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O FLAGELO DAS PRINCESAS

Ficção


Quando uma mulher procura uma especialista em depilação,

não é por questão de higiene — depilação tem a ver com sexo.

Enquanto seus pentelhos são arrancados, moças bem-educadas revelam suas taras mais loucas...


Um conto de Patrícia Melo ilustrado por Milo Manara


Zeca estava fazendo contas na mesa da cozinha. Era isso que acabava comigo. Havia dias nossa vida era essa, fazer contas, cortar gastos. Na cama, eu lia o tal poeta do Grã Caralho que minha cliente me dera. Leia para o Zeca, ela disse, a Sílvia, como se Zeca fosse gostar daquelas porcarias. Como se precisássemos daquele lixo. Era só caralho e cona e cu e Grã Caralho e Grã Cona e foder, tudo em rima, poesia erótica de Aretino, ela explicara. Pode até ser que "uma das mãos põe-me no eu" ou "fodamos, meu amor, fodamos presto" fossem mesmo versos de qualidade. Para mim, no entanto, o importante é que daquele livro, que havia dias estava mofando na minha cabeceira, surgiu meu plano infalível.


Todo mundo sabe o que passa na cabeça de uma mulher quando ela procura uma especialista em depilação como eu. Não é por uma questão de higiene, como elas dizem. Nem por uma questão estética. Tudo isso é secundário. Depilação tem a ver com sexo. Quando uma mulher conta para o namorado que se depilou, está agindo como os pavões antes do acasalamento, é um ritual, é abertura de plumagem, exibição de cores, é a mensagem vamos fazer sexo. E quem tem uma vida erótica desse quilate geralmente não tem competência para calar a boca. Minhas clientes chegam aqui explodindo de vontade de contar todos os detalhes de seu novo imbróglio amoroso. Algumas já abrem o bico na primeira sessão. Outras levam mais tempo. Mas todas, todas, sem exceção, acabam despejando sua história de sexo fumegante em cima de mim. O tal poeta da Grã Boceta ia ficar chocado se ouvisse o que essas mulheres bem vestidas, essas moças ricas e bem-educadas dizem enquanto arranco os pentelhos delas.


As clientes chegam e despejam suas histórias de sexo fumegante em cima de mim. O tal poeta da Grã Boceta ia ficar chocado se ouvisse o que essas mulheres bem vestidas, essas moças ricas e bem-educadas dizem enquanto arranco os pentelhos delas.

No início, quando inventei essa história de técnica holandesa, Zeca não achou muita graça. Você não precisa trabalhar, ele dizia. Zeca sempre me tratou como princesa, desde o primeiro dia foi assim. Tínhamos uma vida ordeira e confortável, mas Zeca viajava muito, e eu estava cansada de ir à casa da minha mãe, ou de andar pelas gôndolas de supermercado, com todo o tempo do mundo para ler as fórmulas de xampu. Então peguei uma receita de cera na internet, acrescentei anilina colorida, uns cheirinhos, e pronto, mulher é um bicho besta. Quanto o assunto é cosmético, não exige muito além de promessas. E meu método holandês de depilação ficou logo conhecido na cidade.


A noite, eu contava para o Zeca as intimidades escabrosas que ouvia da Miss Beiço, que havia colocado tanta porcaria nos lábios para parecer dez anos mais jovem para o professor de ioga com quem andava trepando; e também da Mosca-morta, que aos domingos largava o marido entupido de Lexotan no sofá para se encontrar com o jovem assistente na casa da prima e parceira no crime. Mas a história mais cabeluda nos últimos tempos era mesmo a da Faustina, que nem se chamava Faustina, mas Sílvia, e era amante do sócio do próprio marido.


Zeca se divertia à beça com minhas histórias. Expliquei para ele que Faustina não se contentava em contar suas aventuras eróticas, ela queria praticamente esfregá-las na nossa cara. Por que razão dera para mim, e para tantas outras amigas, as tais poesias eróticas de Aretino? As mesmas que agora eu lia com cuidado, entendendo que, por conta delas, os dois amantes se chamavam carinhosamente de Faustina e Grã Caralho. Poderia ser também Cu de Leite e Carmim, pensei, ou Miss Cona e Zé Fodão; afinal, nada disso é mais feio ou mais bonito que Tchutchuquinha e Nhenhenhém.



Voltando ao que importa: era Zeca quem viajava, quem conhecia pessoas e lugares diferentes, mas era eu, euzinha quem tinha histórias interessantes para contar no fim do dia. Na verdade, trabalhar como depiladora fez um bem enorme para minha autoestima, não pelo prazer que o trabalho gerava, menos ainda pelo fato de ganhar algum dinheiro, mas principalmente porque não havia como não me sentir superior a todas aquelas mulheres, as Faustinas, cheias da grana, que tinham tudo, era isso o que eu dizia para o Zeca, elas têm tudo, chegam aqui em carros importados, com bolsas de grife, são mulheres que correm maratonas, têm a carne torneada por especialistas, nutricionistas, massagistas, são casadas com fazendeiros milionários, para quê? Para chapinhar na lama atrás de um amante decente? Alguém que faça alguma coisa vibrar na vida tediosa que elas levam? Eu tenho muita sorte, eu dizia para o Zeca, nenhuma dessas adúlteras psicopatas, essas ninfomaníacas, essas pobres coitadas, nenhuma, eu dizia, tem o meu Zeca vintage, nem um décimo do meu doce Zeca, que me ama e me faz cafuné como se eu fosse sua gatinha.


Elas têm tudo, chegam em carros importados, com bolsas de grife, são casadas com milionários, para quê? Para chapinhar na lama atrás de um amante decente?

Nossa vida de fato era tranquila, eu com minhas clientes adúlteras e o Zeca e suas viagens, nada de emoções muito fortes, mas quem precisa de emoções fortes?


De repente, Zeca foi mandado embora. Eles simplesmente, zapt, jogaram o Zeca na rua. De uma hora para outra. Assim, zapt, ficamos sem dinheiro. Eu já tinha um bom número de clientes, mas não o suficiente para pagar todas as nossas contas.


Zeca já estava ficando maluco de tanto rezar para o telefone tocar. Preenchera tantas fichas em tantas empresas, não é possível que ninguém me chame, ele dizia. Você acha, ele perguntava, que pelo resto dos meus dias ninguém mais vai precisar de uma porra de um vendedor representante?


É triste você ver o seu marido acordar e não ter o que fazer. Ficar de pijama, zanzando pela casa. Eu sou louca pelo Zeca, não podia tolerar isso. Não com o Zeca, que é tudo para mim. Toda manhã, enquanto eu preparava minha cera holandesa, meu cérebro fervia tentando encontrar uma saída para nossa situação. Comecei a jogar na loteria esportiva semanalmente. Sei que as chances são de zero-vírgula-zero-zero-um em trilhões de casos, eu dizia para o Zeca, tentando animá-lo, mas e se sou essa chance?


Também acrescentei "Depilação íntima" embaixo dos dizeres "Soraia depilação" e "Virilha cavada".


"O que isso quer dizer?", perguntou Zeca.


"Tudo", eu disse.


"Como tudo?"


"O pacote inteiro. Xoxota e ânus."


Zeca considerava isso coisa de mulher de boiola. Para ele, os machos normais gostavam mesmo era de boceta normal, de cu normal.


Pode até ser, expliquei para ele, mas o que me importa? Precisamos de dinheiro, é só nisso que estou pensando.


De fato, o número de clientes aumentou. Mas não o suficiente. Eu ficava com o coração partido ao ver o Zeca sentado na mesa da cozinha, fazendo contas, preocupado, e à noite, na cama, as contas cresciam na minha cabeça, como um câncer, acabando com meus sonhos.


Zeca não parava de me perguntar "quanto eu tinha feito no salão". Eu chorava de saudade do tempo em que o Zeca não queria que eu trabalhasse. "Você é minha princesa", ele dizia, "não quero que se preocupe com nada."


"Se você não conseguir mais clientes", disse Zeca, entrando no quarto, "vamos mesmo ter de sair desta casa." Isso aconteceu naquela noite em que eu estava na cama lendo o tal poeta Aretino. E foi então, ainda com o livro nas mãos, que uma luzinha se acendeu na minha cabeça de depiladora holandesa.


No dia seguinte, ao acordar, falei para o Zeca sobre um sonho misterioso que tivera, com uma voz angelical soprando números dourados em meus ouvidos.


"Dourados?", ele perguntou.


"Tenho de apostar na loteria", eu respondi.


Zeca estava tão desanimado, não fez mais perguntas, e eu me mandei para a Avenida Paulista.



De um orelhão público, telefonei para a casa da Faustina, digo, da Sílvia, a amante do Grã Caralho.


Eu (disfarçando a voz): "A dona Sílvia, por favor?"


Voz feminina: "Ela está fazendo massagem".


Eu: "Vá lá e diga para ela atender o telefone agora mesmo. É caso de vida ou morte".


Depois de um tempo, Faustina veio ao telefone.


Sílvia: "Alô? Quem está falando? Que história é essa de vida ou morte?"


Eu: "Eu sei do seu caso com o sócio do seu marido."


E desliguei o telefone.


Telefonei para a casa da amante do Grã Caralho. "A dona Sílvia, por favor? Diga p ela atender. É caso d vida ou morte." "Quem fala? Que história é essa de vida ou morte?" "Eu sei do seu caso com o sócio do seu marido." E desliguei.

No dia seguinte, Sílvia estava no meu salão, olhos inchados, nervosa, agitada, nada a ver com aquele tsunami sexual que me dera o livro do Aretino. "E se colocarem nos jornais?", ela me perguntava. "E se o meu marido ficar sabendo? E os meus filhos?"


Ela mesma falara de seu caso para meio mundo, não havia uma única amiga que não tivesse, como eu, recebido de presente o tal livro do Aretino, leia o poema da página 87, ela dizia, e o da página 67, seu projeto de vida era esse, falar histericamente sobre sua vida erótica com o sócio de seu marido, e agora vinha me dizer que estava preocupada com os filhos? Com o marido?


Fiz o papel de amiga. Este meu jeito mineiro e esta minha voz suave ajudam muito. Ofereci chazinho, disse que certamente o telefonema não era sério, apenas um trote, e ainda massageei seus pés cheios de calos.


Faustina foi embora mais calma, e eu segui adiante no meu plano. Telefonei outras cinco vezes. Identifiquei-me como alguém que tinha acesso à empresa do Grã Caralho. Era um prédio inteiro, cheio de secretárias, ajudantes, estagiárias, como ela ia descobrir? Falei que possuía fitas gravadas com conversas dos dois. E como prova só precisei dizer dois nomes: Faustina e Grã Caralho.


O resto foi fácil. Estipulei um preço para o meu silêncio. Marquei um local para a entrega do dinheiro. Mandei colocar o envelope com meu pagamento dentro da lixeira do McDonald's que fica ao lado de um hospital público, num bairro insuspeito. O local é tão cheio, com tantos pobres e fodidos em filas, ninguém deu a mínima quando eu, fantasiada de mendiga, enfiei minha mão dentro da lixeira como se procurasse restos de comida.


O resto foi fácil. Estipulei um preço para o meu silêncio. Marquei um local para a entrega do dinheiro. Para o Zeca, falei que ganhamos na loteria.

Minha mãe é que não entendeu nada quando cheguei na casa dela "fantasiada". "Festa à tarde?", ela perguntou. "É o encontro anual de depiladoras", inventei.


Para o Zeca, falei que ganhamos na loteria.


Nossa vida retomou seu ritmo tranquilo, e agora estou até gostando de ver o meu marido de pijama, arrumando a nossa casa e preparando o nosso almoço. Às vezes, quando estou com tempo, vamos para a cama e assistimos a algum filme da sessão da tarde. É muito bom ter um amor de verdade, sempre dizemos isso um para o outro, sentindo orgulho do nosso relacionamento. Sem mentiras nem traições. O sexo há algum tempo não é mais aquela coisa, mas é honesto, poxa vida. E nem ele nem eu estamos procurando confusão lá fora.


Ontem, pela primeira vez ele preparou a minha cera holandesa. E não é que ficou melhor do que a minha?


"Você é o máximo", digo sempre.


"Você é a minha luz", ele responde.


Faustina deixou de vir ao meu salão. Mas o número de clientes continua aumentando. Para cada nova freguesa, faço uma ficha com todos os dados de que posso precisar no futuro: nome do marido, nome do amante, tempo de adultério, e por aí vai. Nunca sabemos que provas serão necessárias.


Comprei vários exemplares de poesias do Aretino e dou de presente às novatas. É um bom começo. Elas leem e logo começam a falar bobagens. Aí eu só tenho de ligar meu gravador camuflado, e antes mesmo de começar o meu trabalho já consigo ouvir os uivos das cadelas no cio.


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