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LIMA DUARTE | JUNHO, 1989

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com o criador de Sassá Mutema sobre sua paixão por Maitê Proença, segredos da TV, do rádio e do teatro,

Assis Chateaubriand e uma vida que daria novela


O bimotor Baron de seis lugares perdeu altura, embicou para a esquerda e começou a sobrevoar a pacata Vem Cruz. Alvoroçados, orgulhosos, felizes, praticamente todos os 12 mil habitantes dessa cidade do Oeste paulista saíram de casa. Era ele, enfim: o herói Sassá Mutema, com aquele gorro na cabeça, chegava de aviãozinho para visitá-los.


A cavalo, a pé, de bicicleta ou em Santanas e Monzas sem placa, mal tirados da agência, quem é que não foi ver? Ali estavam todos eles, no ensolarado domingo de abril: o prefeito, pimpão e faceiro; o padre, numa batina cinza bem engomada; os fazendeiros, com relógios de ouro chacoalhando no pulso e enormes fivelas prateadas de cinto compradas em Miami: as mulheres dos fazendeiras, com blusas estampadas de seda, jeans, botas e anéis de brilhantes; os filhos dos fazendeiros, com largos chapéus, gravando tudo em câmaras de vídeo trazidas do Paraguai; e, a uma certa distância, dezenas, centenas, milhares de eufóricos sassás.


Não poderia haver um encerramento mais gloriosa para a 4.ª Festa do Peão Boiadeiro — nem uma amostra tão peculiar do universo de brasileiros que, de segunda-feira a sábado, a partir das 20h30, sintonizados na Globo, distraem-se com o atual sucesso de Lima Duarte, em O Salvador da Pátria.


Como já conseguirá com Zeca Diabo, em O Bem-Amado, com Sinhozinho Malta, em Roque Santeiro, e com personagens de outras 38 novelas que protagonizou, ele faz um tipo que caiu no gosto do país. "Ieu? Ieu?", brinca Lima, mineiro de 59 anos, quando começam a lhe lembrar essas coisas. Parece modéstia. É profissionalismo. Montado num manga-larga de 20 mil dólares, com uma sela tão bonita e trabalhada que ficara exposta a semana inteira na agência local do Bradesco, ele desfila pela apinhada rua principal até chegar ao palanque das autoridades, junto à igreja, onde faz um breve discurso:


"Muito obrigado, povo de Vera Cruz! Este é um dos dias mais felizes de minha vida. Um beijo no coração de cada um de vocês..."


Pouco depois, o Baron o levava de volta. O manga-larga, presenteado pelo fazendeiro que o convidara, seria entregue no dia seguinte em seu belo sítio nos ar redares de Campinas — com uma casa de 1.200 metros quadrados de área construída, lago, piscina, campos de esporte e canil. Pela breve apresentação, recebeu também um cachê. Em notas verdes.


"Se quisesse, eu faria uma viagem dessas por semana e ganharia uma fortuna", calcula Lima, que nesta entrevista a Carlos Maranhão, diretor adjunto de PLAYBOY, entre outras revelações, detalha seu já vasto patrimônio pessoal. "Mas acontece que meu negócio é outro. Sou um ator."


Como ator, confunde-se com suas criações e é menos conhecido do que elas. Apesar das teorias de que a história da TV foi escrita na areia e que as novelas, ao contrário do cinema, não têm memória, inúmeros fãs ainda o chamam de Zeca Diabo — o saudoso cangaceiro que despontou nas telinhas em 1973. Muitas desses admiradores, quatro anos depois de suas aventuras com a Viúva Porcina, preferem tratá-lo por Sinhozinho Malta. Neste momento, naturalmente, Sassá é o alvo das atenções gerais. "Não consigo mais ir a nenhum lugar sem que me perguntem quando vou seduzir a professora Clotilde", garante. "O engraçado é que as pessoas me incentivam a dar em cima dela. Curioso isso: querem que eu, ou melhor, o Sassá faça o que elas têm vontade de fazer."


Nas ruas, em vã tentativa de driblar tanto assédio, anda de óculos escuros — como se o excesso de bigode e a escassez de cabelos não o tornassem um alvo facílimo de identificar. Mas, mesmo exausto, não nega autógrafos. "Do Sassá, do Sinhozinho, do Zeca ou meu mesmo?", consulta sempre. Raramente pedem o dele.


Não sabem o que estão perdendo. Aryclenes Venâncio Martins, o Lima Duarte, é uma das cabeças mais inquietas, inteligentes e, segundo suas palavras, delirantes do mundo artístico brasileiro. Ótimo contador de casos, observador arguto e um excepcional imitador de vozes, ele anima uma conversa por horas a fio e discute qualquer assunto com vivacidade e bom humor. Melhor do que lhe pedir opiniões, porém, é deixar que narre acontecimentos de sua vida.


Trata-se de uma riquíssima biografia. Para se ter uma idéia, ela abrange a chamada época de ouro do rádio, momentos marcantes do teatro e quase tudo o que já houve de importante na televisão. Afinal, quando a Tupi de São Paulo entrou no ar, em setembro de 1950, como primeira emissora de TV da América Latina, ele estava lá. Nessa longa caminhada, iria conviver intimamente com o lendário e polêmico Assis Chateaubriand, fundador da Tupi e do outrora colossal império dos Diários Associados.


Hoje solteiro, ao fim de cinco casamentos, é pai de quatro filhos: a atriz Débora Duarte, 38 anos; a advogada Mônica Maluf, 35, administradora de seus negócios; e dos pequenos Pedro, 14, e Júlia, 11. Avô de cinco netos (Daniela, 13, Paloma, 11, Roberto, 10, Fábio, 9, e Karina, 4), costuma passar com eles, no sítio, suas raras folgas no intervalo das gravações de novelas, de comerciais e do programa Som Brasil, sem contar as eventuais festas a que comparece no interior.


Além da família, tem várias paixões. Gosta de cavalos de corrida, por exemplo. "Não de corridas de cavalo, que são para otário", esclarece ele, dono de quatro animais nos hipódromos de Cidade Jardim, em São Paulo, e da Gávea, no Rio de Janeiro. Aprecia lutas de boxe e adora futebol, "sobretudo joguinhos inexpressivos, em noites de quarta-feira". Torce por três clubes: o São Paulo, o Atlético Mineiro e o Comercial, de Ribeirão Preto (SP), uma das cidades em que morou com os pais — ele boiadeiro, ela artista de circo — antes de mudar-se para a capital paulista, em 1946.


Acima de tudo, no entanto, Lima Duarte, homem de jeitão simples e cheio de pequenas vaidades, alimenta um enorme, profundo e indisfarçável orgulho: o seu trabalho como profissional de TV.


PLAYBOY — Você é o ator brasileiro que mais conhece televisão?


LIMA DUARTE — Sou. Sou mesmo.


PLAYBOY — O melhor também?


LIMA — O melhor eu não digo. Quem fala isso é o Daniel Filho [diretor da Central Globo de Produções]. Eu sou é um grande profissional. Um grande profissional! E um ótimo funcionário. Fiquei 27 anos na TV Tupi, incluindo meu tempo de rádio, e estou há dezoito na Globo. Não me comporto como estrela e trabalho de-ses-pe-ra-da-men-te. E irradio meu pique.


PLAYBOY — Como você irradia?


LIMA — Durante a gravação de uma novela, como acontece agora com O Salvador da Pátria, vivemos um cotidiano terrível nos estúdios: refletores ligados desde as 9 horas da manhã, quilos de base no rosto, calor, poeira, roupa suja, um capítulo, às vezes dois capítulos que tiveram que ser decorados, gritaria... Num ambiente assim, como lidar com a sensibilidade, com sentimentos sutis? Então, logo ao entrar, vou tratando de levantar o astral de todo mundo.


PLAYBOY — O que você faz?


LIMA — Já chego gritando para os câmaras: "Vagabundos, vou ajudar vocês a ganhar dinheiro!" Eu conheço cada câmara, cada iluminador. Sei que enquadramento vão fazer, que luz vão escolher, que música servirá de fundo para uma determinada cena. Sou capaz de perceber, por instinto, se o câmara irá perder o foco, e me movimento para evitar que isso aconteça. Depois eles me agradecem admirados. Se precisarem, choro com um lado só do rosto — o que está em dose. Irradio meu entusiasmo com coisas como essas.


PLAYBOY — Espere, você disse que chora com um lado só?


LIMA — Faz tempo que não me pedem. Mas sei verter lágrimas apenas do olho direito ou do esquerdo. São quase quarenta anos de TV nas costas. E com as atrizes...


PLAYBOY — O que você diz para elas?


LIMA — [Com voz empostada.] "Eu te amo!" "Como você é linda..." "Estou apaixonado por você, meu amor."


PLAYBOY — Elas acreditam?


LIMA — [Com voz natural.] Acho que acreditam. E tem que ser assim. Elas precisam se sentir amadas para bem representar. Nesse sentido, eu me apaixono por todas elas. Quer dizer, elas coagulam meu olhar. Aí fica uma coisa legal. Meio complicado, né?


PLAYBOY — Um pouco. Vamos a um caso concreto: você está agora apaixonado pela Maitê Proença?


LIMA — Claro, estou sim. Uma situação como a que a gente vive na novela, Clotilde e Sassá, Maitê e Lima, exige um aval da realidade. Vivo repetindo para ela: "Quando eu disser 'Eu te amo, Clotilde', você tem que sentir, registrar nos olhos, guardar lá dentro, entende Maitê? Do contrário, o amor fica de mentira". Confesso que, à noite, em casa, fico pensando: como ela é bonita, tem uma pestana assim, um lábio assim...


PLAYBOY — Então é paixão real?


LIMA — O que me interessa é a harmonia entre um olho e outro, entre o cabelo e o queixo, entre o nariz e a boca. Mas eu sinto o mesmo em relação aos afrescos de Giotto. Nem por isso quero ir para a cama com eles.


PLAYBOY — E com a Maitê?


LIMA — Não. E, para falar a verdade, nem sou um grande amante.


PLAYBOY — Ator se excita nas cenas mais ardentes?


LIMA — Não me lembro de ter acontecido comigo. Olha, não dá. Ficam centenas de pessoas atrás, mandam virar mais para cá, não, mais para lá, e aí a atriz pergunta: "Escovou os dentes, meu bem?" Só algum ator mais bobão pode se excitar.


PLAYBOY — No Roque Santeiro, em que você interpretou o fazendeiro Sinhozinho Malta, seu coração balançou por Regina Duarte, a Viúva Porcina?


LIMA — Houve uma relação bem profunda, sim. Mas era diferente. Eu fiquei estupefato com a capacidade de Regina para fazer TV. Ela é espantosa! Demais!


PLAYBOY — Poderia explicar melhor?


LIMA — Nosso trabalho foi brutal. Aconteceu de, às 9 da noite, não me lembrar do nome dela. Meu cérebro ardia. E o diretor berrando: "Vamos, vamos, cena 32!" A Regina percebeu isso rapidamente. O que ela fez? Tratou de manipular o roteiro. Conversava com o produtor para mudar a ordem das gravações. Graças a ela, as grandes cenas do Roque foram gravadas de manhã. Ela conseguia o que queria: os melhores horários, os melhores ângulos, a melhor iluminação. Sempre com aquele sorrisinho, aquela vozinha. [Imitando Regina Duarte.] "Ai, essa luzinha, é? Está tão escurinho aqui..." Aí vinha o iluminador para colocar a luz certa. Admirável! E ela sabe defender o personagem do autor.


PLAYBOY — Como assim?


LIMA — É algo que só ela, Paulo Gracindo, eu e mais uns poucos fazemos: manter a coerência do personagem. Ela teve sérios problemas em Vale Tudo. Por quê? Porque transformaram a Raquel, que ela interpretava, num personagem improvável, chato. Sim, eu compreendo, os autores realizam um trabalho braçal e sofrem mil pressões. Entretanto, o que agarra o público são os personagens, que nós, atores, devemos defender. Não é a trama. Em absoluto!


PLAYBOY — Não?


LIMA — Evidente que não! Qualquer filminho americano vagabundo, desses que passam sábado à noite, tem trama. A questão é que, dentro dela, o ator deve se movimentar com energia, sangue, coerência. Do contrário, miau!


PLAYBOY — Que novelas teriam sido prejudicadas por causa disso?


LIMA — Várias. Mandala foi uma. A trama era saber se a mãe iria transar com o filho. Que bobagem, não? Como não foi possível, acabou a novela. Aí ficou o Nuno Leal Maia fazendo piadinhas, com seu Tony Garrado, meio que sustentando tudo aquilo sozinho.


PLAYBOY — Como você tem defendido seus personagens?


LIMA — No Roque, o Aguinaldo Silva, que escreveu boa parte da novela criada pelo Dias Gomes, queria que o Sinhozinho apanhasse. Ele levaria um soco do Roque Santeiro e cairia no chão feito um bovino. Ora, eu não podia deixar. O Aguinaldo não sabe as coisas que eu sei.


PLAYBOY — Que coisas?


LIMA — [Indignado.] Não sabe que não pode pegar um personagem como o Sinhozinho, no qual todos os operários e camponeses brasileiros se projetavam, e fazer com que tome um humilhante tapa na cara. Não pode! É o que se chama de projeção compensatória. O autor iria bater na cara do povo, não na minha. Isso tornaria o personagem incoerente. Eu não permiti.


PLAYBOY — Sassá Mutema corre algum risco semelhante?


LIMA — O risco é diferente. Estão todos torcendo: vamos, Sassá, queremos ver sua boca sórdida beijando aquela boca linda da Clotilde. [Risos.] É outra projeção compensatória: um homem possível a ponto de conquistar uma mulher impossível. Ou pelo menos improvável. Se eu beijar, eles se sentirão beijando um pouco também.


PLAYBOY — Não vai beijar?


LIMA — Nunca! Eu me recusei e continuarei me recusando. O Sassá não pode fazer romance com a Clotilde.


PLAYBOY — Por que não?


LIMA — Gosto muito de meu personagem e não posso atirá-lo a essa humilhação. Ele a ama, mas ela não pode corresponder.


PLAYBOY — E se a cena for escrita?


LIMA — Não aceitarei. Vou à direção da Globo, se preciso. Em último caso, me rebelarei. A Clotilde pode sentir afeto, carinho. Tudo bem. O Sassá confunde isso com amor. Legal, é um drama verdadeiro. A partir daí não tem mais sentido.


PLAYBOY — Você está gostando de Salvador da Pátria?


LIMA — Vamos ver o encaminhamento da história. Por enquanto, não sei.


PLAYBOY — Qual é a sua reação quando dizem que você leva a novela sozinho?


LIMA — É, falam.


PLAYBOY — Você concorda?


LIMA — Acho injusto. Há boas interpretações. Algumas histórias, é verdade, não decolaram. Mas não se pode mais falar de política, de sexo...


PLAYBOY — Não houve exageros?


LIMA — Perfeitamente. Não tenho nenhum problema na área e não sou moralista. Acredito, simplesmente, que o sexo desenfreado ficou chato. Até de se fazer como ator.


PLAYBOY — O Sassá também não se tornou meio chatinho?


LIMA — É isso mesmo. Era um personagem mágico. Tocava nos flores, e elas se abriam. Os animais se entendiam com ele. Aí colocam coisas na sua cabeça, ele aprende a ler e a escrever, começa a crescer, fica importante. Vira um grande senhor. [Pausa.] Um grande chato! É mais ou menos o que está acontecendo conosco. O que perdemos no caminho do progresso? Estamos sacrificando as pequenas etnias, de cultura tão rica, como a dos índios; estamos apodrecendo nossos rios, queimando nossas florestas, e com isso destruímos nossa vocação, que é feita de emoções, de uma música tão bonita, de histórias tão lindas... Em outras palavras, estamos pagando um preço indevido nessa nossa tentativa de virarmos, sei lá, um Japão. Era o que eu pretendia mostrar através do Sassá Mutema.


PLAYBOY — Não é meio ambicioso?


LIMA — É, mas foi o que imaginei ao criar o personagem. Dizem que sonho demais, que sou um tanto louco. É o meu jeito, é o que eu buscava.


PLAYBOY — Você sempre voa alto para criar seus personagens?


LIMA — Pois é, vou lá em cima para chegar aqui embaixo.


PLAYBOY — Falemos de outros dois que deixaram saudades: Sinhozinho Malta e Zeca Diabo, de O Bem-Amado. Primeiro, como nasceu o Sinhozinho?


LIMA — Pensei num sertanejo que dá uns golpes no Banco do Brasil para enriquecer. Como naquele Escândalo da Mandioca, em que agricultores recebiam dinheiro para plantar, gastavam o dinheiro e não pagavam. Com esse expediente, o Sinhozinho prosperou — e perdeu suas raízes. Aculturou-se, começou a botar perucas, comprou chapéus em Dallas e fez uma mulher para ele. Ah, e aprendeu a chacoalhar seus colares e pulseiras de ouro na frente dos outros.


PLAYBOY — De onde você tirou aquilo?


LIMA — Observando uns caipiras, essas duplas que vêm cantar no Som Brasil. Ele mostrava os ouros todos, quando o contrariavam, para dar uma exibição de seu poder e avisar que era insidioso como uma cascavel. Funcionou porque tinha um embasamento psicológico correto. Do contrário vira gracinha e o público não aceita. É por essas razões que alguns bordões pegam, outros não.


PLAYBOY — Você procura lançar bordões como esse?


LIMA — Procuro externar uma psicologia. Se há coerência com o personagem, pega. Se não, não. O Zeca Diabo, por exemplo, rezava quando se sentia desamparado: "Ai, meu padim, padim Cícero". E o Sassá, no início da novela, quando ficava perdido? "Hein? leu? leu?" Coitado, parecia um sapo. Funcionou. Todo mundo brinca: "leu? leu?" E as crianças, se o pai ralha? Repetem a mesma coisa. Quer dizer, está correto. Ou não aceitariam.


PLAYBOY — Como você chega a tais descobertas?


LIMA — Não sou eu. Os personagens é que determinam.


PLAYBOY — Neste caso, o que Zeca Diabo lhe determinou?


LIMA — Foi em 1972. Eu saíra da Tupi para dirigir na Globo a fracassada novela O Bofe. Eles iam me mandar embora, quando o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, atual vice-presidente da emissora.] me escalou como ator de O Bem-Amado, a primeira novela colorida da TV brasileira. Meu personagem duraria cinco capítulos. "Tudo bem", pensei. "Eles vão se machucar, porque essa coisa eu faço muito bem." Procurei o Dias Gomes, autor da história, para saber como ele imaginava a figura. Na concepção do Dias, era um matador que não mata: temente a Deus, vivia falando na mãezinha dele. Achei que dava pé e passei na rouparia da Globo para informar que eu mesmo compraria a roupa dele.


PLAYBOY — Por quê?


LIMA — Porque a Globo não sabe vestir um personagem como aquele. Só sabe fazer Joãozinho Trinta. Viajei para São Paulo e percorri umas velhas tinturarias que existem perto da Estação da Luz. Muita gente deixa roupa para lavar e nunca mais vai buscar. E há uma grande diferença em relação aos figurinos da Globo, sempre cosméticos e artificiais: aquelas roupas têm vida! Afinal encontrei o que queria: um terno escuro, azul-marinho. Faltava alguma coisa. Fiquei pensando, pensando...


PLAYBOY — Durante quanto tempo?


LIMA — Uns dez dias. Matador que não mata, ligado à mãezinha... Sem dúvida, uma pessoa boa, de paz, vítima de uma situação social. Como passar essa idéia? Finalmente descobri!


PLAYBOY — Como foi?


LIMA — Defini o destino do Zeca Diabo na primeira cena. O povo inteiro esperando. Entro a cavalo na cidade, levantando poeira. Paro na frente do bar e amarro o cavalo. Todo mundo olhando: cara de matador, bigode de matador, roupa de matador. É ele. Entro, encosto na balcão e digo para o dono do bar [com a voz fina]: "O senhor podia me arranjar uma cachacinha, faz favor?". Meu Deus do céu! O Brasil esperando um bandido e aparece aquilo. Seria bicha? Na própria gravação, a equipe ficou espantada, ria como o país iria rir, sem saber se amava ou odiava aquele matador. Tivemos que refazer. E vinham os técnicos, os atores me perguntar se era daquele jeito mesmo. Eu explicava: "Ele fala desse jeito, coitadinho. Fala assim [novamente com a voz fina]: 'Podia me arranjar uma cachacinha, faz favor?' " O Zeca iria aparecer em cinco capítulos. Foi até o fim da novela, virou série e durou dez anos.


PLAYBOY — Você sente falta de O Bem-Amado?


LIMA — Nem me diga... Como é que acabaram uma série como aquela para colocar no ar a Armação Ilimitada? Quando nada, deveriam manter pelo Paulo Gracindo. Um personagem como o dele, o prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, você leva dezenas de novelas para sacar. Já imaginou o Odorico durante a Constituinte? Com o Bahia campeão brasileiro de futebol? Com a sucessão presidencial? Decerto iria querer ser vice do Jânio.


PLAYBOY — Por que acabou então?


LIMA — O Dias Gomes só queria escrever uma história por mês. Eu sugeri à Globo que entregassem para o João Ubaldo. Conhece o João Ubaldo Ribeiro? É um gênio. Tudo o que ele fala e faz é brilhante. Conta histórias sem parar, compulsivamente. Consegue cantar qualquer samba em latim, precisa ouvir a versão que ele inventou para Desafinado. Inglês? Escreve tão bem como em português e traduziu pessoalmente seus próprios livros. Alemão? Fala sem sotaque. Mitologia? É inimaginável o que ele conhece de mitologia, e fica delirando em cima de deuses gregos e romanos. É um desses baianos que aparecem a cada século. Ele faria misérias com O Bem-Amado. Infelizmente, não deu certo.


PLAYBOY — Por que motivo?


LIMA — Na televisão tem esse negócio de ciúme. Uma pena. O Zeca e o Odorico continuarão hibernando.


PLAYBOY — Zeca Diabo é seu personagem favorito?


LIMA — Gosto dele, mas sou mais o Sinhozinho. O Bem-Amado não está entre minhas novelas preferidas, apesar da força de alguns personagens.


PLAYBOY — E quais são elas?


LIMA — Ainda espero fazer um trabalho, quem sabe um livro, sobre quatro novelas que, para mim, marcam a história de nossa TV: O Direito de Nascer, Beto Rockefeller, Roque Santeiro e O Salvador da Pátria.


PLAYBOY — Já falamos bastante das duas últimas. Poderíamos relembrar Beto Rockefeller, que foi ao ar há vinte anos. Você acha que ela realmente mudou a novela de TV?


LIMA — Totalmente. O que se tinha, até o final dos anos 60, eram dramalhões escritos em Cuba, na Venezuela e na Argentina. Aí veio Beto, que matou todos os condes, todos os filhos espúrios, todos os tuberculosos — enfim, aqueles personagens que povoaram uma seqüência de folhetins, dos quais O Direito de Nascer foi o mais marcante. Beto mostrava o Brasil industrializado, pós 64, e nossa sociedade pequeno-burguesa, com valores que parte dela cultivava: ter um amante, cometer traições, subir na vida a qualquer preço. Era a história de Beto, um paulistano de origem modesta, que queria ser um Rockefeller.


PLAYBOY — Quem criou o título?


LIMA — Eu. Fui o diretor e interpretei sete personagens. A idéia da novela foi do Cassiano Gabus Mendes. Junto com o Antônio Abujamra, contratamos o Bráulio Pedroso para escrever. Beto é um divisor.


PLAYBOY — Em que sentido?


LIMA — A partir dali, a novela brasileira, ganhou seus contornos atuais. Para começar, veja o elenco: Luís Gustavo, que era o Beto, Marília Pêra, Maria Della Costa, Irene Ravache, Walter Forster, Jofre Soares, Plínio Marcos, Ney Latorraca numa pontinha... Hoje não dá para reunir um elenco tão bom. Sim, e a Bete Mendes, que fazia a Renata. Como era linda! Quando eu dava um dose nela, tocava F... Comme Femme, uma canção francesa que estourou nas paradas. Pela primeira vez se usavam temas musicais para cada personagem: para o Plínio, Dio, Come ti Amo; para a Irene Ravache, Here, There and Everywhere, dos Beatles. E o Brasil estava ali, todas as noites. Nunca mais teríamos O Direito de Nascer e seus descendentes.


PLAYBOY — E por que você considera o Direito de Nascer uma novela tão importante?


LIMA — É que, de um modo ou de outro, ela retratava os anseios da década de 50. Vale aqui uma pergunta: quem é o responsável pelo sucesso de uma novela? Não tenho dúvidas: é o povo. O povo diz o que quer e como quer. Quando nós, produtores e artistas, temos sensibilidade para captar e capacidade para executar, a novela explode. Foi o caso de O Direito de Nascer, primeiro no rádio, depois na TV. Ela pertence a um outro mundo, agrário, pré-industrial. Um mundo que conheço bem. Passa pelo folhetim, pelo circo, pela magia do rádio, por um país que não existe mais.


PLAYBOY — Você não está falando de sua própria origem?


LIMA — É verdade. Eu saí daí. Minha mãe, América Martins, era artista de circo mambembe. Conheceu meu pai, boiadeiro de Desemboque, no Triângulo Mineiro, e ele a tirou de lá para se casarem. Tirar mulher de circo era como tirar mulher da zona. Mas ela tinha serragem no sangue e não agüentou. Em Bebedouro, no Estado de São Paulo, para onde nos mudamos, ela foi trabalhar num circo-teatro. Eu, menino, ficava toda noite perto da coxia para vê-la trabalhar. E fui aprendendo a representar.


PLAYBOY — Como era o circo-teatro?


LIMA — A função se dividia em duas partes. Na primeira, apresentavam uma peça, tipo Maria Caxuxa, de Joracy Camargo, minha mãe no papel principal. Era uma grande atriz. A segunda parte se chamava ato variado, com mágico, malabarista, engolidor de facas. Minha mãe cantava tangos. Estou vendo ela agora. Bonita, morena, cabelo comprido... Com o vestido vermelho bem curtinho que usava para cantar tangos... Fui embalado em tangos. Por isso é que sou assim.


PLAYBOY — Assim como?


LIMA — Sou muito delirante. Vivo sozinho. E gosto. Para mim, a grande fonte do prazer, da alegria, é o pensamento. Adoro pensar, delirar. Nesses delírios, entra o tango. Sou viúva do Carlos Gardel. Se vou a Buenos Aires, não deixo de visitá-lo no cemitério de Chacarita. Gardel morreu em 193'5, na Colômbia, a caminho de Medellín. Bem, esta é a versão oficial.


PLAYBOY — Você não acredita nela?


LIMA — Nem sempre. Muitas vezes, eu penso que ele continua vivo e mora escondido embaixo de minha cama. E, claro, cantando cada vez melhor. Uma vez eu confessei isso para o falecido escritor argentino Julio Cortázar.


PLAYBOY — Qual foi a reação dele?


LIMA — Ouviu com atenção. Ele também era meio delirante. Lembro que, naquela noite, tínhamos ido ver um show da Maria Bethânia em São Paulo. Voltamos a pé do teatro, eu a tietá-lo. "Mas vocês já pensaram que Caetano e Bethânia são a mesma pessoa?", ele me perguntou. Eu respondi, racionalmente: "Não é possível. Eles já foram vistos juntos". E o Cortázar, muito sério, do alto de seus quase 2 metros de altura: "Jogo de espelhos". [Risos] Aliás... Minha coleção de discos do Gardel!


PLAYBOY — O que aconteceu com ela?


LIMA — Era completíssima. Comprei em Buenos Aires. E quem acabou com ela? Eu tinha um apartamento na Rua Itapeva, em São Paulo, que aluguei mobiliado para um maquiador. O maquiador passou o contrato para a Gal Costa, e a Maria Bethânia foi morar junto com ela. Nos tempos duros, em que elas não tinham grana. As duas arrebentaram tudo. Mas não faz mal. Gardel canta para mim e os tangos que minha mãe me ensinou ficaram todos guardados no meu coração.


PLAYBOY — Sua mãe, sem dúvida, foi muito importante para você. E seu pai?


LIMA — Foi fundamental. E disso eu sei hoje. Não sabia naquela época. Ele me ensinou tudo, apesar de ignorante. Só tinha sensibilidade e uma caligrafia bonita, caprichada. Jamais esqueço a noite em que me ofereceu um de seus cigarros de palha. O velho Antônio ficava em casa a prepará-los. Misturava fumo de Goiás com fumo do Rio Grande do Sul, um forte, outro fraco, salpicava com pó de café, untava com um pouco de melado, acariciava a palha e molhava no leite para amaciar. Era uma coisa requintada. Então ele me deu um deles pela primeira vez. "Não fumo, pai", eu disse. "Não, fuma ou mente?" Fiquei sem jeito: "É, fumo. Obrigado". E ele, orgulhoso: "Pois espera aí que vou preparar um café para a gente fazer boca de pito". Tomamos aquele café gostoso e depois fumamos em silêncio. Claro que ele estava me vendo crescer. Eu tinha 13 anos e ele achou que chegara a hora de me levar para a zona.


PLAYBOY — Como foi?


LIMA — Caboclo sério, vestiu seu terno de brim cáqui e foi sozinho tratar com a dona, pagando com antecedência. Em seguida veio me buscar. No caminho é que descobri aonde íamos. Ele me sossegou: "Você cresceu. É homem, não é homem? Então? É bom". Foi gostoso, bonito, bem brasileiro. Passados uns três anos, nós brigamos. E aquilo também seria muito importante para mim.


PLAYBOY — Por quê?


LIMA — Briguei por besteira e disse que ia embora. No dia seguinte, eu estava arrependido. Meu pai não: "Tem um caminhão de mangas que vai para São Paulo. Você pode ir junto". Eu vacilei e ele insistiu, mudando o rumo de minha vida: "Vai".


PLAYBOY — Onde você veio parar?


LIMA — Primeiro fiquei no mercado central, onde o caminhão me deixou. Fazia trabalho de burro, puxando carrinhos de frutas. Acabaram me levando para conhecer a Rua Aimorés, no bairro do Bom Retiro. Eram sete ou oito quarteirões, com uma porção de casas de mulheres. Foi ali que uma pernambucana se engraçou comigo. Morei um tempo com ela. Depois a pernambucana foi embora e eu fui viver com a dona da casa, uma judia francesa de olhos azuis, a madame Paulette. O que minha mãe e meu pai não puderam me ensinar, aprendi com ela. Tinha uns 45 anos. Eu, 16 para 17.


PLAYBOY — Ela lhe dava dinheiro?


LIMA — Dava, e eu mandava uma parte para minha mãe. Quando madame Paulette saía, eu tomava conta da caixa. Literalmente uma caixa — de sapatos. Nessas horas eu ouvia rádio. Adorava as novelas, uma novidade para mim. E me deu o estalo: "É o que minha mãe fazia, só que no rádio. Quero fazer isso também". Saí da zona para realizar esse sonho, ajudado por outra coisa que não existe mais.


PLAYBOY — Que coisa?


LIMA — A solidariedade. Com o final da Segunda Guerra, as pessoas pareciam dispostas a se ajudarem. Elas eram melhores, as relações mais gentis. Os italianos dominavam a cidade. Grandes alfaiates, grandes dentistas, o médico de família, os turcos cheios de dinheiro morando na Avenida Paulista, os paulistões do café... Foi nessa São Paulo que cresci. Ela terminava logo depois de onde está agora o Hospital das Clínicas. O bonde subia a Consolação, entrava na Dr. Arnaldo — você não imagina a saudade que estou sentindo daquela São Paulo —, fazia a volta e começava a descer outra vez para o centro. A partir da Dr. Arnaldo era mato. Você encontrava tatu, jaguatirica, preá — e muita doméstica que a gente agarrava pelo caminho. Por ali existiam apenas duas coisas: a Igreja Nossa Senhora de Fátima e o auditório da Tupi, que o louco, o grande Assis Chateaubriand ergueu no matagal. Ele colocou lá dentro o painel Os Retirantes, do Portinari, duas rádios e, em 1950, os estúdios da primeira emissora de TV da América Latina, alicerçando seu colossal império de comunicação, os Diários Associados.


PLAYBOY — E você foi lá...


LIMA — Fui. Minha voz era horrível, carregada de sotaque, pior do que a do Sassá. O Walter Forster me testou, não respondeu nada e resolvi insistir todo dia. Nesses lugares, tem uns bobos que ficam rondando. Gozam, mandam comprar cigarro, trazer água, de vez em quando pagam um sanduíche. Eu era um desses bobos. Um dia, me perguntaram se eu queria ser operador de som. Ora, se eu não queria. Começou para mim uma fantástica aventura.


PLAYBOY — Que aventura?


LIMA — Eu entrava às 4 da madrugada para esquentar as válvulas. Antes do dia nascer, chegavam os caipiras para aqueles programas das 5 e meia da manhã: Brinquinho e Brioso, Toni-co e Tinoco, Rieli e Rielinho... Cantavam assim [imitando perfeitamente]: "Eu tenho uma mula preta / Com sete parmo de artura / A mula é descadeirada / Mas faiz uma figura..." Como eu era um deles, estava em casa. "Bom dia!", gritava o locutor. "Acorda, vagabundo!" Eu botava som de galinha cacarejando. Que delícia! Virei um grande operador, depois um grande sonoplasta, que era um estágio acima. Era disputadíssimo na emissora. Eu conhecia qualquer música.


PLAYBOY — Como você conseguiu?


LIMA — Quando o Oduvaldo Viana, pai do teatrólogo Vianinha, me chamou para ser sonoplasta de novela, explicou o que eu deveria fazer: encontrar um tipo de música para o momento em que a radioatriz dissesse "Eu te amo", outro para a hora em que o radioator falasse "Eu te odeio". Os atores eram Janete Clair, Dias Gomes, Cacilda Becker... Eu ficava noites inteiras ouvindo todos aqueles discos de 78 rotações: Prokofiev, Chopin, Brahms — nada mais divino do que o terceiro movimento de sua Sinfonia número 3 —, Quadros de uma Exposição, de Mussorgski, O Príncipe Igor, de Borodin, Mahler, Ravel...


PLAYBOY — Não era só para procurar o acorde do "Eu te amo", era?


LIMA — Era nada. Eu estava descobrindo a música, da qual me tornei um profundo conhecedor. Hoje eu sei que sou um sujeito cheio de qualidades superiores, mas isso me custou muito. Cada descoberta, porém, foi um momento maravilhoso. Como a da minha voz. Por que passei a fazer qualquer voz? É que diziam que a minha era péssima. Precisei criar outras. Antes de inventar a do Zeca Diabo, eu dublei até desenho animado. Conhece a do gato Manda-Chuva? Sou eu. "Precisamos tomar cuidado... Batatinha!" O Wally Gator? Sou eu. "Não suporto a vida longe da Flórida..." O cachorro Dum Rum, da tartaruga Touché? Sou eu. "Touché, você é o maior herói do mundo..." E teatro, literatura, sabe como aprendi?


PLAYBOY — Não.


LIMA — Na TV Tupi, durante onze anos, fizemos um programa chamado TV de Vanguarda. Apresentamos desde tragédias gregas até Bernard Shaw e praticamente todas as peças de Shakespeare. Tudo nas coxas, improvisado? Está certo. Mas eu tinha que decorar. Decorar ou apaixonar-me por aqueles textos? Mais tarde, em dez anos de Teatro de Arena, codifiquei aos poucos o que havia aprendido de maneira dispersa. Apaixonei-me pelo teatro. Já cinema... Humm, cinema para mim nunca deu certo.


PLAYBOY — Por que razão?


LIMA — Sei lá, minha sensibilidade não bate. Fiz muitos filmes e não fiquei satisfeito com nenhum. O Sargento Getúlio, que poderia ser ótimo, teve uma produção muito precária. No Brasil trabalha-se com orçamentos apertadíssimos, economizando lata de filme. Entre cinema e teatro, prefiro o teatro. No teatro, conheço a platéia pelo cheiro.


PLAYBOY — Pelo cheiro?


LIMA — A experiência me desenvolveu essa sensibilidade. Cada dia da semana é um público, com um cheiro determinado. O de sexta-feira é alegrão, eufórico com a chegada do fim de semana. São casais jovens, moças e rapazes de banho tomado, a caminho de barzinhos. Sentem-se na platéia odores suaves de águas-de-colônia, loções após a barba. No domingo temos o melhor público, composto por pessoas que não trabalham na segunda-feira ou podem acordar tarde. Portanto, gente que ri à toa e compra o ingresso com um sorriso nos lábios. Já no sábado há duas categorias de público.


PLAYBOY — Quais são?


LIMA — Na primeira sessão, japoneses e judeus. Na segunda, a grande burguesia. Os japoneses e judeus são muito atentos, muito interessados, acompanham a temporada. E cobram: exigem um espetáculo de qualidade. Perfumam-se com discrição. A grande burguesia comparece porque, para ela, sábado à noite é dia de teatro, seguido do jantar em bons restaurantes. Por isso, as mulheres se preparam: vão ao cabeleireiro, escolhem a roupa com capricho e usam perfumes caros: Opium, Dior, Chanel n.º 5. São cheirosíssimas. E têm lindas pernas.


PLAYBOY — Como é que você percebe do palco, com a platéia no escuro?


LIMA — Prática. Depois de algumas semanas com a mesma peça, como acontecia com a comédia Bonifácio Bilhões, eu faço a cena e, para me divertir, entre uma lágrima e um suspiro, vou contando quantos espectadores estão presentes. E ainda multiplico pelo preço do ingresso. Enquanto não entra minha fala, cochicho besteira para outro ator: olha aquela senhora na terceira fila flertando com o marido da amiga... [Risos.] Teatro é muito interessante, muito gostoso. Apesar disso, ainda sou mais a TV.


PLAYBOY — Por quê?


LIMA — Tenho quase quarenta anos lá dentro. Inaugurei a TV brasileira. Por sinal, ando pensando em reunir todos os pioneiros. E logo, antes que a gente morra. Ouço tanta bobagem, tanta mentira, que eu próprio começo a me confundir. Minha idéia é promover um encontro por mês: eu, Walter Forster, Walter George Durst, Cassiano Gabus Mendes, Hebe Camargo, Lolita Rodrigues... E vamos apurar: foi isso, foi aquilo. Por exemplo: quem deu o primeiro beijo na TV?


PLAYBOY — Quem foi?


LIMA — Walter Forster e Vida Alves, na novela Sua Vida me Pertence, em 1951. Hoje o doutor Roberto Marinho fica chiando que se beija demais. Naquele tempo também já chiavam. Houve uma grande discussão antes do beijo. O cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, não queria permitir que aquelas bocas se unissem em lascívia, penetrando o recôndito dos lares. O general, não me lembro o nome do general, endossou as palavras do cardeal. Pode? Não, pode? A novela ia ao ar às 7 da noite. Às 2 da tarde, começou uma reunião na Tupi para resolver o impasse. Às 5, saiu o veredicto: OK, beija. De boca fechada.


PLAYBOY — Então esta dúvida está resolvida. Há outras. Qual foi, afinal, o dia da inauguração da TV Tupi?


LIMA — Existem controvérsias. Para uns, foi dia 18 de setembro de 1950. Para mim, foi dia 17. A verdade é que ela estava no ar desde abril daquele ano, em caráter experimental. Passavam filminhos cedidos pelos consulados. Um dia, ainda nessa fase, vi o doutor Assis Chateaubriand, que tivera a idéia insana de montar uma estação de TV, entrar eufórico no estúdio, às 6 da tarde. Mandou parar tudo: "Bota eu aí no ar agora". Ligaram a câmara e ele apareceu ao lado de um industrial. Os dois tinham tomado umas e o doutor Assis só disse o seguinte: "Este aqui é o Müller Carioba, em cujas gordas tetas acabei de mamar. É mais dinheiro para o Museu de Arte de São Paulo. Obrigado, Midler!"


PLAYBOY — Você conheceu Assis Chateaubriand bem de perto, não foi?


LIMA — Convivi nos últimos anos da vida dele, entre 1965 e 1968. De perto, na intimidade. O Fernando Morais, que está escrevendo sua biografia, insiste há tempos para que eu lhe dê um depoimento. Até deixa recados malcriados na minha secretária eletrônica. Não adianta. Para uma biografia, não vou falar nada. É uma coisa minha, pessoal. Não sei como ele utilizaria no livro.


PLAYBOY — E para nós, você conta?


LIMA — Olha, espero que você seja fiel e entenda o sentido do que vou lhe dizer. Todo mundo sabe quem foi o Chateaubriand: uma fera, um dragão, que por causa de um derrame ficou entrevado numa cadeira de rodas. Paralisou tudo, perdeu a fala, mas o cérebro ficou inteiro. Eu me comovia vendo aquela figura querendo se libertar, com a vida, com a alma saindo pelos olhos, pela boca, pelo nariz. Apesar de suas limitações físicas, ele não parava e resolveu oferecer um jantar ao embaixador da União Soviética. No dia marcado, mandou hastear a bandeira soviética no jardim de sua Casa Amarela, como ele a chamava. Ficava na Rua Polônia, em São Paulo, a duas quadras da residência oficial do comandante do II Exército. Que doido, eu pensava. Hastear aquela bandeira em 1965... E me chamaram para ir lá.


PLAYBOY — Para fazer o quê?


LIMA — Ele queria discursar, imagine! Escrevia seus textos com enorme dificuldade. Os braços, que tinham um resto de movimento, ficavam pendurados num tipo de elástico para que ele pudesse utilizar uma máquina adaptada. Parecia uma marionete, com as mãozinhas assim, na altura do peito. Às vezes acertava as letras, às vezes não. O resultado era geralmente incompreensível. Enquanto escrevia, dava risadinhas satisfeitas. Divertia-se com isso. No dia do jantar, depois de muito esforço, mandou que lhe trouxessem "o melhor locutor". Fui o escolhido. Ao chegar, me deparei com uma das muitas cenas inacreditáveis que passaria a testemunhar.


PLAYBOY — Poderia relembrá-la?


LIMA — A Casa Amarela era belíssima. Digna do homem que construíra um império de 35 jornais, 25 emissoras de rádio, dezoito de TV, revistas, fazendas e museus. Que ajudara a eleger Juscelino Kubitschek presidente da República, fora seu embaixador na Inglaterra, nomeava e demitia ministros. Na frente da casa, havia um imenso viveiro de colibris. Logo na entrada, uma enorme sala, dividida em vários ambientes. Em cima, quatro ou cinco quartos. Os diretores dos Associados, João Calmon, Edmundo Monteiro, Armando Oliveira, Napoleão de Carvalho, não saíam da sala. Tinham medo de subir ao quarto dele. Quando subiam, ele se irritava, sofria ataques, ficava apoplético e pensavam que ia morrer. Se a enfermeira entrava, o velho uivava, ganhava forças para dar chutes, atirar coisas. E falava as três únicas palavras que jamais deixou de pronunciar com clareza.


PLAYBOY — Que palavras?


LIMA — "Puta que pariu!" Que me perdoe o Fernando Morais. Só Dostoievski escreveria sobre isso. Logo que entrei no quarto, sozinho, ele começou a me xingar. Respondi com as mesmas palavras: "Vá o senhor! Sou ator, me trouxeram aqui por engano. Adeus". Fui saindo, mas ele resmungou e me mostrou os papéis do tal discurso. Não dava para entender. Naquele momento, porém, resolvi aceitar o jogo: "Olha aqui, doutor Assis, veja a merda que o senhor fez". Ele começou a soltar a risadinha. Ninguém o tratava assim. Arrumei o que pude e dei sugestões, enquanto ele resmungava e ria. Quando não gostava, soltava o palavrão. Pois tornei-me seu amigo. Nos entendemos. A partir dali, ele passou a me chamar regularmente. E inventou um apelido para mim.


PLAYBOY — Qual?


LIMA His Master's Voice, a Voz do Dono, como aquele cachorrinho da RCA Victor. Assumi o papel do cachorrinho. Consertava seus discursos, lia e falava por ele. Eu o acompanhava em suas visitas, indo ao seu lado no Rolls-Royce que pertencera à Presidência da República na época do Getúlio Vargas. Lembro-me do almoço em que ele reatou relações com o doutor Júlio de Mesquita Filho, de O Estado de S.Paulo. Na sua cadeira de rodas, o doutor Assis tinha mais vida do que o doutor Júlio, que me parecia um aristocrata inglês triste e enfastiado. Lembro-me também de um almoço muito frugal com o Amador Aguiar, no Bradesco. Eu falava como o cachorrinho: "Em relação a esta questão, o doutor Assis entende que..." Ele dava risadinhas, mas se eu cometia alguma imprecisão soltava os palavrões. Só que eu me saía bem. Felizmente, a madame Paulette me ensinara como conversar com aqueles cavalheiros. O que eu mais gostava era perceber que ele se divertia com tudo aquilo. E, pelo brilho de seus olhinhos azuis, eu constatava que ele sabia que eu sabia, entende?


PLAYBOY — De que forma?


LIMA — Uma das visitas que lhe davam mais prazer era a de respeitáveis senhoras quatrocentonas, milionárias, muito arrumadas: dona Yolanda Penteado, dona Nini Lafer, dona Nair Pacheco e Silva. Quando entravam naquele quarto, de cuja janela se viam os colibris, fazia um sinal para que lhe beijassem a mão. Elas se abaixavam para beijar e ele, safado, lambia-lhes as orelhas. Adorava tirar esse tipo de sarro. Mas eu também me divertia, como na ocasião em que ele foi agraciado com o título de coronel honorário da Polícia Militar de Minas Gerais.


PLAYBOY — O que você fez?


LIMA — O doutor Assis compareceria à cerimônia em farda de coronel e decidiu que eu iria de tenente. Ah, nem morto! Vai, não vou, resolvi dar uma sugestão: por que ele não mandava o Edmundo Monteiro, diretor dos Associados em São Paulo? Era pequeninho, 1 metro e meio, e todos o chamavam de "o maior anão do mundo". Engraçado, o doutor Assis, pequeno também, gostava de diretor baixinho: o próprio Edmundo, o Napoleão de Carvalho, o Garibaldi Dantas... O doutor Assis adorou minha idéia. E lá foram os dois, fardadinhos.


PLAYBOY — O que você ganhava por esses serviços?


LIMA — Cachê. Ele me dizia para pegar quadros na Tupi, mas nunca peguei nenhum. Levaram tudo, inclusive os do Portinari, num final muito triste. Para ser sincero, só fiquei com uma garrafa de conhaque Martel. Acima de tudo, ganhei uma experiência única: convivi com o lado desconhecido, cru, real, de um dos homens mais poderosos que este país já teve. Não me cabe julgá-lo. E me restou um orgulho pessoal. Entrei na Tupi pela porta dos fundos, ligando a válvula, e tornei-me a voz do dono, o intérprete de seu pensamento. Nada mau para quem veio num caminhão de mangas. Eu seria um débil mental se tivesse percorrido em vão esse longo trajeto.


PLAYBOY — Você ficou rico?


LIMA — Com a Tupi, não. Só há alguns anos recebi um dinheiro que eles me deviam. Quando me perguntam, eu respondo com uma frase pronta: as coisas boas que o dinheiro pode comprar, hoje eu tenho todas; as que o dinheiro não pode comprar, eu sempre tive. Na Globo, ninguém recebe o quanto merece. Ganho a partir dela, com comerciais pelos quais sou muito bem pago. Não esqueça que sou o ator principal da novela das 8. Todas as noites, mais de 40 milhões de pessoas me vêem, gostam das coisas que faço, choram e riem comigo. Nesse sentido, como ator, sou mais importante do que qualquer político. Sim, porque o povo me nomeia não para representá-lo, mas para interpretá-lo. Isso me faz ser vítima de discriminações.


PLAYBOY — Que discriminações?


LIMA — Dos suplementos literários, das curriolas, dos colonizados, dos filhotes do Teimo Martino e do Paulo Francis... É a mesma história a cada trabalho: lá vai de novo Lima Duarte a caminho do sertão, ele só sabe fazer isso...


PLAYBOY — Qual é a sua resposta para essas críticas, segundo as quais, como John Wayne, você está sempre repetindo um personagem?


LIMA — Exatamente assim. A diferença é que, na matriz, o John Wayne merece estátua. Estou em boa companhia: John Wayne, Marlon Brando, Charles Chaplin. Somos todos atores de um único personagem, não é?


PLAYBOY — Você disse que tem hoje todas as coisas boas que o dinheiro compra. Quais são elas?


LIMA — Um sítio em Indaiatuba, perto de Campinas. Comprei no ano passado. No Rio de Janeiro, sou dono de um apartamento pequeno. Em São Paulo, de outro apartamento pequeno, dois em litígio e um maior no Morumbi. Deixo uma caminhonete F-1000 no sítio, uma Parati no Rio e um Escort XR-3 em São Paulo. Finalmente, sou sócio de uma fábrica de vodca, crio cachorros japoneses e possuo, na região paulistana dos Jardins, um restaurante de comida natural. A vodca chama-se Drujba: equilíbrio, em russo. Os cachorros, tomodashi: equilíbrio, em japonês. O restaurante, Sattva: equilíbrio, em sânscrito.


PLAYBOY — Você não é vegetariano...


LIMA — Não, mas não gosto de comer carnes vermelhas. Não me fazem bem. E não agüento mulher que come muita carne. A pele fica cheirando diferente... Também dispenso mulher que fuma. Pode ser quem for. Já fumei. Hoje, porém, eu não suporto fumaça perto de mim.


PLAYBOY — Você está namorando?


LIMA — Tenho amigas eventuais. Telefono, elas vêm me visitar ou a gente sai. Casei cinco vezes. Numa delas tive duas filhas, em outra uma filha e um filho. Hoje vivo sozinho. Em certos dias é ruim. Eu me tranco em casa, fico ouvindo música, peço uma pizza e acabo me deprimindo. Mas é raro. Em geral me dou muito bem comigo mesmo. Durmo pouquíssimo, normalmente das 3 da madrugada às 7 da manhã. Como devo ter deixado claro, adoro pensar, delirar — e para isso não se precisa de companhia. Nem de química. Segundo minha filha Débora, meu cérebro fabrica minha droga. Ou seja, eu sou um fenômeno da natureza.


PLAYBOY — Uma pergunta clássica: que tal ter dado esta entrevista?


LIMA — Eu não queria concedê-la. Sabia que iria falar muita coisa e me tomaria um tempo longo. Gravamos oito horas, não foi? Quem me convenceu foi a Maitê Proença. Ela me disse que as entrevistas de PLAYBOY são as melhores, as mais profundas. E a Guta, Maria Augusta de Matos, diretora do elenco da Globo, endossou: "Sairá direitinho como você é. O resultado será ótimo". Agora quero ler para ver se elas tinham razão.


POR CARLOS MARANHÃO

FOTO JÚLIO BERNARDES


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