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O PECADO UNIVERSAL

Ficção


Era uma vez um pastor que se deparou com luxurioso rebanho


Por DEONÍSIO DA SILVA*


— Aleluia, aleluia, aleluia! O irmão, o que sente? É o ardor do pecado nefando?


— Ô louco, o que eu sinto, irmão, é uma coisa difícil de confessar, complicada de dizer.


— Coragem, irmão! Não vacile! Diga o que tem o irmão!


— O médico falou que é priapismo.


— Mas o que o espírito das trevas não inventa, hein? Ele quer que pequemos. Priapismo, o médico disse?


— Isso, irmão.


— Bem diferente do pecado nefando. Pensei que era no verso e é na frente o seu problema, irmão.


— Tentei de tudo para me curar, irmão. Anel mágico, pomada chinesa e ungüento com banha de bagual, nada disso foi suficiente. Ao invés de melhorar, piorou.


— Pudera! O irmão usou remédios errados. Foi como apagar incêndio com gasolina. E o irmão rezou?


— Rezei, irmão. Rezei para uma cambada de santos.


— Cambada? Se eram santos não podem ser cambada. O irmão deve moderar mais as suas palavras.


— Aqueles para quem rezei não passavam de uma cambada. Ficaram com as rezas e as oferendas e não deram o benefício pretendido. Então me enganaram. É por isso que chamo a todos esses de cambada.


— O irmão tem que ter mais fé. Tenha fé em Deus, tenha fé na vida, não escutou a canção?


— Eu só penso naquilo, irmão. O dia inteiro.


— Continue rezando, não chame mais os santos de cambada e logo o Senhor vai providenciar ajuda para curar o mal do irmão. Antes, porém, não esqueça do óbolo.


— Mas isso não é coisa de mulher?


— Não. O irmão é muito ignorante. Óbolo é coisa de igreja. Óvulo é que é coisa de mulher.


— Mas não é a mesma coisa?


— Não, irmão. Um resulta numa criancinha. O outro apenas numa esmolinha. O irmão estudou até que ano?


— Até o primeiro incompleto.


— Tal qual eu. A escola não tratou bem o irmão?


— Lá era o antro do pecado. A professora vinha de minissaia, mostrando as coxas, aquela bundinha apertada, a blusa transparente mostrava um sutiã rendado. Os biquinhos quase metralhavam os alunos quando a tentadora caminhava pela sala de aula.


— E o que o irmão fez? Caiu no pecado?


— Infelizmente, não. Quem caiu foi outro irmão. Mas todos queriam cair naquele precipício.


— O irmão se arrependeu?


— Jamais. Não tive a chance de me arrepender. Pois se nem pequei!


— Pensar na mulher do próximo já é pecado dos grandes.


Não tinha namorado, noivo ou coronel. Ela era todinha, só dela a danadinha

— Esta não era de próximo nenhum. Não tinha namorado, noivo, marido ou coronel. Era dela todinha, só dela a danadinha.


— O irmão pelo jeito ficou gostando da professora.


— Muito, irmão. Podia ter me curado.


— Do priapismo?


— Sim, deste mal escandaloso, deste pecado horroroso.


— O irmão tenha fé. O Senhor vai curar o irmão. É só esperar. Deixe que o pastor cuide de outras ovelhas, o irmão não é a única do rebanho.


 

— E A SENHORA, IRMÃ, O QUE TEM, DE QUE SOFRE, já que todos sofremos de alguma coisa neste vale de lágrimas?


— A angústia abateu-se sobre mim como se eu fosse a mulher do Jó.


— Vejo que a irmã andou lendo a Bíblia. Por que passou a sentir-se como Jóa?


— Mas este era o nome dela?


— Não sabemos. Ali só se fala que tinha sete filhos e três filhas, 7.000 ovelhas, 3.000 camelos, 500 juntas de bois, 500 jumentas e numerosíssimos escravos.


— Uma das filhas de Jó chamava-se Caixinha-de-Ungüentos. O nome da outra era Pomba.


— Pomba, irmã? Mas não a pomba-gira?


— Não, esta não. Esta não está na Bíblia.


— E a irmã sofre como a mulher do Jó por quê?


— Nada me satisfaz. Os pecados mais cabeludos eu tenho cometido. Não escolho mais os homens. O que vier, morre.


— Mas a irmã andou matando alguém?


— Não. Só a vontade deles eu matei. Mas de que adiantou? A minha eu não matei. Penso que mato a vontade no próximo, mas só mato a vontade do próximo. A minha continua a arder sempre.


— A cachopa da irmã vive em chamas?


— Isso mesmo. Eu sou toda fogo, meu corpo vive nas labaredas do vício. O meu maior pecado tem sido o da luxúria, irmão. Não posso ver homem que me dá a terrível vontade, aquele irresistível desejo. Para falar a verdade, já estou com vontade do irmão.


— Que é que isso, irmã? Olha o respeito. Estamos na casa do Senhor, não da senhora! Tenha fé em Deus, tenha fé na vida, como na canção.


— Eu sou uma vagabunda.


— Não se desespere, irmã. A salvação pode estar a seu lado.


— A meu lado?


— Quer um monumento, irmã? Olha ao redor.


— Pode ser este, irmão?


— Sim, pode e deve ser este irmão. Ele sofre do mal que pode curar a senhora. O priapismo. E a senhora sofre do mal que pode curar o irmão, o ninfomanismo.


— Não entendi nada.


— Nem precisa. É como bula de remédio. Os irmãos vão para casa e tomem o remédio quantas vezes for necessário. Até que se curem. Vão porque entre vocês dois não será mais pecado. É da natureza. Mas antes não se esqueça do óbolo.


— Mesmo que eu esquecesse, a minha natureza lembraria do óvulo.


— Meu Deus, quanto irmão ignorante nesta minha igreja! Fechamos um cinema para abrir este templo e veja só no que deu. Este lugar é amaldiçoado. Aqueles outros não entendiam os filmes que aqui viam. E esses não entendem as palavras que profiro no mesmo lugar. Não faz mal. O importante é contribuir e se arrepender. Irmã, de uma vez por todas: não é óvulo. É óbolo. O óvulo é de sua natureza. Mas o óbolo, não. Para dar o óbolo a senhora precisa contrariar a sua natureza. Dê o óbolo, irmã. Dê logo. Vamos ver o que têm os outros irmãos.


 

— DURANTE O ATO, EU GOSTO DE BATER NO PARCEIRO, desce sobre mim a ira do Senhor, então eu desço o braço e desfiro tabefes e palmadas, deixando meu amado roxo, roxinho, quase lilás, que é uma cor que eu a-do-ro!


— Que é isso, irmã? A senhora sabe que sofre de uma doença sexual?


— E é transmissível?


— Não, acho que não. Esta não é uma doença sexualmente transmissível.


— É, mas eu transmito de outro modo, irmão. Porque eu não consigo amar em silêncio e os vizinhos escutam tudo o que eu digo. Pois quero dizer ao irmão que além de gostar de bater, eu gosto também de gritar.


— Desde .quando a irmã sofre deste mal?


— Mas quem sofre ? Deus me perdoe ao dizer. Eu não sofro coisa nenhuma. Bater e gritar no ato são coisas que me dão grandes prazeres. Assim, no plural. Porque não é um prazer só. São muitos. O nome do meu prazer é legião.


— Irmã, mas a senhora grita e bate em todos os atos?


— Não, isso não. No caixa do banco, ainda que esteja escrito no papel "pague no ato", eu não bato em ninguém. Só bato durante o ato sexual.


— Mas isso é doença, irmã. A irmã está doente.


— Não. Estou sadia. Não tenho um único arranhão no corpo. Quem está cheio de hemapombas é o meu ex-marido.


— Mas, irmã, não é hemapombas que se diz. É hematomas. A irmã não sabe gramática?


— Não. Eu só sei que no final do ato o meu ex-marido está sempre lilás, como já lhe disse.


— Ex-marido ? Irmã, a senhora não leu na Bíblia: "não separe o homem o que Deus uniu"?


— Li. Leio sempre a Bíblia. Eu não separei ninguém. Foi ele quem quis ir embora. Sabe como é, né? Homem frouxo. Hoje em dia está assim. Poucos são homens de verdade, capazes de sujeitar-se a uma mulher como eu.


— Está bem, irmã. A senhora foi abandonada pelo marido, eu entendo.


— Bom, abandonada, mesmo, eu não fui. Ele fugiu.


— Sim, é quase a mesma coisa. É. um detalhe.


— Sim, mas um detalhe muito importante.


— Está bem, irmã. Mas arrependa-se de seus pecados.


— Sim, toda vez eu me arrependo. Só que depois faço tudo de novo.


— Isso é da natureza, irmã. Pecar outra vez. Nós pecamos sempre. Este é o nosso destino.


— Sim, sim, eu sei. Concordo. Eu sempre me arrependo. Mas depois peco de novo.


— Sim, sim, mas deve arrepender-se de novo também, sempre. Vamos ver o que tem este outro irmão.


 

— EU NASCI COM A MARCA DO SOFREDOR estampada na fronte. Quando botei a cabeça para fora, a parteira notou que eu já nascia com desagrado. Tenho a testa franzida, os olhos assustados, eu não gostei muito do modo como fui recebido neste mundo. Aliás, eu nem queria nascer. Falando um pouco mais profundamente, pelo respeito que eu devo ao pastor, tenho que dizer ao irmão que tentei desnascer várias vezes, mas sabe como são os médicos. Encheram minha mãe de antiabortivos e eu tive que crescer em seu ventre, na marra. Acabei nascendo. Desde então minha vida é um sofrimento só. O pior é que acabei gostando de sofrer, cresci e casei. Pedia todas as noites a minha mulher: me bate, me chama de corno, me xinga de nome feio, desce o braço, me surre.


— E ela, irmão, o que fazia?


— Não queria. A muito custo, depois de muito eu pedir, ela dava umas palmadinhas sem graça na minha bunda. Ficava um pouquinho vermelho ali onde ela batia, mas só um pouquinho.


— E o que é que aconteceu, irmão?


— Sabe como são as mulheres, né, irmão-pastor? Ela contou tudo para a minha sogra. No mesmo dia a velha foi lá em casa e levou a filha de volta para ela.


— Então agora o irmão está sozinho?


— Estou. Não tenho ninguém para me bater, minha vida tem sido um sofrimento só. Outro dia, caí no pecado, sabe como é, homem não agüenta muito tempo sem mulher, como os padres daquela outra igreja de onde vim, e procurei uma senhora de vida fácil, mas foi tudo muito difícil. Ela não quis me bater. "Bater é mais caro, "ela me disse. Eu estava duro, isto é, no bom sentido, sem dinheiro, e não podia pagar mais. Foi um ato terrível. Onde se viu um ato sem nenhuma porrada? Foi um horror! A coisa mais sem graça do mundo! Só se o nosso objetivo fosse apenas povoar a terra.


— Irmão, isto é uma doença. Mas tudo tem cura.


— Não, pelo amor de Deus, eu não quero me curar. Eu só quero me arrepender e depois fazer de novo.


— Bom, desde que o irmão não prejudique o próximo, não tem importância nenhuma.


 

TEMPOS DEPOIS HOUVE. GRANDIOSA FESTA NAQUELA IGREJA. Dois casamentos. A ninfomaníaca desposou o priápico. A sadista casou-se com o masoquista. A felicidade entrou em dois lares.


— Não é muito, disse o pastor num dos sermões que se seguiram, mas temos dois casais vivendo felizes para sempre. Não se pode evitar o pecado, este pecado é universal. O nosso dever consiste em arrumar as parcerias para que as trocas sejam bem feitas, do contrário a infelicidade toma conta do mundo.


ILUSTRAÇÕES ALEXANDRE COELHO DE SOUSA


*Autor de vinte livros, entre os quais o romance Avante, Soldados: Para Trás


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