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MARTINHO DA VILA | JANEIRO, 2008

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com um dos maiores ícones do Carnaval sobre a má fase das escolas de samba, carreira no Exército, relação com comunistas, dívida com bicheiros, amizade com Nara Leão, jantar com Leila Diniz,

briga com Maysa e bebedeiras com Paulinho da Viola, Erasmo Carlos e Vinicius de Moraes


Quem vê o sorriso aberto — assim como a camisa — e o jeitão de falar de Martinho José Ferreira logo imagina que a vida sempre lhe tratou com carinho. Mas ao longo de 69 anos (ele completa 70 no próximo dia 12 de fevereiro), este ícone do samba e do Carnaval carioca se viu obrigado a aprender a superar os caprichos e dissabores do destino. Filho de lavradores, Martinho nasceu em Duas Barras, no interior do Rio. Aos quatro anos mudou-se com a família para a capital e, aos dez, viveu uma trágica experiência: a perda do pai, que se suicidou. Traumático, o fato acabou por ser determinante em sua trajetória. A partir de então, o menino passaria o resto da vida cercado de mulheres, a começar pela mãe e as quatro irmãs. Seu primeiro contato com a escola de samba aconteceu na Aprendizes da Boca do Mato, do morro carioca onde morou na adolescência. Em 1965, Martinho passou a freqüentar a Vila Isabel, na zona Norte do Rio. Dois anos depois, já com o "da Vila" incorporado ao nome, assinou com o compositor Gemeu seu primeiro samba-enredo: "Carnaval de Ilusões", que garantiu um honroso quarto lugar no desfile de 1967. O feito selou uma parceria longa, cujo ápice chegaria em 1988 com "Kizomba, Festa da Raça", quando Martinho, além de assinar o enredo, patrocinou o Carnaval praticamente sozinho e viu a escola se sagrar campeã no centenário da abolição da escravatura.


Paralelamente às suas atividades na Vila Isabel, Martinho apareceu para o Brasil como cantor e compositor quando ainda era sargento do Exército, em 1967, no III Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record, com a música "Menina Moça". Ao longo de quatro décadas, colecionou sucessos como "Casa de Bamba", "O Pequeno Burguês" e "Batuque na Cozinha". Em 1995, o disco Tá Delícia, Tá Gostoso vendeu mais de 1 milhão de cópias, marcando uma nova fase na sua carreira com músicas como "Devagar, Devagarinho". Três anos depois, voltaria a estourar nas paradas com "Mulheres".


Além de 38 discos, que incluem pesquisas em países africanos e gravações em francês, Martinho escreveu sete livros, entre romances, memórias e livros infantis — o mais recente, o romance Vermelho 17, saiu no fim de 2007. Também acumulou mulheres e filhos. A cantora Mart'nália, Analimar e Martinho Antônio foram os primeiros, da união com Anália. Depois vieram Juliana e Tunico (afilhado de Paulinho da Viola, cujo nome de batismo é, acredite, Antônio João e Pedro) do casamento de duas décadas com Russa, e Maíra, fruto da relação com Rita. Em 1993, Martinho casou oficialmente pela primeira vez com Cléo, com quem teve mais dois filhos, Preto e Alegria.


Ainda sem saber se vai ou não pisar na avenida este ano, Martinho recebeu o editor Jardel Sebba para duas sessões de conversa na sede da gravadora MZA, na Barra da Tijuca, no Rio. Trocou os ambientes refrigerados dos estúdios e do escritório pelos fundos da casa, onde podia fumar um cigarro atrás do outro e tomar sua cervejinha (cinco latinhas em duas horas) à vontade durante a conversa. "Martinho foi extremamente simpático, não fugiu de nenhuma pergunta, mas quando a conversa passava da segunda hora em cada sessão (foram quase cinco, no total), dizia que a gente já tinha 'conversado demais', como um sinal de que era o momento de escolher as últimas perguntas", conta Sebba. Dois dias depois do segundo encontro, Martinho cantou na festa de encerramento de 2007 da Academia Brasileira de Letras para uma platéia que incluía imortais, funcionários e a viúva de Roberto Marinho, dona Lily. E enquanto o público das primeiras filas demonstrava sua aprovação com breves sorrisos, um grupo de funcionários no fundão sambava e cantava alto os maiores sucessos do compositor. Prova de que Martinho é, antes de qualquer outra coisa, um artista popular.


PLAYBOY Você vai desfilar na Vila Isabel este ano?


MARTINHO DA VILA Não, o samba é muito ruim. No dia da disputa final, com dois sambas concorrendo, não deram a vitória nem pra um nem pro outro. A comissão de Carnaval fez uma junção dos dois sambas. Aí não tem como ficar uma boa obra. Pode até ficar funcional para os tempos de hoje...


PLAYBOY O samba-enredo mudou muito?


MARTINHO Tudo muda um pouco, e o samba tem um formato diferente hoje. O importante hoje é o pula-pula, o "ôôô", o refrão, o luxo. Eu sinto falta da emoção. Mudou também a forma de avaliação dos desfiles. A campeã não é a escola que teve o melhor desempenho na avenida, um bom enredo, um bom samba, uma excelente bateria, excelentes alegorias e fantasias. Elas são consideradas todas iguais, e os pontos são por eliminação, por erros. Um samba maravilhoso leva a mesma nota de um samba devagar, que se cantou este ano e que ninguém mais quer cantar depois. Hoje há a indústria do Carnaval, que faz as fantasias de todas as escolas. Se você observar, os materiais são todos parecidos.

Mas isso não é um sinal de que está entrando dinheiro no Carnaval? Mas muito por causa disso. Uma escola que queira hoje disputar o campeonato precisa, além dos 2 milhões que a Liga Independente das Escolas de Samba dá, mais 2 milhões. São 4 milhões no total. É muita grana! E o dinheiro extra costuma vir dos patrocinadores. O que mais gosto de fazer é enredo e samba-enredo, duas coisas impossíveis hoje. Os enredos não precisam de idéias, precisam de patrocinadores. E o samba-enredo atual é padronizado, todos meio parecidos, e o meu samba tem outras características. Por isso é difícil para mim ganhar a disputa de samba-enredo na escola.


PLAYBOY Mesmo você sendo o Martinho da Vila?


MARTINHO Perdi as últimas quatro disputas de sambas-enredo na Vila Isabel.


PLAYBOY Isso te decepcionou?


MARTINHO É sempre chato, não há concurso que você perca e não fique chateado. Mas logo passa. O que mais me chateou é que eram sambas que tinham uma proposta de enredo, de desfile. Este ano, por exemplo, com o samba que está lá, o enredo ficou medíocre.


PLAYBOY Antes de virar sambista, você foi sargento do Exército. Como foi parar lá?


MARTINHO Era um emprego. Eu tinha acabado um curso técnico no Senai, minha função era a de preparador de óleos, graxas, ceras, perfumes e sabões. Não sei fazer nada disso [risos]. O Senai me encaminhou para o laboratório do Exército, mas ele só recebia quem já tinha prestado o serviço militar, e eu não tinha. Entrei como arrimo de família, órfão de pai, e arranjaram para que eu fosse fazer a instrução básica num quartel, e prestasse o resto do tempo no laboratório. Como um cabo ganhava muito mais que um funcionário civil com muitos anos de carreira, fiz curso de burocrata e, mais tarde, virei sargento.


PLAYBOY Quando você resolveu virar militar, foi próximo de 1964?


MARTINHO Em 1964 eu já era sargento, isso foi um pouco antes.


PLAYBOY E como o golpe militar daquele ano afetou a sua vida?


MARTINHO Foi uma confusão, porque quando o golpe estava para acontecer, sargentos foram desarmados em vários quartéis porque eles eram considerados inimigos da revolução. Em 1964, eu servia no Ministério do Exército. No dia seguinte ao golpe, afixaram três listas: uns iam presos na hora, outros podiam entrar e outros eram mandados para casa. Eu fui mandado para casa. Fiquei uns dez dias indo e voltando, mas era uma coisa tensa, porque você nunca sabia se ia parar na outra lista.


PLAYBOY Depois que o regime endureceu, em 1968, 1969, como ficou a sua situação?


MARTINHO O ano de 1967 foi quando a minha vida mudou. Mandei uma música pro III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, e ela foi selecionada. O festival era muito forte, e virei notícia de um dia pro outro. Até então eu fazia música para os amigos, só isso. Em São Paulo, conheci o Marcus Pereira, dono da Discos Marcus Pereira, que ficou meu fã. Ele dizia que eu tinha de sair do Exército, mas eu já tinha 13 anos de carreira militar, estava estabilizado e podia chegar a capitão e a major na reserva. Dar baixa naquele momento era complicado. Tinha conversado com outras pessoas do meio, e lembro da Elizeth Cardoso dizendo para eu não dar baixa porque a carreira de artista era muito instável. Fiquei na dúvida, mas o Marcus me disse para vir morar em São Paulo, que me arrumaria alguma coisa, e que ainda me pagaria mais do que eu ganhava no Exército. Tirei uma licença-prêmio de seis meses, depois outra de dois anos e por fim dei baixa.


PLAYBOY Então você estava de licença quando foi decretado o AI-5?


MARTINHO O problema é que havia militares infiltrados em todos os lugares, na música, na universidade, nas escolas. Então os artistas me viam um pouco mal. Por outro lado, os conservadores, os que abraçaram a revolta militar, achavam que eu era comunista. Nos anos 60, quando o samba era muito marginal, havia o grupo Opinião, do Augusto Boal, da Tereza Aragão e do Ferreira Gullar. A Tereza montou uma roda de samba lá chamada A Fina Flor do Samba e eu fui parar dentro do Opinião, onde todo mundo era visto como comunista. Só quando dei baixa, em 1970, é que essa duplicidade de opiniões a meu respeito acabou. E eles não queriam me dar baixa, eu estava para ser promovido a segundo-sargento...


PLAYBOY Por que eles não queriam te dar baixa?


MARTINHO Porque eles queriam manter todas as pessoas de projeção no Exército. Eles argumentaram que eu podia continuar cantando e sendo do Exército, mas expliquei que tinha essa coisa de um lado e do outro, que aquilo era uma confusão, enfim, abri o jogo com eles. Para mim era um problema, eu precisava dar baixa. Eles me deram sob a condição de eu fazer uma propaganda convidando os jovens a se alistarem no Exército. Fiz e eles botaram em todas as televisões. Era tudo o que eu queria, porque ficava claro para todo mundo que estava dando baixa. Aí acabou o meu problema.


PLAYBOY Mas você não podia ficar marcado como defensor das Forças Armadas?


MARTINHO Não, todos veriam que eu estava dando baixa, que não era defensor do Exército.


PLAYBOY Em nenhum momento você teve medo de pensarem que você era um informante do Exército infiltrado?


MARTINHO Não, até porque eu só virei artista mesmo em 1969. Até então estava só de onda, sabe? Eu tirei licença, e pensei que, se não desse certo, voltaria pro Exército. Mas estourei nas paradas e não voltei mais.


PLAYBOY Nos festivais, você estava entre tropicalistas, universitários, comunistas. Como era a sua relação com esses grupos?


MARTINHO Comunista mesmo não tinha quase nenhum. Daqueles artistas ali, ninguém era comunista. Talvez eu fosse mais envolvido que qualquer um deles, por estar no Opinião. Era um período das músicas de protesto, e muitos faziam não porque eram contra o que estava estabelecido, mas porque aquilo dava certo, estava na moda. A maioria dos artistas faz o que estiver dando certo. E alguns intelectuais que foram exilados viveram melhor fora, arrumaram emprego, deram palestra.


PLAYBOY Mas você não era nem simpatizante da causa?


MARTINHO Eu não tinha ligações nem ideologia. Só formei uma ideologia depois de muito tempo, quando comecei a ler mais, a conhecer mais. Eu era só um artista e tinha minha atuação normal. Nunca fui envolvido com nada, nunca fui do Partido Comunista. Tinha só um alto grau de amizade, e quando me chamavam para fazer show, eu ia. A gente fazia shows em apoio ao Chico Buarque, que era o mais visto dessa maneira. O [diretor e produtor de TV] Fernando Faro organizou vários na USP. Muitos colegas não iam, eu fui a todos.


PLAYBOY Você hoje é um comunista?


MARTINHO Eu sou como o meu amigo Oscar Niemeyer, da linha do Ferreira Gullar, do Sérgio Cabral, do Augusto Boal... Ao cantar no grupo Opinião, fiz amizade com esse pessoal todo. Onde os sambistas mais pegavam mulheres era lá. Aquilo lotava, e as mulheres apostavam, apontavam e levavam. E eu era o mito, o que ninguém conseguia levar.


PLAYBOY Alguém te pegou nessa brincadeira?


MARTINHO Ninguém, eu fiz jogo duro [risos].


PLAYBOY Por que, elas eram feias?


MARTINHO Não, tinha cada gata... Mas é que eu descobri que elas chegavam a apostar, escolhiam os homens como se escolhe banana na feira. Por isso, resolvi fazer esse tipo.


PLAYBOY Você fez um show com a Nara Leão em 1970 na Boate Sucata, no Rio, e cantava Roberto, Erasmo e Chico Buarque. Você tentou ser aceito pelo primeiro escalão da música brasileira?


MARTINHO Não faço nada para agradar ninguém, nem disco para vender. Se você fizer aquilo que acha, muita gente vai pensar como você. Faço arte dentro das minhas convicções e sou honesto com o que penso.


PLAYBOY Mas naquele momento não era uma maneira de garantir um lugar no primeiro time?


MARTINHO Não, nunca pensei nisso. Fiquei dois anos tirando uma onda de artista, sabia que aquilo não duraria a vida toda. Vi muitos exemplos, quando entrei no meio artístico, de gente que era deixada meio de lado na gravadora.


PLAYBOY Lembra de alguém em particular?


MARTINHO O Roberto Silva, por exemplo, era um artista de quem eu gostava muito, e que depois até gravou música minha. Uma vez, fui à gravadora Copacabana e o Roberto estava sentado na entrada. Fiquei emocionado em vê-lo. Eles logo me mandaram entrar porque eu tinha aparecido no festival. E deixaram o Roberto lá. Os caras foram conversando comigo até que um falou: "O Roberto Silva está aí há algum tempo, está querendo ir embora". Chamaram ele e disseram: "Olha, agora não podemos conversar, mas precisamos falar do seu próximo disco, porque o último não vendeu nada...". Isso dito de uma maneira grosseira.


PLAYBOY Você virou Roberto Silva em algum momento da sua carreira?


MARTINHO Nunca. Eu nem sonhava em ser artista, não pensava em ser cantor. No festival de 1967, só cantei porque o Jamelão não pôde ir, foi tudo por acaso. Recebi um recado para procurar o Rildo Hora na RCA Victor, e pensei: "Oba, alguém vai gravar música minha". Quando cheguei lá, o Rildo estava com um contrato para mim como cantor. Aquilo foi um balde d'água fria. Falei que não queria ser cantor. Resisti um pouco, mas gravar era mesmo difícil, e eu seria o único compositor com músicas próprias num LP. Era um cartão de visitas. Quando eles ouviram o disco, acharam fantástico, resolveram lançar e estourou. No segundo disco, eu queria algo mais harmonizado, com orquestra e tal, e se não fosse daquele jeito eu não iria fazer. Era 1970, e pensei: "Qualquer coisa ainda dá para voltar pro quartel". E eles gostaram da idéia. Mas como o primeiro ainda estava tocando, o segundo vendeu menos. Quando fui fazer o terceiro, me chamaram lá como fizeram com o Roberto Silva.


PLAYBOY Senta aí e espera?


MARTINHO Não, porque eu não ia esperar. Mas a primeira frase deles já foi infeliz: "Você é uma estrela do Brasil, mas este seu disco é um fracasso, e para a gente fazer outro temos que pensar bem, planejar, fazer com a equipe". Não gostei da conversa e propus: "A gente cancela o contrato, não precisamos fazer outro disco, e eu volto pro quartel". Nisso eu já estava indo embora, quando foram me buscar. Aí pegaram a lista dos mais vendidos da gravadora. A estrela da RCA era o Nelson Gonçalves, que tinha vendido 18 mil! O mais vendido da gravadora ainda era o meu. Então topei fazer outro disco, desde que eu dissesse como seria.


PLAYBOY O pessoal da turma de Ipanema tinha preconceito contra você?


MARTINHO Quando a Nara Leão me convidou para fazer o show na Boate Sucata, havia um preconceito muito grande com o pessoal do samba. Teve até um cara que escreveu no Pasquim: "Cheguei de viagem e fui na Sucata. Lá eu vi: 'Hoje, Martinho da Vila', voltei".


PLAYBOY Quem foi?


MARTINHO Deixa quieto, depois ficamos camaradas, e o cara já morreu... O pessoal de Ipanema implicava muito comigo. Fiquei aborrecido com a Maysa porque, numa entrevista, o pessoal forçou e ela falou umas coisas a meu respeito. Hoje está tudo mais misturado, mas naquela época não era assim. Conheci o Vinicius [de Moraes] quando inventaram aquele negócio de calçada da fama em Ipanema. Cheguei lá e estava aquele pessoal todo. Quando ele me viu, me chamou de "meu grande amigo", veio, sentou e ficou comigo quase a noite inteira. Uma vez, mais tarde, ele me disse que queria conhecer bem uma favela, que ele não conhecia, e eu fui lá e arranjei um barraco para ele no morro dos Macacos. Fiz a mudança dele, combinei com o pessoal da favela que era para ninguém perturbá-lo naquela semana. Depois apareceu uma turnê e ele acabou não indo morar lá, e eu fiquei mal com a turma do morro... O último show que o Vinicius viu no Brasil foi o meu, no teatro Clara Nunes, em 1980. Logo depois ele morreu.


PLAYBOY Quem parava de beber antes?


MARTINHO Eu bebia bastante, mas o Vinicius bebia mais. Ele bebia constantemente, por isso teve cirrose. Eu também comecei a beber muito tarde. Quem bebe desde cedo, cedo já está baleado, diferente de quem tem uma boa reserva. Eu nunca bebi de manhã, por exemplo.


PLAYBOY O álcool te trouxe problemas de saúde?


MARTINHO Trouxe sim, nos anos 80. Eu fiquei maluco, porque bebia muito e nunca tinha ressaca. Bebo e acordo normal no outro dia. Dificilmente cambaleio ou fico caído, e isso é muito perigoso, porque você está sempre legal, só que cada vez mais agitado. Eu fiquei doidão por causa disso. E quando você bebe entre amigos, fica legal, mas se bebe discutindo, fica uma coisa tensa, ruim. Nem lembro direito o que foi que aconteceu, porque já passou, mas eu estava muito tenso naquela época. Fiquei dois anos sem beber por causa disso.


PLAYBOY As mulheres ficaram mais feias?


MARTINHO Não, mas os bêbados ficaram mais chatos. A minha onda era ver a transformação das pessoas.


PLAYBOY O que você gosta de beber?


MARTINHO Eu bebia de tudo, mas hoje eu gosto de vinho, que é a pior bebida que existe...


PLAYBOY Por quê?


MARTINHO Porque no início você toma aquele vinho do garrafão e acha ótimo. Depois você naturalmente apura o gosto e não consegue mais beber vinho ruim, e vinho é uma bebida muito cara. Gosto de cerveja quando estou com sede, ou quando estou falando muito, como agora... O que acontece hoje é que não posso mais misturar as bebidas. Estou tomando cerveja, se me chamarem para tomar um vinho depois, nem pensar.


PLAYBOY Mas antigamente você misturava?


MARTINHO Na boa. Tomava leite, cachaça, tudo certo... [Risos.] Agora já tem dia em que quase não bebo. Volta e meia passo um tempo sem beber. Porque quem bebe bebe todo dia, né? Então é legal passar uma semana, dez dias sem.


PLAYBOY Antes disso, você chegou a tomar muito porre de cair?


MARTINHO De cair não, porque tem uma hora que eu durmo. Dava para ficar a noite inteira biritando, e ficava elétrico, mas tinha uma hora que o corpo cansava, e onde estivesse, eu dormia.


PLAYBOY Foram seus únicos vícios, bebida e cigarro?


MARTINHO Foram. Nunca fumei maconha e nunca cheirei. Nunca quis cocaína porque dizem que o principal efeito dela é deixar o cara brocha. Estou fora dessa parada aí! [Risos.] Maconha, eu não gosto do cheiro, me causa repulsa.


PLAYBOY Além do Vinicius, quem mais foi seu companheiro de copo?


MARTINHO O Erasmo também biritava bastante. A gente foi fazer um show no Norte uma vez, lançamento de uma cachaça, e bebemos todas, depois trocamos de blusa, foi uma beleza. Quem também bebia muito era o Waldick Soriano. Éramos da mesma gravadora e ele gostava de ser o maior dos biriteiros. Eu dizia: "Waldick, você não bebe nada", e ele respondia: "Martinho, vamos beber um dia juntos, nós dois, pode marcar". Eu sempre escapava, porque ele bebia muito e eu ia perder de goleada. Cachaça e cerveja, o Waldick era profissional.


PLAYBOY E o Nelson Gonçalves? Ele também pegava pesado, não?


MARTINHO Pegava. A gente viajava junto para São Paulo, e ele só ficava num determinado hotel. Brigava para eu ficar no mesmo hotel que ele, sendo que os caras me pagavam hotéis melhores. Eu falava: "Nelson, o meu hotel é muito melhor". E ele respondia: "Mas lá no hotel tal eles já me conhecem, eu chego e tem três mulherzinhas. Eu mando uma de volta, outra de volta, uma sempre fica". Eu ria muito com o Nelson.


PLAYBOY Quais desses artistas são bons amigos?


MARTINHO Dos colegas artistas, o Paulinho da Viola, Luiz Carlos da Vila, as cantoras todas. Você falou de bebida, o Paulinho bebia muito mais que eu. Mas ele não dava bandeira [risos]. Ele era de tomar cachaça, que eu nunca bebi muito. Mas eu bebia, ficava doidão, enquanto ele mantinha aquela elegância...


PLAYBOY O Vinicius serviu de ponte para você conhecer outras pessoas, como o Tom Jobim?


MARTINHO O Tom Jobim era meu chapa. Uma vez, ele foi fazer um show numa casa chamada Imperator, no Méier, e me chamou: "Martinho, não conta para ninguém, mas eu nunca fui ao Méier!" [risos]. Eu falei que ele podia ir, que era legal. Ele tinha uma irmã que era minha fanzoca, e dizia para ele: "O Martinho é muito melhor que você!" [risos] . Sempre dei muita sorte com as mulheres, elas me deram suporte, retaguarda. Numa festa beneficente, eu cantei e já ia embora, quando a Leila Diniz me chamou para ir jantar com ela num restaurante da moda em Ipanema. Eu falei que não ia, mas ela insistiu: "Não, você vem comigo". Cheguei lá com ela e todo mundo achou que eu estava com a Leila Diniz...


PLAYBOY Você citou duas belas mulheres, a Maysa e a Nara Leão. Rolou alguma coisa com elas?


MARTINHO Com a Maysa, não. A gente inclusive brigou por causa de um festival que eu estava concorrendo e ela fazia parte do júri. Era o festival da Record de 1969 e eu concorria com o "Samba do Paquera". O esquema era diferente. O compositor ficava sentado numa cadeira enquanto o intérprete cantava. Se ele mesmo fosse o intérprete, cantava e depois sentava na cadeira e ouvia o parecer do júri. Não podia falar nada, depois levantava e ia embora. E eu vi que o júri falava sempre mais do artista e muito pouco da música. Achei um absurdo. Eu não ia sentar naquela cadeira, cantar e sair. Mas não falei nada para ninguém. Na tarde anterior, tinha ouvido por acaso a Maysa dando entrevista numa rádio: "Aquele Martinho da Vila, ele vai ouvir umas coisas...". Depois encontrei a Aracy de Almeida saindo de uma boate. [Imitando a Aracy] "Martinho, vou acabar com você amanhã, você tá fodido!". No dia seguinte, na minha vez de me apresentar, aproveitei para falar umas coisas: "Este festival está muito mal colocado, esta fórmula não está legal, e este júri ai não está com nada. Ninguém entende de música...". E era ao vivo! Meti o pau no júri! "Maysa Matarazzo, por exemplo, tá aqui fazendo o quê? Seu negócio é tomar cachaça... E a Aracy de Almeida? Já morreu e esqueceu de deitar..." A Maysa ficou puta, a Aracy ficou puta, eu cantei e saí fora. O festival até acabou...


PLAYBOY E a Nara Leão?


MARTINHO A Nara era muito amiga. Os shows na Sucata eram só para determinados intérpretes da elite da música, e ela me convidou para fazer com ela. O show chamava-se De Terra, de Nara e de Vila, nós dois e o Terra Trio. Fizemos o show e ficamos amigos.


PLAYBOY Mas ela era a maior gatinha, não rolou nada?


MARTINHO Ela era gatíssima mesmo, mas não rolou. Acho que o Cacá [Diegues] ficava um pouco enciumado, porque toda noite ele ia lá, gastava um dinheiro enorme... [Risos.]


PLAYBOY Dessas meninas do meio artístico, alguma passou pelo seu crivo?


MARTINHO Não me lembro. Esta coisa de "já tive mulheres de todas as cores", isso é um papo do Toninho Geraes, que fez a música; eu só dei uns toques e botei do meu jeito. Quando escolheram para ser música de trabalho, fui contra, achava que só ia gostar quem já havia tido muitas relações, os mais novos não iam querer. E até criança gosta, é inexplicável. Tinha um amigo gay que falou: "Você fez a música para nós, os gays!". E explicou: "É porque você fala que teve isso, teve aquilo, e que finalmente encontrou a pessoa ideal, mas não fala que é uma mulher!" [risos] . Podia ter virado um hino gay!


PLAYBOY Mas você tem fama de pegador, sabe disso, né?


MARTINHO É, mas aí é só fama. Já tive fama de doidão, de drogado, de biriteiro... E drogado, por exemplo, eu nunca fui. É a coisa da pessoa pública. Tenho colegas que dizem que quando a mãe briga com o pai, ela me vê na televisão e fala: "Aquele ali, se quisesse... O dia que eu encontrar com o Martinho da Vila, você vai ver...".


PLAYBOY Mas quantas mulheres, dá para chegar em mil?


MARTINHO — [Espantado.] Não! Não sei, não tenho a menor idéia. A relação homem e mulher é naquele tempo determinado. Uma mina que você teve um tempo atrás, transou, foi legal, já passou. A única coisa que posso dizer é que as minhas relações foram todas muito legais.


PLAYBOY Você já tomou Viagra?


MARTINHO Tomei uma vez, por prescrição médica, não para transar. Eu fiz uma música com o João Donato chamada "Suco de Maracujá", ele pensou no título, e eu fiz uma letra sobre um cara que toma todos os afrodisíacos naturais e depois toma suco de maracujá para se acalmar. Catuaba, amendoim, ovo de codorna e o pau de cabinda, que aqui ninguém conhece. É extraído da casca de uma árvore de Angola. Você bota em um pouco d'água, pouquinho porque é forte, bebe e fica bom. Era usado lá depois das festas de casamento, quando o casal ia direto para o quarto, e o cara pegava um pau de cabinda e deixava por lá. O pessoal diz que funciona muito.


PLAYBOY Você não experimentou?


MARTINHO Não, mas trouxe numa viagem. Tenho até medo de usar, mas, por via das dúvidas, está lá...


PLAYBOY A cantora norte-americana Madeleine Peyroux não deu em cima de você?


MARTINHO Eu convidei-a para ir ao meu sítio, e ela queria que fôssemos só nós dois, não levou ninguém da equipe dela. Mas fui com outras pessoas. Chegando lá, ela conheceu a minha esposa. Mas ela é uma mulher bastante interessante.


PLAYBOY Você faz 70 anos em fevereiro. Qual é o médico que você mais freqüenta hoje?


MARTINHO O neurologista. Mas todos os homens têm problemas na próstata, e já tinha um tempo que eu não fazia exames. O médico falou que eu estava legal, mas que deveria fazer uma biópsia para ver como estava a próstata, porque no exame de toque ela estava legal.


PLAYBOY Você passou tranqüilo pelo exame de toque?


MARTINHO Tranqüilo. Mas é que às vezes escapa uma coisinha. Decidi fazer e apareceu um câncer bem no início. Como foi constatado logo, pôde ser curado. Fiz a cirurgia, mas você precisa ser homem para tirar a próstata. Sabe quais são as conseqüências? Você pode ter incontinência urinária, ter que andar com uma bolsa, aquela coisa horrível. E se o médico errar a mão, o cara pode ficar impotente. É brabo, né? Mas eu fiz, e não tive problema nenhum, a única conseqüência foi até uma vantagem: eu sou como um homem que fez vasectomia, não consigo mais engravidar uma mulher.


PLAYBOY No quesito impotência, a cirurgia não alterou em nada?


MARTINHO Nada, nadinha mesmo, graças a Deus...


PLAYBOY Você sempre foi popular. Ganhou muito dinheiro?


MARTINHO Sim, mas quando comecei, ninguém pagava sambista. Eu era o primeiro do Brasil, e queriam que fizesse show de graça. Se isso tudo desse realmente muito dinheiro, eu estaria milionário. Dinheiro é feito para trazer satisfações. Na época do [samba-enredo] "Kizomba" da Vila Isabel, em 1988, os bicheiros tinham se afastado, a escola estava sem quadra. Eu que financiei aquilo tudo ali, e fiz com o maior prazer.


PLAYBOY Os bicheiros voltaram?


MARTINHO Não voltaram muito, ficou meio assim, está meio assim, meio lá, meio cá...


PLAYBOY Quando você entrou na escola, em 1965, os bicheiros já estavam lá. Sua relação com eles era tranqüila?


MARTINHO Bicheiro famoso de escola de samba era o Natal, da Portela, mas a Vila sempre teve grandes contraventores. E eles gostavam muito de mim. A subvenção oficial às escolas de samba chegava muito tarde, então as escolas pegavam dinheiro emprestado com eles e depois pagavam. Mas às vezes não pagavam, porque não tinham como...


PLAYBOY Você nunca teve medo de lidar com esse pessoal?


MARTINHO Não, porque eu sou assim: eu lido contigo aqui e não quero saber do resto da sua vida. Mas nenhum bicheiro investiu mais na Vila Isabel que eu. E olha que eles investiram bastante. Teve um ano que foi gozado. O Miro [o bicheiro Miro Garcia] era presidente da Vila e não podia se reeleger, então botou um cara na presidência, um advogado, que era metido com bandido. Depois os dois se desentenderam e o Miro ficou fora. Perto do Carnaval, estava faltando dinheiro pra caramba. Sábado de Carnaval, e o presidente não havia pago ninguém. O pessoal estava ameaçando quebrar tudo. Cheguei lá e falei pro pessoal: "Seguinte, vamos resolver isso aqui". Alguém gritou: "Maninho, não me venha com cheque!" [risos] . Mas como é que eu ia arranjar dinheiro no sábado de Carnaval? Era uma grana alta, algo em torno de 400 mil reais hoje. Saí de lá sem saber o que fazer. Aí me disseram que o Miro estava me procurando, ele havia ligado no botequim para falar comigo: "Me disseram que os caras querem quebrar tudo. Então você diz que eu vou arrebentar todo mundo". Expliquei a situação. Ele me disse para ir encontrá-lo, e falou: "Para a escola eu não empresto mais, mas se você quiser eu empresto para você". Aí eu respondi: "Porra, mas eu não tenho como...". "Eu empresto para você e você me paga quando puder." Falei que ia ter de pagar aos pouquinhos, sem data certa. O Miro disse: "Você falando que vai pagar pra mim está bom". Daí a pouco, chegam uns caras com aquelas sacolas de mercado cheias de dinheiro. Peguei a grana, paguei todo mundo e acertei aos pouquinhos depois com o Miro. Ele era camarada.


PLAYBOY Já falamos sobre ser comunista. Ainda na política, o governo Lula te agrada?


MARTINHO Agrada bastante. Eu fui eleitor do Lula e sou amigo dele. Ele me chama de Zé Ferreira e eu o chamo de Zé Inácio...


PLAYBOY Chegou a ter uma certa proximidade do presidente?


MARTINHO Sim, bastante, mas depois que ele se tornou presidente, a gente se falou pouco. Ele já reclamou que eu estive em Brasília e nem o procurei. Para o Brasil, o governo Lula foi muito bom. Demos uma lição democrática muito grande, colocamos um trabalhador na Presidência. O Lula não tem cultura de banco de escola, mas domina os assuntos políticos mundiais todos. Talvez seja o presidente com maior cultura política que tivemos. Tem uma inteligência fora do comum.


PLAYBOY Mas quase derrapou na época do mensalão...


MARTINHO Ele, no entanto, superou estas questões todas. E o que é isso? Cultura política. Eles não souberam foi fazer, eles quiseram institucionalizar. Não sabiam roubar, e quem não sabe roubar deixa furo [risos]. Para votar uma coisa de interesse do governo no Congresso, dois terços dos deputados ficam de braços cruzados, esperando uma vantagem. A minha leitura é que eles pensaram: "Em vez de negociar a cada vez, a gente põe logo uma mensalidade para eles" [risos]. Aí foi uma confusão.


PLAYBOY Não era para o governo do PT ter sido diferente?


MARTINHO Era sim, sinceramente, para ter sido diferente. Mas o deputado e o senador não votam por aquilo que eles acham necessário para o Brasil, votam o que convém para eles e para o partido deles. Senão, nem precisava negociar. Negociata sempre houve. Eu achei até que ele ia dançar [risos], mas ele foi esperto. O pessoal do Casseta & Planeta que fazia bem: "Eu não sei nada, eu não vi nada, eu não sei de nada". Ele nunca sabia... [Risos.]


PLAYBOY Conhecendo ele pessoalmente, você acredita que ele não sabia de nada?


MARTINHO Acredito que muita coisa ele sabia, mas tem coisas que não dá pra saber mesmo. O meu escritório é minúsculo, e eu não sei tudo o que se passa lá. Controlo bem, sei de quase tudo, mas se eles quiserem esconder algo de mim, eu não vou saber.


PLAYBOY Eu nunca vi você falar do seu pai. Por que ele se suicidou?


MARTINHO Meu pai, lá em Duas Barras, tinha uma posição privilegiada para o pessoal de baixo, e quando eu nasci, ele resolveu ir para o Rio. A gente morava numa favela, a Boca do Mato. A localização era ruim, não tinha piso, os barracos eram muito pequenos. Ele estava meio endividado, e se suicidou. Eles iam buscar alguma coisa em uns caminhões na Rio-São Paulo, e ele parou lá, subiu numa árvore e pulou. Foi premeditado. Eu tinha dez anos, mas lembro bem dele. A melhor lembrança que tenho é de um Natal em que ele não pôde comprar presentes para nós cinco. Passou uma semana, saiu um dinheiro, e ele comprou uma bola e um caminhão daqueles grandes para mim, e umas bonecas para as minhas irmãs. Foi uma festa. É uma lembrança muito boa.


PLAYBOY Como era o morro na época em que você morou lá?


MARTINHO A Boca do Mato era um morro muito tranqüilo. Para você ter uma idéia, fiquei lá até completar 30 anos, e nesse período só aconteceram dois crimes.


PLAYBOY Você voltou lá depois?


MARTINHO Não gosto muito de ir, porque mudou muito. Não tem mais os times de futebol, não tem mais a escola de samba, não tem mais os blocos, o que é que eu vou fazer lá?


PLAYBOY Beleza, Martinho, obrigado pela conversa. Tem mais uma coisa que eu queria falar.


MARTINHO Todo sambista, quando está brigado com a diretoria da escola, diz que não vai desfilar. Quando chega perto do Carnaval, o cara acaba desfilando. Isso pode acontecer comigo este ano. Em princípio não, porque estou bem desanimado, mas pode ser que eu resolva desfilar. Quando chega perto do Carnaval muda tudo.


POR JARDEL SEBBA

FOTOS CAMILA MARCHON


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