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MARÍLIA PÊRA | SETEMBRO, 1987

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com Rafaela de Brega & Chique, que também é Dalva no teatro: uma mulher tão fascinante quanto os papéis que ela interpreta na telinha e nos palcos


Todo mundo tem direito a ser famoso durante 15 minutos na vida, disse o artista plástico americano Andy Warhol sem desconfiar que escrevia a biografia de uma atriz meio brega, meio chique aqui dos trópicos. Em 20 minutos no filme Pixote, Marília Pêra explodiu. Com toda a classe, desbancou Diane Keaton em Reds e Faye Dunaway em Mamãezinha Querida, e conquistou sozinha o primeiro prêmio da Associação Nacional dos Críticos de Cinema dos Estados Unidos. Agora, cinco anos depois, repetiu a façanha no Festival de Gramado: desta vez precisou de menos de 15 minutos em Anjos da Noite para ser eleita a melhor atriz brasileira (título que dividiu com Betty Faria). A vida tem provado que Warhol sabia das coisas, mas com Ms. Pêra não acertou na freqüência.


Este é o ano dos 15 minutos de Marília Pêra. Ou seja, ela é famosa de 15 em 15 minutos. Começa nos primeiros do dia gravando as externas da novela Brega & Chique onde vive o papel de Rafaela Alvaray, hilariante viúva pobre que às vezes não é viúva nem pobre — e vai até o final da noite carioca enquanto interpreta Dalva de Oliveira, ou dirige Marco Nanini e Ney Latorraca em O Mistério de Irma Vap.


Com a novela, escrita na medida para ela por Cassiano Gabas Mendes, Marília tornou nobre o horário das sete que, de acordo com os índices de audiência do lbope, vem sendo sintonizado por mais de 70% dos televisores cariocas e paulistas — batendo seu ex-par romântico de vídeo, Francisco Cuoco, na novela O Outro.


Com seus trinados e agudos em A Estrela Dalva conseguiu o maior sucesso dos últimos três anos no Teatro João Caetano, que desde o musical Evita não lotava seus 1.220 lugares todas as noites. Mais de 100 mil brasileiros já viram a incorporação desta carioca do Catumbi, Marília Pêra, na paulista de Rio Claro, Dalva de Oliveira, batizada Vicentina de Oliveira. E muitos outros se deliciam na primorosa, O Mistério de Irma Vap, onde a seguríssima direção de Marília permite a Latorraca e Nanini trocar de roupa e sair e entrar no palco num espaço de três segundos durante 56 vezes, interpretando quatro personagens cada — e numa dessas Nanini sozinho vive os dois ao mesmo tempo .


São três gerações de atrizes na mesma família — a avó, Antonia Marzullo, a mãe, Dinorah (ex-vedete de teatro de revista e atual mãe de Dalva na peça), até chegar a Marília e sua irmã Sandra, cantora e atriz. Como diz seu atual e quarto marido, o psicanalista Ricardo Przemyslaw, 39 anos: "Olho a Marília no palco e tenho a sensação de que ela vem se depurando há muito mais de três gerações".


Ele tem razão. O camareiro Ney Mandarino, 55 anos, que trabalhava com Henriette Morineau e assistiu à estréia de Marília nos palcos aos quatro anos em Medéia, tem a mesma sensação: "Ela canta, dança, sapateia, toca piano, violão e harpa, dirige... É hors concours".


Dos quatro aos atuais 44 anos de idade, Marília já fez de tudo um pouco e algo mais. Dançou em teatro rebolado da Praça Tiradentes, fez shows de Carlos Machado, foi bailarina em My Fair Lady — ansiando por uma substituição de Bibi Ferreira que nunca chegou —, trabalhou como atriz em dez filmes, dez novelas de televisão e duas dezenas de peças.


Foi professora recalcada, lady inglesa, ativista de esquerda, general barrigudo (quando grávida), aleijadinha, loura, morena, magricela, boazuda. Não é à toa que está escrevendo um livro sobre a arte de representar. Mas não pára por aí. Ano passado gravou uma ópera inédita de Noel Rosa, A Noiva do Condutor, que vendeu, na seletiva gravadora Eldorado, quase 20 mil discos.


Moça de sete instrumentos, show-woman completa, Marília produziu algumas peças, ganhou dinheiro, perdeu dinheiro, e foi em frente. Dirigiu a própria mãe em As Preciosas Ridículas, ousando encenar Molière na turbulenta Galeria Alasca de Copacabana para deliciar as platéias ("ela me ensinou muito sobre texto e pontuação", garante dona Dinorah). E continua exercitando todas as suas múltiplas personalidades e possibilidades, com um defeito: a exigência. "Ela não tolera ver nem uma ponta de cigarro na boca do palco", cochicha Ney Mandarino. "Nisso, é igualzinha ao pai, o ator Manoel Pêra."


Essa exigência já levou a diretora Marília a mandar para casa seu amigo, compadre e companheiro de palco há 20 anos Marco Nanini, junto com seu afilhado na Escola de Arte Dramática de São Paulo Ney Latorraca. Motivo: eles não haviam decorado o texto para um dos ensaios de Irma Vap. Ninguém se chateou por isso. Nanini insiste: "Marília é uma chapinha premiada". E Latorraca: "Encontrei a diretora ideal para meu temperamento exigente de ator".


Ao lado do perfeccionismo, Marília cultiva a generosidade. Quando uma bailarina, exausta, entrou em cena dormindo dentro do cenário da casa de Dalva, ela disfarçou para ninguém perceber, deu seu recado no palco e ainda levou um gole de café para a coleguinha. "Ela tira tudo de letra", garante Paulo César Grande, que é o amante de Dalva e o verdureiro Pedro que quer conquistar a filha de Rafaela, Tamyres.


Rafaela, por sua vez, tem seu mundinho particular de fãs. Os colegas da Globo acham que trabalhar com Marília agora, depois de sua ausência de 14 anos das novelas, foi "um presente". "Marília é uma aula de interpretação", diz Nívea Maria, 39 anos, amiga de Rafaela. "A maior atriz brasileira", dispara Tato Gabus Mendes, 34 anos — o Maurício, genro de Rafaela. "Minha ídala", gritam as duas Patrícias — a Pilar, 23 anos, e a Travassos, 35, Ana Cláudia e Mercedes da novela. "Desde a primeira leitura em conjunto senti que esse barco tinha um capitão", diz Tarcisinho — e esse capitão não era a mãe dele de verdade, Glória Menezes, também no elenco de Brega & Chique.


A cena, definitivamente, está para Marília. "Ela é a mais aparelhada das nossas atrizes", afirma outra dama sagrada da dramaturgia brasileira, Fernanda Montenegro. "Tenho medo de me sentar ao lado dela, medo do que ela pode fazer em cena", revelou a temida crítica de cinema da revista americana New Yorker, Pauline Kael, ao assistir a Pixote em Nova York. "É a nossa Ana Magnani", elogiou o diretor Paul Morrisey ao final do filme Mixed Blood, do qual Marília é estrela principal.


Qual o segredo? O segredo dessa Marília virar Carmem Miranda com tal perfeição que espantou a própria irmã, Aurora Miranda, em A Pequena Notável, e viver uma Dalva capaz de transtornar o ator e autor da peça, Renato Borghi, que, muito místico, ao vê-la no palco, jurou ser uma incorporação?


Marília, suave, tranqüila, voz mansa, entrega o ouro: "É fácil, é que eu não tento imitar ninguém, eu só roubo a alma".


Para roubar a alma de Marília, PLAYBOY destacou a repórter especial Norma Couri que passou três semanas descobrindo as três Marílias em cartaz no Rio de Janeiro. Foram quase dez horas de conversa com a titular, mais outras tantas com a Rafaela, a Dalva e a diretora de Irma Vap. Seria difícil se fosse outra atriz. Mas com Marília tudo corre solto: ela dirige muito bem as suas próprias cenas. A seguir, o relato de Norma:


"Cena 1. Marília chega da externa em São Cristóvão, onde Rafaela vive brega, e me prepara um almoço chique no apartamento alugado no Leblon. Muito chique. Com toalha bordada, pratos decorados, as paredes forradas de posters de suas peças e filmes como Anjos da Noite, em que faz um pas de deux igualzinho a Cyd Charisse com Fred Astaire em A Roda da Fortuna.


"As almofadas da casa foram pano de boca em Apareceu a Margarida, os sofás decoraram o cenário de Adorável Júlia, as cortinas de contas — confeccionadas por Marília — enfeitaram alguma peça, os anjos de pedra já tiveram função no teatro brasileiro. Espalhados pela casa inteira, cartões postais, fotografias, cartazes que são homenagem à Rita Hayworth, Carmem Miranda e à própria Marília, de cabelo chanel ou de franjinha, há 20 anos. Parece um imenso camarim.


"A voz é leve para não cansar as cordas vocais, mas Marília vai sempre fundo. Faz críticas sutilíssimas. Em assuntos delicados é como se vestisse seu casaco de vison e fosse à feira, tal qual Rafaela. Ela é mesmo goiabada e caviar.


"Dirige a cena da entrevista até as 19 horas quando Ricardo, o marido, chega, e os filhos — Ricardo, 25 anos, do primeiro casamento com o ator Paulo Graça, Esperança, 12, e Nina, 6, ambas filhas do jornalista, compositor e produtor Nelson Motta —, já estão em casa. Aí ela se senta na cama imensa adornada com as pernas de Marlene Dietrich em porcelana, em frente a mais de 100 pares de sapato — sua fixação —, para assistir à Rafaela. Morre de rir, como tona espectadora qualquer.


"Depois, ignorando a cena que gravou à tarde, de uma Rafaela enojada com as tarefas de forno e fogão, dirige-se à sua cozinha acompanhada de Ricardo para preparar o jantar: da faz o molho, ele, o macarrão. Como uma dona de casa comum.


"Cena 2. Marília acordou Marília, mas em meia hora virou Rafaela no cabeleireiro Adèla, onde sua pastinha na testa e suas longas unhas vermelhas são fabricadas. De lá, o motorista Genésio a conduz no Santana grafite 0 km aos estúdios da Globo, na Tijuca. Para amaciar a garganta consome uma bala. Halls de meia em meia hora, inclusive em cena, antes das falas.


"O clima é de bom humor, o diretor Jorginho Fernando deitando-se na cama ao lado de Marília e rindo muito de seus improvisos. Por exemplo, o anel extravagante por cima da luva de borracha. Cada gravação é melhor do que a anterior porque Marília jamais repete uma cena do mesmo jeito.


"Ela troca de roupa dez vezes, nas 22 cenas do dia. É um contínuo entra-e-sai do estúdio para a sala de maquiagem e de lá para o camarim — mas, aplicadíssima, Marília sempre acha tempo para rever as cenas no monitor instalado no meio do caminho. Novamente, morre de rir de Rafaela.


"A cada volta ao estúdio, a cozinha vira quintal, o quarto, banheiro, a carpintaria, um escritório debruçado sobre São Paulo ali na Tijuca mesmo, porque a TV é uma verdadeira fábrica hollywoodiana de ilusões. Mas, com Marília em cena, tudo parece de verdade. 'Solta a franga', grita Jorge Fernando apressando os takes. E Marília se transforma em Rafaela.


"Cena 3. Marília sai do estúdio, entra no carro com seu Genésio, que a conduz ao sanduíche natural mais próximo, corre para o teatro João Caetano e já não fala mais.


"Agora é só exercício vocal: uuuuuuus, aaaaaaas, ginástica diante do espelho para abrir os ombros, o esterno. Dá o tempo para a Dalva se incorporar e se entope de guaraná com vitamina e chá.


"No camarim, que exala a cânfora —uma de suas manias —, a regra é jamais pronunciar as palavras 'desgraça' e 'fracasso'. Ao contrário, alguns bilhetes de colegas pregados na parede desejam 'merda, muita merda'. É a praxe teatral do sucesso. Até pouco tempo ela dizia, como seu pai maçom lhe ensinou, a frase: 'Que o grande foco do Oriente me ilumine e guarde'.


"Há rosas vermelhas e crisântemos, cartões de Gal, Fafá, Marina, Caetano, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Zizi Possi, Claudia Raia, retratos até de Charles Chaplin ou dela própria enquanto Dalva. Mas não há nada que lembre a própria Dalva.


"É que as coisas não iam bem com os retratos de Dalva por ali onde, na década de 50, na própria marquise do teatro, ela cantou para uma multidão na praça Tiradentes. No teatro João Cadano, onde Dalva acabou tendo seu corpo velado, Marília perdeu a voz inúmeras vezes, o teto do teatro caiu justo sobre o seu camarim no dia da estréia, há cinco meses, e outra vez, ao cantar Ave Maria, Marília teve de enfrentar chuva no palco. 'Então mandei tirar tudo, era uma uruca, eu dizia que minha voz ia falhar e falhou mesmo. Com a Dalva não brinco mais', afirma.


"Talvez por isso Marco Nanini e Ney Latorraca tenham se prevenido: cada um pendurou uma réstia de alho em seu camarim no teatro Casa Grande, onde encenam O Mistério de Irma Vap. Nunca se sabe para que lado voa o fantasma do teatro, mas, se depender de Marília Pêra, sua diretora, até ao assustar os atores ele será disciplinado, exigentíssimo, gentil, classudérrimo. Chique como a Rafaela da novela."


PLAYBOY — Bruno Barreto diz que o segredo de Sônia Braga é ser gostosa e coxuda. Qual o seu segredo?


MARÍLIA PÊRA [Risos] — Como não sou nem gostosa, nem coxuda, nem bonita, não tive outro jeito senão apostar na competência.


PLAYBOY — Foi difícil vencer sem a beleza?


MARÍLIA — Eu me defendia. Na adolescência, por exemplo, aprendi a dançar muito bem porque sabia que nas festas nenhum rapaz ia cair aos meus pés.


PLAYBOY — E na profissão?


MARÍLIA [Rindo] — Uma das críticas que mais me agradaram na vida foi uma que exaltava a minha sensualidade, não o talento: "Essa Marília não me faz pensar em pêra, mas em maçã..." Mas só fui me achar feia mesmo quando entrei para a televisão. Disseram que para fotografar melhor era preciso um nariz pequenino, uma boquinha [faz bico], e eu tenho tudo grande: nariz, boca, olhos, pés.


PLAYBOY — A Andrea Beltrão, estrela de Armação Ilimitada, vive reclamando que a Globo implica com seu nariz, seus dentes. Esse padrão estético é imposto até hoje para as atrizes de televisão?


MARÍLIA — Nunca parei para pensar se a Andrea era bonita ou feia. Atrizes como a Andrea, ou a Regina Casé, você gargalha com elas, ou se emociona. Não vê se são bonitas ou feias. Confesso que ficava furiosa quando um diretor pedia: "Não franza a testa, não levante os braços, arrume os ombros". Que saco, eu era uma atriz, não uma deusa!


PLAYBOY — Você continua achando isso?


MARÍLIA [Pensando] — Esse preconceito era mais de outras épocas. Pensava assim: [fala teatralmente] "Já que não sou bela, deixem-me ser feia". [Risos.] Hoje, confesso que tento franzir menos a sobrancelha, não entortar tanto os traços e já admito que mesmo uma atriz pode ficar mais bonita em cena. Porque se abaixo muito o rosto fico com uma boa papadinha e uns vinquinhos por aqui [aponta alguns sulcos em torno da boca], e se o Jorginho Fernando [diretor de Brega & Chique] cochicha com o iluminador pedindo um filtro para suavizar meus traços, já não digo, ofendida, como antigamente, "sou uma atriz". Hoje, aos 44 anos e sem plástica, acho até bom.


PLAYBOY — Você vai fazer plástica?


MARÍLIA [Rindo] — Não, vou deixar o iluminados me rejuvenescer com os filtros! Sei que não fazer plástica na minha idade é quase criminoso, todo mundo já fez. Mas os mesmos defeitos que percebo em mim, no vídeo, já estavam lá há 20 anos. É como o Paulo Afonso Grisolli [diretor executivo da Rede Globo] dizia: não sou fotogênica, sou cenogênica. Meus traços largos são bons para o teatro, ruins para a televisão. Depois, a cara repuxada me dá sensação de velhice e são raras as pessoas que fizeram plástica e não ficaram parecendo mais velhas. Gosto de ter a cara da minha idade.


PLAYBOY — Mesmo se isso significar não ser mais a Rafaela, mas a mãe da Rafaela?


MARÍLIA — É a primeira vez que faço a mãe das mocinhas na televisão. Na última novela eu era a mocinha. Mais tarde vou ser avó das mocinhas e, se viver até lá, bisavó. Até virar o fantasma da casa [risos].


PLAYBOY — Você nunca quis ser símbolo sexual?


MARÍLIA — O quê? Adoraria ser uma Marilyn Monroe! Outro dia encontrei a Regina Casé numa festa e ela exultava com uma crítica que falava das suas pernas, da sua cintura, e nada, nada sobre seu talento. Pois eu hoje daria, sem nenhum problema, uma entrevista com o seguinte título: "Cansei de ser boa atriz, quero ser símbolo sexual" [risos].


PLAYBOY — Quem são as atrizes brasileiras feias?


MARÍLIA [Pensando] — Você pode dizer que a Cacilda Becker foi feia. Que a Fernanda Montenegro é feia. Que a Bibi, a Regina Casé, a Andrea Beltrão, a Lucélia Santos são feias. Que a Dercy é feia, a Dulcina de Moraes também, que a Alda Garrido e a Iracema de Alencar foram feias. Mas não são todas lindas?


PLAYBOY — E a imposição do vídeo?


MARÍLIA — Em 1970, a Globo me chamou para O Cafona porque eu fazia um sucesso estrondoso no palco com A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato e meu papel era o de uma supervedete de teatro rebolado, com um detalhe: há 17 anos eu pesava 48 quilos, era magérrima, tinha as pernas fininhas, com buraquinho no meio e tudo, uma peruca enorme, uma cintura grossíssima, e todo mundo me engolia como gostosona, morrendo de rir.


PLAYBOY — A Globo contratou essa magricela para heroína de suas novelas?


MARÍLIA — Para ser nada menos do que a Shirley Sexy. Só que eu não tinha a menor preocupação de ser bela. A Shirley era patética. E nos meus papéis posteriores — Bandeira 2, Uma Rosa Com Amor, Supermanoela — eu deixava sempre claro que não tinha qualquer compromisso com a beleza. Na época, as atrizes de televisão eram muito bem-arrumadas, cheias de maquiagem, e pesadas. Enquanto isso a Shirley arrancava os cílios postiços, passava algodão na cara, ficava com um olho preto, outro não. Uma heresia. Eu não sabia, mas estava mudando o jeito comportado de interpretar da televisão.


PLAYBOY — Foi por causa desses escrachos que a Dercy Gonçalves declarou que já podia morrer em paz pois já tinha substituta?


MARÍLIA [Risos] — Ela também fala isso da Regina Casé. Gosto muito da Dercy, ela formou um gênero. Reconheço na Dercy uma de minhas muitas vertentes — as outras são Bibi Ferreira, Henriette Morineau, Dulcina de Moraes... Por exemplo, na atual novela das sete não sou a Dercy. Imagina só a Dercy fazendo a Rafaela... [risos] que espalhafato!


PLAYBOY — Foi por essa pitada de Dercy que a Globo deixou você 14 anos fora do vídeo?


MARÍLIA [Acende um cigarro] — Não sei como bateu na cabeça ou no coração da direção da Globo o fato de ter sido eu quem pediu rescisão de contrato. Afinal a Globo havia investido — e dado o estrelato a uma atriz que não era nem bela nem gostosa, e logo essa atriz pede para sair.


PLAYBOY — Nesse período você não recebeu nenhum convite?


MARÍLIA — Trabalhei a cachê fazendo a minissérie Quem Ama Não Mata... O papel era da Sônia Braga e havia uma tendência a se imaginar que eu não saberia fazer papel dramático. Aí, a Sônia não pôde mais fazer, eu ganhei a premiação de Pixote nos Estados Unidos e eles me chamaram.


PLAYBOY — Foi a única vez?


MARÍLIA — Não, mas nas outras ou os salários eram muito baixos ou as condições, precárias. Era como se eu tivesse de me sujeitar a uma série de coisas para poder voltar.


PLAYBOY — Foi por isso que a convidaram para a novela das sete e não das oito?


MARÍLIA — Não. Já me convidaram antes para outras novelas como Roda de Fogo, mas não fechei por causa de dinheiro. Não via sentido em assinar contrato com uma emissora, ganhando a décima parte do que ganharia no teatro. E também não poderia trabalhar das sete da manhã às oito da noite porque não quero me afastar do teatro.


PLAYBOY — As atrizes que você encontrou agora são piores do que as de antigamente?


MARÍLIA — Quem se forma pela televisão corre o risco de fazer sempre o mesmo personagem, aquele que fala da morte da mãe e pede um chá com a mesma "naturalidade". Esse ator ou atriz ou vai ficar fazendo esse papel a vida inteira ou vai se espatifar no teatro. Quebrar a cara.


PLAYBOY — Do pessoal que faz exclusivamente televisão, quem se daria bem no teatro?


MARÍLIA — O público de teatro é caprichoso, não sai de casa para ver todo dia aquela carinha que está, de graça, todos os dias na casa dele. A Regina Duarte, que é ótima atriz de televisão e estava no auge com a viúva Porcina, não colheu uma temporada vitoriosa com Miss Banana. A Glorinha Pires é uma gracinha, mas odeia teatro. Ela não entende como uma pessoa pode repetir, durante meses, as mesmas falas. É uma pena, porque ela é ótima atriz e se ficar só fazendo televisão não será mais. Também acho uma pena que o Cuoco não volte a fazer teatro — onde era ótimo. Ele seria, seguramente, um ator mais vivo se voltasse a fazer. Acho, em geral, que as gerações novíssimas estão mais atentas, a grande maioria faz teatro.


PLAYBOY — Você continua achando, como antigamente, que televisão não é arte?


MARÍLIA — O que eu fazia em Supermanoela não era arte. Eu era um robô e tenho muita vergonha de representar assim. Porque estudo capítulos de novela como se fossem puro Shakespeare, e nos últimos meses da novela espalhava dálias [folhas de papel contendo a fala do ator escrita com letras de imprensa] pelo chão, pelas mesas, pelas paredes. Ou seja, eu gravava "colando", nem prestava atenção no que o meu colega estava dizendo em cena. Nessa época, tinha até direito a seis meses de férias remuneradas, estava mal de dinheiro, mas pedi rescisão de contrato assim mesmo. Era uma loucura, mas havia uma lado moral que me empurrava dizendo "sai, sai", e eu saí.


PLAYBOY — Você estava há muito tempo na Globo?


MARÍLIA — Desde a inauguração. Aliás, a Globo ainda estava para ser inaugurada quando o coronel Abdon Torres, diretor da emissora no final de 1964, assistiu a Como Vencer na Vida Sem Fazer Força e me contratou para um musical semanal. É que eu tinha 21 anos e sabia dançar, cantar, representar. Fora a Bibi, que era rainha, ninguém sabia fazer isso tudo não. Mas o Abdon caiu, e no lugar dele entrou o Mauro Salles, que não sabia quem eu era e me deixou em casa seis meses. Eu assistia àqueles programas musicais horríveis da Globo, com atrizes que não sabiam nem cantar nem dançar, e ninguém me escalava. Passados seis meses, o Mauro Salles me deu bilhetinho azul. Tinha tanta vergonha desta história que nunca contei pra ninguém. Essa demissão me deixou na mais negra miséria.


PLAYBOY — Você já tinha feito algum programa na televisão?


MARÍLIA — Aos 17 anos fui garota propaganda na TV Rio, anunciando geladeiras [risos]. Depois comandei um programa da TV Tupi, dirigido por J. Silvestre, junto com a Vanusa, o Jerry Adriani, a Marlene.


PLAYBOY — Só faltou cantar no Chacrinha... [Risos.]


MARÍLIA — Mas eu cantei [mais risos], quando gravei a Shirley Sexy... Já fiz muita coisa em televisão, logo depois dessa demissão, fui uma menina aleijadinha na novela Rosinha do Sobrado, da Globo; depois, trabalhei na novela revolucionária Beto Rockefeller, na Tupi, fiz um programa que antecipou em cinco anos o Malu Mulher, mas era pior. Viva Marília dizia coisas do tipo "mulher, largue o fogão e vá à luta" [risos]. E também fiz quadros humorísticos em Planeta dos Homens. Precisava provar, por necessidade financeira e artística, que podia fazer tudo: televisão, teatro, cinema, boate, circo, o que aparecesse. Faria a decadente ou a estrela.


PLAYBOY — Você está mais para decadente chique ou para estrela Dalva?


MARÍLIA [Pensando] — Estou mais para a observação. Conheço umas 50 dondocas decadentes e chiques que falam alto nos cabeleireiros, dizem palavrão, se sentam de pernas abertas para mostrar as calcinhas e vivem bêbadas. E outras que mal abrem a boca de tão suaves. Não estou nem para uma nem para outra, mas para todas, pegando uma corzinha de cada para formar um tipo. A brega, é só olhar em volta e pegar quem você quiser [risos]. O Brasil é muito brega. É tudo muito real, e tudo uma fantasia.


PLAYBOY — Se a gente imaginar que cada personagem seu é, então, uma fantasia, com qual você mais se identifica?


MARÍLIA — Seguramente a prostituta é uma das minhas fantasias mais fortes. Poder transar com vários homens! No fundo, é a fantasia de todas as mulheres. E quando posso ser essa prostituta impunemente, sem nem precisar transar com os caras, então a emoção e o prazer que jogo aí são absolutamente verdadeiros. Essa é a impunidade maravilhosa do ator, o maior presente de Deus a quem leva a sério essa profissão. Você pode ser puta, assassina, cafetina, ladra, imoral. Isso é lindo. É com o maior prazer que sou prostituta.


PLAYBOY — Levando a sério essa profissão, a atriz Kathleen Turner acha impossível para uma atriz ser beijada, tocada, acariciada em cena e não sentir nada. Você concorda?


MARÍLIA — Sempre fui meio reprimidinha. Nessas cenas de agarrações fico travada, com vergonha de mostrar para o ator que eu possa estar sentindo atração por ele [risos]. Mas agora com Dalva aconteceu o contrário: senti no Paulo César Grande, que é bem mais jovem e está começando, aquela vergonha de tocar a Marília Pêra.


PLAYBOY — Como você quebrou o gelo?


MARÍLIA — Falei para ele: "Olha, se você me beija, me acaricia, fica muito bonito se sua mão desce pela minha bunda". Ele embarcou, e a cena ficou bem calorosa, não me dá vergonha. Porque se o ator faz uma cena de amor com constrangimento, o público fica constrangido de ver. [Rindo]. Às vezes vejo uns beijos na televisão e não consigo nem olhar de vergonha... Ou são beijos envergonhados ou são tão arreganhados que me deixam encabulada.


PLAYBOY — Que tipo de beijo?


MARÍLIA — Às vezes o beijo de língua tem um sabor gostoso e passa um clima bom. Mas a língua pela língua, a mão pela mão me deixam constrangidíssima.


PLAYBOY — E se no meio de uma cena você se sente enfeitiçada pelo ator?


MARÍLIA — Já aconteceu comigo, não essa coisa de sair para transar atrás do palco, que não sou disso. Eu me envolvo amorosamente com a pessoa e a transada é uma conseqüência... Só que namoro durante a temporada em cartaz é perigoso.


PLAYBOY — Estraga a peça?


MARÍLIA — Quando há briga fica um inferno pra contracenar. Agora, mesmo envolvida com o ator, não me lembro de ter aproveitado uma cena para dar um beijo de língua.


PLAYBOY — Você já foi surpreendida por algum parceiro mais afoito em plena cena?


MARÍLIA — Ah, já! Só não me peça para revelar o nome. Ele aproveitou a deixa e enfiou a língua, mas eu repeli com tanta firmeza — o beijo, não a cena — que ele nunca mais repetiu. Já em outra ocasião o parceiro era um ator de quem eu gostava muito, e em uma das cenas ele me beijou tanto que me borrou inteira de batom. Aí, no dia seguinte, exagerei no batom para ficar mais borrada ainda, e a cena virou uma gostosa palhaçada. Dessa vez embarquei, mas foi de farra.


PLAYBOY — Não há necessidade de beijar de verdade para dar calor à cena?


MARÍLIA — Uma vez, no filme O Rei da Noite, fiz uma cena de cama com o Paulo José que provocou comentários e me criou inúmeros problemas morais. O que todo mundo viu no cinema é o Paulo José chegando ensangüentado e eu, ao deitá-lo na cama, começava a beijar suas feridas, enquanto subia por cima dele, tirava suas calças, arrancava o meu roupão e fazíamos o amor mais rasgado. O que ninguém viu é que eu tirava as calças do Paulo José, mas sua cueca ficava bem fechada por baixo. Eu também arrancava o meu roupão, mas, de pura vergonha, pedi à camareira para costurá-lo na minha calcinha de modo que a bunda não ficasse de fora. Expulsei todo mundo do estúdio e obriguei o iluminador a baixar a luz. Então, na verdade, a cena era feita por dois atores constrangidíssimos: ele de cueca, eu de calcinha morrendo de vergonha. Na tela, ficou parecendo um furor erótico, um ato de amor rasgado.


PLAYBOY — O que mexe mais com você: o teatro, o cinema ou a televisão?


MARÍLIA — Teatro é visceral, teatro é minha vida. E nem é preciso que eu mesma esteja no palco. Gosto de ver teatro, e é muito raro minha bunda doer quando estou na platéia. Fico eletrizada, tentando analisar tudo, vou ao camarim para tentar dizer o que me emocionou, o que me desagradou.


PLAYBOY — Você sabe quando alguém não gosta das suas peças?


MARÍLIA — Sei. Às vezes a pessoa não diz nada, mas percebo sua emoção. Outras vezes me enche de elogios exagerados e sei que é mentira. A gente, de teatro, sabe. Gente que ama o teatro e para quem, como disse, raramente a bunda dói numa platéia.


PLAYBOY — No seu caso, quando a bunda dói, o que você faz?


MARÍLIA — Eu me levanto e vou embora.


PLAYBOY — Já aconteceu?


MARÍLIA — Já. Uma vez em especial, achei que o ator estava desrespeitando algumas atrizes — Bibi e Tônia — e me senti ofendida. Então fui embora. E não fui com toda classe, não. Saí batendo porta mesmo, e disseram que eu falei, na hora, que já havia excesso de pederastas no Brasil. Nem me lembro.


PLAYBOY — Quem era o ator?


MARÍLIA [Hesitando] — Patrício Bisso. E eu nem deveria estar contando essa história porque depois disso eu e o Bisso já nos entendemos.


PLAYBOY — Há pouco tempo você fez a mesma coisa num teatro de São Paulo. Só que dessa vez você estava no palco.


MARÍLIA [Meio indignada] — Não foi bem assim. Eu havia avisado até na televisão que o espetáculo, Adorável Filha, começava rigorosamente às 21 horas. Já passavam 45 minutos das 9 horas e ainda tinha gente chegando. Mas não era uma ou duas, não. Eram 400 pessoas tentando encontrar seus lugares, e eu no palco. Então, interrompi a cena e fiquei dez minutos parada.


PLAYBOY — Aí você continuou?


MARÍLIA — Não, aí fiz a bobagem. Abri o problema para eles, perguntei o que deveria fazer, continuar ou recomeçar, e ouvi as respostas mais absurdas: de "acaba com os cambistas" a "pára de reclamar da vida com o teatro cheio e recomeça logo". Aí, virei as costas para mil pessoas e elas começaram a invadir o palco. Um senhor veio me cumprimentar, não percebeu o fosso da orquestra e caiu, esmagando a coluna. Chegou ambulância, rádio, televisão. Foi um horror, tudo muito violento.


PLAYBOY — A bobagem foi ter quebrado a mágica do teatro?


MARÍLIA — Não, a mágica do teatro quem quebrou foram eles. Mas admito que, na minha idade, não posso ser movida pelos impulsos da emoção. Eu deveria ter sido mais política, fazer um discurso de cima para baixo e recomeçar. Só que meu coração disparou, fiquei emocionada, chorei feito uma criança.


PLAYBOY — Como você superou, então, a rejeição de saber que Peri Ribeiro, filho de Dalva, preferia a Elba Ramalho no papel de sua mãe na peça?


MARÍLIA — A Elba faria uma bela Dalva, e também a Tânia Alves que, segundo li, era a preferida do produtor, Roberto Talma. Mas fui a primeira a ler o texto. O autor Renato Borghi queria que fosse eu. E fui eu. Mesmo depois de o Peri nos primeiros ensaios perguntar preocupadíssimo: "Mas você vai dublar, não vai? Cantar é que você não vai mesmo".


PLAYBOY — E você?


MARÍLIA — Eu fiz a maior cara de espanto: "Dublar sua mãe? Eu? Não, eu vou cantar". Mal sabia o Peri que tenho pânico de cantar, venho cantando há 20 anos para ver se aprendo [risos] ou se consigo ter prazer cantando. Quando ele voltou, algum tempo depois, chorou. É que eu já tinha apanhado todos os truques, a voz [imita] bem agudinha, bem lírica, bem colocada do princípio de carreira; depois [continua imitando], o tom encorpado, ao formar conjunto com o Herivelto Martins; mais tarde, a explosão da voz, ao se separar do Herivelto; e, no final, a decadência total, a quebra da voz.


PLAYBOY — Em quem você se inspirou?


MARÍLIA — Primeiro, nos depoimentos da própria Dalva, feitos para o Museu da Imagem e do Som com todos aqueles [imita] "erres", os "dis" e os "tis" na ponta da língua da paulista de Rio Claro. E também faço homenagens aos "nuas" e "uuuuuus" da Dalva, e à Elis. Acho que tem uns movimentos de braço que são da Elis e não da Dalva. Tem também um pouco de Maysa, talvez de Carmen [Miranda].


PLAYBOY — Lawrence Olivier, no livro Ser Ator, declarou que constrói seus personagens muitas vezes diante do espelho, pintando o corpo de preto como aconteceu com o seu Otelo. Como você constrói os seus?


MARILIA — Faço todos os estudos de maquiagem, cabelo e voz no banheiro [risos]. Sonho ter um estudiozinho com espelho, barra, som. Afinal, essa é minha brincadeira predileta, inventar personagens.


PLAYBOY — Desde pequena?


MARÍLIA — Eu costumava rechear a cabeça da minha boneca com uma massa de batom, ruge e pó-de-arroz que achava no camarim da minha mãe nos bastidores do teatro. Brincava de ficar assistindo a tudo da coxia ou da platéia, e essa brincadeira às vezes custava caro: uma vez vi o Procópio Ferreira passar a mão no traseiro da minha mãe e saí chorando, achando que ele estava batendo nela [risos].


PLAYBOY — Então você sabia desde o começo que seria atriz?


MARÍLIA — Já quis ser bailarina, pianista — toquei dos 4 aos 14 anos —, cantora, professora e até advogada. Mas minha vocação desde o princípio era ser atriz. Imagine: minha avó trabalhava na companhia de teatro do Palmeirinha Silva; meu pai tinha sua própria companhia; minha mãe era vedete de teatro de revista. Tive minha primeira lição de teatro aos 4 anos, quando estreei Medéia, junto com Henriette Morineau, a quem eu assistia desde pequena e que me inspirava uns misto de respeito e medo. Naquele dia, eu perdi uma fala porque, na hora agá, alguém pegou e apertou meu braço, que estava inchado e todo dolorido. Pois você pensa que a Henriette me perdoou pelo erro? Que nada, me deu a maior bronca, disse uma frase que eu jamais esqueci: "Uma atriz morre, mas cumpre o seu dever". Desde pequena foi assim, não sei se poderia fugir a esse destino. Afinal, sou a terceira geração de atrizes na família.


PLAYBOY — Você conhece muita história de discriminação de mulheres no palco?


MARÍLIA — Minha avó foi considerada uma louca na sua época. Aos 19 anos, com três filhos, resolveu se separar e ser atriz. Depois ela foi morar com um carpinteiro e, só depois de viverem 30 anos juntos, eles se casaram. Ela contava que era tida como prostituta e a mamãe, imagina, era vedete. Só salvou a honra quando se casou com meu pai. Para piorar tudo, nós éramos pobres. Não remediados. Pobres mesmo.


PLAYBOY — Onde vocês moravam?


MARILIA — Nasci no Catumbi [zona norte do Rio de Janeiro], fui criada entre os morros de São Carlos e Querosene, no Rio Comprido, onde, para saltar do lotação e chegar em casa sã e salva, meu pai precisava me esperar com um revólver 38 na cintura. Uma vez quase fui estuprada por cinco homens.


PLAYBOY — Para essa menina foi um deslumbramento trabalhar na Globo?


MARÍLIA — Não mesmo. Meus sonhos de adolescentes eram mais teatrais: sonhos de Isadora [Duncan], de acabar de dançar num palco, que podia ser no Rio ou em Roma, e ser carregada pelos estudantes nas ruas [risos].


PLAYBOY — Mas antes que isso acontecesse na sua vida, você amargou algumas reprovações em testes — por exemplo, em Hello Dolly. Era você que não estava bem ou testes não servem para nada?


MARÍLIA — Por acaso fiz mesmo testes ruins, estava nervosa. Mas achei um desplante me chamarem para um teste em Evita. Nem fui, porque sei que testes não servem para nada. Veja só a Elis: foi derrotada por mim no teste para o musical Como Vencer na Vida sem Fazer Força! A Elis, uma cantora maravilhosa.


PLAYBOY — Como você conseguiu derrotar a Elis num teste para musical?


MARÍLIA — Eu só faltei morrer no palco do Teatro Carlos Gomes: cantei todas as músicas, dancei todas as danças, me atirei no chão, pulei. Eles não tinham como não me dar o papel.


PLAYBOY — A Elis perdoou você?


MARÍLIA — Bem, mais tarde eu e a Elis acabamos tendo uma relação tão louca... Quando conheci o Nelsinho [Motta] ele estava namorando a Elis e terminou com ela por minha causa. Só que eu não sabia. O Nelsinho me mandou flores, me convidou para assistir à estréia do show da Elis no Teatro da Praia e só achamos um lugar na primeira fila, onde nos sentamos na mesma cadeira. A coitada, que estava se separando do Ronaldo [Bôscoli], ficou tão aflita de nos ver ali que fez um show nervoso e mal recebido pela crítica. No dia seguinte, ela telefonou para a minha casa perguntando pelo homem dela.


PLAYBOY — Vocês viraram inimigas?


MARÍLIA — Pelo contrário; ficamos amigas. Quer dizer, havia sempre uma pedra no sapato dela em relação a mim, mas Elis me telefonava sempre e ficava horas no telefone. Eu perdia dentista, aulas, por causa dos telefonemas da Elis. Gostava dela. Uma vez, depois da estréia do show Saudades do Brasil, ela botou todo mundo para fora do camarim e me fez entrar, grávida da Nina, para tomar champagne.


PLAYBOY — Como você recebeu a notícia da morte dela?


MARÍLIA — Parece que a vida queria me colocar do lado de lá em relação à Elis. No mesmo dia da morte dela, 19 de janeiro, eu estava embarcando para os Estados Unidos, para receber meu prêmio por Pixote. Foi um choque! Com a morte, por aquela voz ter se calado, e com a autópsia que se fez dela nos jornais. Ela era uma tonta, deu um tropeção e morreu. Quando voltei da viagem, três dias depois, eu ainda continuava deprimida. Então, resolvi dar folga para a empregada, me tranquei em casa sozinha, me sentei nesta poltrona aqui e fiquei. De repente, entrou pela janela uma enorme bruxa querendo me pegar — uma borboleta preta, dessas esvoaçantes. Pensei que fosse a Elis e saí gritando pela casa: "Não tenho estrutura!" Consegui trancar a bruxa na sala de jantar e só entrei lá no dia seguinte, quando à empregada voltou. Foi difícil, mas a morte da Elis eu até engoli. O que eu não consegui engolir foi a imprensa.


PLAYBOY — Você chegou a mandar alguma carta de protesto?


MARÍLIA — Estão escritas, não enviadas. E se fizerem isso comigo, quando eu morrer, passo a mão num dos meus personagens mais terríveis e venho assombrar quem me desrespeitou [risos].


PLAYBOY — Você não gosta da imprensa?


MARÍLIA — Depende. Dessas críticas que andaram fazendo à Dalva, com a casa absolutamente cheia todas as noites, eu não gostei, não.


PLAYBOY — E quando a peça é um fracasso?


MARÍLIA — Bem, fracassos acontecem independente da crítica. São fatores alheios a nossa vontade. Às vezes uma pecinha mais ou menos vira um estrondoso sucesso. Às vezes há um grande diretor, um grande produtor, um grande elenco e a coisa empaca, é um fracasso.


PLAYBOY — Você teve muitos fracassos?


MARÍLIA — Pelo menos três estrondosos fracassos [risos]: A Feiticeira Síndica, Qual É a Tua e Deus Lhe Pague.


PLAYBOY — Como você saiu dessa?


MARÍLIA — Foi o Klauss Viana [coreógrafo]. Ele fez todo um trabalho de me levantar. Porque, além dos três fracassos nas costas, meu casamento com o Nelsinho andava meio esquisito, e eu estava muito deprimida. Pois ele me levantou a ponto de me deixar nua no palco [risos], e eu já disse como sou reprimida. Na peça, O Exercício, eu e o Gracindo Jr. éramos dois atores que no final ficavam nus e diziam para a platéia: "Estamos prontos".


PLAYBOY — Você ficou muitas vezes nua em cena?


MARÍLIA — Abria o espetáculo Apareceu a Margarida, já em 1978, só de calcinha, dizendo: "Boa noite para todos, eu sou a nova professora de vocês". Também no Pixote mostro um seio na hora da amamentação.


PLAYBOY — Como a Censura encarou esses nus?


MARÍLIA — Em O Exercício mandaram cortar, mas a gente conseguiu só baixar um pouco a luz. Com Margarida a Censura implicava, em cada Estado, com uma cena diferente. Em Belo Horizonte era o nu de costas do Chico Ozanam em frente à imagem do Sagrado Coração: o Chico teve de colocar cueca , mas eu não perdoei — comprei uma cueca branca para ele e na bunda fiz uns xis preto! Era uma gargalhada quando o Chico aparecia com a cueca censurada. Em outros Estados passava o nu, mas não os palavrões. Muitas vezes o problema eram as drogas. Tive de ir a Brasília várias vezes ouvir generais me dizerem "Mas minha filha, uma moça tão bonita dizendo aqueles palavrões?" [Risos.]


PLAYBOY — Você chegou a ter alguma peça proibida em todo o território nacional?


MARÍLIA Vida Escrachada foi. E com ela o caso foi sério porque investi o dinheiro que tinha e o que não tinha, estreei em São Paulo com o Hélio Souto e foi um fracasso retumbante. Fiquei com uma dívida nas costas de fazer gosto. Aí fiz uma loucura: comprei a dívida do Hélio, que saiu, reduzi elenco, cenário, guarda-roupa, cortei texto, aumentei coreografias, refiz o espetáculo inteiro e vim montá-lo no Rio de Janeiro. Fizemos um ensaio geral muito precário, cheio de amigos no palco e fora dele — o Nanini, o Chico Ozanam, a Zezé Motta, todo mundo tentando me salvar daquela. E não é que a Censura proibiu a estréia, no dia seguinte, em todo o território nacional? Aí bateu o desespero.


PLAYBOY — O que você fez?


MARÍLIA — Fui pra sala da censora, dona Maria Celma, no Rio, comecei a chorar e disse que ia me matar [risos]. Ela deixou estrear, mas disse que ia mandar um censor ir cortando aqui e ali. Foi um ano e meio de sucesso retumbante.


PLAYBOY — E os cortes?


MARÍLIA [Rindo] — Tiraram o revólver do Esquadrão da Morte estilizado, invadiram minha casa, a do Nanini, a da Zezé e a do André Valle em busca de drogas — porque tinha uma cena em que se fumava maconha —, e durante toda a temporada a peça foi retirada e colocada de volta em cartaz várias vezes.


PLAYBOY — Nas revistas políticas em que você trabalhou antes de 1964 houve muita censura?


MARÍLIA — Fiz uma porção de Jânios, JKs, Jangos, mas não me lembro de censura aí. Só fui tomar conhecimento da Censura com a porrada que levei em Roda Viva, em São Paulo, em 1968.


PLAYBOY — Como foi?


MARÍLIA — Nas coxias só se comentava como tinha homem bonito na platéia aquela noite. Mas ninguém desconfiou de nada. Quando acabou o espetáculo, fui para o camarim, tirei o macacão da última cena, e estava cheia de creme no rosto, tirando a maquiagem pesadíssima — uma pasta preta debaixo dos olhos —, quando escutei um barulho terrível. Abri a porta e me deparei com um monte de atrizes, nuas, sendo arrastadas e apanhando daqueles homens bonitos da platéia. Eles agarravam a cabeça de quem passava e batiam contra a parede. Tentei trancar meu camarim mas eles invadiam tudo, e com soco inglês quebraram minha caixa de maquiagem, a mesinha, o espelho. Voou caco para tudo quanto foi lado. Aí me forçaram a passar por um corredor polonês — eles íam batendo com o cacetete — e fui parar de calcinha e sutiã na frente do teatro Ruth Escobar. Mas nem assim me dei conta do que estava acontecendo.


PLAYBOY — Como assim?


MARÍLIA — Não sabia quem era aquela gente, fui chamada para substituir a Manieta Severo em São Paulo e topei, mas só depois do massacre fui entender de verdade o que era a Roda Viva, o CCC [Comando de Caça aos Comunistas], o país onde vivia. Fui presa no II Exército junto com a Ruth Escobar, ouvia berros horrorosos a noite inteira, não entendia por quê. Eles queriam informações de gente do teatro, Augusto Boal, Plínio Marcos, da própria Ruth. E eu, que não tinha nenhum envolvimento, passei a ter.


PLAYBOY — Que tipo de envolvimento?


MARÍLIA — Ia para a televisão falar barbaridades, fazia passeatas, passei a andar armada, só falava palavras de ordem e andava com grupos de esquerda. E a minha mãe, quando soube da invasão do teatro, ainda comentou: "Tenho certeza de que isso é coisa dos comunistas". Imagine! [Risos.]


PLAYBOY — Como você acabou incluída, ao lado da Elis, no Cemitério dos Vivos, do Henfil, uma coluna que incluía basicamente os entreguistas e inimigos?


MARÍLIA — Só soube disso quando saiu o livro da Elis, agora, e fiquei indignada. Acho que o Henfil ficou louco naquela época. Ele "enterrou" a Elis, com um desenho onde ela aparecia cantando o Hino Nacional — e eu me lembro quando a Elis foi obrigada pelos militares a cantar o Hino Nacional na televisão. "Enterrou" também o Carlos Drummond de Andrade, o Roberto Carlos, o Pelé... E eu, de Carmen Miranda. O Henfil com certeza achava alienante a Carmen Miranda que eu fazia em A Pequena Notável, na boate Night and Day. E, então, me "enterrou".


PLAYBOY — E o telegrama de solidariedade enviado ao general Figueiredo quando ele ficou doente?


MARÍLIA — Foi puro humanismo. Tinha conversado pouco antes, num restaurante, com uns colegas de teatro apavorados com a doença do Figueiredo, todo mundo se perguntando: "E agora? Quem é que vai entrar?" Então cheguei em casa e mandei um telegrama fonado: "Você é amado, fique bom". Coisa de mulher para um homem que estava atravessando uma dificuldade; achei que não fosse ter nenhuma repercussão. No dia seguinte estava nos jornais. O Henfil deve ter me "enterrado" outra vez.


PLAYBOY — Só o Henfil?


MARÍLIA — Eu não quero saber. Fui espancada pelo Exército, pelo CCC dessa revolução de 64, fui presa e tive minha casa invadida por essa gente. E aí fico com pena de um general que teve um enfarto, mando um telegrama desejando que fique bom. O que alguém tem a ver com isso? Agora, além disso eu não vou. Por exemplo, não saio por aí fazendo campanha para o Gabeira, embora ache ele uma gracinha.


PLAYBOY — Você é contra atrizes que fazem campanha?


MARÍLIA — Eu não gosto. Para quem gosta de fazer, tudo bem.


PLAYBOY — Mas você já caracterizou esse tipo politizado há seis anos: a "pentelha" de Doce Deleite, a típica estudante radical do final dos anos 60.


MARÍLIA [Rindo] — Exatamente , mas a peça é do Mauro Rasi, que detesta esse tipo de politicagem. A "pentelha" seria uma crítica a essas pessoas, como a Fafá, a Lucélia. Eu até achei muita graça quando um bando delas — a Maitê, a Lucélia — invadiu uma sala em Brasília. Não teve um número desses? Rolei de rir. Eu teria vergonha de fazer, mas [bem séria] não critico. Embora não levante essa bandeira, acho até que elas conseguiram alguma coisa.


PLAYBOY — Qual o seu partido?


MARÍLIA — Não tenho.


PLAYBOY — Em quem você votou no Rio nas últimas eleições?


MARÍLIA — Moreira Franco.


PLAYBOY — Você não gostava do Brizola?


MARÍLIA — Não, porque isso aqui ficou uma droga com ele. E também porque ele não deixa nenhum entrevistado falar, principalmente se for mulher. É um monólogo demagógico. Não vou com a cara dele.


PLAYBOY — Em quem você votaria para presidente?


MARÍLIA [Pensando muito] — Fernando Henrique seria um bom vice. Para presidente, não sei.


PLAYBOY — Você manteve algum contato com o general Figueiredo?


MARÍLIA — Nada, achava ele até muito mal-educado e grosso. Só senti pena da doença, da desmoralização.


PLAYBOY — Mas ele mandou um telegrama para você quando Pixote foi premiado em Nova York, dizendo que você era motivo de orgulho nacional.


MARÍLIA — Foi ele e o Brasil inteiro que me mandou telegrama, né?


PLAYBOY — Também, desbancar a Faye Dunaway e a Diane Keaton; e posar ao lado de Burt Lancaster, não é para menos...


MARÍLIA — Isso para o resto. Eu mesma não dei a menor importância, na época. Só dei mais porque era um prêmio da Associação de Críticos de Cinema dos Estados Unidos, e você não acredita as críticas que saíram lá a respeito do filme. Aqui, não vejo ninguém escrevendo com paixão, parece que só escrevem sobre as pessoas de quem não gostam. Lá, todo mundo caiu de joelhos, embora eu tenha me atrasado unta hora na premiação dos críticos de Nova York.


PLAYBOY — Como foi?


MARÍLIA — Eu estava voltando de Chicago, onde tinha ido ver uma montagem da Margarida. Em cima da hora. Então, no táxi mesmo, resolvi ir fazendo umas trancinhas pequenininhas em todo o meu cabelo — enorme —, porque não teria tempo de ir ao cabeleireiro. Acontece que estava nevando, meu cabelo ficou encharcado, e quando cheguei no saguão do hotel parecia um monstro, não havia quem tirasse os 200 nozinhos que se formaram na minha cabeça [risos]. Pedi ajuda até a um argentino, o presidente de uma Embrafilme local. A gente resolveu o assunto com uma tesoura, cortando o cabelo, e eu atrasei uma hora.


PLAYBOY — E o cabelo?


MARÍLIA — Ficou horrível [risos], mas assim mesmo recebi alguns convites para trabalhar fora. Do Joseph Papp [um dos mais conceituados empresários de Nova York] para qualquer um dos seus 15 palcos na cidade; da Lina Wertmüller para encenar Tieta do Agreste, do Jorge Amado, junto com a Sophia Loren. Conheci também alguns diretores como o Costa-Gavras. Mas até agora só fiz um papel fora daqui, Mixed Blood, do Paul Morrlssey . Eu era a Rita La Punta. E filmei com um brochinho da Elis no pescoço.


PLAYBOY — Como foi a experiência de filmar em Nova York?


MARÍLIA — Bem, eu sabia que não era um superprodução, mas não pensei que fosse tanto sacrifício. Era trabalho das 6 da manhã às 7 da noite e ainda não tinha acabado. Mas tem coisas que não faço nem no Brasil, nem em Nova York nem na TV Globo. Então foi duro, criativo e cru, porque eu tinha que fazer minha continuidade, meu cabelo, maquiagem e ainda lavar minha roupa no banheiro do hotel, senão ficava suja mesmo. Mas no dia em que o carro quebrou e eles me mandaram pegar um táxi na esquina, me recusei. Imagine: eu estava de peruca, toda maquiada na rua 58 East, às 7 da manhã, e nevando barbaramente. Você acha que ia ao Bronx de táxi? Empaquei feito burro e não houve quem me tirasse dali. Aí, eles mandaram a limusine. Com televisão e tudo [risos].


PLAYBOY— Você ganhou muito dinheiro?


MARÍLIA — Mais do que eu ganharia fazendo um filme aqui.


PLAYBOY — Hoje, depois de tantos prêmios, você é uma mulher rica?


MARÍLIA [Rindo] — Parece até os ladrões que entraram aqui em casa procurando o "Oscar de ouro", que era a estatueta dourada do Sílvio Santos. Nem acreditaram quando entreguei uma caixinha de jóias mixuruca.


PLAYBOY — Mas ficou ou não ficou rica?


MARÍLIA — O que é ficar rica? Poder parar de trabalhar? Não posso. Uns meses, talvez. Um ano seria arriscadíssimo, porque em teatro tudo é um risco. Por exemplo: se a Adorável Filha não fosse bem, eu ia ficar péssima de dinheiro outra vez. É assim. Bem que eu merecia ficar rica, tenho todo o direito, estou trabalhando há muito tempo. Mas não posso parar e viajar. Não posso. Meu império é um apartamento de três quartos, que comprei em Copacabana para minha mãe, e outro, em construção, de três quartos, na Fonte da Saudade. O Ricardo [atual marido] está comprando um no mesmo prédio e ficamos com direito a uma coberturazinha.


PLAYBOY — Você aplica seu dinheiro?


MARÍLIA — Só na poupança. Prefiro dar um presente, sentir um prazer a virar uma especuladora. O dinheiro é bom para comprar as coisas que só o dinheiro pode comprar.


PLAYBOY — Aos 26 anos você era o maior salário feminino da Globo. E hoje?


MARÍLIA — Quer saber quanto eu ganho? Nem morta! Mas é um salário bem menor do que — ouço falar por aí — ganham a Regina [Duarte], o Tarcísio, a Glória, o Cuoco, a Maitê. Já vi publicado que o que ganho na Globo dá pra comprar um apartamento por mês — um absurdo! Eu ganho mais, sempre, no teatro. [É verdade. O salário de Marília na Globo gira em torno de 300 mil cruzados. No teatro, com A Estrela Dalva, ela fatura mais 1,5 milhão por mês.]


PLAYBOY — Então você às vezes monta uma peça para ganhar dinheiro?


MARÍLIA — Isso não existe. Ninguém monta uma peça para ganhar dinheiro, porque aí não ganha.


PLAYBOY — Mas você já fez propaganda de desodorante íntimo para ganhar dinheiro, não é?


MARÍLIA — Fiz de absorvente íntimo, numa boa, e acho ótimo. Não acho ótimo fazer de cigarros, por exemplo. Fiz da Ducal também. Mas em geral faço pouco, porque peço um preço bom: se sair ganho um dinheiro alto e se não sair não me queimo à toa.


PLAYBOY — Você ganha mais do que seu marido?


MARÍLIA — Ganho.


PLAYBOY — Os psicanalistas ganham muito bem.


MARÍLIA — Ganham, sim. Mas ele não trabalha das 7 da manhã às 11 da noite, e nem sei quanto ele ganha por mês. Mas com certeza ganho mais do que ele.


PLAYBOY — Isso não cria problemas familiares?


MARÍLIA — Não.


PLAYBOY — Por que ele entrou como sócio na produção de O Mistério de Irma Vap?


MARÍLIA — Porque há anos produzo e há anos sou péssima. Queria um gerente que ficasse com a parte burocrática. O Ricardo é uma pessoa organizadíssima.


PLAYBOY — Da outra vez que seu marido, o Nelsinho Motta, resolveu montar uma peça para você, A Feiticeira, não deu muito certo.


MARÍLIA — Não deu certo? Ficamos na miséria! Hipotecamos a casa do Joá, onde morávamos, e durou anos e anos para acabar o sufoco. E olha que o texto era do Julio Cortázar, do Jorge Luis Borges, do Carlos Castarieda, da Clarice Lispector... Não sabia que essa gente era intelectual a ponto de afastar o público do teatro. Houve má vontade dos críticos.


PLAYBOY — Com certeza, o Nelsinho intelectualizou você. O que você vem aprendendo com seus homens?


MARÍLIA [rindo] — A pergunta está meio vaga.


PLAYBOY — Quantos homens você teve?


MARÍLIA — Não foram muitos.


PLAYBOY — O que a atrai num homem?


MARÍLIA — Depende [mastiga um biscoito macrobiótico]. No Nelsinho foi a alegria, a ingenuidade e a sorte. No Ricardo foi a voz sussurrada, entrando pelos ouvidos. Ele aliás se parece um pouco com meu primeiro marido, Paulo Graça — o mesmo cabelo crespo, a mesma altura, os braços fortes.


PLAYBOY — Com quantos anos você se casou?


MARÍLIA — Com 16 anos. Virgem. Dói, né? Mas foi uma transada amorosa, delicada, gentil. Tive meu primeiro filho com 18 e me separei com 19.


PLAYBOY — Essa história de trabalhar com o marido vem daí?


MARÍLIA — No circo Tihany ele tocava frigideira numa orquestra e eu dançava em torno de uma moça que ia ser serrada no palco [risos]. Era um balé de ligação entre os quadros de mágica. Mas quando o conheci ele era cantor e eu bailarina da revista De Cabral a JK. Depois, enfrentamos um período muito difícil. Eu dançava na Companhia do Colé quando fiquei grávida do Ricardo — o filho, né? Não confundir com o marido —, e trabalhei até 15 dias antes do parto. Lembro de uma velhinha que queria me ensinar ginásticas para a cintura grossa, e quase desmaiou quando eu disse que estava de 9 meses... Eu queria ter esse filho porque já havia perdido dois antes, de hemorragia, no palco.


PLAYBOY — Era muito emocionante trabalhar em teatro de revista?


MARÍLIA — Cheguei a fazer quadros com vedetes de corpos esculturais: a Marivalda, a Janete Jane, a Amparito... Mas eu era bailarina, não vedete. Usava maiô inteiro e sapato baixo para dançar.


PLAYBOY — Tinha muita briga nos bastidores?


MARÍLIA — Hi, muita! Na época da minha mãe era melhor. Ela trabalhava na boate Night and Day, grávida da minha irmã, e eu acompanhava. Suas colegas eram a Dorinha Duval, uma gracinha, e a Angelita Martinez, que namorava o Jango. Guardo na minha memória a cena da Angelita sentada no colo do Jango. Mas sempre deu briga de vedetes com cômicos ou com atores, de duas vedetes que namoravam o mesmo empresário. Eu mesma já briguei.


PLAYBOY — Com quem?


MARÍLIA — Com uma mocinha que estava dando em cima do meu marido. Mas eu era muito tímida, o máximo que fiz foi chegar perto dela e pedir: "Não dá em cima do meu marido" [risos]. Lembro também que, noiva do Paulo Graça, ele andou namorando uma modelo, e foi humilhante. Terminei noivado e tudo. Depois fiz as pazes com ele e fiquei amiguinha dela.


PLAYBOY — Como é estar casada com um ator?


MARÍLIA — Sabe por que eu me casei com o Paulo? Já disse isso para um psicanalista: porque ele foi o primeiro menino que brincou comigo. Nossa relação era ao mesmo tempo alegre e ingênua. Falo isso e me emociono porque o Paulo morreu poucos anos depois de nos separarmos, num desastre de carro. Foi por isso. Nem vi se ele era ator ou não era ator.


PLAYBOY — Havia muita competição?


MARÍLIA — Ator é muito egoísta, mas com o Paulo não havia, não. Ele ficava orgulhoso de ver a mulher dele fazendo sucesso — aliás mais do que ele — em Portugal.


PLAYBOY — E você também namorou firme o Agildo Ribeiro. Era mais difícil?


MARÍLIA — Bem, aí era uma relação competitiva. Eu tinha 21 anos e ele já era bem sambadão. Eu era uma menina e ele uma estrela. A gente se atrapalhava um pouco. Toda vez que eu tinha estréia, na noite anterior a gente brigava até de madrugada. Aí ficava furiosa e fazia o mesmo com ele. Uma coisa horrorosa [risos]. Cão e gato. Mas a gente se adorava.


PLAYBOY — E com o Nelsinho?


MARÍLIA — Com o Nelsinho, que hoje é meu superamigo, foi muito amor, muito ciúme. Nós quase nos matávamos. Tinha períodos em que um vivia para controlar o outro, um vivia de cara amarrada para o outro, cada um imaginando coisas. A gente casou, separou, casou de novo, separou de novo. Aí ficamos casados, em casas separadas, e eu fiquei grávida da Nina. Tentamos ficar juntos até o quinto mês, mas não deu.


PLAYBOY — Por que seus casamentos acabam?


MARÍLIA — Sou muito briguenta, muito ciumenta, agressiva, admito que fico transtornada por ciúmes. Mas se soubesse realmente explicar a causa seria mais feliz. Foi a Bibi quem falou comigo, uma vez, a propósito de uma briga com o Nelsinho: "Bobagem terminar tudo. Ele transa bem? Leva você, para comer bons queijos e vinhos? É seu amigo? Então, fica com ele mesmo, que é o máximo que você vai conseguir de um homem" [risos].


PLAYBOY — Você tentou alguma vez o casamento aberto?


MARÍLIA — Meu coração não agüenta.


PLAYBOY — Qual a emoção mais sensual que já aconteceu a você?


MARÍLIA — Você diz grandes aventuras e loucuras? Não. Para mim a sensualidade está na cama de casal, na mesinha-de-cabeceira, no quarto, na casa. Está mais ligada à segurança do que a loucas corridas pelas praças de Veneza. Sou menos de aventuras e mais de emoções calmas, tranqüilas.


PLAYBOY — Você tem algum tabu sexual?


MARÍLIA — Se estiver bastante envolvida, com confiança na pessoa, não tenho tabu algum. Não sou uma mulher liberada. Aliás, desconfio da mulher que se diz liberada, que chega num bar e diz: "Que homem bonito, vamos transar?" Nunca fiz isso. Mas se estou envolvida, amando e me sentido amada, confiante, então nada é ruim, nada é pecado.


PLAYBOY — Você custou a chegar a esse ponto?


MARÍLIA — Aos 16 anos, com meu marido, eu era muito feliz sexualmente. Depois perdi isso. Quando fiquei solta, liberada, fui muito pouco feliz.


PLAYBOY — Você quer dizer que não tinha orgasmo?


MARÍLIA — É, tinha muito pouco prazer. E orgasmo. Só fui retomar quando casei de novo, primeiro com o Nelsinho e, agora, com o Ricardo.


PLAYBOY — As feministas vão crucificar você.


MARÍLIA— Não sei por quê. Adoraria ser liberada, atirada, mas não sou. Para mim, a felicidade vem da confiança.


PLAYBOY — Os homens gostam da mulher liberada?


MARÍLIA — O Nelsinho diz que não... Mas ele diz isso pras filhas [risos]. E também os homens não são todos iguais.


PLAYBOY — Você já foi cantada por uma mulher?


MARÍLIA — Muitas vezes.


PLAYBOY — É estranho para você?


MARÍLIA — Não se a abordagem é delicada e dá para conversar. Se é bruta eu não deixo chegar. Mas se é gentil eu geralmente me envolvo, fico amiga das mulheres que se apaixonam por mim.


PLAYBOY — Você não corta?


MARÍLIA — Não, as pessoas ficam... Na minha vida, não corto ninguém.


PLAYBOY — Você também sente atração por essas mulheres?


MARÍLIA — Algumas são mulheres belíssimas, fora dos padrões de beleza considerados normais... Mas não me casaria com uma mulher. Não teria paciência, é tudo muito parecido.


PLAYBOY — Essas mulheres são do meio teatral?


MARÍLIA [Desconversando] — Também.


PLAYBOY — Você iria para a cama com uma mulher?


MARÍLIA [Rindo] — Se tivesse muita vontade...


PLAYBOY — Então esse não é um tabu para você?


MARÍLIA — Não, mas não teria um caso com uma mulher. Aproveito a energia e não corto nada. Cortar, para quê?


PLAYBOY — Você não se sente ameaçada?


MARÍLIA — Por que me ameaçaria uma mulher apaixonada por mim? Gosto de gente. A Scarlet [Moon] é que fala isso de mim... Tenho medo de muita coisa. Mas isso não me dá medo.


PLAYBOY — De que você tem medo?


MARÍLIA — Da vida, da morte, do fim de uma relação, de perder o amor dos meus filhos, de entrar em cena e não fazer nada direito, de dormir, de acordar. Tenho muitos medos, mas cumpro meus deveres. O medo não me paralisa. Ou então, quando a coisa passa para o meu corpo, adoeço. Mas não me deixo paralisar.


PLAYBOY — Como é que você cura esses medos?


MARÍLIA — Indo ao fundo do poço.


PLAYBOY — Você vai no fundo, e depois?


MARÍLIA — Encaro de frente, mexo na ferida... Às vezes a causa pode ser até o sucesso, o medo da glória. Como se eu não merecesse.


PLAYBOY — Então o teatro também deprime você?


MARÍLIA — A primeira vez que me senti deprimida eu era adolescente e meus pais estavam desempregados. Eu acordava e não tinha o que fazer, e a depressão ia tomando conta de mim à medida que a noite chegava, porque eu não tinha que me preparar para ir a lugar nenhum. Quando você está nessa profissão, tudo o que você faz de dia é um pouco para, à noite, chegar ao teatro.


PLAYBOY — Você não tem, entre os seus medos, o de acabar numa pior como Marilyn Monroe, Rita Hayworth?


MARÍLIA — Não precisa ir muito longe. É só olhar a minha família. Minha avó, meu tio, meu pai morreram sem nada, nada... [Começa a chorar.] Não tínhamos dinheiro nem para o caixão dele, precisamos fazer uma vaquinha entre amigos. Já tive tanto pânico disso que o Nelsinho uma vez assinou uma folha de papel em branco e disse: "Toma, se eu morrer você escreve nessa folha o que eu tenho e o que eu não tenho para salvar você do Retiro" [rindo outra vez].


PLAYBOY — Por que no Retiro dos Artistas há mais mulheres do que homens?


MARÍLIA — A mulher, como eu, não tem experiência com finanças, acaba investindo tudo — como a Marilyn — em cima da beleza, da coxa grossa, dos braços lindos, da gostosura. E, quando essas coisas vão embora, o que mantém uma mulher dessas de pé? Nada, não é? Por isso, a beleza para algumas mulheres é perigosa. Voltando àquela pergunta que você fez no começo da entrevista, eu diria bem ressentida [falsamente séria] que... "Beleza? Prefiro não ter" [risos].


POR NORMA COURI

FOTOS FERNANDO SEIXAS


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