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PRINCE

Perfil

O PRÍNCIPE DESCALÇO

Depois de amargar um fracasso atrás do outro, o mais talentoso ídolo pop dos anos 80/90 desce do salto alto, grava um CD independente e cruza os dedos para voltar a contar a vida em milhões de dólares.


Por LIZ JONES

The Sunday Times Magazine


Ele ainda se chamava Prince quando subiu a escada, no compasso do toc-toc dos sapatos de salto 15, para receber o Oscar 1984 pela música do filme que também estrelara, Purple Rain. Carregava um véu azul-turquesa e um make-up de dar inveja a Theda Bara. Ao ver aquilo, o saudoso jornalista Paulo Francis mastigou um certo desprezo que, mais tarde, engrossaria sua coleção de definições emblemáticas: "Uma prostituta sudanesa". Waaal, a idéia era essa. Prince sempre gostou de bancar o andrógino, sabia que a imagem funcionava a seu favor. Pelo menos, funcionou com 15 milhões de pessoas que compraram seus vinte discos em todo o mundo. Algo como 300 Milhões de dólares. Hoje, parece que sobrou só a imagem. Mas ela não basta.


À primeira vista, parece que continua tudo igual. Aos 38 anos, o cantor, compositor, multi-instrumentista, ator, produtor e diretor de cinema ainda mantém uma equipe particular de estilistas que confeccionam suas calças justas, blusas colantes, capas bordadas de gola alta e, claro, um bom estoque de botas com salto agulha. O recheio do figurino é que está mudado.


Primeiro foi o nome. Há três anos ele resolveu que era preciso se libertar do ranço escravagista com que fora batizado. Prince Roger Nelson — nome de branco de ascendência inglesa num americano originário da África — passava a atender por um símbolo. Além de não ter som, a figura — que já aparecia na capa do disco de 1992, Prince & The New Power Generation — mexeu com a imaginação dos súditos. Tinha gente dizendo que era um mix dos símbolos feminino e masculino, outros enxergavam referências satânicas. A imprensa americana, sempre prática e sem qualquer coisa semelhante no teclado dos computadores, criou uma sigla para escrever sobre o superstar: TAFKAP, iniciais de The Artist Formerly Known As Prince, ou "o artista antes conhecido como Prince".


Para o pessoal do Paisley Park — complexo de estúdios anexo à sua mansão nos arredores de Minneapolis, Estado de Minneapolis, Estados Unidos —, ele é o que sempre gostou de ser: O Chefe. Entre locutores de rádio e apresentadores de televisão, O Artista. Certo mesmo é que, a partir de 1994, O Excêntrico não se transformou apenas em O Impronunciável. Começava ali um período em que o mais talentoso astro da música pop dos anos 80/90 seria conhecido também como O Esbanjador, O Encrenqueiro, O Esnobe, O Temperamental, O Ridículo e, finalmente, O Desastre.


 

Para entender como é que um ídolo despenca rapidamente para o quase esquecimento, é preciso contar a história desde o começo. Por pouco O Talento não nasceu no Estado da Louisiana. Foi lá que o destino juntou seus pais, Mattie e John Nelson, ambos negros — apesar de O Marketeiro insinuar que era mestiço, especialmente quando colocou uma mãe branca no semi-biográfico Purple Rain. O casal mudou-se para Minneapolis e em 1958 nasceu Nelson-filho. Nelson-pai, um respeitado pianista de jazz, tratou de iniciar o rebento na música logo cedo. Aos 5 anos, O Precoce começou a estudar piano. Dois anos depois, John e Mattie tiveram sua última briga de abalar quarteirão, a mãe juntou suas coisas e se mandou.


Aula de música aos 5 anos, show de James Brown aos 10, primeira banda aos 16. Sucesso era questão de tempo

O pequeno príncipe ficou um tempo com o pai. Não deu muito certo — numa recente aparição no talk-show de Oprah Winfrey, exibido em 210 emissoras americanas, Sua Alteza não apenas revelou que sua cintura mede 68 centímetros como insinuou que apanhava de Nelson-pai. Quando foi morar com a mãe e o padrasto, continuava afogando as mágoas no teclado. Mas não se pode dizer que tem apenas más recordações de infância. Foi o padrasto quem lhe mostrou o poder do palco, num show de James Brown, quando O Tímido tinha apenas 10 anos. "Adorei, vi as garotas mais lindas", lembra-se O Mulherengo, reconhecendo sua natural vocação para paquerador. Se a infância não era tão infeliz assim, por que diabos ele passava a maior parte do dia e da noite trancado no quarto, estudando música?


Na escola, todos o chamavam de qualquer coisa que fosse pequena

Para O Solitário, era um jeito de escapar à gozação que sofria na quadra de basquete da Escola Central de Minneapolis. "Me chamavam de qualquer coisa que fosse pequena", irrita-se O Mignon, cuja altura oficial é 1,65 metro, mas que testemunhas oculares calculam que seja alguma coisa não muito superior a 1,50 metro. Sua vingança viria carregada de determinação. Aos 16 anos, liderando uma banda de garagem, O Perfeccionista mostrava aos colegas como se deve tocar guitarra, contrabaixo, bateria e sintetizador — só não dominava bem o saxofone porque enjoou das aulas no sétimo estágio. Numa entrevista ao jornalzinho da escola, O Ambicioso também declarou que sua meta era ter controle total sobre a própria carreira. Antes que alguém soltasse a primeira gargalhada, emendou: "Lamento que este Estado não tenha grandes gravadoras para me contratar".


 

A turma do colégio mal teve tempo de rir dele: em 1977, a gravadora Warner chegou com uma proposta irrecusável. Pela primeira vez na história do showbiz, um jovem estreante topava fazer três discos ao preço de 1 milhão de dólares. Assim, redondinho. Claro que O Fominha torrou toda a grana na gravação do primeiro, For You. Controlador e autoritário, naquela época já começava a determinar a conduta de trabalho e sua banda "multi-racial" logo entendeu que, se quisesse seguir com ele, não podia beber, fumar ou cheirar. O negócio era acordar cedo, ensaiar exaustivamente e dormir tarde — e ele, sempre mais que os outros, desde então só consegue apagar por umas 3 ou 4 horas, ao amanhecer, e olha lá.


Esse tipo de disciplina talvez não combinasse muito, mas o fato é que, uma vez no palco, O Caxias se transformava em O Muito Louco. O som, cujas influências declaradas iam de Carlos Santana a Stevie Wonder, flertava com o rock e ia ganhando uma cadência sensual, com batidas fortes reverberando no baixo ventre da platéia. As letras eram deliciosamente sem-vergonha. E a performance, ah, essa, sim, era de arrebentar qualquer expectativa: O Abusado dançava languidamente, se esfregava em tudo o que houvesse por perto, fosse uma bailarina ou um pedestal de microfone, ao mesmo tempo que usava meias de seda cintilantes, tapa-sexo, penteados femininos e costeletas de latin lover, mais uma maquiagem que o deixava com cara de querubim de gueto. Quem poderia resistir?


Não forçava a barra como Madonna nem precisou de plástica como Michael Jackson. E superou a concorrência

Os céticos apostaram que lá vinha mais um roqueiro querendo fazer sucesso apelando para o sexo. Logo se instalou entre os grandes e formou o estelar triunvirato da música dos anos 80, ao lado de Michael Jackson e Madonna. Mas o tempo provou que O Provocador levava até vantagem sobre a concorrência. Apesar das demãos de pancake, parecia mais autêntico que os outros dois: seu nariz fora afilado pela própria natureza e não precisava bancar o sensual — ele era um tesão, ponto. Passava o tempo todo cercado de belas mulheres: tinha garotas na banda, selecionava bailarinas para shows e clipes, tirou até uma casquinha de Kim Basinger. Apostando no fetichismo dos fãs, abriu uma loja em Minneapolis onde era possível comprar roupas que ele dispensava do próprio guarda-roupa, anéis, colares e brincos em forma de crucifixo, maquiagem e mesmo um perfume afrodisíaco, à base de feromônio, uma substância que provoca atração entre os animais pelo olfato. Sim, os críticos estavam certos — sexo é um ótimo negócio, mas quando vem sob o selo de um artista que lota estádios em turnês ao redor do mundo, é uma verdadeira mina de ouro.


Sovina, reclamou da conta do Hippo e barrou gente na festa. O Boni, por exemplo


Desde quando aprendeu a nadar em rios de dinheiro, porém, O Riquinho soube dar valor a ele. Tanto que, num intervalo entre os dois shows do Rock in Rio 1991, a segunda vez em que veio ao Brasil (a primeira foi em 1985, para promover o disco-filme Purple Rain), ao dar uma incerta na boate Hippopotamus, no Rio, ficou escandalizado com a conta, de 230 dólares, e soltou meia dúzia de impropérios antes de pagar. Também não ofereceu um só drinque aos "convidados" de sua festa fechada no Resumo da Ópera, onde ninguém menos que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni da Rede Globo, foi sumariamente barrado na porta (Boni acabou entrando, graças à intervenção do gerente). Em compensação, O Sovina acabou fazendo render a noite de Marianne Cotrin, então com 16 anos, uma das modelos contratadas para enfeitar os jantares pós-show do Rock in Rio. Ele, que esnobara a vulcânica Gisele Fraga com ar de fastio, tirou Marianne para dançar. Para a imprensa, Marianne repetia que O Ídolo era "um cara como outro qualquer". Ganhou seus 15 minutos de holofote, um namorico de três dias e uma passagem para Minneapolis, para aparecer num clipe. E só.


 

O caldo começou a entornar em 1992, justamente quando o infante ameaçava coroar-se rei. Sua renovação de contrato com a Warner foi para as primeiras páginas dos jornais com o impacto de um ataque terrorista. Até hoje, muita gente duvida das cláusulas: seis discos a 10 milhões de dólares cada, mais 20 milhões para O Queridinho ter seu próprio selo, escritórios e um staff de doze pessoas em Los Angeles, royalties de 20% (taxa altíssima no setor) sobre sua produção artística, um cargo pomposo na própria Warner e alguns luxos extras, como um estúdio funcionando 24 horas por dia exclusivamente para ele, caso O Gênio sentisse um ímpeto de inspiração a qualquer momento. Wall Street previu na ponta da calculadora digital que ele teria de vender 5 milhões de cópias — ou duas vezes e meia o que vendeu da trilha sonora de Batman, de 1989 — para que a Warner recuperasse o adiantamento. No total, eram 100 milhões de dólares, a maior montanha de grana já imaginada por um artista popular. O problema é que O Recorde já não seria tão popular assim.


O público não se importaria com tanta extravagância se ele não cobrasse para tocar nas canjas londrinas

Começou gastando uma dinheirama, cerca de meio milhão de dólares, para produzir um vídeo que jamais seria exibido. Patrocinava extravagâncias, entre elas uma que tinha um belo par de pernas — tanto que PLAYBOY aproveitou e mostrou seus outros atributos na edição de novembro de 1996 — e se chamava Carmem Electra, filmando-a no Egito, dirigindo-a meses no estúdio. O público pagante não se importaria se ele ao menos parasse de cancelar seus megaespetáculos em cima da hora, ou não tivesse a péssima idéia de cobrar pelas canjas da madrugada londrina. Mas O Imprevisível não parava de aprontar.


Na intimidade, demitiu os velhos amigos de começo de carreira, brigou com os advogados, falou mal da Warner. O Fanfarrão tinha duas boates, em Minneapolis e Miami, na Flórida, mas também acabou brigando com os sócios — entre eles um guarda-costas e o meio-irmão, Duane Nelson. Em protesto, escreveu com maquiagem a palavra Slave (escravo, em inglês) no próprio rosto, dizendo que andava nauseado com a servidão da América em relação ao dinheiro, e mudou o nome para o tal símbolo. Só de birra, fez um disco ruim — experimental, na opinião dos fãs irredutíveis; baboseira, para os chefões do showbiz intitulado Caos e Desordem. Não vendeu mais de 100.000 cópias. O rompimento do contrato, em 1996, foi um alívio para pelo menos uma das partes.


Cheio de dívidas, sem gravadora e sem os velhos amigos, O Intempestivo lembrou-se de que ainda existia amor e foi fundo. No ano passado, Dia dos Namorados, casou-se com a bailarina porto-riquenha Mayté Garcia e, na cerimônia, desmaiou de emoção. A transmutação de namorador compulsivo em monógamo praticante não era a única surpresa. "Mayté chorou quando viu um berço lá em casa", suspira O Romântico, com o olhar triste. Sim, o bardo do rock erótico que chocara o imundo com sua versão das noitadas de Calígula no clipe Gett Off (1991) agora queria uma família-padrão.


Uma de suas últimas músicas divaga sobre a aventura de ser espermatozoide

Como os problemas nunca vêm aos poucos, a pior parte do pacote de tragédias do nosso herói chegou logo em seguida. A gravidez de Mayté inspirou uma música apaixonada sobre a aventura de "ser espermatozoide", mas o garoto nasceu com uma doença rara no cérebro. Viveu duas semanas. O principado de Paisley Park fechou as portas e algo ali dentro ruiu.


 

No final da vida, obrigada a colocar anúncio em jornais para conseguir um papel, a atriz Bette Davis deu uma entrevista. O jornalista perguntou o que a mantinha viva depois de tanta batalha e, soltando uma baforada de cigarro, a diva foi direta: "Trabalho". Talvez TAFKAP tenha ouvido essa história, talvez tenha simplesmente percebido que sua desgraça era apenas o lado escuro da mesma lua que o fez brilhar. Se nem os vulcões conseguem impedir que a vida renasça das cinzas, por que aconteceria com ele?


A Fênix enxugou as lágrimas, retocou a maquiagem e foi à luta. Tratou de lançar o CD triplo que fizera praticamente sozinho — Emancipation — e, como aprendeu a fazer parcerias razoáveis, assinou a distribuição mundial com a EMI-Odeon. Calçou de novo o salto alto literal, mas desceu do figurado, mostrando-se gentil com os jornalistas. O homenzinho franzino que corria da imprensa como um laranja foge de uma CPI no Brasil agora não se cansa de falar sobre a vida pessoal para jornais, revistas, até televisão. "Quero ter muitos filhos, pelo menos uns dez", sorri O Esperançoso. "Mayté gostaria de ter gêmeos, dois de cada vez."


Tudo bem. Se o futuro profissional é hoje uma aposta, o privado parece seguro. Mayté tem o cuidado de chamar o marido apenas por um simples "Hey" e sabe que é assim que deve ser. "Se ela disser: 'Prince, me traz uma xícara de chá', provavelmente eu jogo a xícara", brinca O Radical — sem perceber que ele mesmo é capaz de dizer o próprio nome sem sentir mais dor nenhuma.


ADAPTAÇÃO ROSANGELA PETTA ILUSTRAÇÃO LULA


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