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MADONNA

Perfil



O FURACÃO DO SEXO

Bem-vindo ao mundo do feminismo sirigaita , onde o esperto pornô-com-suíta de Madonna rende uma montanha de dinheiro


Por MICHAEL KELLY


Por exemplo, Madonna. E que exemplo! Madonna Louise Ciccone ganhou mais de 100 milhões de dólares nos últimos quatro anos, vendendo o extraordinário produto de si mesma. E, sem dúvida, vai ganhar outros tantos ou mais nos próximos quatro. Ela canta, dança e representa. Canta mal e às vezes apenas dubla; sua dança é energética, mas pouco inspirada; e, como atriz, é atraente, mas amadora. É uma criatura flagrantemente artificial que, de quatro em quatro anos, se recicla para atingir um efeito calculado, como um deputado concorrendo à reeleição. É despudoramente ambiciosa, manipulativa e exploradora. Suas expressões faciais cobrem o leque que vai de "Foda-se" a "Foda-me". É famosa por ter usado suas garras para fazer alpinismo profissional nos corpos de outros seres mais fracos e ternos, quase todos homens. (Em Nova York, onde ainda estava despontando para a fama no começo dos anos 80, seu apelido era "McDonna — mais de 1 bilhão de fregueses atendidos".) Madonna é oca, óbvia e vulgar.


Há alguns meses ela podia ser vista num palco gigante, cercada por figuras de homens nus e carecas, de quatro andares de altura, com a mão espalmada entre as pernas e cantando sobre os prazeres de ser espancada. E parecia muito natural que fosse delirantemente aplaudida por 75.000 pessoas, para quem ela representa a sabedoria de nossa época. Muito justo. Tão justo quanto seu sutiã exposto. O último fin-de-siècle foi simbolizado por Debussy. A chegada do terceiro milênio pertence, Deus nos perdoe, a Madonna. E por que não? Ele reflete à perfeição tudo o que nos cerca.



O estádio de Wembley, uma frigideira de concreto acachapada no meio de um subúrbio de Londres, é tão feio quanto a maioria das construções do século XX, e ponha feio nisso. Ali dentro, as mulheres e garotas que compõem 2/3 da multidão estão excitadas. O gramado, coberto por uma lona preta e suja, é uma congregação de madonettes, todas prestando homenagem a uma ou outra das versões da estrela através de sua escolha de roupas. Algumas são bonecas infláveis — o estilo Madonna no começo dos anos 80 — com seus jeans rasgados, coletes curtinhos e uma maquiagem propositadamente exagerada. Outras representam a paródia mais sofisticada, a Madonna que parece, ao mesmo tempo, sexualmente provocante e repelente. com os bustiers pretos e os sutiãs à mostra, combinando com as calças de lycra, as blusas de raiom barato e os sapatos horrorosos. Algumas estão cobertas de terços e crucifixos, numa imitação de Madonna quando esta se faz de blasfema.


NINGUÉM FEZ ISSO ANTES


No alto do palco gigante, Madonna se aproxima do final de seu elaborado e ensaiadíssimo show de 1 hora e 45 minutos em Londres, o apogeu da Ambição Loura, sua excursão mundial de 1990. O show mostrou-a em todas as suas faces — puta, vamp, malvada, menina perdida, mulher abandonada. Mas o grande tema que corre solto no espetáculo é o sexo. É o auge do show quando Madonna finge esbofetear, acariciar e beijar as garotas dos backing vocals; segura o gancho das calças e agarra culhões imaginários meia-dúzia de vezes; finge trepar com um negro fantasiado de escravo, montando nele com as pernas bem abertas e gemendo a cada "penetração"; finge sodomizar outro homem seminu; pula numa cama de veludo vermelho-bordel e respira afobada sob um efeito de luzes estroboscópicas, numa paródia de masturbação ninfomaníaca; cavalga uma espécie de altar, vestida de freira e agarrando sugestivamente um crucifixo; e empina sua bunda no ar para uma pretensa sova.


O show, preparado nos mínimos detalhes, dá espaço para algumas falas curtas de Madonna. O discurso mais importante é uma celebração da palavra foda, que sai de seus lindos lábios em forma de beicinho com um leve sotaque caipira: "Foda não é palavrão! Foda é uma palavra bonita! Foda é o motivo de eu estar aqui! Foda é o motivo de vocês estarem aqui. Se seu pai e sua mãe não fodessem, vocês não estariam aqui nesta noite... Portanto, fodam-se!"


Será que sou o único no estádio que observa tudo isso com assombro? E com a sensação de que demos mais um passo de anão na estranha evolução deste século? Aparentemente sim. Todos os outros dançam alegremente ao som daquele ritmo. Na fila atrás de mim, um garotinho de jeans e camisa Lacoste dança exuberantemente com sua mãe, ela o abraçando com firmeza por trás, os dois se sacudindo numa feliz união. Ao lado deles, a irmãzinha adolescente do garoto dança com sua tia. É uma bonita cena de uma família unida.


Dizem que tudo que ela faz é só para chocar. Não é verdade, porque ninguém se choca. O público, ao vê-la, sente prazer, não sente revolta alguma

Para alguns, Madonna só faz isso para chocar. Não pode ser verdade — porque ninguém mais se choca. Claramente, naquele estádio de Wembley ninguém está chocado. As pessoas ali estão sentindo prazer, não revolta. Estão envoltas num frisson de desejo, emoção ingênua, aceleração do pulso e um calorzinho no lombo. Só isso. Há 25 anos, quando Madonna ainda fazia xixi nas calcinhas, em sua cidade no Michigan, adolescentes ingleses e americanos estavam queimando e quebrando discos dos Beatles porque John Lennon havia inocentemente declarado que, para muitos de seus jovens fãs, os Beatles eram mais populares do que Jesus Cristo. Hoje Madonna adentra o palco com vestes religiosas para cantar as delícias de transar, masturbar-se, espancar e sodomizar, e ninguém parece ligar, exceto o cada vez menos importante Vaticano e alguns pasquins ingleses cujo negócio é se indignar com toda espécie de vulgaridade exceto a deles. O resto do mundo apenas dança. Nos últimos anos do segundo milênio, isso é só diversão.


Mais importante do que Madonna está fazendo no palco é que ela está fazendo aquilo tudo com plena participação e prazer da multidão à sua frente. Nesse sentido, Madonna faz o que ninguém fez antes. Dentro do contexto da música, está se apresentando como uma figura de fantasia pornô-com-suíta, só que não num cenário privado e adulto, que costuma ser o cenário para esse tipo de material. Está fazendo aquilo numa arena pública, para as massas. E — mais importante ainda — não está fazendo aquilo para agradar nenhum homem. É um show consciente de desafio aos machos, pelas e para as mulheres.


Nos primeiros tempos de sua carreira, as feministas censuravam o óbvio jogo sexual de Madonna como um retorno da exploração sexual da mulher. Estavam enganadas. Madonna, sem dúvida, rejeitava o pudor retardado das paleofeministas, mas não fazia isso para se oferecer como um símbolo da submissão sexual aos homens. Como ela mesma disse, nunca foi a boneca inflável de ninguém. O que Madonna exemplifica e advoga — porque o que ela exerce é uma arte política — não é o controle sexual dos homens sobre as mulheres, mas o das mulheres sobre os homens. Seu show, suas canções e seus vídeos carregam uma mensagem clara e arrebatadora: os homens só querem uma coisa e as mulheres deveriam, impiedosamente, explorar esse querer. Fazê-los implorar e sofrer.


Não é muito sutil. Os homens nos shows de Madonna é que são os bonecos infláveis. Vestidos com roupas que simbolizam as fantasias sexuais femininas (escravos, prisioneiros, halterofilistas, padres, Warren Beatty), eles se submetem à vontade explícita sexual e violenta de Madonna nas danças e canções, para serem esbofeteados e descartados ao final de cada número. As próprias roupas de Madonna são uma elaborada gozação da idéia masculina de como as mulheres deveriam se vestir para atrair os homens. Sua valorização da lingerie é apenas uma paródia, uma amplificação e uma distorção dos acessórios ornamentais da sensualidade feminina, comparáveis à grotesqueria feliniana: ligas sobre as calças, sutiãs com pontas que lembram foguetes, uma jaqueta de ciclista usada sobre um espartilho. Os gestos de Madonna foram bolados para, simultaneamente, atrair e afastar o desejo masculino, explorar o apelo sexual que ela desperta e zombar dele.


JOGO DE FANTASIAS FEMININAS


Tudo é supercalculado, nos mais ínfimos detalhes. O ápice de cada show é quando Madonna agarra seus próprios "culhões", numa eloqüente zombaria visual do orgulho fálico masculino. Pode-se pensar que esse é um daqueles gestos que qualquer artista com alguma experiência teria apenas de praticar algumas vezes diante do espelho, até que ele saísse perfeito. Não com Madonna. Ela contratou um consultor para chegar a ele. Foi treinada por Vince Paterson, um coreógrafo de 40 anos que trabalhou com o primeiro a agarrar culhões em cena, Michael Jackson. Paterson recorda uma conversa com Madonna que talvez um dia passe para a história:


"É você que fez Michael Jackson agarrar os culhões [no vídeo Bad]?" , ela perguntou.


"Não", disse Paterson, "ele já agarrava os culhões antes que eu fosse trabalhar no vídeo."


"Acho que seria legal eu fazer aquilo", disse Madonna.


"Também acho", respondeu Paterson, "porque você tem mais culhões do que a maioria dos homens que conheço."


E assim caminha a grande arte.


As mulheres mais jovens que adoram e copiam Madonna entendem aonde ela quer chegar. Ela é a proponente e símbolo de uma filosofia pop híbrida, que combina o velho uso do sexo como uma arma com o novo ressentimento feminista anti-homem. É uma filosofiazinha espalhafatosa e barata, nascida da revolta, do cinismo e do tédio, perfeita para o nosso tempo: o feminismo sirigaita.


"Ela não vende o corpo dela, mas é a mesma coisa, e eu acho o máximo", diz Lynne Hollier, 25 anos, secretária em Londres. "Eu a admiro porque ela usa os rapazes e não nega. Já era tempo que alguém fizesse isso. Tempo que alguma mulher lutasse pelos nossos direitos."


"Odeio Madonna, mas adoro odiá-la", diz Linda Robinson, 24 anos, uma advogada irlandesa cuja ambivalência a respeito da artista a intriga. "Ela é... sexual demais. Tenho absoluto ódio dela. Mas aí penso — poxa! —, sou advogada, presa numa das profissões mais caretas do mundo, e nunca poderia fazer aquilo. Como é que ela consegue? Mas acho que Madonna é positiva para as mulheres. O que ela está dizendo e fazendo é revolucionário. Ninguém leva as mulheres a sério e é como se ela dissesse: 'Sou mulher e posso fazer o que quiser, e estou pouco ligando para o que você pensa de mim'. Madonna está agitando sua sensualidade na cara da maior repressão do mundo, aqui na Inglaterra. E eu gosto disto."


Dawn, 18. anos, recepcionista em Brixton, diz: "O que eu mais gosto em Madonna é que é ela quem comanda. Faz o que quer, porque quer, e tem uma enorme influência sobre os homens. É respeitada pra burro. Ninguém pode chamá-la de piranha. Acho que tento imitar sua imagem, porque é uma imagem forte. Ter aquele poder, aquela sensação de controle sobre os homens, é o que eu gostaria de ter. Se você se sente realmente confiante, se sente bem e sexy, é incrível a diferença que isto faz. Você sempre vai se dar bem".


Dawn é pálida, sem sal e tem aquelas perninhas finas e fracas cujos ossos contam uma história de pobreza. Seu cabelo é ruivo e viscoso e seu rosto já parece usado e esgotado. Está usando hot pants vermelhas, botas pretas de couro-imitação e uma jaqueta transparente de couro, que parece ter sido costurada ao redor do seu corpo. No palco, Madonna estapeia uma meia-dúzia de sujeitos fortes no espaço de uma canção. Aqui em baixo, sobre a lona preta e imunda da vida real, Dawn senta-se com uma dupla de jecas que bebem cerveja e a ignoram — e, se você quer saber, também não acham Madonna grande coisa.


OS CANALHAS INTERESSANTES


O sonho de Dawn ao se ver como Madonna — tão forte em sua esperança quanto distante da realidade — sugere ainda outra razão para o triunfo de Madonna. Ela representa não apenas o triunfo sexual das mulheres sobre os homens, mas também a promessa de que tal triunfo está ao alcance de qualquer mulher. Isto, naturalmente, é uma mentira e um artifício, mas ela o apresenta como sendo possível. Os críticos observam o espalhafato de suas performances e enxergam apenas a porcaria que elas são. Não enxergam o principal — que a razão da arte de Madonna é esse artifício. Ela não é uma cantora ou dançarina, exceto incidentalmente. O que ela vende de fato é a si própria, em vários tableaux de bem e mal, vício e virtude. E é tão exagerada nesse artifício que só os críticos são incapazes de enxergá-lo.


No coração deste artifício está o exclusivo talento americano para a embalagem. Alguns estudiosos do fenômeno gostam de exagerar o próprio exagero de Madonna e dizer que, como o grande Jay Gatsby de F. Scott Fitzgerald, ela se inventou e freqüentemente reinventa a si própria. Isto pode ser um xodó dos nossos analistas pop, mas, mais uma vez, está errado: as permutações de Madonna são variações sobre um tema, não metamorfoses. Madonna, como muitos outros artistas, simplesmente recolhe e recicla de forma interminável o mesmo material, drenando-o de quantos poços tenha dentro de si.


Pelo que se depreende, os poços disponíveis para Madonna dificilmente são mais profundos do que um atoleiro e já foram drenados muitas vezes, mas isto não os torna menos reais. Seu estilo provém de sua própria vida, de sua infância no Michigan, da morte precoce da mãe, da traição de seu pai ao recasar-se, do conflito entre sua estrita educação católica e seus desejos sexuais e de uma enorme fome natural por atenção. Seu show, tanto no palco quanto fora dele, é uma longa dissertação adolescente sobre essas coisas banais. Ela não perdoa seu pai, nem as freiras e padres de sua igreja e nem os rapazes que só pensavam em transar e que, aliás, nem fazer isto direito sabiam. Ela gostaria, teoricamente, de ser amada por um bom sujeito, mas, até o momento, os bons sujeitos são uns chatos e os canalhas é que são interessantes, embora logo fiquem cansativos. Madonna alterna do desespero à rebelião e, desta, ao niilismo — sempre de forma intensa, mas não por muito tempo.


Tudo isto é muito banal, claro, razão pela qual tinha de ser assim. A profundidade é tão necessária para a cultura pop quanto a inteligência, ou seja, nem um pouco. Warhol sabia disto, e Madonna também sabe. É a sua figura oca e a obviedade com que se apresenta que tornam a sua arte tão acessível às pessoas que ela quer alcançar. A banalidade é a medida certa diante da vida moderna e, se os críticos não sabem disto, Madonna sabe — assim como todas as garotinhas adolescentes que estão furiosas com as injustiças de papai ou o comportamento embaraçoso de mamãe e com todos aqueles rapazes cretinos e desagradáveis.


A cada troca de visual, surge uma outra imagem. Nunca tão nova, porém, que não possa ser assimilada. Nem tão incrementada que não possa ser copiada

Esta é a chave. Uma verdadeira reinvenção de si mesma seria compreensível apenas para poucos, mas uma nova tintura de cabelo e uma mudança de roupa são facilmente perceptíveis para qualquer um. A cada troca de visual, Madonna oferece uma nova imagem mais incrementada, mas nunca tão nova que não possa ser assimilada nem tão incrementada que não possa ser copiada. A jovem Madonna que posou nua para às fotógrafos em 1979 e 1980 era bonita e sexy, mas estava longe de ser uma maravilha. Seu rosto ainda tinha um toque de gordura infantil e seu corpo continuava desajeitado. A Boneca Inflável de alguns anos depois tinha muito mais pose e postura, apesar de ainda rechonchuda — ou seja, não era tão inatingivelmente bonita que uma adolescente de subúrbio não pudesse se ver naqueles bustier e minissaia. Mas agora ela é a playgirl do mundo ocidental, engomada, vestida, estilizada e esculpida em algo maior do que a vida —e, curiosamente, ainda acessível.


Madonna emprega efeitos de desenho animado que quase não exigem imaginação ou habilidade para ser macaqueados. Suas roupas são extravagantes no conjunto, mas cada peça é absolutamente comum. Se você for uma garota a fim de parecer Madonna, poderá encontrar um espartilho e uma jaqueta de bicicleta em sua cidade. A maquiagem é agressiva, espalhafatosa e barata, e aquele cabelo louro todos sabem que veio de uma garrafa. Qualquer garota pode ter um. Pendure um crucifixo no pescoço, deixe o mundo ver o seu sutiã, passe a mandar os outros se foderem e, pronto, você também pode se tornar glamourosa e excitante — uma estrela. E, o que é incrível: uma mulher que faz com que os homens rastejem e os garotos suspirem, que dá as cartas, que quebra todas as regras sobre o que as garotas direitas devem fazer e sai ilesa — uma mulher no leme de um mundo cheio de homens rudes e ameaçadores. "Acho que as mulheres deveriam se parecer e agir como ela", diz a pobre Dawn "Se você se veste de um jeito que te faz gostar de você, os homens te olham mas não te incomodam. Se você não está bonita, eles vêm perturbar, porque sabem que estamos vulneráveis. Mas, se você está bonita, eles te respeitam. É por isso que acho que tenho que me maquiar tanto e me vestir do jeito que me visto."


"ELA MUDA SEMPRE. ADORO."


Quando as jovens madonnetes falam, pode-se sentir a isca e a promessa do milagre vibrando em suas vozes. Melanie Parson e Kelly Jeffries têm 12 anos de idade. Vestem-se como Madonna tanto quanto podem, o que não é muito. Investem três ou quatro horas por dia ouvindo os discos de Madonna e montando seus álbuns de recortes sobre ela. São garotas convencionais de classe média, que provavelmente se tornarão mulheres convencionais de classe média, e acharão isso ótimo. Mas, àquela noite, sob os céus enfumaçados de Wembley, observam a vaga-bunda platinada no palco inundado de luz e estão convencidas de que tudo é possível. Aplique um novo penteado, um borrão selvagem de batom, uma roupa atrevida — e surge uma nova mulher, ousada e maliciosa, capaz de refazer o mundo.


Por que você adora Madonna. Kelly?


"Porque ela muda. Ela muda o tempo todo."



ILUSTRAÇÃO OLIVIA DE BERARDINIS


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