top of page

LÚCIA VERÍSSIMO | SETEMBRO, 1990

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com uma das mais desejadas estrelas do país sobre sua entrega ao amor sem limites, Roberta Close, cavalos, brigas, cantadas e a força do Brasil country


Lúcia Veríssimo não é apenas uma das atrizes mais bonitas da televisão. Ela é também uma força da natureza: venta, chove e troveja. Parece não haver limite para a sua hiperatividade. Os que a conhecem como a temível (e sensível) investigadora Marineide do seriado Delegacia de Mulheres (e de outros papéis em novelas da Globo) talvez não saibam que ela tem sido uma revelação de empresária: sua griffe LV Western está inundando os ricos oeste e centro-oeste de São Paulo, além do Paraná, todo o Triângulo Mineiro, quase todo o Mato Grosso do Sul e o sul de Goiás — por enquanto — com centenas de produtos destinados ao homem do campo e ao melhor amigo deste: o cavalo. (E, ah, sim, também à mulher dele.) Com seus chapéus, camisas, botas, esporas e outros apetrechos de vaqueiro, até sofisticados isqueiros, chaveiros, canetas e agendas, marcados a ferro com o logotipo da LV, Lúcia Veríssimo está vestindo, dos pés à cabeça, o que ela, acredita ser o novo meio rural brasileiro. Ao seu jeito.


E Lúcia faz quase tudo sozinha. Cria a confecção, escolhe ela mesma os fornecedores, supervisiona pessoalmente a produção de cada fivela, testa as selas nos seus próprios cavalos e, todo fim de semana, mete-se numa carreta ou numa Caravan com seus funcionários e seguranças, e zarpa para o interior do Brasil. É a "rainha do peão" em centenas de municípios, exibe-se em rodeios (monta melhor do que muitos homens) e exposições agropecuários, vende a sua produção e, naturalmente, tem de sair pelos fundos para escapar ao assédio da valente homarada do campo. Parte desse assédio vem dos ricos fazendeiros que votaram em Ronaldo Caiado (lembram-se?) nas últimas eleições, e alguns deles não se conformam com o fato de que a deslumbrante estrela da Globo, Lúcia Veríssimo, está ali apenas a negócios. Não se pode culpá-los — e quem teve a privilegiada visão de Lúcia em PLAYBOY de janeiro de 1983 e abril de 1988 sabe por quê.


Se conciliar as carreiras de empresária e atriz (não apenas de televisão, mas também de cinema, e teatro) já seria uma tarefa quase impossível para uma mulher só, a coisa fica ainda mais impressionante quando se sabe que, nos seus 32 anos, ela já foi vista praticando salto em altura, salto em distância, revezamento, ciclismo, ginástica olímpica, natação, tênis, judô, esgrima, handebol, motocross, esqui aquático, windsurfe, laser e até pilotando avião. (Muito antes que tudo isto se tornasse moda em Brasília.) E Lúcia também luta e atira. Cansados? Ela às vezes fica. Mas, para se refazer, faz exercícios em casa e hidroginástica e musculação em academias no Rio de Janeiro, onde mora.


Com toda essa energia, Lúcia pode ser encontrada almoçando no restaurante Sabor de Saúde, no Rio, ou no Arroz de Ouro, em São Paulo, aonde vai regularmente para acompanhar o movimento de sua loja LV Western, na Rua Bela Cintra, nos Jardins. Nesses lugares Lúcia costuma estar acompanhada de uma amiga, e a fofoca vai imediatamente para as colunas sociais no dia seguinte, estimuladas pelo fim, há algum tempo, de sua amizade com a estrela da MPB Gal Costa. As colunas sociais interessaram-se bem menos quando ela tinha uma ligação com Caetano Veloso.


Para entrevistar Lúcia Veríssimo, PLAYBOY destacou o editor-contribuinte Ruy Castro. Eis seu relatório: "Lúcia é uma das mulheres mais valentes e corajosas que já vi. Dá a impressão de que não há nada que ela não possa, não queira ou não deva fazer. O curioso é que toda essa firmeza e determinação estão ocultas por um rosto que parece não ter saído ainda da adolescência. Ela consegue ser mais bonita ao vivo do que na televisão, o que deve torná-la duplamente diabólica para quem tem de negociar com ela na sua porção empresária. Eu não gostaria de estar do outro lado da mesa. Aliás, em se tratando de Lúcia Veríssimo, não há melhor lugar do que ao lado dela".


PLAYBOY — Em apenas 32 anos, você já foi vista praticando quase todos os esportes conhecidos. Poderia ter sido, se quisesse, uma grande atleta profissional. Tudo isto enquanto prossegue uma brilhante carreira em cinema, teatro e televisão — atualmente, como a Marineide em Delegacia de Mulheres, na Rede Globo. Mas, como se sabe, sua grande paixão são os cavalos. Por causa deles, você se tornou uma ativa e bem-sucedida empresária na linha country. Como consegue fazer tanta coisa ao mesmo tempo?


LÚCIA VERÍSSIMO — Sempre gostei de esportes e quis fazer um pouquinho de cada um, mas nunca quis ser uma atleta profissional. Na verdade, não gosto de ginástica. O que gosto mesmo é de trabalhar, seja com os cavalos, como atriz ou como empresária.


PLAYBOY — Você nasceu e foi criada no bairro carioca do Leblon, um dos lugares mais urbanos do Brasil. Como se explica esta paixão pelos cavalos e pela vida rural?


LÚCIA — Bem, o Leblon era quase uma roça quando nasci. Mesmo durante a minha infância, no começo dos anos 60, ainda havia cavalos soltos em algumas ruas. E houve muitas férias passadas em fazendas.


PLAYBOY — Muita gente da cidade gosta de cavalos sem sair do perímetro do Jockey Club. Mas você foi aonde eles estão. Quantos cavalos você tem?


LÚCIA — Eu tenho 27 cavalos, todos para competição. Não vendo cavalos, nem a cria deles. É a maneira de aumentar o número de animais sem ter de investir. E é mesmo um investimento, porque cavalo come muito.


PLAYBOY — Custa muito manter um cavalo?


LÚCIA — Depende do cavalo. Se está em fase de competição, ele custa caro, porque trabalha muito e isto faz aumentar a ração dele, o veterinário, o treinador. Calculo que um cavalo no centro de treinamento custe uns 230 dólares por mês. Este custo pode aumentar se o cavalo ficar doente — os remédios saem uma fortuna, porque são doses cavalares. [Risos.]


PLAYBOY — E as competições conseguem pagar o cavalo?


LÚCIA — Bem, se o cavalo é campeão, a cria dele vai sair tão cara quanto o que ele custou. Com um garanhão estupendo, é fácil recuperar o dinheiro. Posso vender cada cobertura de um cavalo desses por 3.000 ou 3.500 dólares.


PLAYBOY — Quer dizer que, a cada vez que o seu cavalo transa, isto rende a você e a ele 3 500 dólares?


LÚCIA — Ao garanhão, rende o prazer. [Risos.]


PLAYBOY — Provavelmente ele se sente bem pago. O que é um garanhão? É o cavalo que dá dez, doze por dia?


LÚCIA — Não. Fazendo inseminação, com uma única ejaculada ele consegue cobrir onze éguas.


PLAYBOY — E como se faz um cavalo ejacular?


LÚCIA — Ele monta no cavalo mecânico.


PLAYBOY — Que maldade!


LÚCIA — Estou falando de inseminação — inseminação quente, porque no Brasil é proibida a inseminação filia, que é quando você armazena o esperma na geladeira. O esperma pode durar até eternamente, se for bem tratado. Mas, no Brasil, começaram a fazer falcatruas, atribuindo filhos a certos cavalos. Há um exame de sangue nos Estados Unidos que permite provar se o cavalo é filho de determinado animal. Dentro de um ano, deveremos ter este exame aqui, mas, por enquanto, é preciso mandar a égua para a fazenda em que o animal reside. É sempre a égua, que vai ao garanhão, nunca o contrário. É caro e desgasta o animal, porque, às vezes, eu tenho de mandar uma égua do Rio até Goiás, para cobrir, e depois voltar. Toda égua cobre de sete a nove dias depois de parir. Isto significa que serão dois a viajar, porque a égua vai com o potro. Nos grandes haras, dois ou três garanhões chegam a cobrir 150 ou 180 éguas.


PLAYBOY — E como é isto?


LÚCIA — As éguas são colocadas nos boxes de preparação, com o rabo preso por uma corda. O garanhão é colocado no mecânico, ejacula, e você divide a quantidade de esperma pelo número de éguas. É quase ao vivo. Mas, antes, o rufião precisa dizer se a égua está no dia certo de transar.


PLAYBOY— E como é que o rufião sabe?


LÚCIA — Você o solta com ela. Enquanto ela estiver dando coice ou mordendo, é porque não está no dia certo. No momento em que ela aceita, aí tudo bem. O rufião é retirado e a égua é colocada no boxe para cruzar com o garanhão — porque o garanhão não pode se machucar.


PLAYBOY — Justo. Mas, entre os humanos, o rufião não é assim tão nobre.


LÚCIA — Entre os cavalos, o rufião é aquele que está sempre em cima e nunca come. É o famoso "mosca de padaria". Que carma o dele! [Risos.]


PLAYBOY — Você também prefere o cheiro do cavalo ao cheiro do povo, como dizia o outro?


LÚCIA — Não, mas eu tenho uma relação quase visceral com os cavalos. Quando entro na baia e sinto aquele cheiro, é uma coisa que me inspira. Eu abraço o cavalo, aliso o seu pêlo, sinto aquela crina, aquela força... É uma coisa de pele mesmo. Depois de trabalhar o cavalo, eu o abraço de novo e ele está todo suado, com aquele cheiro... Em outra encarnação, eu devo ter sido cavalo. Ou uma égua. [Risos.] Quando o cavalo sente o cheiro de uma égua, ele dilata as narinas, os músculos se endurecem. É uma sensação muito forte.


PLAYBOY — E ele tem de se contentar com uma égua mecânica. A sua paixão pelos cavalos levou-a a criar uma bem-sucedida griffe, a LV Western, da qual pouco se sabe nos grandes centros. O que ela fabrica?


LÚCIA — Uns 380 e tantos artigos, todos na linha country. Somos capazes de "vestir" uma casa inteira, o homem que mora nela e os cavalos dele. Isto inclui cabresto, bota, sela, chapéu, boné, cinto, jogo de malas, nécessaire, bolsa, carteira, sapato, descalçadeira, fivela, espora, isqueiro, capa de isqueiro, chaveiro, jóias, cinzeiro, agenda, caneta, papel de carta, caderno, toalhas, roupas de cama, casacos, camisas, jeans e não sei mais o quê. Estamos pensando em lançar uma linha de cuecas samba-canção para os rapazes, com motivos de bichinhos estilo Walt Disney — só que transando. [Risos.]


PLAYBOY — Você prefere os homens de cuecas samba-canção?


LÚCIA — Samba-canção ou daquelas bem minúsculas, tipo sunguinha. Médias, nunca. Mas eu prefiro os homens que não usam cueca.


PLAYBOY — Tudo isto não exige investimentos colossais?


LÚCIA — Não, porque eu trabalho com fábricas que produzem de acordo com minhas necessidades — e nunca compro mais do que preciso. Trabalho com dezenas de fornecedores e com coisas próprias também. Por exemplo, as botas feitas à mão são produzidas por uma pessoa no interior de São Paulo, que trabalha para mim. Pago toda a estrutura da oficina dele, que só fabrica para mim. A fábrica de Araxá [MG] faz toda a linha de cintos, capas de isqueiros, chaveiros etc., e assim por diante.


PLAYBOY — Quem supervisiona tudo isto?


LÚCIA — Vejo tudo pessoalmente, inclusive a loja em São Paulo, embora more no Rio. E vou abrir este ano uma loja em Goiás, com restaurante, um saloon estilo Trinity [risos] e, quem sabe, um espaço para leilão de cavalos. Quanto à fábrica, tenho encontros mensais com vários fornecedores a cada dia e liquido tudo de uma vez. Isso me obriga a passar alguns dias em São Paulo, a não ser quando estou gravando.


PLAYBOY — Mais uma vez: como você consegue?


LÚCIA — Eu fico cansada. Mas sou uma pessoa que encontra enorme prazer no trabalho. Quando tiro férias, o que é raro, vai me dando uma angústia... Prefiro ter um fim de semana prolongado a cada dois meses do que tirar um mês inteiro, uma vez por ano. Na última vez em que fiz isto, em 1988, fiquei duas semanas num barco na Sardenha, Itália, e quase pirei. E olhem que eu tinha telex, telefone e fax no barco.


PLAYBOY — Tudo isto tendo de decorar um enorme número de linhas para os seus papéis na televisão?


LÚCIA — Pego tudo de cor na primeira. leitura. Desde pequena tive facilidade para decorar. Até pouco tempo eu não usava caderninho de telefones. Todos os números com que eu fizesse contato, mesmo que ficasse meses sem falar, ficavam arquivados na minha memória. Mas, de dois anos para cá, resolvi tomar uma atitude porque, com a quantidade de coisas que tenho na cabeça, poderia ter uma esclerose precoce. Tem horas que o cérebro também exige prioridades, e eu não tenho prioridades na vida — porque elas são todas. Tenho dois advogados, e um deles costuma me dizer: "Lúcia, você trabalha tanto que não tem tempo para ganhar dinheiro". O outro advogado quer que eu tenha prioridades. Mas, na verdade, o trabalho é a minha primeira prioridade, e a segunda também.


PLAYBOY — E como foi que o Plano Collor a pegou?


LÚCIA — Não pegou. Não guardo dinheiro. Da mesma maneira que não tenho tempo para ganhar dinheiro, também não tenho para gastar dinheiro. O que eu tenho está em estoque ou em circulação: invisto na loja, compro uma carreta, estoco mais couro.


PLAYBOY — Para promover e vender os seus produtos, você viaja constantemente para o interior. Como é isto?


LÚCIA — Não viajo propriamente para vender meus produtos. Acontece que sou madrinha dos peões e cumpro um calendário anual de exposições agropecuárias. Claro que, paralelamente, isto é uma promoção para a LV Western. A carreta me acompanha nessas viagens e é uma loja ambulante.


PLAYBOY — Para eles, você é uma empresária ou a estrela da Globo?


LÚCIA — A coisa está ficando confusa, tanto no Rio como em São Paulo e no interior. No Rio, às vezes nem os meus próprios colegas sabem que eu tenho uma griffe, uma loja ou que tenho esse lado country. Em São Paulo já fazem mais esta ligação e, no interior, eu sou, ao mesmo tempo, a empresária da LV Western e a artista da Globo.


PLAYBOY — No interior, como você lida com os garanhões da UDR? Eles não caem matando?


LÚCIA — [Risos.] Bem, eu já chego às fazendas com um esquema de segurança bem armado. Mesmo assim, é sempre um tumulto, porque estes são lugares em que as pessoas não cruzam tanto com os artistas de televisão como no Rio ou em São Paulo. E, quanto mais interior, mais carentes disso são as pessoas. Então elas querem chegar perto, querem pegar, vocês sabem como é. Geralmente eu chego pelos fundos, e o contato com o público é só na arena, enquanto estou fazendo o show com os cavalos. Aí desço do cavalo direto no palanque, converso com o público pelo microfone, depois entro no carro e vou embora. Não fico para almoçar ou jantar com ninguém, porque meu tempo é muito corrido — às vezes, cumpro duas cidades no mesmo dia. Assim é difícil conhecer as pessoas...


PLAYBOY — E, quando você cumpre duas cidades no mesmo dia, onde você pernoita?


LÚCIA — Durmo no carro mesmo. Na carreta, só quando estou a fim de bagunça — vai muita gente, um liga a televisão ou o som, um outro faz comida, é uma confusão. Mas, quando quero estar em forma no dia seguinte, vou na Caravan: abaixo o banco traseiro e ela se torna uma cama de casal.


PLAYBOY — Quer dizer que nenhum daqueles ricos fazendeiros toma liberdades com você ou lhe passa uma cantada?


LÚCIA — É claro que recebo cantadas o tempo todo, e não é só do fazendeiro. [Risos.] Algumas cantadas são estranhas. No ano passado telefonou um sujeito do Mato Grosso e falou com a Gilda Matoso, que era minha empresária. No mundo rural, as pessoas são muito objetivas, como se sabe, e vão falando logo o que têm que falar. Ele disse: "Olha, eu queria trazer a Lúcia Veríssimo esse fim de semana ao meu haras". E a Gilda respondeu: "Perfeitamente. Para quê?" Ele deve ter achado a pergunta boba: "Eu quero trazer ela aqui ao meu haras". E a Gilda: "Sim. mas para fazer o quê? Leilão, rodeio, qual é o evento?" E o outro: "Não, não, eu quero ela aqui nesse fim de semana, quanto é que ela cobra?" A Gilda não estava habituada ao estilo deles: "Não consigo entender o que o senhor está dizendo. O senhor tem que me dizer o que o senhor quer com ela". O homem ficou bravo: "Eu quero que ela passe o fim de semana comigo, ora bolas!" Aí ela disse: "Ah, a Lúcia Veríssimo não faz isto, não". E ele: "Olha aqui, eu pago 10.000 dólares". A Gilda: "O senhor não está entendendo, ela não faz isto por dólar nenhum, ela não vai passar o fim de semana com o senhor na sua fazenda". E ele: "Dez mil é pouco? Então eu dou 15.000". Aí a Gilda arrasou: "O senhor não está entendendo, ela não vai de jeito nenhum. Mas, se o senhor quiser, eu vou por 5.000". [Risos.] Ficamos horas rindo com isso.


PLAYBOY — Não houve alguma proposta recusada que tenha atrapalhado os negócios da LV Western?


LÚCIA — Não, porque eu não misturo as coisas. Se você ficar dando ouvidos a esse tipo de propostas, enlouquece.


PLAYBOY — Aquilo que costumamos chamar de "revolução dos costumes" já chegou ao campo?


LÚCIA — Bem, depende do lugar de que se esteja falando. Se você pensar no meio rural do oeste paulista, por exemplo, já chegou. Ribeirão Preto e São José do Rio Preto são centros rurais e, ao mesmo tempo, cidades grandes, com tudo o que acontece nas cidades grandes. Fiquei muito impressionada ao saber que o maior índice de uso de drogas do país está nesta região. Até me perguntei por que aqueles jovens tão saudáveis, que têm casas, fazendas e boa comida, precisam disto. É a metrópole entrando de forma negativa no meio rural — porque os filhos de fazendeiros, fazendeiros serão. Mesmo que não seja a deles. Todo o dinheiro deles vem da fazenda, e ou eles aprendem a lidar com ela ou, quando o pai morrer, a fazenda vai ser tomada por outros e eles vão se dar mal. Mas há também coisas boas da metrópole entrando no meio rural, como a tecnologia, a informática. Hoje já há peões estudando através do vídeo, e alguns haras têm computadores.


PLAYBOY — Algumas fazendas podem estar usando computadores, mas a famosa filha do fazendeiro não continua a ser tratada do mesmo jeito que antes da informática?


LÚCIA — Ela tem que lutar muito para não ser. Mas hoje já há filhas de fazendeiros, grandes fazendeiros, fazendo esporte ou trabalhando os cavalos. Isto apesar de ser um meio absolutamente machista.


PLAYBOY — Uma filha de fazendeiro poderia transar antes do casamento com o conhecimento do pai?


LÚCIA — É muito difícil. Existe uma tradição: a do capataz que já chega à fazenda para conhecer a filha do fazendeiro, casar com ela e continuar a família do fazendeiro. Os capatazes geralmente têm um nível cultural acima da média da vida rural. É quase impossível encontrar uma filha de fazendeiro casando-se com um sujeito que não tenha nada a ver, que não vá morar na fazenda.


PLAYBOY — Os homens são mais machistas no campo do que na cidade?


LÚCIA — Não sei se são mais machistas. Sei que são machistas. E machista é machista e é desagradável em qualquer lugar que seja.


PLAYBOY — Quando se fala do homem do campo, em qualquer parte do mundo, pensa-se num sujeito meio grosso. Isto é um preconceito ou é um fato?


LÚCIA — E que o fazendeiro não tem aquela coisa do requinte, de uma educação mais refinada. Estou falando do fazendeiro que passa a vida trabalhando na fazenda. É um sujeito em cuja vida não cabem aquelas coisinhas de abrir a porta para uma mulher, de servir primeiro, de ser um homem delicado — porque ele lida de maneira bruta com coisas muito brutas. Ele é o peãozão, o cowboyzão, o John Wayne. Isto não quer dizer que ele não se sensibilize com as coisas.


PLAYBOY — Pela sua observação, a mulher do campo pode se sentir realizada sexualmente?


LÚCIA — Como posso responder isso? Sei lá! Tanto a mulher do campo quanto a da cidade têm o mesmo problema sexual, se sentem presas.


PLAYBOY — Discordamos. A mulher da cidade tem mais oportunidades, mais acesso à educação, mais independência.


LÚCIA — Depende da criação. Não acredito que a mulher do campo vá ter mais problemas sexuais porque o marido dela é assim ou assado. Acho que, até pelo contrário, você morando numa fazenda, com aquele espaço todo, aquelas vaquinhas tão bucólicas no campo... [Risos.] Talvez ela tenha até um prazer sexual maior. Nunca parei para pensar nisto.


PLAYBOY— Sua ligação com o campo vai envolver a produção de uma série de vídeos sobre cavalos. Você pretende se tornar a "Jane Fonda dos cavalos"?


LÚCIA — "Jane Fonda dos cavalos" é engraçado, mas vai ser mais ou menos isto mesmo. Só que ela produz vídeos sobre ginástica, sobre o culto ao corpo.


PLAYBOY — Shirley McLaine também, só que sobre o culto aos espíritos.


LÚCIA — [Risos.] Exatamente. Vou tentar juntar o espírito ao corpo, através dos cavalos. Quero fazer vídeos de uma beleza cinematográfica nunca vista no Brasil. Vou falar das diversas raças, da influência do cavalo na cultura, de como o cavalo atuou na guerra e na colonização de continentes inteiros. Por que o cavalo de Tróia não foi uma águia de Tróia? Vou ensinar também como treinar o cavalo para correr, como construir uma baia, como instruir o peão para o trato dos cavalos. Posso fazer um vídeo só sobre selas — elas são milhares, e cada uma tem uma especificação e desenho diferente, para cada cavalo!


PLAYBOY — Você está contando, naturalmente, com o mercado dos fazendeiros afluentes, que têm vídeos.


LÚCIA — Tudo que eu faço é direcionado para o mercado rural. Neste momento, por exemplo, estou com duas produções de filmes rurais, ainda para este ano. Um deles é a história de um triângulo amoroso no meio rural — é um faroeste mesmo, envolvendo lutas, tiroteios, corridas de cavalos e milhões de confusões. O outro é uma espécie de 9 1/2 Semanas de Amor rural. Tudo que venho fazendo há algum tempo e ainda pretendo fazer destina-se a esse mercado. Acho que a solução para uma vida melhor está no meio rural.


PLAYBOY — Isto inclui também ouvir músicas sertanejas, como as que você pretende gravar?


LÚCIA — Evidente que inclui.


PLAYBOY — O seu pai, o maestro Severino Filho, é o líder do conjunto vocal mais urbano e sofisticado do Brasil, Os Cariocas. O que ele acha disto?


LÚCIA — Meu pai só me reprimiu até hoje numa coisa, que foi cantar — qualquer tipo de música. Estudei piano e violão, mas ele me castrou legal. Quando chegar a hora de eu fazer o disco na Ariola, é claro que ele irá produzir. Ele ficou animadíssimo com a idéia.


PLAYBOY — Você ouve música sertaneja em casa?


LÚCIA — Sim, mas não deixo de ouvir também Os Cariocas, Billie Holiday, Caetano, Gal ou Stevie Wonder. Ouço mais música sertaneja quando viajo pelo interior. E não só música rural brasileira, mas também country music. Gravo direto de rádios americanas quando estou viajando pelos Estados Unidos.


PLAYBOY — Bem, nem todas as suas atividades são dirigidas ao meio rural. Delegacia de Mulheres, o seu seriado na Globo, é uma coisa absolutamente urbana.


LÚCIA — Sem dúvida. Mas há uma pessoa que, se tiver qualquer projeto e me incluir nele, eu faço: Maria Carmen Barbosa, a autora de Delegacia de Mulheres. Quando ela me falou da história há dois anos, dizendo que havia feito um personagem pensando em mim, aceitei. A Globo só foi dar o sinal verde agora, mas eu já havia dado a minha palavra a ela. Com isso, vamos ter de adiar para o fim do ano um programa rural na Globo que eu gostaria que fosse para já.


PLAYBOY — Há alguns anos, você se envolveu numa briga com outra mulher, e que acabou numa delegacia. Como foi que tudo aconteceu?


LÚCIA — Foi em 1986, durante a montagem de Por um Triz Não Sou Feliz, uma peça da Maria Carmen produzida por mim no Teatro Mesbla, aqui no Rio. Eu já havia flagrado a administradora do teatro [Elza Ayer] numa série de irregularidades e aquilo estava me criando um problema. Um belo dia, chego no teatro para trabalhar e descubro que ela havia encartado no programa da peça a propaganda política de um candidato a governador — era época de eleição. Fez isto sem ao menos me consultar, e o candidato era o Álvaro Valle. A mim não interessava se era o Álvaro Valle, B ou C, porque eu não me meto mesmo em política. Tomei um susto, subi ao palco e vi a platéia imunda, com aquela papelada no chão com a cara do Alvaro Valle. Eu já não gosto de sujeira, e aí é que fiquei injuriada de verdade. Fizemos o espetáculo inteiro e, no fim, com o público aplaudindo de pé, pedi silêncio e comecei a falar: "Gostaria de comunicar a vocês que não temos nada a ver com a panfletagem que foi feita no teatro. Não é pelo candidato ou coisa assim. Pelo fato de os panfletos estarem dentro do nosso programa, vocês podem pensar que estamos apoiando esse candidato, mas não estamos fazendo campanha política nenhuma. E, se estivéssemos, não seria realmente por ele. Muita obrigada e desculpem". As pessoas aplaudiram. A administradora estava lá em cima, no balcão, e gritou: "Filha da p...!" Eu, cá de baixo, pensei: "É hoje que eu vou ter de acertar contas com esta mulher, porque ela passou dos limites. Está usando o espetáculo, o elenco, o diretor, isso é um absurdo". Fui falar com ela. Aí fiquei sabendo que ela tinha proibido a platéia de ir me visitar no camarim. Ora, o camarim é a casa do ator, é ali que ele recebe os seus amigos. Falei com ela: "Você está louca, não pode proibir nada". Ela ficou siderada e partiu com tudo para cima de mim. Eu pensei rápido: "Bom, eu faço luta marcial, sou muito forte, se bater nela eu a quebro toda, ela é mais velha, não posso nem me defender" — porque qualquer defesa que eu tomasse seria uma agressão a ela. E ela então me bateu de verdade, no rosto, no corpo, fiquei toda marcada. Finalmente a seguraram e eu fui para a delegacia. Dei queixa e pedi exame de corpo de delito.


PLAYBOY— E ela não foi junto?


LÚCIA — Não. Depois eu soube que ela pretendia se machucar e pedir exame de corpo de delito, para dizer que eu havia batido nela. Ora, isto seria fácil de desmentir, porque eu luto, tenho arma branca. Qualquer exame prova se a pessoa sabe bater. E quem luta bate bem, não deixa marcas.


PLAYBOY — Você foi a uma delegacia de mulheres?


LÚCIA — Não, a uma delegacia normal. A de mulheres é outra coisa: trata da defesa da honra da mulher.


PLAYBOY — Mas este conceito de honra não é um pouco elástico?


LÚCIA — Foi justamente o tema tratado no primeiro programa da série, chamado "Em Defesa da Honra". Em certo momento, a minha personagem, a Marineide, batia no Luís Gustavo dentro da delegacia. A delegada a repreendeu por isto e ela disse: "Mas, doutora delegada, a senhora tem de entender que mulher também tem honra!" Era uma frase linda. Mas a delegada respondeu: "É, mas é em nome desta honra que muitos crimes são cometidos, e esta delegacia existe justamente para evitar que eles sejam cometidos. Não interessa em nome da honra de quem".


PLAYBOY — A existência de uma delegacia de mulheres pressupõe que a Justiça comum, formada basicamente por homens, não tem especialização para atendê-las?


LÚCIA — Não sei como a coisa funciona em relação às leis. O problema é que os crimes cometidos contra a mulher são muito violentos. Criar uma delegacia específica para este tipo de problema é uma maneira de a mulher ser menos discriminada do que vem sendo há milhares de anos. Mas é claro que não é tão simples. Num dos programas, a mulher foi lá porque o homem bateu nela. A mulher era a Darlene Glória, que, aliás, cisma em querer que a gente a chame de Irmã Helena. A gente fala Darlene e ela resmunga: "Eu me chamo Irmã Helena". Enfim, ela fazia esta personagem que entrava na delegacia e gemia: "Ele me bateu!" O homem, que era o Otávio Augusto, respondia: "Ela provoca!" No final do programa, os outros personagens também queriam bater nela, porque ela provocava mesmo [risos]. Muitas vezes o que acontece é até contra o homem. Mas a delegacia trata desses casos e também das mulheres que são espancadas injustamente. Não é uma atitude feminista. De maneira alguma a gente quer colocar o homem numa posição inferior ou superior, é tudo igual. Só que a gente retrata o que acontece lá dentro. É uma maneira de mostrar que a mulher também tem vez. Já que ela desacredita na forma de lei normal, foi criada uma delegacia de mulheres para que elas tenham maior credibilidade. É uma forma de a lei ser tratada corretamente.


PLAYBOY — Bem, já que a lei normal não serve para todos, não seria então o caso de se criar também uma delegacia de homossexuais, outra de negros, outra de deficientes físicos e assim por diante, pegando as minorias?


LÚCIA — Não se trata de minoria ou maioria. Na Delegacia de Mulheres nós também abordamos o problema do racismo, só que contra a mulher.


PLAYBOY — O que você acha de homem que bate em mulher?


LÚCIA — Eu não aceito pessoas que batem em pessoas. Não interessa se é um homem que bate em mulher ou vice-versa, se é um homem que bate em outro homem ou uma mulher que bate em outra mulher. Não gosto de violência de nenhum tipo. Não suporto que se bata em animais. Eu não mato nem formiga!


PLAYBOY — Nem barata?


LÚCIA — Sou capaz de matar, se tiver muita gente na sala que não gosta de barata. Mas prefiro espantar, mandar embora.


PLAYBOY — Apesar de toda esta postura antiviolência, você aprendeu luta. Isto não seria uma tolerância a conviver com a violência?


LÚCIA — Aprendi luta marcial, que é um esporte. Eu não saio brigando, nem bato em ninguém. Prefiro discutir. Às vezes nem me defendo.


PLAYBOY — Você pertence àquela maioria dos que já foram assaltados pelo menos uma vez?


LÚCIA — Já, e com um 38 encostado na cabeça, com o cão armado. Tenho noção de armas, fiz cursos e sei o que isto significa. As técnicas de desarme não funcionam com o cão armado, porque a arma está praticamente disparada. Dispara com um sopro, sem que você precise encostar a mão no gatilho. O sujeito puxou a arma e apontou primeiro contra o meu peito. Como ele era muito bonito e eu estava despreparada, pensei que fosse uma brincadeira. Até falei para ele: "Gato, pára com isso". Ele disse: "Estou falando sério. Isto é um assalto" — e puxou o cão da arma e encostou na minha cabeça. Nessa hora eu falei: "Por favor, tenha calma. Toda a calma do mundo. Vou fazer tudo que você mandar, mas, por favor, com calma". E ele: "Eu não estou nervoso. Você é que está". Fiquei absolutamente imóvel e falei muito com ele, para ver se conseguia ganhar tempo. Ele queria que eu fosse junto e eu o persuadi a me deixar. Gostaria de saber aonde foram parar as coisas que ele me levou.


PLAYBOY — Voltando à história de bater em mulher, o grande diretor, sueco Ingmar Bergman, famoso por sua sensibilidade diante das mulheres, surrava regularmente a Liv Ullman, então casada com ele.


LÚCIA — Eu sei, eu li o livro dela. Eu não esperava isto dele.


PLAYBOY — Você já apanhou de algum homem?


LÚCIA — Do meu pai, quando era pequena. Eu aprontava muito. [Risos.]


PLAYBOY — E de mulher?


LÚCIA — Só da Elza Ayer. [Risos.]


PLAYBOY — Uma mulher que apanha de outra deveria sempre se queixar na delegacia?


LÚCIA — Qualquer pessoa que apanha devia se queixar na delegacia. Isto é artigo 129: agressão física.


PLAYBOY — Assim como se diz que uma relação de amor entre duas mulheres é mais "suave" do que uma entre homem e mulher, uma relação de ódio entre essas duas mulheres também poderia ser mais "suave"?


LÚCIA — Não sei. Nunca vivi esta violência, não a conheço e nem pretendo.


PLAYBOY— A violência pode não ser só física, mas psicológica. Como as mulheres são fisicamente mais frágeis, as relações de violência entre elas não deveriam cair mais neste caso da violência psicológica?


LÚCIA — Por que vocês acham que eu tenho tanta experiência com violência?


PLAYBOY — Não achamos. Apenas você está trabalhando num seriado de televisão que trata desses assuntos.


LÚCIA — Mas até agora não apareceu nenhum assunto desses.


PLAYBOY — Um dos primeiros episódios de Delegacia de Mulheres envolveu um travesti como vítima. Um travesti que foi agredido por um homem deve se queixar na delegacia de mulheres?


LÚCIA — Não sei se deve ou não, mas acho que não atendem. Ele não é mulher.


PLAYBOY — Nem a Roberta Close, depois da operação?


LÚCIA — Eu não saberia como tratar desse caso. Só sei que jamais faria uma operação que me mutilasse. Acho isso muito louco, principalmente porque, segundo tudo que li a respeito, quem faz uma operação assim não tem mais prazer. Acho inadmissível uma pessoa que corta uma parte de seu corpo sabendo que nunca mais vai gozar. O fato de a Roberta Close ter se operado não a torna uma mulher. Ela tem ovário, tem útero? A cabeça pode se achar mulher, mas o corpo não, porque o que diferencia o homem da mulher é justamente a coisa interna toda. Vou sugerir à Maria Carmen Barbosa que escreva um episódio do Delegacia para a Roberta Close.


PLAYBOY — Ao mesmo tempo, se ela entrasse numa delegacia de homens para dar queixa de que foi espancada, provavelmente sofreria uma série de grosserias, não?


LÚCIA — Não sei, não. A Roberta Close é adorada pelos homens. Na época em que ela foi escolhida a "Mulher do Ano", vieram me perguntar o que eu achava. "Esse é um título que poderia ser seu e, no entanto, é um homem que o está ganhando", diziam. Respondi que achava fantástico, absolutamente fantástico — para se ver até que ponto ia o machismo do homem brasileiro. Naquela época, andei meio quarteirão na rua com a Roberta Close, em Botafogo. Tínhamos nos encontrado num lugar e saímos juntas. Foi impressionante como os homens ficavam siderados por ela. Não era nada agressivo, era até muito delicado. Ela estava de camiseta preta, calça jeans, sem maquiagem e muito bonita. Eles queriam conquistar aquela "mulher". Naquele momento, eles tinham acabado de se eximir da culpa de querer transar com um homem e fazer com ele tudo que se faz com uma mulher — só porque ele tinha cara de mulher, peito de mulher, jeito de mulher. Não interessava se, na parte de baixo, não fosse mulher. Enfim, nada melhor para acontecer, num país machista como o Brasil, que o símbolo sexual dos seus homens fosse um travesti.


PLAYBOY — Bem, agora ela resolveu o problema.


LÚCIA — Mas criou um problema para os homens! [Risos.]


PLAYBOY — Voltando à Delegacia: recentemente, as feministas americanas denunciaram os índios ianomâmis por espancar regularmente as suas mulheres e praticar infanticídio feminino. Qual delegacia deveria tratar desse caso: a das mulheres ou uma hipotética, dos índios?


LÚCIA — Eu não sabia dessa coisa dos ianomâmis. Que coisa feia! Acho que vou chamar a Lucélia Santos para a gente ir lá ter uma conversa com eles. [Risos.] Agora, sem brincadeira, a gente tem que saber direito como é a cultura deles.


PLAYBOY — Talvez as mulheres ianomâmis tenham prazer em apanhar.


LÚCIA — Que forma esquisita de prazer! Mas esta coisa de a mulher ser colocada em posição inferior é comum até nos países mais modernos. No Japão, por exemplo: uma mulher grávida, sentada no metrô ou ônibus, tem de se levantar para dar lugar a um homem. Uma mulher não anda ao lado de um homem, mas três passos atrás. É ela quem carrega as malas, é ela quem abre as portas. Ninguém me contou essas histórias — eu vi, em Tóquio. E já vi isso acontecer até entre casais de japoneses em São Paulo! Para se ver como a penetração da tecnologia nem sempre afeta a cultura.


PLAYBOY — Na polícia, tradicionalmente, as mulheres servem como iscas ou informantes. É raro ver uma policial subir o morro para capturar bandidos. A Marineide vai fazer isto um dia?


LÚCIA — Vai. Vai subir o morro e meter um cara. É meter, e não prender, na gíria dos policiais. A Marineide era da Homicídios, mas teve um caso com um policial da Entorpecentes e precisou ser afastada "a bem do serviço". Foi para a Delegacia de Mulheres e é por isto que ela destoa tanto das outras, com aquela postura pesada, meio de homem. É óbvio que ela ainda tem toda a estrutura de uma policial da Homicídios, porque ela subia morro, metia os caras, atirava, dava porrada etc. E na Mulheres ela vai voltar a fazer isto.


PLAYBOY — O que é esta experiência para você, depois de uma série de papéis supersensuais em novelas como Mandala, Roda de Fogo e O Salvador da Pátria?


LÚCIA — Eu queria fazer uma coisa diferente de tudo que já tinha feito na vida. Era fascinante e me apaixonei pela personagem. A Marineide é muito boa, é justa, correta, honesta. Isso não era comum nos meus outros personagens. Pô, a Bárbara do Salvador da Pátria era presidenta, digamos assim, de um cartel! Juntamente com a Laís da Roda de Fogo, a Marineide é a personagem que eu mais gostei de fazer em televisão.


PLAYBOY — Uma vez você teria declarado que perdeu bons papéis na televisão por ter revelado a sua preferência homossexual. Um dos diretores que a discriminaram por isto teria sido...


LÚCIA — Eu nunca falei em entrevista nenhuma que tinha "preferências homossexuais". O que eu disse, e é bom que fique bem claro, é que sempre fui uma pessoa educada em minha casa a fazer qualquer coisa que tivesse prazer em fazer. Seja o que fosse. O amor é uma forma de prazer e, a mim, não importa que esse amor venha de A, B ou C, de cor X, Y ou Z. O que me interessa é que eu ame e sinta prazer enquanto estiver com aquela pessoa. A partir do momento em que aquela pessoa não estiver mais me dando prazer, vou trocar de pessoa. Eu tenho preferência é pelo amor.


PLAYBOY — Sua explicação é simples, mas não será um pouco sofisticada para a cabeça do telespectador?


LÚCIA — Será, porque as pessoas são caretas e pensam de acordo com o que são forçadas a pensar. Sou uma pessoa que não agrido de forma nenhuma a vida na comunidade. Convivo bem com a sociedade, mas, para mim, as coisas são diferentes. E essa diferença na minha cabeça que me permite eliminar o ranço tão comum das pessoas caretas. A caretice chega ao ponto em que uma pessoa precisa se mutilar para poder ser vista de maneira diferente.


PLAYBOY — A prova de que a sua formulação é sofisticada demais é a de que um diretor como Herval Rossano achou que, depois da sua suposta declaração, você não poderia mais fazer certos tipos de papel, não?


LÚCIA — E adiantou ele achar?


PLAYBOY — Mas isso não a atrapalhou?


LÚCIA — Fiquei com pena dele, que deve ter uma memória muito fraca [risos]. A mim não atrapalhou nada. Tenho certeza do que faço, e faço com toda a dignidade e nobreza. Não devo nada a ninguém e não sou nem um pouco diferente de ninguém. A única diferença é que não vivo como as outras pessoas acham que eu deveria viver. Através do meu trabalho, eu provo que posso fazer o que bem entendo.


PLAYBOY — Mas, no caso de uma atriz, o público continua aceitando-a em papéis sensuais, mesmo depois que ela torna pública certas atitudes?


LÚCIA — Vocês estão falando de uma maneira que parece que eu sou doente [risos]! Acontece que eu tenho coragem de falar o que ninguém mais diz. Conheço milhares de pessoas que, como eu, têm esse desprendimento de se apaixonar por quem bem entendem.


PLAYBOY — Talvez não tenham coragem de falar porque temem a reação do público...


LÚCIA — O que é uma bobagem. As pessoas que exercem funções públicas, com acesso à mídia, deveriam colocar as coisas que acham corretas, para educar as outras, para que todas tenham uma vida melhor. Eu, por exemplo, posso dar a vocês uma visão diferente de teosofia, de Deus e de n outras coisas.


PLAYBOY — Que visão diferente você nos daria de Deus, por exemplo? Você é muito mística?


LÚCIA — Sou. Eu não acredito no Deus das religiões católica e protestante. Acredito num Deus muito superior a tudo isto — o que, aliás, vem ao encontro do que nós estávamos falando [sobre sexo]. No momento em que você compreende o que é Deus, o que é essa força maior, você começa a entender que nada é pecado, desde que esteja ciente do que é certo para você e para quem estiver envolvido com você. A religião é que torna essa coisa culposa. Por exemplo: só se deve ter relações sexuais após o casamento, e para procriação. Para procriação o catso, é bom pra cacete! [Risos]. É muito bom namorar e ter prazer, não importa com quem, desde que você ame. O importante é essa viagem cósmica, essa interação com tudo. São aqueles pouquíssimos segundos, em que se pode ter a compreensão de um Ser maior. Gozar é uma coisa superimportante. Não importa a maneira com que você venha a gozar, contanto que goze. É o que estraga, por exemplo, a educação que a sociedade dá aos homens. A sociedade diz a eles que o único prazer da mulher está no membro deles. Ora, este é um dos prazeres da mulher. Quando isto falha, eles não sabem o que fazer. Essa educação não lhes permite relaxar. Se relaxassem, dariam prazer a uma mulher a noite inteira.


PLAYBOY — Você é uma mulher contemporânea e inteligente em relação a esse, digamos, problema. A média das mulheres teria essa paciência e tolerância?


LÚCIA — Talvez não, mas eu falo essas coisas justamente para que homens e mulheres se eduquem. Porque, se pelo menos 10% de todo mundo gozasse, não teríamos dois terços dos problemas!


PLAYBOY — E por que não gozam?


LÚCIA — Porque são presos. Porque, desde que se entendem por gente, são doutrinados a achar que só é bom daquela maneira. "Só vai ser bom para a mulher depois do casamento com aquele homem que será o homem dela pelo resto da vida, porque o casamento é indissolúvel." Ora, nada é indissolúvel, e o casamento tem a propriedade impressionante de destruir o amor! Então, por que tem que casar? Para que obrigar duas pessoas a ser infelizes juntas? Uma mulher pode ser feliz nunca se casando na vida.


PLAYBOY — Mas você própria já se casou pelo menos duas vezes, não?


LÚCIA — Sim, e os meus relacionamentos nunca terminam. O Marcos Paulo, por exemplo, que foi o meu segundo marido. A gente se separou há uns dez anos, mas vira e mexe namoramos de novo. Sempre que ele está sozinho e eu também, a gente namora um pouco. E agora, pela primeira vez, estamos trabalhando juntos, no Delegacia de Mulheres, e os personagens namoram. Com o meu primeiro marido [o empresário Ivan Portela], a gente só se separou porque ele comprou uma fazenda na Bahia, queria morar nela e eu não. Agora, que eu até estaria a fim, ele vendeu a fazenda [risos]. Todas as pessoas que eu amei muito, eu vou amar e ter tesão pelo resto da vida.


PLAYBOY — Pelo que sabemos, os seus relacionamentos costumam ser longos.


LÚCIA — Quando eu caso, sim. Mas estou separada há dois anos e meio, e decidi que não pretendo mais me casar. E, se vier a me casar de novo, será em casas separadas. Acho muito difícil voltar a viver com uma pessoa. E, quanto à minha vida sexual, ela anda meio escassa atualmente.


PLAYBOY — Algumas mulheres costumam dizer que só uma mulher pode dar prazer à outra, porque tem o corpo igual. Os homens não têm razão de se ressentir desse discurso?


LÚCIA — Eu não concordo com ele. Eu, particularmente, não acho que a mulher seja melhor ou pior que o homem. A química é que tem de dar certo entre as duas pessoas. Eu só faço, só transo, no momento em que aquela febre, aquele beijo, aquele cheiro — cheiro é uma coisa muito importante — produzem uma química com o meu. Aí a transa dá certo. Respondi à pergunta?


PLAYBOY — Não.


LÚCIA — Eu não posso falar de uma coisa tão íntima em termos gerais. Transar é uma viagem dupla, em que, se a pele e o cheiro combinarem, tudo mais é lucro. Na primeira vez em que se encontra uma pessoa, ela nunca vai conhecer o seu corpo. Só a intimidade permite uma boa transa — depois que as duas pessoas vão se abrindo e colocando as suas fantasias. Estou falando de fantasias e taras normais, claro — nada de porcaria, sangue ou sadomasoquismos. O homem é um tarado pego em flagrante. Quando digo homem, digo ser humano.


PLAYBOY — O que são taras normais?


LÚCIA — Tarinhas, fantasias, viagens eróticas. Vão me dizer que vocês não sabem? [Risos.]


PLAYBOY — É possível que a mulher que prefira outra é porque nunca encontrou os homens certos?


LÚCIA — Isto é uma grande bobagem. Graças a Deus, encontrei os homens certos no meu caminho. Eles sempre foram muito competentes. [Risos.]


PLAYBOY — Há vinte anos circula pela praça uma ladainha feminista dizendo que os homens não têm emoções, são grosseiros, transam mal e não conseguem nem encontrar um clitóris. O que você acha?


LÚCIA — Acho um absurdo. Mas é nesse nível mesmo? Eu nunca tive um desses, graças a Deus. [Risos.] Bem, se eu sou contra o machismo, coerentemente sou também contra o feminismo. Adoro que um homem puxe a minha cadeira e abra a porta do meu carro, como adoro também fazer isto. Eu mando flores para homens — orquídeas, que são as que mais gosto de receber. Acho até que mando mais flores do que recebo!


PLAYBOY — Mesmo que não fosse uma estrela e empresária, você provavelmente seria o padrão da mulher forte, decidida e independente. Que espécie de homem consegue mexer com as suas emoções?


LÚCIA — Homens parecidos comigo, também fortes e independentes.


PLAYBOY — Um homem assim não despertaria em você um sentimento de competição?


LÚCIA — Não. Seria estimulante. Ele teria que ser muito inteligente, culto e não poderia ser careta de forma alguma. Não suporto conviver com a caretice. Tenho um grande amigo há anos, que eu adoro, mas que, de vez em quando, diz umas coisas que me fazem ficar meses sem falar com ele.


PLAYBOY — O que, por exemplo?


LÚCIA — Num episódio do Delegacia de Mulheres havia um travesti que seria feito pelo Lima Duarte. Comentei: "Pó, que genial, o Lima fazer um travesti". E esse meu amigo: "Eu acho ridículo. O que o público dele vai pensar?" Depois dessa, eu fui embora. Um ator pode fazer qualquer papel, de travesti, de homossexual, do que for.


PLAYBOY — Principalmente porque o público sabe que Lima Duarte não é homossexual.


LÚCIA — Mas mesmo que fosse! Uma coisa é o personagem, outra coisa é a pessoa. Mania que esse pessoal tem de rotular! Eu não gosto das coisas rotuladas. Não gosto de mulheres que só transam com mulheres ou homens que só transam com homens. Já conheci homens que nunca transaram com uma mulher. Como podem saber que não gostam de mulheres, se nunca experimentaram? Eu sou a favor da experiência: você pode nascer homem e gostar de mulheres e gostar também de homens: com a mulher, a mesma coisa. O que é ser homossexual? Se é uma coisa radical, estou fora. Se ser homossexual é só ter sexo com pessoas do seu próprio sexo, não aceito e não acho legal. Eu sou a favor do sexo, independentemente da forma com que seja feito. Tem de ser como as crianças: elas são livres, abertas, fazem carinhos nos amiguinhos e amiguinhas da mesma forma — sem a coisa imunda que a sociedade coloca.


PLAYBOY — As crianças, então, são bissexuais latentes?


LÚCIA — Acho que sim. Acho que todos nós nascemos bissexuais. Na verdade, nascemos bichos sexuais, e cada um vai para onde a sua sexualidade o leva.


PLAYBOY — Você pensa em ter filhos?


LÚCIA — Penso. Mas antes, para mim, tem uma coisa muito importante: a escolha do homem que vai dividir essa responsabilidade comigo. Não é o homem que vai morar comigo. É o que vai ser o pai do meu filho. Nesse ponto eu sou meio caretinha: acho que filho tem que ter o pai e a mãe. Já engravidei, já perdi e já fiz aborto, mas não tive um filho até hoje por isto: porque nunca encontrei um homem que dividisse.


PLAYBOY — O fato de ainda não ter encontrado este homem significa que há falta de homens na praça?


LÚCIA — Não, eu é que sou muito exigente. Quando alguém me propõe casamento, eu digo: "Você está fazendo o pior negócio da sua vida, porque eu sou chata para caramba". Sou muito metódica. O meu closet é todo arrumado em ton-sur-ton, em dégradé: vai do preto ao branco. Se a pessoa tirar uma camisa do lugar, faço um escândalo.


PLAYBOY — Uma relação homossexual pode ser frustrante, pelo fato de a pessoa não poder procriar?


LÚCIA — Mas você pode procriar com outra pessoa, numa relação separada! Fazendo um triângulo, por que não? É uma questão de abrir a cabeça.


PLAYBOY — Mais ou menos como em Manhattan, do Woody Allen? O pai em questão pode não gostar da idéia.


LÚCIA — O homem nunca vai entender o que é o processo da procriação. Esta é a vantagem da mulher sobre o homem: ela pode gerar outro ser dentro de si. Outro dia eu estava conversando sobre isso com o Erasmo Carlos. Estava lhe contando sobre os cavalos-marinhos. Eles transam, a fêmea joga os filhotes fecundados dentro do macho, e é o macho que gera os filhotes. Aí o Erasmo me disse: "É tudo que eu queria ser na vida!" Ou seja, o Erasmo Carlos queria ter um filho ele mesmo! Então, com tudo isto, eu vou ficar me preocupando com lado homo ou heterossexual? Eu sou apenas sexual.


POR RUY CASTRO

FOTOS SAMUEL IAVELBERG


1.119 visualizações1 comentário

1 Comment


Ademar Amâncio
Ademar Amâncio
Aug 19, 2023

A entrevista estava indo muito bem,até que ela estragou dizendo,''como um homem pode dizer que não gosta de mulhher se nunca experimentou'',me poupe né,Lúcia Veríssimo,eu acho mulher e homem tão diferente que me choca alguém dizer que não faz diferença,tanto faz - Apesar que eu sou espírita e acredito em reencarnação,voce deve ter sido homem e mulher em outras vidas,eu tenho certeza que nunca fui homem no passado.Fui.

Like
bottom of page