planta do projeto, a previsão do término das obras, quando estava sendo ventilado ainda, e apresentação de contas, quando a gente estava lutando para conseguir verbas. Ele fez essa representação às 6 da tarde e recebi o aviso de uma jornalista do [jornal] O Globo. Fui ao juizado de Menores, encontrei o juiz Siro Darlan, que me disse: "Joãosinho, isso deve ser coisa do Liborne", que estava em briga com o Darlan porque... [Pausa.] Olha, você vai ter de contar isso direito porque é briga de forças muito mais altas.


PLAYBOY: Tudo bem.


JOÃOSINHO: O Estatuto do Menor, editado pelo Collor, veio tirar o juiz Liborne Siqueira do pedestal que ele tinha, há muitos anos, de único juiz de menores do Rio de janeiro. O Estatuto criava duas varas, a do menor abandonado e a do menor delinquente. Então o poder ficou dividido, ele ficou com o menor abandonado e o Darlan, com o menor infrator. Agora, te pergunto: quem dá notícia, é o menor abandonado ou o delinquente, que a todo momento está matando, assaltando? Quem começou a aparecer nos jornais? Darlan. Isso provocou uma ciumada, criando uma guerra. Dr. Darlan não me desmente, chegou a me pedir que arrumasse uma sala pra ele aqui no Flor do Amanhã porque não aguentava mais ficar no prédio da [Avenida] Presidente Vargas, ao lado do Liborne. Eu, com muito sacrifício, em vez de uma sala, fiz três: uma para o Darlan, outra para o Liborne e a terceira para a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]. Fui ao juiz Liborne, expliquei todo o projeto, que tínhamos a cobertura de um dos dez maiores escritórios de consultoria do mundo, o Arthur Andersen, que controlava todo o dinheiro que entrava.


PLAYBOY: Você queria uma reunião de paz nessa guerra?


JOÃOSINHO: Queria que os dois se entendessem porque, na briga do mar com o rochedo, quem sofre é o marisco. Estava sentindo que o Flor do Amanhã seria prejudicado. Eu vinha atuando com o Darlan porque era quem me pedia auxílio, fui muitas vezes lá em Niterói, ao abrigo de menores delinquentes, fazer palestras, levei o [cantor] Neguinho da Beija-Flor... A briga dos dois juízes ia atingir o Flor do Amanhã. E, realmente, isso aconteceu.


PLAYBOY: É verdade que houve denúncias de promiscuidade, abuso sexual e más condições de higiene feitas por alguns menores também?


JOÃOSINHO: Olha, isso não existe. Procure o processo, não teve denúncia nenhuma. O Darlan me avisou que tinha sido entrevistado na Rádio Globo e, lá, mostraram pra ele uma gravação que iria para o ar. Ele me contou: "Joãosinho, estou te falando porque é uma denúncia feita por um bandido que eu conheço, se chama Tuinha".


PLAYBOY: Era um moleque?


JOÃOSINHO: Bandido já, de 24 anos, o chamado "pai de rua" [adulto que explora a mendicância e o trabalho infantil nas grandes cidades]. E [o juiz Darlan] disse: "Esse Tuinha fez uma gravação para a Rádio Globo se dizendo menor de 17 anos e acho bom você tomar conhecimento disso porque é uma mentira, uma calúnia, mas pode te prejudicar". Esse bandido já havia matado quatro pessoas, é procurado pela polícia. Tomava conta dos garotos aqui da Praça Mauá, terríveis, que assaltavam. Trombadinhas perigosos que estavam se aproximando dos garotos da [região da igreja da] Candelária. Eles vão se infiltrando pra tomar conta. Nós estávamos trabalhando, naquela época, com os garotos da Candelária. Eles ficavam lá conosco até as 6 horas, jantavam às 7, viam televisão e depois iam, para a rua porque o Estatuto do Menor proíbe o confinamento. Uma noite de chuva, eles saem e, meia hora depois, voltam apavorados. Tinham chegado à Candelária e estava lá um camburão, com um coronel de metralhadora na mão, ameaçando todos porque a mulher dele tinha sido assaltada ali na Candelária. Eles ficaram apavorados, o coronel querendo a bolsa da mulher. E nós descobrimos que tinham sido os garotos da Praça Mauá, liderados por esse Tuinha — porque são gangues, tem a da Candelária, que não se mistura com a da Praça Mauá, que não se mistura com a da Cinelândia, que não se mistura com a da Central, e tem brigas, brigas de morte! Pois bem, durante a ausência dos garotos da Candelária, presentes no Flor do Amanhã, os da Praça Mauá assaltaram a mulher. Talvez para provocar exatamente o que aconteceu.


PLAYBOY: Você acha que esse juiz Liborne teve algo a ver com...


JOÃOSINHO: [Interrompe.] Não, nada a ver! A verdade é que voltaram [ao flor do Amanhã] quarenta garotos da Candelária e batia uma chuva torrencial.


PLAYBOY: Você permitiu que eles ficassem ali?


JOÃOSINHO: Claro! Telefonei para outros diretores [da entidade], relatei o que estava acontecendo e disse: "Se não deixarmos ficarem aqui, eles mesmos vão se revoltar. Isso se o coronel lá não pegar pelo menos um". Foi o que deu início à permanência deles lá dentro e deu motivo para aquela representação do juiz. Coincidiu justamente com a gravação do Tuinha. Fui à Rádio Globo e escutei. Ele dizia: "Tenho 17 anos, já fui do Flor do Amanhã, que não está com nada". Pela voz dele, estava totalmente drogado, como os outros, que só vivem drogados, dia e noite, é maconha, é cocaína, é tudo. Esse texto foi publicado por um jornal de subúrbio, que dizia que eu tinha uma régua pra bater.


PLAYBOY: Uma palmatória?


JOÃOSINHO: Uma palmatória que se chamava Beija-Flor, olha a loucura! E dizia que eu gostava de trabalhar com homossexuais. Havia um gerente de cultura, um brasileiro que eu trouxe de Paris, que era homosssexual. O que é que tem isso?


PLAYBOY: As próprias crianças de rua transam umas com as outras?


JOÃOSINHO: Mas só transam, desde a mais tenra idade!


PLAYBOY: É difícil lidar com isso?


JOÃOSINHO: [Confirma, exaltado.] Escuta! Por isso é que eu não gosto de tratar desse assunto... Você imagina essas crianças cheirando drogas o dia todo, rola tudo o que é sacanagem. Eles dormem grudados uns nos outros. E esses adultos, que são todos bichonas perigosíssimas, que andam com gilete dentro da boca, na verdade são essas crianças que desde a infância foram estupradas e tiveram essa vida. Todos os pais de rua são bichas perigosas que fazem das crianças objeto sexual e aviãozinho [portadores de drogas do fornecedor ao consumidor]. Naquele momento, esses pais de rua, como o Tuinha, ficaram assustados porque eu estava tirando as crianças da rua. E eles são ligados ao pó [cocaína], ao tráfico, e aí não sei se você pode publicar isso, se não vai me colocar em situação de risco...


PLAYBOY: Você chegou a sofrer alguma ameaça?


JOÃOSINHO: Claro! Mas não quero falar sobre esse assunto. [Iniciamos uma longa discussão: de um lado, PLAYBOY insiste na importância de levar a público a verdade sobre a pressão exercida por facções do crime organizado do Rio de Janeiro, que teriam vasculhado o galpão do Flor do Amanhã para mandar "um recado" a Joãosinho; de outro, o entrevistado fecha posição, em nome da própria segurança, de que não pode se expor.]


PLAYBOY: Que fim levou o projeto?


JOÃOSINHO: Acabou-se. Me afastei da presidência [Joãosinho se demitiu em 22 de setembro, onze dias depois da representação do Juizado de Menores]. Acabamos descobrindo que as entidades que trabalham com criança estavam aterrorizadas com o Flor do Amanhã porque essas 500 e tantas entidades que existem recebem verbas do exterior e não querem que acabem as crianças de rua. Não tem tanta criança assim para ser atendida.


PLAYBOY: Esse escândalo atrapalhou sua vida?


JOÃOSINHO: Não respondi a nenhuma acusação, mesmo sabendo da posição [contrária] da Igreja Católica. Dom Eugênio Salles [arcebispo do Rio Janeiro] não me perdoou desde o Cristo [referência à escultura do Cristo Redentor no carro abre-alas da Beija-Flor, em 1989; proibido de levar a alegoria à avenida, Joãosinho embrulhou o Cristo em plástico preto, colou um cartaz — "Mesmo proibido, olhai por nós" — e chamou mais atenção ainda]. Eu era tido como inimigo da Igreja, como é que podia estar orientando crianças? Saiu um livro sobre Carnaval e a autora fazia um apêndice: "E o Joãosinho se afastou do Carnaval por envolvimento..." Procurei um advogado para saber se podia processá-la [exaltado, batendo na mesa] porque o primeiro que publicar que tem acusações contra mim, ou que voltar a tocar nesse assunto e não deixar esclarecido conforme estou perdendo horas [para dizer], eu processo. Eu processo você e a sua revista.


PLAYBOY: Isso não será necessário. Esta é uma ótima oportunidade para você dar a sua versão sobre o caso.


JOÃOSINHO: [Ameaça.] Mas, se não for bem escrita...


PLAYBOY: A entrevista está sendo gravada.


JOÃOSINHO: Tem muito mais argumentos aí, mas não quero agora levantar essa polêmica, quero deixar tudo mastigado no livro que vou escrever.


PLAYBOY: Então, vamos aproveitar para falar de política. Qual é a sua?


JOÃOSINHO: Deixa eu contar coisa. Em 1994 fiz um enredo para a Viradouro, Teresa de Benguela, uma Rainha Negra no Pantanal. Essa figura me fascinou: uma escrava africana levada para o Alto Pantanal, a Vila Santíssima Trindade, nobre dos benguela, de Angola. Ela tinha como símbolo de nobreza os dentes serrilhados, que deu origem à corruptela "banguela". Pois bem, ela liderou uma fuga de escravos, fundou o quilombo do Quariterê e governou como uma rainha, com um parlamento. Isso em 1740! O quilombo prosperou tanto, na agricultura e no artesanato, que os portugueses decidiram acabar com aquilo senão todo mundo ia pra lá.


PLAYBOY: Ela foi recapturada?


JOÃOSINHO: Foi morta, degolada. Minha admiração por essa mulher se tornou tão forte! já havia lido livros da Chris Griscom, guru da Shirley McLaine, autora de O Poder Feminino, dizendo que no próximo milênio a energia vai se concentrar na Terra. É o poder da mulher que tem as dores do parto, que tem mais sensibilidade que o homem, que é muito mais honesta. Escrevi um texto para ser lido na avenida, mas na hora [do desfile] não deu, em eu pedia a Teresa de Benguela que voltasse e impregnasse uma outra mulher com sua inteligência, com sua clarividência iluminada, e fizesse essa mulher governar o Brasil. Prestei atenção em várias, mas não encontrava uma que me convencesse da força de Teresa. Pois quando [a governadora do Maranhão] Roseana Sarney esteve aqui no barracão...


PLAYBOY: Teresa de Benguela baixou em Roseana Sarney???


JOÃOSINHO: [Sorrindo.] Quando olhei pra ela, tive a certeza de que ali estava Teresa de Benguela! E olha que o povo de São Luís nunca simpatizou muito com a família Sarney, eles sempre perdiam [as eleições] na capital.


PLAYBOY: O ex-presidente José Sarney foi se eleger senador no Amapá...


JOÃOSINHO: Exato. No entanto, a Roseana está fazendo tão bom governo que até a capital já está a favor dela. Fui lá no Maranhão receber a medalha Timbira, a maior condecoração do Estado, e vi os assentamentos de sem-terra. Como não tenho rabo preso com ninguém, fiz o que a minha mente e meu o coração estavam falando: lancei Roseana Sarney para presidente no ano de 2002.


PLAYBOY: Por que não este ano?


JOÃOSINHO: [Misterioso.] Porque é o tempo. Fiquei sabendo que uma vidente previu que em 2002 o presidente Brasil será uma mulher.


PLAYBOY: O que será que o pai dela acha disso?


JOÃOSINHO: Sei lá! [Risos.] Encontrei o Sarney e dona Marly em Mônaco e já falei isso pra eles.


PLAYBOY: Você já foi convidado a se lançar na política, não?


JOÃOSINHO: Mas minha visão das coisas é mais holística, é por inteiro, não é "partido". Há trinta anos tenho a visão da miséria do Rio de Janeiro. Vivenciei isso, não me contaram. Tenho isso grudado na minha pele, na minha carne, e que não venham intelectuais que não tenham passado por essa experiência discutir comigo! Quando fui para a Beija-Flor, falei pro Anísio: "Vou pra fazer um trabalho duplo, de carnaval e social". E nós construímos uma creche para 400 crianças, um centro de orientação profissional, o Mutirão da Alegria. Em 1976, em plena revolução [do regime militar], com o Brasil todo parado, eu estava nas ruas de Nilópolis, com o povo, fazendo reformas agrárias por lá. Plantamos árvores, transformamos as lixeiras de cada esquina em playground para as crianças, incentivei a criação de hortas...


PLAYBOY: Você acredita que não se precisa da política para melhorar a sociedade?


JOÃOSINHO: Não precisa estar nesse emaranhado de interesses, de politicagens. Sempre fiz minha política independente. O exemplo de Nilópolis continua, porque foi bem plantado, mas o único eco foi da Mangueira [que mantém a Vila Olímpica, visitada pelo presidente americano Bill Clinton no ano passado, e o projeto Mangueira do Amanhã], tocado por outra maranhense, a [cantora] Alcione. Se os presidentes das escolas de samba tivessem uma visão boa — como o Monassa, que banca um projeto de assistência odontológica e pré-natal nas comunidades de Viradouro, Barreto, São Gonçalo e Niterói —, talvez reduzissem a violência.


PLAYBOY: Qual é o seu projeto extra-carnaval no momento?


JOÃOSINHO: Estou envolvido, com o ministério da Cultura, num projeto ligado à reforma agrária no Maranhão [o Roda Vida]. Vamos desenvolver o artesanato com, por exemplo, a palha do buriti. [Mostra o colete.] Isto aqui é palha de buriti, dá para fazer vestidos, bolsas, chapéus. Claro que não vou ficar lá, vou orientar equipes. Então eu, com toda a mordomia de viagens pra fazer festas de reis e príncipes, abandono tudo e vou botar o pé na minha terra. Se tivesse de escolher entre fazer carnaval, viajar pelo mundo ou fazer a reforma agrária, eu faria a reforma.


POR ROSANGELA PETTA

FOTOS CARLOS SAFKER


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