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MUHAMMAD ALI | DEZEMBRO, 1975

Playboy Entrevista


Poeta, falastrão, palhaço, muçulmano, o mais lindo campeão do mundo.


Depois de quinze anos de carreira, três deles sem poder lutar, Muhammad Ali convenceu aos mais céticos apreciadores do boxe: é o maior lutador de sua geração, talvez até de várias gerações. Despertando antipatias e simpatias aparentemente gratuitas ao longo de todos esses anos, criou em torno de si uma aura olímpica, valendo-se de todas as oportunidades, mas, principalmente, utilizando com prazer a sua capacidade para falar pelos cotovelos. Mostrou ser "o mais belo" dos campeões, preservando seu rosto em milimétricas esquivas. Insistiu na poesia, apesar da qualidade, até ser finalmente considerado um mau-poeta, mas um poeta. Se foi mais homem que os homens nos dias alegres, irresponsáveis e festeiros do jovem Cassius Marcelus Clay Jr., buscou a outra metade de sua imagem de semideus nos mantos brancos e no ascetismo dos Muçulmanos Negros.

Nos ringues, ele não deixou impunes aqueles dois únicos adversários que o derrotaram, Joe Frazier e Ken Norton, esmagando-os quando a idade já roubava parte de seu favoritismo. O bailarino, o incrível "peso-pluma" de 93 quilos dos anos 60, se transformou no mais ágil dos pesos pesados, já com 106 quilos e 33 anos, em 1975. Quem o entrevista com exclusividade é o repórter Lawrence Linderman.


Muhammad Ali nasceu em 17 de ja­neiro de 1942, em Louisville, no Ken­tucky, recebendo o pomposo nome de seu pai, o pintor de cartazes Cassius Marcelus Clay. Aos 12 anos de idade, já bem mais forte que o resto dos garo­tos, tomou a decisão de não apenas lu­tar boxe, mas de ser um Grande Cam­peão. Aos 18, em Roma, foi campeão olímpico dos pesos pesados e quatro anos depois, derrotando Sonny Liston, em Miam, tornou-se o Grande Cam­peão profissional de todos os pesos que se propusera a ser.


Falando muito, anunciando sua beleza e o round em que derrubaria os adversários por meio de versos ingênuos de sua palavra, Clay acabou radicalizando de vez as opiniões a seu respeito quando, con­vertido à seita dos Muçulmanos Ne­gros, recusou-se a prestar serviço mili­tar, e isto em 1967, em plena guerra do Vietnã. Processado, teve seu titulo cassado e foi proibido de lutar. Vol­tando aos ringues fora de forma, desa­fiou Joe Frazier, o campeão, em 1971, perdendo por pontos. De lá para cá, ar­rasou Frazier duas vezes, destruiu o novo campeão George Foreman, sendo o segundo lutador na história a recuperar o titulo máximo de sua categoria.


HOMEM — A primeira vez que o entre­vistei, Ali, você ainda era Cassius Clay; isto tem mais de dez anos. O que esta­ria fazendo o velho Cassius hoje em dia?


MUHAMMAD ALI — Estaria treinando em Paris, os franceses sempre lhe ofereceram hotel grátis naquelas praias; ou na Jamaica, num hotel de luxo. Hoje, quando vejo uma mulher, faço o possível para lhe ensinar tudo sobre o grande Elijah Muhammad. Cassius Clay a levaria para um quarto de hotel e a usaria. Se eu ainda fosse Cassius Clay, seria igual ao Floyd Patterson, teria uma mulher branca, não representaria os negros de forma alguma. Se eu fosse Cassius Clay esta noite, provavelmente estaria num imenso hotel em Nova York e sairia para me divertir um pouco. Iria a uma discothèque cheia de garotas brancas, escolheria a mais bonita e passava a noite com ela.


HOMEM — Era isso que Clay fazia?


ALI — Quase isso.


HOMEM — Mas nunca chegou até lá?


ALI — Antes de me tornar um muçul­mano negro, tive uma namorada branca por dois dias. Não me senti bem, tinha que disfarçar, sair de mansi­nho. Homens negros com mulheres brancas podem até achar que estão apaixonados, que está tudo ótimo, mas você os vê na rua e eles estão envergo­nhados. E vi como isso era imbecil. Hoje estou casado e apaixonado por uma negra linda. Se não estivesse, es­taria correndo atrás de outra negra linda.


HOMEM — Você acha que vai se tornar uma lenda nacional americana?


ALI — A lenda de Muhammad Ali já está escrita, eu mesmo a escrevi.


HOMEM — Falando nisso: é você mesmo quem escreve as poesias que você lê?


ALI — Claro. Ei, meu chapa, sou tão bom que já me chamaram para ser ca­tedrático em Oxford. Sabe, sou um su­jeito do mundo, que gosta de gente, de movimento, mas quando me vejo numa cidade, só penso em voltar para interior. Barulho, neon, carros, isso enlouquece uma pessoa. O melhor lu­gar do mundo, para mim, é minha chá­cara no interior da Pennsylvania: lá posso treinar, escrever, viver em paz. E escrevo o tempo todo que estou por lá, mesmo em época de treinamento. Sabe, foi lá que escrevi o melhor poema do mundo.


HOMEM — Como você sabe que é o melhor do mundo?


ALI — Porque explica a Verdade. Al­guma coisa pode ser melhor que isso? É uma verdadeira obra-prima. Mas não tenho feito só poemas. Quer ouvir al­guns dos meus pensamentos?


HOMEM — Tenho outra escolha?


ALI — Ouve só: "O homem sem imagi­nação tem os pés na terra; ele não tem asas, não sabe voar". E esse: "Quando estamos certos, ninguém se lembra; quando erramos, ninguém se esquece". Gosto muito desse, ouve só: "A riqueza do homem está no conhecimento, não está no banco. Se estiver no banco, ele não a possui, porque está no banco". Pegou todos, hein?


HOMEM — Peguei, Muhammad.


ALI — Então tem mais: "O carcereiro está em pior situação do que o prisio­neiro, porque, enquanto o corpo do prisioneiro está fechado, é a mente do carcereiro que está aprisionada". Sá­bias palavras de Muhammad Ali! E este, sobre a beleza, ouça lá: "Só quem atingiu a beleza interior é que pode apreciar a beleza em todas as suas for­mas". E o que você acha desse: "O amor é uma rede em que os corações são apanhados como peixes".


HOMEM — Um pouco piegas, não é, Ali?


ALI — Na hora que eu te vi, percebi logo que não era um cara inteligente. Mu­hammad Ali é muito mais profundo que o boxe, meu filho.


HOMEM — Mesmo assim, vamos falar de boxe, tá? Qual a sensação que se tem debaixo duma série de golpes como os de Frazier e de Foreman?


ALI — Pegue um galho, um porrete, e dê com ele no chão com toda a força. Você vai sentir a sua mão vibrar, fazer boeeiiinnng. Levar um soco daqueles é o mesmo impacto, só que no corpo in­teiro, e você leva uns 10 a 20 segun­dos até se livrar do impacto. Se leva outro soco antes disso, começa outro boeeiiiinnng maior ainda.


HOMEM — Depois de levar um desses, você ainda comanda seu corpo?


ALI — Não, você não consegue pensar, fica abobalhado, não sabe nem porque foi parar ali em cima. Só que eu estou autocondicionado, reajo automatica­mente: levo um soco desses e mesmo sem pensar eu danço, ou corro, ou me agarro no sujeito, ou abaixo a cabeça. Eu apanho volta e meia mas Sugar Ray, Joe Louis, Rocky Marciano, todos tam­bém apanharam. Mas eles tinham uma coisa que a maioria não tem: capaci­dade de agüentar em pé até clarear a cabeça. Eu também tenho essa capaci­dade, e tive que usá-la nas duas primei­ras lutas com Frazier. Entre outras coisas, sou um grande lutador em matéria de defesa.


HOMEM — Por isso você planejou aquela tá­tica para derrotar George Foreman no Zaire?


ALI — Não, não planejei. No fim do pri­meiro round, senti que não ia agüentar aquele ritmo e que, do jeito que a luta andava, George ia agüentar. Se fizesse sete ou oito rounds dançando, estaria sem resistência na hora de recorrer as cordas e George me pegaria de jeito. Resolvi ir para as cordas ainda inteiro, e assim fiz com que ele se cansasse.


HOMEM — Foreman ficou desnorteado quando te prendeu num córner e não acertava os socos?


ALI — Ele só sabe fazer isso: levar o ou­tro pro córner e mandar soco. Se já es­tava fazendo isso, não sabia mais o que fazer. Mas achou, sempre, que no pró­ximo round ia me acertar como queria. De repente, percebeu que já tinha jogado tudo e não tinha conseguido nada.


HOMEM — Como você percebeu isso?


ALI — Abri espaços de propósito, mas ele não tinha mais como explorá-los; estava mortinho, dava socos sem direção, caía pelas cordas. Comecei a dizer como isso era feio: "Olha só, meu chapa, você não é campeão de nada, tá lutando como uma bicha. Faça al­guma coisa, campeão das bichas, vem, vem".


HOMEM — Ele tinha tanta certeza assim de que ia te ganhar que nem se preparou direito?


ALI— Não, George não me menospre­zou. Lutou mais duro comigo do que com qualquer outro. Ganhar de mim é como ganhar de Joe Louis, como ser homem que sacou mais rápido que Jesse James. Ele não percebeu é que era muito mais difícil me acertar do que parecia; e não sabia como eu bato com força. Antes da luta, quando o juiz dava instruções, eu avisei a ele: "Agora você está frito, não pode fugir mais. Está so­zinho num ringue com o maior lutador de todos os tempos, meu filho. Desde menino que você me acompanha, quer me derrubar, quer ser o campeão, mas agora eu te peguei, campeãozinho de bosta. Vou te jantar aqui em cima".


HOMEM — E quando vocês se enfrentarem novamente?


ALI — A próxima luta com ele vai ser mais fácil ainda. Agora George sabe que pode ser nocauteado, e vai ter que se fechar mais na defesa, atacar menos. Mas sua única chance de vitória é partir pra cima de mim, me imprensar num córner e bater, bater, torcendo para en­caixar um ou dois golpes poderosos através da minha guarda. Mas ele vai ficar meio constrangido em fazer isso, porque ele já tentou isso — mandar tudo que tinha — e só conseguiu se cansar e ser nocauteado. Repetir o mesmo bam-bam-bam daquela vez vai destruí-lo mentalmente, porque a pri­meira coisa que vai pensar é "Eta ferro, lá vou eu pro bagaço de novo!" E aí, então, ele vai procurar o centro do rin­gue para boxearmos mais um pouco. E é aí que eu quero que ele fique. Jabs e troca de golpes curtos no centro do ringue é a minha, não a dele, e aí mesmo é que ele está acabado. A única chance que ele teria seria me mandar para as cordas e bater sem parar — mas ele sabe que isso não é bom, porque as maiores chances são de que ele não me atinja e acabe se cansando. Mas se não fizer isso, as coisas ficarão piores ainda para ele, porque eu vou casti­gá-lo com minha esquerda. Em outras palavras, se ele fizer uma coisa está er­rado, se fizer outra também. E vou der­rotá-lo porque ele sabe disso e estará sem confiança. Na primeira, eu o derro­tei porque ele se achava um grande leão indestrutível — mas ele já desco­briu as verdades na vida depois de nosso pega na floresta.


HOMEM — Você gostou da ideia de lutar no Zaire?


ALI — Eu queria tanto recuperar o meu título que enfrentaria George Foreman até numa cabine telefônica. Campeão Mundial dos Pesos Pesados. É um tre­mendo título. Onde eu vou, sempre tem um pai dizendo para o filho: "Olha, filho, aquele ali é o campeão mundial dos pesos pesados". Quando ganhei o título pela primeira vez, de Sonny Liston, fiquei muito deslumbrado, não cheguei a ter consciência de nada. Agora, nesta segunda vez, eu gosto do título, teria ido a qualquer canto do mundo para conseguir de volta. Para ser franco: quando soube que era na África, só rezei para não dar nenhuma confusão. Mas depois que cheguei ao Zaire, vi o estádio, o país, o povo, meus olhos se abriram.


HOMEM — Como assim?


ALI — Vi negros dirigindo o seu próprio país. O presidente negro de um povo negro e humilde de um país moderno. Boas estradas, edifícios, lojas, shopping centers. Kinshasa lembra muitas cida­des americanas. Costumava me sentar na beira do rio para ver as barcaças aqui embaixo e os Jumbos 747 lá em cima, e eu sabia que eram pilotos ne­gros, aeromoças negras, e eu achava tudo isso muito bom. No Zaire, tudo é negro, maquinista de trem, dono de ho­tel, professor, até as caras impressas nas notas de seu dinheiro são negras. Como eu sou negro e sou muçulmano, me sentia em casa por lá. Mais do que aqui.


HOMEM — Por quê?


ALI — Porque os negros americanos não serão livres enquanto estiverem na terra do homem branco. Olhe, meu amigo, todo mundo quer ser livre, os ti­gres, os pássaros, todo mundo. E nós, os negros americanos, só seremos livres quando tivermos nosso próprio país, quando nos separarmos dos Esta­dos Unidos da América. Teremos nos­sas próprias leis, nossos próprios juízes, escolas, moeda, passaporte, não im­porta se esse país for aqui ou na África. Elijah Muhammad disse que a América deveria fornecer meios para que voltás­semos à África para construir nosso pais: os Estados Unidos só ficaram ri­cos graças ao trabalho do negro, e po­dem muito bem nos fornecer recursos para mantermos nosso país nos primei­ros 25 anos de vida. Não posso dizer que essa terra é minha se a qualquer momento pode aparecer uma velha branca me cobrando 4 mil dólares se eu quiser continuar a ser dono desta terra. Se eu ainda achasse que esse im­posto beneficiaria meu povo, não me in­comodaria em pagar. Mas isso não acontece. Precisamos da nossa própria nação.


HOMEM — Como é pouco provável que os Es­tados Unidos criem uma nação negra aqui ou na África, você é pessimista em relação ao futuro das relações raciais na América?


ALI — Os Estados Unidos da América não têm futuro algum! A América será destruída! Alá enviará o divino castigo sobre este país! Vão pagar por todos os linchamentos e assassinatos de escra­vos, pelo que é feito até hoje ao negro. Eu gostaria de poder provocar tudo isso, mas só Alá o fará. Não posso te dizer se ocorrerá du­rante a minha vida, mas a força divina trará a destruição da América, porque é justo que os negros tenham a sua na­ção. Hoje não temos nada: se o branco resolver fechar seus mercados e mer­cearias, os negros morrerão de fome. Estamos cansados de não ter nada, de termos que morrer e ir para o céu para termos alguma coisa. Fisicamente, o honrado Elijah Muhammad já se foi, mas sua mensagem ficou: os muçulma­nos negros não se satisfarão jamais com a integração dos empregos vaga­bundos, das promessas. Queremos a nossa nação. Somos 40 milhões de pessoas. Em Cuba, são 10 milhões e quando dizem para os Estados Unidos não se meterem, os Estados Unidos não se metem. Nigerianos e ganeses têm seus próprios países, mas nós so­mos uma nação de escravos. Trabalha­mos trezentos anos para fazer deste país o mais rico do mundo, lutamos por ele no Japão, na Alemanha, na Coréia — e não temos nada. E agora, como não precisam mais de mãos para catar algodão porque já têm máquinas para isso e como nós esta­mos zanzando pelas ruas, nos multipli­cando, sem emprego, por que não se­parar? Por que não dizem apenas "Está certo, escravo, não preciso mais de você para colher algodão! Pode ir em­bora".


HOMEM — Elijah Muhammad pregava que to­dos os brancos são diabos de olhos azuis. Você acredita nisso?


ALI — É como se tivéssemos mil casca­véis do lado de fora da nossa casa e tal­vez umas cem delas quisessem nos ajudar. Será que devo me arriscar a abrir a porta, confiando que estas cem me ajudarão a conter as outras novecentas, se eu sei que uma única picada pode me matar? Ora, tenho que pedir desculpas às cem cascavéis bem-inten­cionadas. Mas não posso abrir a porta.


HOMEM — E os brancos que lutaram pelos Direitos Civis na década de 60? E os que foram assassinados, que deram suas vidas pelos negros?


ALI — Já nos disseram que haverá bran­cos que ajudarão os negros; sabemos que alguns brancos escaparão ao julga­mento de Alá, que não serão mortos quando Alá destruir este país — princi­palmente alguns judeus que realmente fazem o bem. Você não vem com aquele mesmo papo do seu bisavô de que "quando nossas crianças cresce­rem as coisas nesse país terão melho­rado".


HOMEM — Não. Quero apenas localizar seus sentimentos francos para com o ho­mem branco.


ALI — São bons pensadores, mas são muito doidos, irmão. Os brancos que escrevem esses filmes e comerciais espetaculares devem estar bolando tudo por trás. Martin Luther King está mar­chando por aí, criando caso? Está bem, então vamos deixar os negros entrarem nos banheiros públicos, mas depois de lutarem uns seis meses para Isso. Enquanto eles lutam, fazemos novos pla­nos. Agora querem entrar nos super­mercados? Está bem, lutem dois anos por isso. E sabe onde nós estamos lu­tando hoje para entrar nas escolas? É, na própria Boston dos seus Kennedys. Decidem que tem que haver pilotos e aeromoças negros, mas no momento em que eles são finalmente contrata­dos, o branco já está longe numa espa­çonave, entendeu? A única coisa que o homem branco pode me oferecer é um emprego. Não vai me oferecer uma bandeira, liber­dade, hospitais, terra. Alá é minha tes­temunha, eu morreria hoje para provar o que estou dizendo: se pudesse ser presidente dos Estados Unidos ou ser um lixeiro na luta da criação nesta na­ção negra, eu preferiria ser o lixeiro na minha nação do que presidente na na­ção branca. Ou mesmo do que ser. Muhammad Ali, o grande campeão.

HOMEM — Nos últimos dois anos, você ganhou mais de 10 milhões de dólares só em bolsas para lutar. Largaria tudo o que você tem e pode ganhar?

ALI — Num minuto. Estava dirigindo meu Rolls-Royce em Chicago e pensando no outro, que está na garagem mal usei e me custou 40 mil dólares., no meu ônibus-trailer de 120 mil dóla­res; no outro ônibus de 42 mil; no meu campo de treinamento de 350 mil dóla­res. Só a reforma da minha casa em Chicago custou 300 mil dólares. E muito mais... Bem, eu vinha dirigindo e vi um ne­gro pequeno e magro, enrolado num casaco velho com a mulher e o filho, os três esperando um ônibus na es­quina. Os sapatos do menino estão ras­gados. E eu no Rolls-Royce. E se ele fosse meu filho? E comecei a chorar. Enquanto eles não forem livres, eu não serei livre, com tudo que tenho. Por que você acha que eu tenho tantos funcionários? Por que só ponho di­nheiro em bairros negros, em projetos que empreguem centenas e centenas de negros? Kid Gavilan era um negro, grande campeão, que teve problemas em Cuba foi parar em Miami, trabalhando num parque de diversões. Eu podia deixar que um dos maiores campeões negros trabalhasse num parque? Não. Kid Ga­vilan agora trabalha para mim. Meu fi­lho, se os brancos assistissem a uma convenção dos muçulmanos negros — 50 mil negros juntos, disciplinados, limpos, educados, dedicados — veriam fim da dominação branca. Ser um muçulmano te desperta para muita coisa.


HOMEM — O que, por exemplo?


ALI — Não sabíamos que nossa religião era o Islamismo, que éramos o povo original. Nunca pensamos que, nossos irmãos negros na África fossem ter os seus próprios países. Deus é branco, mas não sabíamos que seu nome cor­reto era Alá — e Alá não é branco. Não sabíamos nem o nosso nome, porque na escravidão recebíamos os nomes dos nossos donos. Se o dono era Ro­binson, nos chamavam fulano do Ro­binson. E por aí a fora. Hoje não temos mais correntes nas pernas, ainda te­mos, entretanto, nomes como George Washington. Sabe por que temos que ter nossos nomes? Se eu digo Chang Chong ou Lou Ching, você sabe que é um chinês; que o González é um latino-americano ou espanhol; que o Goldberg ou o Weinstein são judeus, que o Trovão-Que-Rola é índio, que o Mobutu ou o Keniata são africanos. Mas se eu te digo Mr. Green ou Mr. Jones ou Mr. Washington, você não sabe nem se é preto ou branco. Você já ouviu falar de algum inglês branco chamado Lumumba? E com outras vantagens: os nossos nomes ainda possuem bonitos significados.


HOMEM — O que significa o seu nome?


ALI — Muhammad significa o que me­rece todo o louvor; Ali significa o mais alto.


HOMEM — Você assumirá um posto dentro do movimento muçulmano negro quando deixar o boxe?


ALI — Sim senhor. Se tiver os dons e se me permitirem, serei um pregador. Trabalharei com nosso novo líder espiritual, o irmão Wallace D. Muhammad, filho de Elijah Muhammad.


HOMEM — Que diferença Elijah Muhammad fez na sua vida?


ALI — Ele foi o meu Jesus e eu amava tanto o homem como o que ele repre­sentava. Como Cristo e todos os profe­tas de Deus, ele representava tudo de bom. E os profetas não morrem espiri­tualmente, sua palavra e sua obra continuam vivendo. Elijah Muhammad foi o meu salvador e tudo que tenho recebi dele — minhas ideias, meus esforços para ajudar meu povo, o que eu como, o que eu falo, meu nome.


HOMEM — E o que você acha do cristia­nismo?


ALI — Uma boa filosofia, mas se você viver segundo ela. É controlada por brancos que não a seguem. Se os bran­cos seguissem o cristianismo, seria muito diferente; mas eu te digo que, para mim, é contra a própria natureza dos europeus levar uma vida cristã. Todo seu mundo foi criado em cima de guerras e de violência. Mas nós muçulmanos vivemos a nossa religião, não somos hipócritas. Submetemo-nos inteiramente à von­tade de Deus. Veja só nossas mulheres, você pode reconhecê-las de longe com suas longas roupas brancas: elas não saem por aí mostrando o corpo. Nin­guém faz isso, só a mulher muçulmana. Mas ninguém acredita numa mulher que depois de toda uma vida diga "Nunca tive um homem e sou feliz". Está é doida. Isto é contra a natureza humana. E um homem dizer que nunca tocou uma mulher, isso também é con­tra a natureza.


HOMEM — Certamente os leitores católicos terão uma boa resposta para isso. Mas explique por que as restrições de sua religião são muito maiores para as mu­lheres do que para os homens.


ALI — Porque têm que ser. As mulheres são símbolos sexuais.


HOMEM — Para quem?


ALI — Para mim.


HOMEM — E você não é um símbolo sexual para as mulheres?


ALI — Ainda assim, eu acho mais justo que os homens saiam por aí sem ca­misa do que as mulheres com metade dos peitos de fora.


HOMEM — Mas por que são homens que de­terminam essas restrições?


ALI — Porque no mundo islâmico, o ho­mem é o patrão, a mulher fica por trás de tudo. Ela não quer dar as ordens.


HOMEM — Já posso ouvir o Women's Lib protestar. A mulher muçulmana pode seguir uma carreira ou tem que ficar em casa cozinhando?


ALI — Muitas delas seguem carreiras, mas você não vai vê-las atrás de mesas de secretárias nos grandes escritórios de Nova York: muitas mulheres negras foram usadas nestes escritórios. E no chão mesmo. Por isso protegemos nossas mulheres, elas são o campo que produzirá a nossa nação. Sem protegê-las, não protegemos nossa nação. Um dia desses, em Chicago, eu vi um branco entrar num motel com uma ne­gra e quando saíram, três horas depois, um bando de negros ficou olhando, sem fazer nada. Mas ninguém, branco ou negro, toca nas nossas mulheres. Ponha a mão numa muçulmana e você morre. Você pode ser preto ou branco, mas se der um tapa no traseiro de uma muçulmana, você deve morrer.


HOMEM — Você está parecendo uma cópia em negativo de um racista branco. Va­mos lá: você acha que o linchamento é a resposta ao sexo interracial?


ALI — Na América, um negro deve morrer se for apanhado com uma branca. E os brancos sempre os mataram. Lincharam negros que olharam para mu­lheres brancas. Mas nós mataremos qualquer homem, branco ou negro. Diga isso ao presidente — ele não vai fazer nada a respeito. Diga isso ao FBI: vamos matar qualquer um que se en­graçar com as nossas mulheres. Que ninguém mexa com elas.


HOMEM — E se uma mulher muçulmana qui­ser sair com um não-muçulmano, ne­gro ou branco?


ALI — Nesse caso, ela morre também.


HOMEM — E se todos os negros americanos se tornassem muçulmanos, o que você acha que aconteceria?


ALI — O presidente Ford chamaria nos­sos líderes e negociaria os Estados que estava disposto a nos ceder.


HOMEM — Entregar uns tantos Estados aos lideres religiosos?


ALI — Talvez sim, talvez não. Talvez nos dar a Georgia, o Alabama, o Tennessee, o Kentucky, e nós nos fecharíamos por lá. Os brancos teriam que mostrar pas­saporte para poder entrar. Ou então promover um êxodo em massa. Gosta­ria de poder ver isto antes de morrer. Mas agora me deixa perguntar uma coisa a você.


HOMEM — Manda.


ALI — Você acha que eu ainda sou tão bonito como no começo da carreira? Olha só essas fotos. Ei, eu ainda sou bonito! Mesmo depois de lutar boxe durante 21 anos. Só em pensar nisso já fico cansado. É duro manter a forma, sabe. Antes, eu dançava quinze rounds. Hoje danço uns cinco ou seis no má­ximo, descanso dois, danço mais um pouco. O problema é que eu gosto das comidas erradas.


HOMEM — Você gosta de treinar?


ALI — É tudo trabalho, trabalho. Mas eu não treino como os outros: a maior parte do tempo, me condiciono a receber socos, deixo os sparrings baterem. Não bato, para não dar nada de mim, para não acabar me desgastando. Só assim pude agüentar quinze lutas entre a segunda com Frazier e esta última. Se eu treinasse para todas como treinei para a segunda com Frazier, para a luta do Zaire com Foreman, eu estava morto nessa altura. E o que interessa realmente não é o treino, é o que eu faço lá no ringue durante a luta.


HOMEM — Quanto tempo você ainda pre­tende defender o título?

ALI — Por mim, eu largava já, este ano mesmo. Mas a minha missão como muçulmano é ser o campeão do mundo, é ser o negro mais famoso do planeta. Depois da minha próxima luta com Foreman — devo ganhar uns 10 milhões por ela, deixar cinco de impos­tos com o governo — vou separar um milhão para mim e acionar os quatro restantes. Lembra-se de que em Miami alguns hotéis tinham placas dizendo "Proibidos os negros, cachorros e ju­deus"? Pois é, os judeus foram lá e compraram tudo. E é isso que eu faço e vou fazer mais ainda. O governo diz que gasta bilhões nos guetos, mas nin­guém vê esse dinheiro. E eu continua­rei a pôr esse dinheiro vivo e visível nos guetos. É só por causa disso que lutarei para manter meu título mais uns cinco anos.


HOMEM — Até os 38 anos?


ALI — Por que não? Jersey Joe Walcod ganhou o título com 37. Sugar Ray Ro­binson lutou até os 40, Archie Moore até os 53 anos.


HOMEM — Mas você gostaria de acabar a car­reira como ele?


ALI — Archie não ficou doente, ele ainda é inteligente, apesar de ter achado que Foreman podia me ganhar. Cinco anos mais não significa ir até os 53. E não se esqueça de que fiquei três anos parado.


HOMEM — Mas quando voltou já não era o mesmo, disseram os especialistas.


ALI — Ora, os especialistas. Não era o mesmo não: era melhor. Mesmo quando perdi para Frazier, você viu como eu acertei a cara dele? E olha que estava fora de forma e fiz palhaçadas do começo ao fim. Aquele descanso de três anos me dá mais cinco anos de boxe, a 5 milhões a luta, são 10 mi­lhões por ano: 50 milhões de dólares. Racho com o governo, 25 para cada. Sabe lá o que é isso? E já me ofereceram 7 milhões e 500 mil para enfrentar Foreman em Jacarta, na Indonésia. Como promover um país? Ora, é só chamar Muhammad Ali. Por isso, quando eu deixar o boxe, não se terá mais lutas com bolsas dessa quantia.


HOMEM — Isso quer dizer que, quando você parar, o boxe vai morrer na América?


ALI — O boxe nunca vai morrer. A mul­tidão vai aparecer na trilha dos profis­sionais, os ginásios sempre terão garo­tos sonhando em ser o campeão. E, de vez em quando, aparecerá um lutador sensacional.


HOMEM — Como você?


ALI — Fisicamente, talvez, mas não inteiramente, não acho que exista outro como eu, seguido pelo planeta a fora. Não consigo lembrar o nome de um país onde eu não seja conhecido. E para alguém ser como eu, terá que ser um muçulmano, pois muitos países não ligam para o boxe, ligam para este Mu­hammad. Você sabia que Muhammad é o nome mais comum em todo o mundo? E terá que dizer muito o nome Alá, não pode falar em Deus. Eu sei que Deus é o Ser Supremo, mas Alá é o nome mais usado na Terra. Mais gente reza para Alá do que para Jeová, Jesus ou simplesmente ao Senhor, porque no mundo há onze muçulmanos para cada não-muçulmano.


HOMEM — Você está realmente cansado de boxe como dizem algumas pessoas próximas a você?


ALI — Meu maior prazer na vida é não ter nenhum compromisso marcado. Mas isso rarissimamente acontece. Luto boxe desde os 12 anos e vejo quanto tempo já se passou, mas quando penso no dinheiro e na quanti­dade de empregos para negros que posso criar a cada luta, prefiro correr aquelas mesmas duas milhas todas as manhãs do que ficar dormindo mais um pouco.


HOMEM — Mas hoje que você é mais um mis­sionário religioso do que um lutador o boxe não te parece uma forma brutal e inadequada para se ganhar a vida?


ALI — Além do boxe, a única coisa que pensei em fazer foi jogar futebol, mas eu não gostava, porque não havia publicidade pessoal: você tem que usar todo aquele equipamento e as pessoas nem podem te ver direito. Quem está lá em cima na arquibancada nem con­segue te distinguir no meio de 22 ho­mens correndo para lá e para cá. Mas no boxe, em cima do ringue, só há dois homens. Tomei esta minha decisão sobre os esportes aos 12 anos de idade, e me dediquei ao boxe porque os lutadores podem ganhar mais dinheiro do que outros atletas e não se tem interrup­ções pelo final da temporada como nos outros. E nunca me arrependi ou me lamentei desta decisão, porque quando você é o maior do mundo na­quilo que está fazendo, como achar que devia fazer outra coisa?


HOMEM — Esta sua declaração constante de que é "O Maior" significa que você te­ria derrotado todos os campeões de peso pesado do boxe moderno?

ALI — Não posso garantir. Rocky Marciano, Jack Johnson, Joe Louis, Jack Dempsey, Joe Walcott, Ezzard Charles todos eles teriam me dado bastante trabalho. Eu não posso ter certeza se teria derrotado todos eles, mas tenho certeza de uma coisa: eu sou o mais fa­lado, o mais divulgado, o mais famoso e o mais colorido de todos os lutadores da história. E sou o mais rápido peso pesado — com os pés ou com as mãos que jamais existiu. E além de tudo isso, sou o único poeta laureado que já surgiu no mundo do boxe. Uma outra coisa: se você olhar fotos de todos os campeões anteriores, você percebe imediatamente que eu sou o campeão mais bonito de toda história. E jun­tando tudo isso, eu acabo sendo O Maior, não é verdade?


HOMEM — Você acha que será lembrado por tudo isso?


ALI — Eu não sei, mas eu posso te dizer como eu gostaria de ser lembrado: como um homem negro que ganhou o título mundial dos pesos pesados e que era bem-humorado e que tratava todo mundo bem. Como um homem que ja­mais tratou alguém de cima para baixo, muito menos os que o admiravam, e que ajudou o maior número de pessoas que lhe foi possível — não só financei­ramente, mas na luta pela liberdade, por justiça, por igualdade. Como um homem que jamais feriria a dignidade de seu povo comportando-se de forma a deixá-lo constrangido. Como um ho­mem que tentou unir o seu povo pela fé do Islã, descoberta quando ouviu o Honrado Elijah Mohammed. E se tudo isso for pedir muito, eu então acho que gostaria de ser lembrado apenas como o maior campeão do boxe, que se tonou um pregador e um campeão do seu povo. E nem ao menos me incomodaria se as pessoas se esquecessem de como eu era bonito.


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