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PELÉ | AGOSTO, 1980

Playboy Entrevista



Uma conversa franca sobre mulheres, sexo, infidelidade,

boêmia, dinheiro, política e até futebol, com o cidadão do mundo

Edson Arantes do Nascimento


Durante os últimos catorze anos — desde 1966, quando iniciava sua carreira de repórter esportivo no Jornal da Tarde —, José Maria de Aquino, editor da revista Placar, já entrevistou Pelé tantas vezes que até perdeu a conta. "Mas ele sempre limitava suas declarações ao futebol", diz José Maria, "evitava aprofundar-se nos aspectos mais embaraçosos do esporte, além de fugir habilmente de todas as perguntas que tentavam induzi-lo a revelar-se como Edson Arantes do Nascimento, um cidadão, um cidadão sintonizado com os problemas de seu tempo. Só uma vez, quando já estava para assinar contrato com o Cosmos de Nova York, é que Pelé abandonou momentaneamente sua reserva.


"Eu lhe disse que os torcedores brasileiros iriam criticá-lo", conta José Maria, "acusando-o de mercenário, porque ele voltava ao futebol depois de se despedir oficialmente e de se negar a defender a Seleção na Copa de 1974. Sem se alterar, Pelé respondeu pausadamente: 'Que se dane a torcida. Eu tenho de me preocupar com a minha família e não com o que a torcida pensa. Se amanhã eu perder tudo e ficar pobre, ninguém vai me socorrer, ninguém vai me ajudar'."


Agora, seis anos depois, essas duas preocupações parecem estar relegadas no mínimo a um segundo plano na cabeça de Pelé: próximo dos 40 anos, solidamente milionário e convictamente descasado, ele demonstra estar conquistando, em sua vida pessoal, a descontração que antes só exibia nos campos de futebol. E, embora não tenha sido difícil convencer Pelé a ter uma conversa franca com PLAYBOY, concretizá-la exigiu muita persistência. Afinal, mergulhado em seus negócios e nos compromissos de seu contrato com a Warner, num momento ele estava em Nova York, noutro em Tóquio; depois voava para a Africa, de lá para a Europa, dava uma rápida passagem pelo Brasil...


Assim, a primeira etapa desta conversa franca foi realizada em Nova York, no escritório do Rei, que recebeu a repórter Beatriz Horta em três sessões de gravação: freqüentemente interrompidas por telefonemas de negócios. Pelé concordou em marcar uma nova sessão, mais longa e descontraída. E lembrou que não poderia dar uma entrevista desse tipo se ainda estivesse jogando no Cosmos. Lá, para entrevistá-lo, seria preciso entrar na fila, "com os gringos determinando como e o que responder". Por outro lado, disse que não queria novas interrupções: "Quando a gente recomeçar, faz tudo de uma vez só".


Em maio último, ele combinou com José Maria de Aquino a continuação da conversa. Pediu-lhe que o acompanhasse ao Rio, onde, acreditava, iria dispor de pelo menos uma tarde sem compromissos. Mas, no dia seguinte, seu secretário telefonou informando que não seria possível. Novos contatos, novos desencontros e Pelé sugeriu a Aquino que o acompanhasse a Nova York: "Lá, desta vez, teremos todo o tempo necessário".


Finalmente, de volta ao Brasil semanas depois (de Nova York ele fora à Califórnia, depois à Europa e, novamente, a Nova York), Pelé marcou a entrevista para um sábado, em seu escritório em Santos, todo decorado em branco (os móveis, as paredes, as portas, tudo é imaculadamente branco, contrastando com as fotos, em preto e branco, de alguns de seus gols) e com uma linda recepcionista morena na ante-sala. Esse encontro só terminou depois das nove da noite. Mas a conversa ainda se esticou na calçada, com Pelé insistindo para que José Maria fosse comer "um camarão muito especial" em sua casa. "Não posso, eu não sou descasado", brincou José Maria. Ele descreve assim o clima da entrevista:


"Pelé estava visivelmente tenso quando liguei o gravador e lhe fiz a primeira pergunta, embora se esforçasse para demonstrar estar à vontade. Só tive de interromper a gravação duas vezes: uma delas para Pelé atender uma amiga ao telefone e convidá-la para aparecer num fim de semana em sua casa, onde ele costuma reunir os amigos quando está no Brasil. A outra interrupção foi para telefonar para sua cozinheira a fim de avisá-la de que receberia uni grupo de amigos para o jantar. 'Só agora que fiquei solteiro estou podendo receber os amigos em minha casa', disse-me ele.


"Falou descontraidamente de futebol, mas começou a transpirar muito quando abordamos outros assuntos. A certa altura, ligou mais forte o ar condicionado e, por fim, decidiu abrir todas as janelas do escritório. Mas não pipocou e estou certo de que nunca falou tão abertamente de sua vida e de seus sentimentos. Apenas uma vez ele tentou fugir à verdade: quando afirmou que fora um marido absolutamente fiel durante os primeiros oito anos de seu casamento com Rose.


"Evitou também, cavalheirescamente, mencionar detalhes sobre o seu relacionamento com as mulheres com quem tem saído. Mas quando essas transas eram citadas por mim ele sorria, maliciosa e significativamente. Terminada a entrevista quis saber, com uma ansiedade quase juvenil, quando seria publicada. Afinal, é a primeira vez que ele fala tão francamente. Uma semana depois, telefonou para mim. Queria saber se a gravação havia ficado boa e se valia a pena publicar o que ele disse. Claro que vale, Pelé".


PLAYBOY — O que a vida tem dado ao homem Pelé, agora que ele está livre para aproveitá-la?


PELÉ — O que eu vou dizer talvez surpreenda muita gente... mas a verdade é que continuo agindo sem ostentações.


PLAYBOY — Mas também sem as limitações que antes lhe eram impostas, pelos deveres de atleta — e de marido, não é?


PELÉ — É verdade que durante minha carreira como jogador eu me privei de muita coisa para me manter bem fisicamente. Coisas normais, como ir a uma boate, dançar, tomar uma cerveja, nada disso eu fazia porque pensava: "Sou Pelé e por isso tenho de ser um exemplo". Além disso, desde cedo desenvolvi em mim um grande senso de responsabilidade. Aos 15 anos eu já era arrimo de família, porque já ganhava mais que meu pai, que era funcionário público. Então a minha personalidade se formou com a consciência dessa responsabilidade, sabe? Talvez por isso eu não me sentisse tão frustrado por não poder fazer as coisas que os outros garotos da minha idade faziam. Mas nunca achei errado um jogador sair para uma boate, dançar, tomar um drinque. O que sempre achei errado é o exagero, é ficar a noite inteira numa boate, depois sair com uma mulher e ficar com ela até a hora do treino. Aí, se você treina mal, a culpa não é da mulher, mas sim da gandaia, de ter passado a noite bebendo.


PLAYBOY — Mas, apesar de sua situação, digamos, especial, você de vez em quando curtia uma boa, não?


PELÉ — É, algumas vezes eu ia. Mas nunca exagerava.


PLAYBOY — Agora você já pode exagerar um pouco?


PELÉ — Não, eu continuo o mesmo. A única coisa que só agora tive chance de fazer, uma coisa que sempre desejei fazer mas nunca havia conseguido, por causa de meus compromissos profissionais, foi passar o carnaval no Rio. Eu sempre adorei carnaval, sempre adorei música, faço música, você sabe... mas nunca tinha arranjado uma maneira de passar o carnaval no Rio. Nestes últimos dois anos eu consegui. Pude ver o desfile das escolas de samba, e ir aos bailes.


PLAYBOY — E se sentiu à vontade?


PELÉ — Só não me senti muito à vontade por causa do assédio das mulheres, dessas que andam atrás de publicidade, sabe? Queriam aparecer comigo nas fotos e depois dizer aos repórteres que são minhas futuras esposas [risada] . Ainda mais agora, que estou descasado, o que tem aparecido de "futuras esposas" para mim, nessas revistinhas aí...


PLAYBOY — E você não pensa em casar novamente?


PELÉ — Pode ser que um dia pinte alguma mulher de quem eu venha a gostar realmente, para viver junto, casar... Por enquanto não.


PLAYBOY — Mas isso não significa que você não transe normalmente...


PELÉ — Claro que não. Levo minha vida particular normalmente, sem problemas.


PLAYBOY — Assim, tudo o que cair na sua rede é peixe...


PELÉ — Não. A minha rede é muito fina. Nessas coisas eu sou muito exigente. Acho que tenho condições para ser exigente. Porque hoje é bem diferente do que era quando eu tinha 20, 25 anos. Naquele tempo, pra sair com uma garota, pra namorar, pra convencer a garota a entrar no carro, era a maior briga. Hoje não. Se eu não trancar a porta de casa, não desligar o telefone, não consigo dormir. São tantas mulheres a telefonar que é preciso fazer uma seleção cuidadosa, porque senão o cara se perde.


PLAYBOY — Principalmente sendo alguém famoso como você.


PELÉ — Eu acho que acontece com qualquer um. Porque hoje as coisas ficaram muito fáceis [rindo]...


PLAYBOY — É verdade que você é um craque também na cama?


PELÉ — Ninguém reclamou até hoje...


PLAYBOY — E quanto a essas mulheres famosas com quem você tem saído? A Bruna Lombardi, por exemplo.


PELÉ — Eu já conhecia a Bruna desde os meus tempos de casado e ninguém fez fofoca sobre isso. Aí saímos juntos uma vez e começaram a inventar coisas...


PLAYBOY — E a Gal Costa?


PELÉ — A Gal soube que eu faço música e quis gravar uma coisa minha. Saímos juntos, fomos jantar. Estou solteiro, não tenho compromisso com mulher alguma, então posso sair com quem quiser, não? Mas aí já começaram a falar em casamento meu com a Gal... Mas não é nada disso. Somos amigos...


PLAYBOY — Mas seu relacionamento com ela limitou-se a um, jantar?


PELÉ — Isso é um assunto particular.


PLAYBOY — Muito particular?


PELÉ [rindo] — Assunto íntimo a gente resolve em casa...


PLAYBOY — Você se referiu há pouco ao fato de estar solteiro como condição básica para sair com quem quiser. Continua acreditando na fidelidade obrigatória no casamento, tanto para a mulher quanto para o homem?


PELÉ — Acho que a infidelidade é uma falta grave para ambos. Mas, pela educação que recebi, o adultério da mulher é sempre mais grave.


PLAYBOY — Durante seu casamento você traía sua mulher? Parece que uma das acusações dela contra você era exatamente essa...


PELÉ — Não, a Rose nunca me acusou disso. Decidimos nos separar depois de conversarmos muito. Vimos que nenhum dos dois aceitava o que o outro queria.


PLAYBOY — O que ela queria?


PELÉ — Queria que eu mudasse minha vida depois que parei de jogar futebol. Achava que a partir daí eu deveria ficar mais em casa. Não queria que eu fosse à Argentina comentar os jogos da Copa do Mundo, por exemplo; não gostava que eu fizesse cinema; não queria que eu me deixasse fotografar ao lado de outras mulheres... e isso é uma coisa que não posso prometer. As pessoas pedem para sair nas fotos comigo e eu não posso, não gosto de recusar. Agora, para a mentalidade do povo, mulher que tira foto ao meu lado, vai direto pra cama comigo. Ninguém acredita que nunca mais volto a ver a garota...


PLAYBOY — Quanto a você, deduz-se que queria apenas certa "liberdade de ir e vir". Você sempre foi fiel a Rose durante os catorze anos em que esteve casado com ela...


PELÉ — Agora que meu casamento acabou posso dizer: fui fiel sim, durante os primeiros oito anos. Mas a Rose não acreditava nisso, era muito ciumenta. Eu viajava muito, tinha de viajar... e ela não acreditava de jeito algum que eu não a traísse.


PLAYBOY — Então, já que ela não acreditava mesmo, você acabou cedendo à tentação...


PELÉ — É, aí eu acabei traindo a Rose. Depois de muitas brigas, discussões...


PLAYBOY — O bispo Dom Marcos Barbosa, admirador seu, disse que ficou decepcionado com a sua separação porque pensava que você fosse mais fiel aos valores cristãos. O que você pensa sobre isso?


PELÉ — Eu penso que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se o casamento não está dando certo, se não há mais comunicação em casa, por que destruir os direitos de minha mulher e os meus, se a gente pode se separar numa boa? Isso não é anticristão.


PLAYBOY — Apesar da evolução dos costumes, muita gente ainda acha que a mulher tem o dever de tolerar todas as infidelidades do homem. Você também pensa assim?


PELÉ — Pela educação que recebe e por determinação da sociedade, a mulher aprendeu a aceitar isso. Mas não acho isso justo.


PLAYBOY — Você falou que hoje as mulheres estão muito mais acessíveis do que há vinte anos. Isso significa que a mentalidade delas mudou?


PELÉ — Ah, sem dúvida! E essa mudança não é só em relação a vinte anos atrás, mas a dez, cinco anos. Com a invenção da pílula e a queda do tabu da virgindade, as mulheres brasileiras ficaram muito mais liberadas.


PLAYBOY — Mesmo assim ainda há muita gente que continua achando que a mulher deve se conservar virgem até o casamento. Você também pensa assim?


PELÉ — Fui educado pensando assim, mas no mundo de hoje é quase impossível isso.


PLAYBOY — Você, que já transou com mulheres de muitos países, acha que as estrangeiras são mais liberadas do que as brasileiras?


PELÉ — Bom, isso é difícil de dizer, não há regra fixa. Você encontra tabus mesmo em mulheres de países onde há muita liberdade sexual. Como os Estados Unidos, onde as garotas de 14, 15 anos, já estão fazendo amor. Mesmo lá você encontra tabus.


PLAYBOY — Assediado pelas mulheres como sempre foi, certamente você tem para contar muitas histórias sobre perseguições que sofreu de garotas...


PELÉ — O caso que mais me impressionou aconteceu na Grécia. Eu estava lá com o time do Santos e, depois de um jogo, fui procurado no hotel por um casal acompanhado pela filha, uma garota linda de uns 18 anos. Eles adoravam futebol, adoravam Pelé e me falaram que o desejo deles e da filha era que ela ficasse comigo. Recusei. Não porque não estivesse a fim. A moça era linda...


PLAYBOY — Você era solteiro?


PELÉ — Acho que era... Era sim!


PLAYBOY — Recusou por timidez?


PELÉ — Recusei porque não sabia em que aquilo poderia dar. Estava num país estrangeiro e poderia até ser preso...


PLAYBOY — Ah, então foi o medo de ser preso.


PELÉ — Não só por isso, mas também porque eu sempre respeitei muito as pessoas. Em Santos, quando ainda era solteiro mas já estava famoso, eu freqüentava a casa de muitas moças, tomava lanche com elas e os pais gostavam de mim, porque viam que eu era respeitador. Também nunca transei com mulher casada, porque achava que não devia fazer com os outros o que eu não queria para mim. E nunca desvirginei uma garota, embora houvesse montes delas querendo que eu fosse o seu primeiro homem. Agora, com essa liberação toda, esse tabu não significa mais nada. Mas eu nunca fiz isso.


PLAYBOY — Alguma mulher já te surpreendeu na cama, propondo alguma prática-sexual que você não esperava ou não conhecia?


PELÉ — Não, depois de adulto, não. Mas quando eu era ainda garoto, com 15, 17 anos, tive algumas surpresas. Principalmente quando fui à Suécia, na Seleção Brasileira, para disputar a Copa de 1958. Então alguns tabus que ainda tinha nessa época foram quebrados.


PLAYBOY — Dizem que nove meses depois da Copa nasceu na Suécia um garoto muito parecido com o Garrincha. Não apareceu também um Pelezinho?


PELÉ — Que eu saiba, não.


PLAYBOY — Mas, pelo visto, você não é somente um recordista em gols. Qual é o seu recorde na cama?


PELÉ [rindo] — Nunca me preocupei com a quantidade. Acho que o importante é a qualidade. Então, quando me aparece um cara dizendo, que deu quatro, cinco numa noite, fico pensando que esse cara deve ser anormal. Um homem normal não se preocupa com isso.


PLAYBOY — Você, aos 39 anos, se acha no auge de sua potência sexual?


PELÉ [rindo] — Eu me sinto muito satisfeito...


PLAYBOY — Satisfeito?!


PELÉ — Aliás, dizem que é aos 38, 39 anos que o homem começa a chegar ao auge, à idade do lobo. Mas eu não gosto de transar com uma mulher só porque ela é boa, tem corpo bonito. Acho que a gente tem de conhecer a mulher, tem de gostar dela...


PLAYBOY — Por isso você tem rejeitado tantas ofertas...


PELÉ — Muitas. Já lhe disse que sou exigente. Converso com todas, brinco com todas, tiro fotografia com todas, mas pra ir pra cama eu sou muito exigente.


PLAYBOY — Mas, se você quisesse, poderia ir pra cama com uma mulher diferente todos os dias, não é verdade?


PELÉ — Ah, uma por dia, tranqüilamente.


PLAYBOY — Dizem que, durante a Copa de 1970, uma repórter de televisão procurou você e disse: "Pelé, você vai me comer". Você recusou e ela ameaçou: "Ou você me come ou eu espalho que comeu". Diante desse argumento irrespondível você então aceitou...


PELÉ — Não, a história não foi bem assim. Houve realmente uma repórter que tinha uma grande amizade por mim... Ela não chegou a se oferecer a mim, mas... ficou totalmente à minha disposição, durante aquela euforia da vitória na Copa. Mas eu falei que não queria porque ela era casada. Eu também tinha meu compromisso e não queria me comprometer transando com mulher casada. Então outros jogadores que estavam ali por perto ouviram minha conversa com ela e depois comentaram, coisa e tal. Mas não chegou a haver nada entre eu e ela.


PLAYBOY — Do jeito que você fala, vai dar a impressão de que é quase um asceta, capaz de resistir a todas as tentações.


PELÉ — Não, eu não sou perfeito. Perfeito é o Pelé, que não erra, que é imortal. Mas o Edson Arantes do Nascimento é uma pessoa normal, deve ter um monte de defeitos que muita gente não gosta e recrimina.


PLAYBOY — Você é católico?


PELÉ — À minha maneira, mas sou.


PLAYBOY — Qual é o seu conceito de pecado?


PELÉ — Bem... Pecado é aquilo que não está escrito. A sociedade faz uma regra e, se você sai dessa regra, comete pecado. Mas não vejo assim. Acho que o conceito de pecado depende do modo como a gente vive. O conceito de pecado dos vietnamitas, por exemplo, que nasceram e cresceram vendo morrerem seus pais, irmãos, maridos, deve ser bem diferente do nosso. Eu acho que cada um tem de encontrar o seu Deus e viver conforme Ele determina...


PLAYBOY — Você encontrou o seu?


PELÉ — Graças a Deus, sim.


PLAYBOY — Em todas as suas entrevistas, você sempre se mostrou uma pessoa conservadora, preocupada em defender os valores tradicionais. Você realmente se preocupa com isso?


PELÉ — Eu me preocupo ao ver que a sociedade está se destruindo. Conceito de família, conceito de respeito, tudo está sendo destruído. Com essa onda toda de drogas, de homossexualismo...


PLAYBOY — Algum homossexual já lhe fez propostas alguma vez?


PELÉ — Muitas vezes!


PLAYBOY — E você aceitou alguma?


PELÉ — Não, eu...


PLAYBOY — E quando era criança?


PELÉ — Bem, até os 15, 16 anos eu cheguei a ter algumas transas homossexuais, não muitas. Minha primeira experiência de moleque do interior foi com uma bicha que nosso time inteiro comeu, lá em Bauru. Mas depois disso não tive mais desse tipo de transa.


PLAYBOY — E sua primeira experiência com mulher?


PELÉ — Foi um fracasso. Lá em Bauru, que é um movimentado entroncamento ferroviário, tinha muitos hotéis de pernoite e muitas prostitutas. Aí uma noite minha turma resolveu ir a um lugar daqueles. Fomos, mas quando vimos as mulheres corremos de medo [riso].


PLAYBOY — Continuaram transando a bicha?


PELÉ — Isso foi só naqueles tempos de moleque. Acho que, se a gente gosta de mulher e tem mulher, por que vai procurar homossexuais?


PLAYBOY — Como você explica o grande aumento do homossexualismo nos últimos tempos?


PELÉ — Talvez pela facilidade que existe hoje para se ter mulheres. No meu tempo de garoto, para conseguir ver uma coxa era um deus-nos-acuda. Para uma garota pegar na mão da gente era uma dificuldade. Então você era motivado a disputar garotas. Hoje, não; todas as garotas estão fazendo sexo. E todos os garotos começam cedo a transar. Então, quando chega aos 25 anos, ele perde a motivação.


PLAYBOY — Começa a querer emoções diferentes?


PELÉ — É isso. Acontece também em relação aos tóxicos, está comprovado.


PLAYBOY — Como é a sua transa com maconha?


PELÉ — Acho que todos temos de respeitar os amigos com relação a isso. Agora, se você puder ajudar seu amigo a não se destruir, é isso o que deve fazer, entende? Lá nos Estados Unidos eu me habituei a ver todo mundo fumando maconha, quase todos os meus amigos fumam, é uma coisa praticamente normal.


PLAYBOY — Inclusive entre os jogadores de futebol?


PELÉ — Alguns jogadores também fumam maconha, principalmente os americanos. Então eu aprendi a ver que aquilo não é tão ruim como dizem aqui. Mas eu não faço.


PLAYBOY — Já o convidaram a fazer?


PELÉ — Já cansei de recusar. Sabe, você vai numa casa nos Estados Unidos, casa de família, eles botam maconha na mesa, quem quiser se serve. Você está conversando com um cara numa festa e ele está tranqüilamente fumando a sua maconha.


PLAYBOY — Você nunca sentiu a tentação de experimentar?


PELÉ — Nunca. Em Santos, quando comecei minha carreira de jogador, tinha uns garotos de várzea que fumavam. Mas eu nunca senti curiosidade a respeito. Acho que uma pessoa que pode experimentar drogas apenas para viver a experiência e não pega o vício é uma pessoa muito forte. Mas eu nunca tentei fazer isso...


PLAYBOY — Com receio de se viciar?


PELÉ — Não. É que eu já sei quais são as sensações provocadas pelas drogas, sei de tanto conversar com médicos, de bater papo com um monte de gente, de participar de congressos sobre tóxicos. Então, se eu já sei quais são as sensações que sentiria, para que experimentar?


PLAYBOY — Você não acha que, pelo fato de ser proibida, a maconha se torna mais fascinante, principalmente para a garotada?


PELÉ — Acho que sim. Nos Estados Unidos, depois que a repressão diminuiu, o consumo de maconha decresceu em uns dez ou quinze por cento, segundo li.


PLAYBOY — Na sua opinião, aconteceria a mesma coisa aqui?


PELÉ — Acho que sim, porque tudo que é proibido fica mais atraente para os garotos. Acontece isso com os cigarros comuns: os pais proíbem e aí é que eles ficam tentados a fumar escondido.


PLAYBOY — Você se considera um caso excepcional de força de vontade e cará ter? Como explica ter sido sempre imune a esse e a outros tipos de tentações, às quais a maioria dos garotos não consegue resistir?


PELÉ — Talvez porque pude ter todas as emoções do futebol, não senti, como muitos outros sentem, a necessidade de outras emoções. Talvez as emoções que experimentei ganhando três Copas do Mundo, sendo aplaudido nos estádios do mundo inteiro, sejam emoções equivalentes às que esse pessoal procura nas drogas e coisas assim. Mas eu acho que quem busca esse tipo de fuga não é uma pessoa equilibrada.


PLAYBOY — Falemos então de suas emoções no futebol. Há detalhes de suas atuações nas quatro Copas do Mundo — de 1958 a 1970 — que nunca ficaram muito bem esclarecidos. Em 1958, por exemplo, na Copa da Suécia, você começou como reserva do Dida...


PELÉ — Não, eu comecei como titular, enquanto a Seleção estava se preparando aqui no Brasil. Mas me machuquei num jogo-treino contra o Corinthians. Então o Dida ficou no meu lugar.


PLAYBOY — Ele era um craque?


PELÉ — Era um jogador rápido, jogava bem. Havia tido uma fase muito boa, no ano anterior, jogando no Flamengo. Mas na Seleção não foi muito bem.


PLAYBOY — É verdade que ele tremeu, no primeiro jogo do Brasil na Copa, contra a Áustria?


PELÉ — Não, não acredito que algum jogador tenha tremido contra a Áustria. Mesmo porque os austríacos não tinham um time que pudesse nos assustar. É que o Dida não esteve bem, não acertou.


PLAYBOY — É verdade aquela história de que o Didi, o Bellini e o Nílton Santos impuseram ao técnico Feola a sua escalação e também a escalação de Zito e Garrincha na partida contra a Rússia?


PELÉ — Não houve nada disso. O que houve foram conversas entre o Feola e os jogadores. Nessas conversas, os mais novos, como eu, não davam muito palpite. Os mais velhos e experientes é que opinavam mais. Mas esse tipo de diálogo não acontecia somente com o Feola. Aimoré Moreira, nosso técnico na Copa de 62, e Zagalo, em 70, também conversavam muito com os jogadores, trocavam idéias. E respeitavam mais as opiniões dos mais experientes. Aliás, ao contrário do que muita gente pensa, o Zagalo sempre foi um técnico que gostava de dialogar com os jogadores; nunca foi um cara autoritário...


PLAYBOY — Esse estilo democrático sempre foi praxe na Seleção?


PELÉ — Sempre. Até mesmo com o João Saldanha, que é uma pessoa que dificilmente muda de opinião. Quando ele põe uma idéia na cabeça, não é nada fácil você mudá-la. Mesmo assim ele vinha conversar com a gente, pedir nossa opinião. Eu acho que é um erro o que muitos técnicos fazem, o de não pedirem a opinião do jogador. Porque técnico não muda jogo dentro de campo. Ele pode mudar a maneira do time jogar, mas decidir durante o jogo, "vocês vão ganhar jogando assim ou assado", isso técnico nenhum consegue fazer.


PLAYBOY — Hoje você fala do João Saldanha até com naturalidade. Mas durante muitos anos você evitou mencionar o nome dele, não?


PELÉ [rindo] — Eu nunca tive nada contra o Saldanha. Ele é que fez aquela onda toda, porque estava atravessando um momento difícil na vida dele. Quando ele falou aquelas coisas sobre mim, que eu estava míope [N. da R.: João Saldanha nega ter dito isso], já sabia que seria demitido da Seleção. Já haviam dito para ele. E ele não falou só de mim. Falou também que o Leão tinha braços curtos demais para ser goleiro. E até que o Tostão não podia jogar na frente. Agora, quanto a Pelé, você sabe que qualquer coisa que se falasse sempre era aumentada em dobro. Então, logo começaram a circular aquelas piadas: que eu estava tão míope que precisava jogar de óculos, ou com um cachorrinho como guia, ou de bengala [risada].


PLAYBOY — Você guarda mágoa dele?


PELÉ — Não. E tem mais: mesmo com todos aqueles problemas que ele tinha, de bebida, de agressividade contra os repórteres, com tudo isso, acho que a atuação dele como técnico foi benéfica para a Seleção. Antes dele havia um monte de problemas, ninguém sabia quem era o técnico, qualquer cartola se intrometia. O Saldanha pegou a Seleção, formou um time baseado no time do Santos, que era o melhor da época, e não quis papo. E esse time ficou invicto até o final da Copa de 70.


PLAYBOY — Dizem que alguns jogadores tremem antes de partidas importantes. Você já chegou a tremer?


PELÉ — De medo de entrar em campo, nunca. Mas algumas vezes fiquei apreensivo. Fiquei assim antes da partida final da Copa de 1958, contra a Suécia. Mas querendo jogar. E na Copa de 70, no México, eu tive momentos de... Ia falar desespero, mas não era bem isso; era mais aflição. Antes de cada jogo eu ficava rezando no quarto. E cheguei a ter crises de choro, na hora de sair do hotel a caminho do estádio.


PLAYBOY — Você realmente se sublimou naquela Copa 70, dando tudo de si, a ponto de se recusar a sair da concentração nas folgas que a maioria dos outros jogadores aproveitava pra passear.


PELÉ — É verdade. Eu quase não saía, porque achava que deveria me preparar ao máximo. É engraçado, mas em 1958, quando eu não era a figura principal da Seleção, não sentia tanto o peso da responsabilidade.


PLAYBOY — Você foi treinado pelo Lula, no Santos, e pelo Feola, nas seleções de 1958 e 1966, dois técnicos que tinham a fama de serem omissos. Pelo menos tinham a fama de não entenderem muito de futebol. O que você diz a isso?


PELÉ — Os dois tinham um estilo muito parecido. Eram muito inteligentes e sabiam de suas limitações como técnicos, de sua incapacidade para elaborar jogadas, esquemas, coisas assim. Então eles deixavam os jogadores mais à vontade para fazer aquilo que julgassem melhor dentro do campo. O Lula, por exemplo, só nos pedia uma coisa: "Corram, porque se vocês jogarem mal correndo não haverá problema". Isso foi uma lição que aprendi: você pode ter me visto jogar mal algumas vezes e ser criticado por isso. Mas nunca fui criticado por parar em campo. Em todos os meus 22 anos de carreira, houve ocasiões em que fui pichado por jogar mal, mas, por parar em campo, jamais.


PLAYBOY — Houve épocas, no Santos, em que você chegou a jogar mais de cem partidas por ano, não é verdade?


PELÉ — É. Em 1960 ou 61, em que cheguei a jogar mais de 110 partidas, pelo Santos, pela Seleção Brasileira e pela Seleção do Exército.


PLAYBOY — O desgaste físico era muito grande?


PELÉ — Olha, de vez em quando eu fico pensando, quando ouço dizer que os atuais times brasileiros estão jogando muito... Porque antigamente era muito mais difícil. Nas excursões, o transporte era mais difícil, não se viajava tanto de avião como hoje. Era mais cansativo, porque se viajava mais. de ônibus, de carro. Acho que se o jogador se cuidar ele suporta bem um esforço desses.


PLAYBOY — Então essas queixas de desgaste excessivo que se ouvem agora são conversa fiada?


PELÉ — Não chego a tanto. Se você botar o cara para jogar duas vezes por semana, o ano inteiro, vai chegar um momento em que ele ficará estafado. Eu só acho que atualmente tem-se exagerado muito a respeito disso: fala-se tanto em cansaço dos jogadores que a coisa passa a ser psicológica, sabe?


PLAYBOY — Passa a ser uma desculpa para as derrotas?


PELÉ — Exato. Ou para a má performance do jogador. Vira uma neurose coletiva.


PLAYBOY — Você não se considerava explorado pelo Santos naquela época — início da década de 60?


PELÉ — Os jogadores do Santos tinham muita motivação, sabe? O Santos era um time tão bem estruturado, tão consciente, que não tinha problemas para fazer vinte ou trinta jogos seguidos numa excursão ao exterior. Diziam até que a gente chegava a treinar no avião e nos aeroportos, e isso era verdade, porque às vezes jogávamos na sexta, viajávamos para outro país no sábado e voltávamos a jogar no domingo. Como não dava tempo para treinar, o professor Mazzei, nosso preparador físico aproveitava o tempo em que ficávamos esperando avião no aeroporto para dar um aquecimento. O Santos jogava o ano inteiro e raramente perdia. Então esse negócio de cansaço é muito relativo. Naquela época, ninguém reclamava disso.


PLAYBOY — Por causa do dinheiro ou pelo prazer de jogar?


PELÉ — Talvez pelo prazer de jogar no exterior, conhecer outros países. Hoje é raro você ver uma equipe brasileira excursionando pela Europa. Nos últimos seis anos — estes anos desde que eu parei de jogar —, o Santos deve ter jogado na Europa umas duas vezes. Talvez nenhum dos jogadores do Santos atual tenha jogado na Europa. Mas, no meu tempo, o Santos jogava lá duas ou três vezes por ano. Isso era um incentivo para os jogadores. Quando se aproximava uma excursão, os jogadores do Santos ficavam se comendo nos treinos, porque todos queriam ir e não dava para levar todo mundo.


PLAYBOY — Mas algumas vezes você estrilava, quando era forçado a entrar em campo contundido, apenas para satisfazer uma exigência de contrato nas excursões do Santos, não é verdade?


PELÉ — É, algumas vezes eu cheguei a discutir, a me negar a entrar em campo. Queria voltar para o Brasil. Mas houve ocasiões em que, depois de os dirigentes da delegação chorarem muito, pedirem muito, eu concordava em entrar machucado em campo, com entorses muito sérios no tornozelo, que o médico cobria com gesso fino para imobilizar. É aquela história: já estávamos lá, os ingressos já quase todos vendidos... Se eu não jogasse iria haver problemas...


PLAYBOY — O Garrincha se queixou de que teria sido obrigado, muitas vezes, a fazer infiltração no joelho para poder jogar. Essa tal de infiltração não prejudica o jogador?


PELÉ — Depende. Confundem muito infiltração com anestesia, porque as duas são injeções no local machucado. A infiltração é injetar o medicamento — decadrol e xilocaína, creio eu — no músculo afetado, para cicatrizar mais rápido e dar maior dilatação. Esse tratamento só é prejudicial se o cara o fizer e em seguida entrar em campo para jogar. Agora, anestesia, simplesmente para tirar a dor e o cara suportar jogar, essa, sim, estoura qualquer um. Você está com uma pequena distensão, toma uma anestesia, passa a não sentir a dor e então começa a rasgar todo o músculo. E acaba com uma distensão grave.


PLAYBOY — Você chegou a fazer as duas coisas?


PELÉ — Não. Anestesia, jamais.


PLAYBOY — Mas não é verdade que na Copa de 62, no Chile, depois que você sofreu uma distensão na partida contra os tchecos, ainda nas oitavas de final, pediu que anestesiassem seu joelho para que pudesse voltar a jogar?


PELÉ — É verdade. Mas foi de puro desespero, e um pouco talvez por falta de conhecimento, porque eu ainda era muito novo e queria jogar de qualquer jeito. Mas o dr. Hilton Gosling, médico da Seleção, a quem tenho de ser muito grato, disse a mim: "Não, isso você de jeito algum pode permitir que façam, isso nós não vamos deixar fazer".


PLAYBOY — Mas alguns jogadores fazem, não é? O Garrincha não foi um deles?


PELÉ — Não sei se ele fez, mas dizem que no Botafogo chegou a fazer. Talvez por inexperiência, por ter pedido que fizessem, como eu pedi em 62. Porque muitas vezes o jogador tem fome de entrar em campo, quer ganhar o bicho, e chega até a exigir que o anestesiem.


PLAYBOY — Você disse que fazer infiltração só é prejudicial se o atleta for jogar em seguida. Isso aconteceu com você?


PELÉ — Aconteceu. Eu sabia que quando a gente se submete a uma infiltração tem de ficar dois dias parado para repousar. Mas no Santos não dava para ficar parado tanto tempo. O máximo que eu descansava era um dia. Eu sabia que isso era prejudicial, mas não tanto quanto tomar anestesia.


PLAYBOY — Quando você voltou campeão do mundo, da Suécia, em 1958, suas relações com o Santos mudaram? Você ficou mais exigente na defesa de seus direitos?


PELÉ — Não, embora eu tivesse todas as condições para exigir mais do Santos. Porque, naquela época, havia uns dez jogadores no time que ganhavam mais do que eu. O Zito, o Ramiro, o Formiga, todo esse pessoal ganhava bem mais que eu. Eles ganhavam entre 20 e 25 mil cruzeiros e eu só ganhava 13 mil.


PLAYBOY — Você não exigiu equiparação?


PELÉ — Poderia ter exigido, mas me habituei a só fazer exigências nas renovações de contrato. Mas tinha consciência de que poderia exigir, pois o Santos não fazia excursão sem Pelé, não jogava sem Pelé. Além de ser a maior atração do time, eu era um jogador que não dava problema algum para o técnico, nem para a diretoria do clube. Eu me satisfazia com o que ganhava e pronto. Muitos jogadores me diziam: "Pô, Deus dá asa a quem não sabe voar, se eu estivesse no seu lugar..." Sei que alguns dirigentes do Santos me acusaram, há algum tempo, de ter ficado rico enquanto o clube empobrecia. Mas o Santos só empobreceu porque foi mal administrado. Se tivesse tido uma boa administração ele poderia ser hoje um dos clubes mais ricos do mundo.


PLAYBOY — E foi com o Santos que você ficou rico?


PELÉ — Não. O Santos, para mim, foi apenas a chave do negócio.


PLAYBOY — Como assim?


PELÉ — Foi através de minhas atuações no Santos e na Seleção que me tornei admirado mundialmente e tive oportunidade de fazer bons negócios. Mas posso garantir, posso provar na ponta do lápis que ganhei mais em publicidade e outros negócios paralelos do que com o futebol. Em termos materiais, eu ganhei muito mais fora do futebol.


PLAYBOY — Então a verdade é que o Santos não soube administrar a era Pelé?


PELÉ — Quanto a isso não há dúvida. Para você ter uma idéia, o Santos naquela época jogava no exterior por 35, 40 mil dólares. Hoje, para uma equipe brasileira conseguir um jogo lá fora por 15 mil dólares precisa suar. Então, o problema do Santos foi de má administração mesmo.


PLAYBOY — Você acha que há dirigentes de clubes que tentam passar o jogador para trás?


PELÉ — Há muitos, muitos mesmo.


PLAYBOY — Cite alguns.


PELÉ — Prefiro não citar.


PLAYBOY — Alguma vez tentaram passar você para trás?


PELÉ [pausa] — Bem, o diretor de futebol do clube é sempre um sujeito mais velho, mais experiente. Então ele pega os garotos que estão começando e que vão fazer o primeiro contrato como profissionais e levam os meninos na conversa. Isso é normal, não é?


PLAYBOY — Fizeram isso com você?


PELÉ — Olha, eu tive a sorte de ser muito bem orientado por meu pai, que ha-via sido jogador profissional, e pelo Waldemar de Brito, que me levou para o Santos. Mesmo assim, nos primeiros contratos que fiz em 1958, 1960 eu fui levado no papo. Os diretores de futebol apelam para o coração da gente, aquele negócio, né? Mas ser enganado mesmo, acho que nunca fui.


PLAYBOY — Mas em 1972 você chegou a ter uma discussão brava com os dirigentes do Santos, por se sentir prejudicado por eles, não?


PELÉ — Sim, quando eu estava discutindo meu último contrato com o clube. Acontece que os dirigentes do Santos sabiam que eu estava resolvido a parar de jogar dois anos depois e eles queriam que eu continuasse jogando até quando desse. Em meus contratos anteriores o clube se responsabilizara pelo pagamento de meu imposto de renda. Mas um dia fiquei sabendo que o imposto não havia sido pago: fui intimado pelo fisco a pagá-lo. Então, fui reclamar com os diretores, que, na época, eram, se não me engano, o Sérgio Oreficce, o Clayton Bittencourt e o Vasco Faé. Mas eles teimaram em não reconhecer a responsabilidade do clube. Então houve aquela briga toda.


PLAYBOY — Diante disso o que você fez?


PELÉ — Concordei em jogar o primeiro ano — dos, dois de meu último contrato — recebendo uma quota nos jogos de excursão e um ordenado fixo. E, no ano seguinte, não recebi coisa alguma: todo o meu dinheiro foi doado às instituições de caridade de Santos.


PLAYBOY — Você era muito procurado por jogadores com dificuldades financeiras, que lhe pediam empréstimos. Atendia a esses pedidos ou tem razão de ser aquela história de que você é meio sovina?


PELÉ [rindo] — Eu sempre procurei não gastar dinheiro à toa. Já fiz maus negócios, mas nunca joguei dinheiro fora em bebida ou em jogo, como muita gente faz. Agora, quanto a ajudar outras pessoas, emprestando dinheiro, a minha opinião é de que a gente só deve ajudar a quem quer ser ajudado.


PLAYBOY — Explique melhor.


PELÉ — Há pessoas que não adianta você querer ajudar. Eu cansei de levar calotes de amigos, de jogadores a quem emprestava dinheiro e que, geralmente, nem agradeciam e depois vinham me pedir mais. Há pessoas que vêem você numa situação mais ou menos boa e acham que por isso você tem obrigação de ajudá-las. E então se aborrecem quando você diz que não pode.


PLAYBOY — Em que casos você concordava em ajudar?


PELÉ — Quando eu via que um cara estava com um problema de saúde, ou de família. Em casos assim eu ajudei muita gente e vou continuar ajudando. Mas, se eu vejo que o jogador é um cara que bebe, ou pede dinheiro emprestado para jogar, ou para outra besteira qualquer, eu não empresto mesmo! Porque eu acho que, se eu emprestar, não estarei ajudando a pessoa.


PLAYBOY — Nada de desperdícios. E quando algum passe seu excepcional era desperdiçado pela inabilidade de algum companheiro de time você de irritava?


PELÉ — É, várias vezes eu discuti por causa de coisas assim. Com o Toninho, por exemplo, que foi centroavante do Santos. Ele foi um bom jogador mas não gostava de devolver tabela, problema que não existia com Pagão, por exemplo. Outro que não era de devolver passes: Amarildo. Toninho e Amarildo eram esganados para fazer gols. Por isso, muitas vezes eles podiam passar a bola para um companheiro mais bem colocado, mas preferiam arriscar o chute a gol. Isso às vezes me irritava.


PLAYBOY — Você fez inimigos entre seus companheiros de time, no Santos, na Seleção ou no Cosmos? Lembra-se de alguém que não gostava de você?


PELÉ — Deve haver muita gente. Mas nenhum que tenha me demonstrado is-so claramente. Eu nunca tive problemas sérios com colegas, apesar de ter discutido, brigado muito e tomado muita pancada em campo. Mas, fora de campo, meu relacionamento sempre foi bom com todos.


PLAYBOY — Mas com alguns juízes de futebol você teve atritos, não? Pelo menos com um deles, o Armando Marques. Acha que ele o perseguia?


PELÉ — O problema do Armando não era comigo; era com a estrela do jogo, fosse quem fosse. Ele achava que tinha de se impor sobre o jogador de mais nome para que os outros o respeitassem.


PLAYBOY — Você foi expulso do campo muitas vezes?


PELÉ — Não. Em 22 anos de carreira, fui expulso umas quatro ou cinco vezes. Em duas ou três delas eu acho que a expulsão foi injusta. Mas nas outras vezes eu xinguei o árbitro, xinguei o Armando Marques...


PLAYBOY — Para quem, como você, achava tão importante dar bom exemplo, não era incoerente se comportar assim em campo?


PELÉ — Era. Mas algumas vezes eu me descontrolei, como qualquer pessoa que tem sangue nas veias.


PLAYBOY — Suas expulsões foram todas por discutir com o juiz ou você também foi expulso por jogo violento?


PELÉ — Nunca fui expulso por jogo violento; só por reclamar. Eu não achava justo o árbitro errar tanto contra o Santos, como muitas vezes errava, e continuar impune. Sempre defendi a tese de que deveria haver uma forma de punir os árbitros.


PLAYBOY — Com cartão vermelho?


PELÉ — Não, mas devia existir, fora de campo, uma espécie de comissão especial de árbitros encarregada exclusivamente de observar e julgar o trabalho dos juízes em campo — e com poder para anular suas decisões.


PLAYBOY — Embora afirme que nunca foi expulso por cometer violências, você admite que entrou maldosamente naquele lance em que deu uma cotovelada no rosto de um adversário, no jogo contra a Inglaterra, na Copa de 1970?


PELÉ — Não, não! Lembro-me bem daquele lance. Não dei cotovelada alguma no rosto do inglês. Dei uma cotovelada, sim, mas foi num uruguaio, num lance que a televisão não mostrou. Ele já tinha me dado dois pontapés sem bola e tinha pisado meu pé quando eu estava caído no chão.


PLAYBOY — Você se lembra de ter marcado algum gol com a mão, que o juiz não tivesse percebido?


PELÉ — Gol de mão eu nunca fiz. Mas fazendo falta, segurando o goleiro, já fiz muitos.


PLAYBOY — Certa vez você enfiou o braço debaixo do cotovelo de um zagueiro adversário, forçando-o a cair sobre você e o juiz deu pênalti.


PELÉ — Ah, isso eu cansei de fazer.


PLAYBOY — Não sentia remorso?


PELÉ — Não. O juiz é que tinha que ver quem merecia ser punido. Se ele achava que era o outro time, tudo bem [riso].


PLAYBOY — Quando percebia que um zagueiro qualquer estava a fim de intimidar você com entradas violentas, qual era a sua reação? Pegá-lo primeiro?


PELÉ — Não, mas sempre preveni meus marcadores de que eu entrava duro mesmo: Nunca fui desleal, mas sempre fui duro, entrava para dividir. Porque meu pai sempre me dizia que jogador que entra mole acaba se machucando. Se ele for com medo, se machuca mesmo... Por isso, alguns jogadores acabaram se machucando comigo, quando entravam num lance com a intenção de me machucar. É que não esperavam receber um impacto tão forte. Foi por isso, graças a Deus, que nunca me machuquei muito.


PLAYBOY — Violência à parte, algum jogador de futebol já decepcionou você?


PELÉ — Já houve alguns casos de jogadores dos quais eu esperava grandes coisas, mas aí começaram a beber, etc. Por exemplo, o Marinho, que foi da Seleção Brasileira, do Botafogo e do Fluminense, e que eu levei para o Cosmos.


PLAYBOY — Foi você que o indicou?


PELÉ — Exato. O Cosmos estava precisando de um lateral-esquerdo e nessa posição o Marinho é muito bom. Mas ele chegou aos Estados Unidos e logo começou a criar confusões. É um bom menino, mas cabeça oca.


PLAYBOY — Essas confusões ele criou por causa de bebida, de mulher, ou porque ficou deslumbrado?


PELÉ — Por puro deslumbramento. Ele se acha muito bom, e por isso não aceita a orientação do técnico; larga a posição e vai para a frente tentar fazer gol...


PLAYBOY — Marinho também tinha a fama de se achar irresistível com as mulheres. Isso afetou o comportamento dele no Cosmos?


PELÉ — Ele também se perdeu nisso. Lá as mulheres são mais liberais do que aqui; elas procuram você no hotel, vão ao seu apartamento...


PLAYBOY — E Marinho não sabe se manter imune a essas tentações. Como você...


PELÉ — Não é que eu seja imune. Só acho que ninguém precisa exagerar em coisa alguma. Até na alimentação, se você comer demais fica doente.


PLAYBOY — Por falar em doenças: você toma mesmo Vitasay?


PELÉ — Antes de aceitar fazer a propaganda do Vitasay eu tomei e dei para meus filhos. Pra ver, não é? Porque sou muito honesto naquilo que me proponho a fazer. Se eu falar que tomei Vitasay é porque tomei mesmo.


PLAYBOY — E deu algum resultado em você?


PELÉ — Vitasay é um complemento. Quem tiver alguma deficiência por falta de uma vitamina qualquer pode melhorar tomando Vitasay, que é um complexo vitamínico. Quer dizer, o Vitasay pode ajudar, mas o cara não pode parar de comer para tomar Vitasay.


PLAYBOY — Mal não faz?


PELÉ — Mal não pode fazer, mas a pessoa tem de se alimentar direito.


PLAYBOY — Voltemos ao futebol. Ao anunciar pela primeira vez o fim de sua carreira, após o Campeonato Paulista de 1973, você já se sentia saturado de bola, de viajar para o interior, não é verdade? Sua ida para o Cosmos lhe deu nova motivação?


PELÉ — Sem dúvida. A mudança de país, a mudança de tipo de jogo, tudo lá era novo para mim. E, no futebol, tudo estava por fazer. Isso me deu motivação, vontade de lutar para mostrar aos americanos que o futebol é um grande esporte, um grande espetáculo. Acontece que, quando cheguei aos Estados Unidos, o futebol de lá só era organizado fora do campo. O time do Cosmos era horrível!


PLAYBOY — Isso não fez você se sentir um pouco desanimado e pensar: "Pô, que é que estou fazendo aqui no meio desses pernas-de-pau?"


PELÉ — No primeiro campeonato? Claro! Houve até um dia em que falei pro professor Mazzei, que foi para lá comigo, como preparador físico: "Professor, o que é que nós viemos fazer aqui?" [Ri.] Aí o professor me falou: "É, tá difícil". Porque no primeiro campeonato nós conseguimos chegar até a semifinal. Mas, até acertar o time nos primeiros jogos, a gente só tomava de 4 a 1, 3 a 1. Lembro que quando fomos a Los Angeles jogar contra o Tampa Bay, que já era um time bem formado, com jogadores ingleses, eu falei ao professor Mazzei: "Desta vez vamos tomar de 5 a 1. Não dá pra gente puxar o carro antes, professor?" [Rindo.] E o professor: "Calma, calma!"


PLAYBOY — Mas hoje já há jogadores americanos em condições de jogar em bons times brasileiros?


PELÉ — Há. E americanos.


PLAYBOY — Cite alguns.


PELÉ — O Rick Davis, meio-campo do Cosmos, poderia jogar no Brasil. Há também os goleiros Mazzo e Shepp Ness. Aliás, eles têm bons goleiros. Isso é fácil de entender, porque todos os esportes mais populares nos Estados Unidos são jogados com as mãos e assim fica mais fácil formar bons goleiros. Mas há jogadores de outras posições que poderiam jogar aqui. Afinal, temos também muitos jogadores que não poderiam jogar lá [risada]. Houve vários exemplos disso: o peruano Mifflin; o Edu, que foi do Santos e da Seleção Brasileira e por isso achou que o futebol americano ia ser fácil para ele... Mas não é fácil não.


PLAYBOY — Você acredita que o futebol norte-americano chegará a ser uma potência mundial?


PELÉ — Acho que tem tudo para chegar a isso, porque tem dinheiro e organização. Porém, há um problema seriíssimo, que pode atrapalhar: a temporada de futebol dura apenas seis meses. O resto do tempo, fora uma ou outra excursão, os times ficam parados. Mas, independente disso, há um fator positivo, que é a infinidade de garotos que estão jogando futebol. Segundo uma pesquisa feita lá, há mais times juvenis e infanto-juvenis do que no Brasil.


PLAYBOY — O torcedor americano tem uma mentalidade diferente da do nosso? É mais frio?


PELÉ — É igual ao daqui: quentíssimo. Mas não são tão apaixonados por seus times, não ficam tão solidários nas derrotas. Lá, eles querem espetáculos. Mas para gritar, torcer, eles são iguaizinhos aos brasileiros. Inclusive para brigar na arquibancada.


PLAYBOY — Que inovações criadas pelo futebol americano poderiam ser adotadas no Brasil? Em termos promocionais, por exemplo.


PELÉ — Promoção é exatamente o que falta no futebol brasileiro. Folhetos sobre cada jogo, publicidade dirigida diretamente ao público. Ah... faz falta aqui também um pouco mais de espetáculo, aquele tipo de show que os americanos fazem nos 15 minutos que antecedem o jogo. Eles fazem muitos sorteios entre o público, oferecem outras atrações, além do futebol. E oferecem muitas comodidades aos torcedores. Por exemplo: todos os estádios americanos têm estacionamento para automóveis. Eu acho um absurdo o estádio do Morumbi ter sido projetado sem estacionamento!


PLAYBOY — Você acredita que a grama sintética também acabará por ser adotada nos estádios brasileiros?


PELÉ — Não acredito. Dá pra jogar e é até melhor do que campo esburacado. Mas, quando você escorrega ou dá um carrinho, fica todo ralado e a ferida infecciona. É uma desgraça!


PLAYBOY — Você acha que há possibilidades de Os Estados Unidos algum dia ganharem uma Copa do Mundo?


PELÉ — Eu acho que daqui a duas ou três copas eles estarão disputando a final. Atualmente, o maior problema da Seleção Americana é o técnico, que, pela lei, tem de ser cidadão americano. Acontece que todos os bons técnicos de lá são europeus. A solução talvez seja pegar um europeu como consultor, supervisor ou coisa parecida, a fim de suprir as deficiências do técnico americano.


PLAYBOY — Voltemos ao futebol brasileiro. Você acha que, na situação atual do nosso futebol, algum técnico, seja quem for, tem condições de armar uma boa seleção?


PELÉ — Nós nunca tivemos falta de bons treinadores. O problema no Brasil é lidar com a cartolagem. Qualquer técnico que não tiver muito pulso, muita moral diante dos cartolas, vai ter problemas. Porque os cartolas vão querer impor seus jogadores preferidos, vão fazer política para seus clubes.


PLAYBOY — Dos jogadores atuais, quem você apontaria como titular certo para uma seleção que seja formada agora?


PELÉ — Falcão.


PLAYBOY — Só ele?


PELÉ — Não. Tem outros jogadores que teriam de estar na Seleção. Mas você me pediu para citar um e eu citei [ri]. Acho que o Falcão é o jogador mais completo do Brasil. Aliás, eu já disse isso há uns três ou quatro anos.


PLAYBOY — E o Zico, o Sócrates?


PELÉ — Acho que Zico pode ser útil na Seleção, mas pela posição em que joga não é um jogador imprescindível. Sócrates também é um bom jogador, mas não marca. O Zico não marca bem, enquanto o Falcão, além de marcar bem, também sabe atacar, é o mais completo. O problema de Zico e Sócrates é que a função de ambos é mais ou menos a mesma: eles vêm de trás, fazendo o terceiro homem do meio-campo, entende?


PLAYBOY — Em relação à época do início de sua carreira, você acha que a mentalidade do jogador brasileiro evoluiu?


PELÉ — Muito. E olhe que no Santos do meu tempo a maioria dos jogadores tinha boa cuca. Havia uns três ou quatro desmiolados, mas os demais...


PLAYBOY — Desde então esse nível ficou melhor ainda?


PELÉ — Ficou. Os jogadores brasileiros ficaram mais responsáveis, mais conscientes de sua profissão. Acho que contribuí para isso, pelo exemplo que dei.


PLAYBOY — Por falar nisso, há quem o acuse de ter dado um mau exemplo ao afirmar que o povo brasileiro não está preparado para votar.


PELÉ — Tudo o que eu falo é distorcido e mal interpretado. O que eu quis dizer é que o povo brasileiro precisa levar mais a sério o voto, não votar em Cacareco, em Pelé ou em Zico, porque isso não leva o Brasil a nada. Eu duvido que alguém tenha feito mais publicidade do Brasil no exterior do que eu. E eu quero que o povo brasileiro tenha o melhor. Fui dizer isso e modificaram tudo, disseram até que eu havia falado que o brasileiro é burro, não sabe votar. O que eu ainda acho é que votar em branco ou anular o voto é uma maneira burra de protestar.


PLAYBOY — Você não acha que, se o governo desse mais oportunidades ao povo de votar, os eleitores acabariam ficando, digamos, mais preparados?


PELÉ — É, isso. Até 1964, segundo gente que entende, havia democracia no Brasil, e se chegamos a mudar essa situação é porque não estávamos escolhendo Os governantes que deveríamos ter escolhido. E agora que está todo mundo lutando pela abertura política, é bom que o povo esteja preparado para isso.


PLAYBOY — Outra declaração polêmica sua, feita certa vez a um jornalista estrangeiro, foi a de que no Brasil não existe discriminação racial. Você confirma essa opinião ou também foi mal interpretado?


PELÉ — Eu acho que na minha área, que é o esporte, não existe discriminação racial. Eu nunca tive problemas, jogava futebol com brancos, ia à escola com brancos e nunca fui discriminado. Acho que o problema no Brasil é de discriminação social. Isso existe mesmo, e é muito grande. Discriminação racial existe é nos Estados Unidos e na África do Sul.


PLAYBOY — Qual sua opinião sobre as posições de Muhammad Ali contra a discriminação racial? Ele também é um esportista e no entanto atua muito em defesa de sua raça.


PELÉ — Já conversei com ele várias vezes, ele compareceu à minha despedida do futebol, mas não convivi com ele. Respeito muito o Muhammad Ali, que, como atleta, é o máximo em sua área. Mas ele sofreu na carne um problema que eu não sofri. A infância dele foi diferente da minha, ele sofreu problemas com o racismo e por isso defende uma coisa em que acredita. Mas eu não tive esses problemas, nasci em outro país, e não sinto isso.


PLAYBOY — Há um samba, muito tocado recentemente nas rádios brasileiras, que afirma que você se transformou em garoto-propaganda das multinacionais. Você o ouviu?


PELÉ — Achei um barato! Sensacional! Mas, enquanto eu estiver pagando o meu imposto de renda, trabalhando, não ligo pra essas coisas. Alguém paga o meu imposto?


PLAYBOY — Quanto você pagou de imposto de renda este ano, no Brasil?


PELÉ — Não sei dizer, porque declaro como pessoa física e jurídica. Quem sabe disso é meu diretor financeiro. Pode dizer a ele que eu o autorizei a informar. [N.R.: o diretor financeiro de Pelé, José Roberto Xisto, declarou a PLAYBOY que prefere dizer que Pelé é bicha do que informar quanto ele paga de imposto de renda...]


PLAYBOY — Como é a vida do Pelé homem de negócios?


PELÉ — O que eu faço atualmente é arrumar trabalho pros outros [rindo] Tenho um escritório de publicidade aqui e outro em Nova York, que são o que me toma mais tempo. Tenho uma firma imobiliária aqui em Santos para cuidar dos meus imóveis e dos de minha família. E um contrato com a Warner, para a qual faço relações públicas. Mas não sei se posso me considerar um homem de negócios... O pouco que eu tenho visto da vida dos homens de negócios me mostra que ela é muito dura, mais rude do que o esporte...


PLAYBOY — Quantas horas por dia você trabalha?


PELÉ — Chego ao escritório, às 10 da manhã e saio às 6 da tarde. Às vezes só vou à tarde. Mas há também as viagens, a serviço da Warner ou para filmagens. Daqui a poucos dias estarei embarcando para a Europa, onde vou fazer um filme dirigido por John Huston*.


PLAYBOY — Glauber Rocha também queria fazer um filme com você.


PELÉ — Ele me convidou para o papel principal, o papel de um marginal brasileiro que acaba virando herói. Ele fumava maconha, bebia, estuprava crianças e vira herói, não sei como! Eu recusei e o Glauber Rocha ficou bronqueado, começou a falar um monte de besteiras, dizendo que sou agente de multinacionais americanas. Coitado...


PLAYBOY — Outra atitude sua que deu o que falar foi aquela em que você ofereceu seu milésimo gol às "criancinhas do Brasil". Por que aquilo?


PELÉ — Não sei, o motivo exato eu não sei. Talvez lembrando minha infância pobre. Cheguei até a passar fome e aos 11 anos trabalhei como engraxate para ajudar minha família, que naquela época não tinha nem como pagar o aluguel da casa em que a gente morava. Mas se eu soubesse que oferecer meu milésimo gol às criancinhas iria causar tanto problema, tanta onda, tanto aborrecimento, teria ficado quieto. Minha mãe havia acabado de fazer aniversário, eu bem que podia ter oferecido meu milésimo gol a ela, que iria adorar [risada]!


PLAYBOY — Muita gente estranha que seu pai, o Dondinho, trabalhe até hoje como modesto funcionário público, tendo um filho milionário. O que você diz a isso?


PELÉ — Meu pai trabalha porque quer, diz que, se parar, morre. Ele se aposentou, não agüentou ficar parado e voltou a trabalhar.


PLAYBOY — Mas você o ajuda, não?


PELÉ — Claro. Todas as casas que eu tinha em Bauru dei pra ele, mais a casa em que ele mora em Santos.


PLAYBOY — E seu relacionamento com o pai de sua ex-mulher? É verdade que você teve uma briga feia com ele?


PELÉ — Não, isso é mentira. Sempre fomos muito amigos.


PLAYBOY — Mas com Lima, seu concunhado, você brigou mesmo, não?


PELÉ — Todo princípio de separação cria um monte de rancor, de besteira na hora da raiva. Acontece que a Rose telefonou dos Estados Unidos para a irmã dela, em Santos, e disse pra ela entrar em minha casa e tirar tudo que encontrasse lá. A irmã dela tinha a chave da casa e disse ao guarda que a Rose tinha autorizado a entrada dela. Depois o guarda me contou que meu concunhado ajudou a retirar as coisas da casa. Isso me deixou indignado, achei que havia sido uma safadeza muito grande do Lima, que havia jogado no Santos comigo e a quem ajudei muito... Mas deixa isso pra lá. Enfim, achei que ele deveria ter me procurado e perguntado minha opinião sobre a atitude da Rose. Ou então deveria ter dito à minha cunhada: "Vou ficar fora disso, você se quiser que vá lá". Acho que o papel dele, como homem, deveria ter sido esse. Mas acredito que ele fez aquilo por medo da mulher; ele é dominado por ela. O fato é que fiquei furioso, fui à delegacia e dei parte. No dia seguinte, o delegado foi à casa do Lima e apreendeu os objetos que haviam sido tirados de minha casa. Acho que tudo aquilo foi uma baixeza muito grande. Mas é assim mesmo: quando envolve a parte material, a coisa fica assim.


PLAYBOY — Falemos mais um pouco de sua vida de solteiro rico e famoso.


PELÉ — Como já disse, minha vida não mudou muito fora do casamento. Pela educação que tive e pela disciplina da vida de atleta, eu me tornei muito caseiro; não sou de sair muito. A única diferença é que agora eu me sinto livre da obrigação de dizer aonde vou e com quem vou. Porque, muitas vezes, quando a gente é casado tem problemas até para sair com um amigo, porque a esposa pode não gostar dele. Acontece que há muitas pessoas de quem eu gosto e que, por causa do temperamento fechado da Rose, eu não podia receber em minha casa. É claro que eu não iria encher a casa de amigos todos os dias, mas, de vez em quando...


PLAYBOY — E agora?


PELÉ — Depois que eu me separei da Rose, não há um sábado que eu esteja em Santos que não faça uma churrascada, uma peixada ou feijoada. Eu mesmo preparo tudo. Sei cozinhar um pouquinho...


PLAYBOY — E sua vida de solteiro em Nova York?


PELÉ — Estou gostando muito. Tenho a liberdade de fazer tudo o que quero e isso é ótimo.


PLAYBOY — Quem são seus melhores amigos por lá?


PELÉ — Meus amigos são o Jean-Claude e a mulher dele, Cláudia. Ele é dono do restaurante Le Perinet, na Broadway, e ela é manequim. Jean-Claude é francês-americano e Cláudia é brasileira. Vou sempre ao Le Perinet e eles me levaram para conhecer a discoteca Studio 54. Outros bons amigos meus em Nova York são o professor Júlio Mazzei e a Maria Helena Mazzei. Além deles, tenho o Pedro, um cubano-americano que é meu secretário particular, e o Almir, brasileiro, que é meu motorista e às vezes também cozinheiro. Aliás, estou pensando em abrir um restaurante em Nova York, em sociedade com o Jean-Claude. Há uns dois anos estive para abrir um em sociedade com o Ricardo Amaral, mas não deu certo porque ele queria o nome Pelé numa cadeia de restaurantes e eu só estou interessado em coisa menor.


PLAYBOY — Além dessas propostas, você tem recebido outras, de outras áreas?


PELÉ — Fui convidado para fazer o Orfeu num musical da Broadway com música de Tom Jobim, o Orfeu Negro. Também falaram num musical sobre a minha vida. Acho interessante, mas não sei em que pé estão essas idéias.


PLAYBOY — O que você lê além de revistas e jornais?


PELÉ — Não sou muito de ler, mas gosto de Jorge Amado. Li quase tudo dele. Gostava também de Fritz Kahn, Viver 24 Horas por Dia. Li o Raízes, de Alex Haley, em inglês, mas de vez em quando não entendia certas palavras. Mas o que eu gosto mesmo é de ver televisão.


PLAYBOY — Cinema? Teatro?


PELÉ — Também gosto. Fui ver em Nova York o musical Saravá, que é baseado no romance Dona Flor, de Jorge Amado. Mas o mais perto que ele chega do Brasil é a Cuba [riso].


PLAYBOY — Quais são os seus personagens favoritos?


PELÉ — Na infância meus ídolos eram o Capitão Marvel e o Zorro. Hoje não tenho preferências importantes...


PLAYBOY — Na sala de entrada de seu escritório em Nova York há fotos suas com a rainha Elizabeth, com os presidentes Nixon, Ford e Carter, e até com o Idi Amin. Como foram seus encontros com cada um deles?


PELÉ — Em geral a gente troca algumas palavras e só. Simpáticos comigo todos eles foram. O Ford até bateu uma bola comigo no jardim da Casa Branca.


PLAYBOY — O Idi Amin também era uma simpatia?


PELÉ — Muito simpático também. Pôs até um avião à minha disposição.


PLAYBOY — E o que ele fez em Uganda?


PELÉ — Bom, política é outro papo, eu não entendo. O Idi Amin parece que depois enlouqueceu, não sei.


PLAYBOY — Para encerrar: você acredita que um dia surgirá outro Pele?


PELÉ — Não sei, acho difícil que surja outro Pelé. Você vê, houve um só Michelangelo, um único Beethoven. E provavelmente jamais surgirão outros.


POR BEATRIZ HORTA


 

* Fuga para a Vitória, filmado em locação, na Hungria, com Sylvester Stallone no papel principal. Nele, Pelé faz um prisioneiro de guerra dos nazistas, de nacionalidade britânica, que participa de um jogo de futebol entre os prisioneiros e os guardas do campo.


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