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SEDUZIDO PELA RAINHA

Ficção



Na imaginação viva e carregada de erotismo de um dos maiores escritores modernos, uma imersão num mundo antigo e cheio de paixão


Por NORMAN MAILER


As memórias de um general reconstituem o universo perdido do lendário Faraó Usermare. Após comandar a guarda das concubinas reais, as jovens rainhas, e se apaixonar pela bela Ma-Khrut, a feiticeira, o general é destacado para servir a rainha Nefertiri e sua rival Rama-Nefru. Noites Antigas (Ancient Evenings), do qual antecipamos um trecho, será lançado no Brasil no mês de outubro, pela Editora Nova Fronteira.


1ª PARTE


Tarde da noite, após Usermare ter cavalgado cada um dos corpos das oito jovens rainhas, finalmente acalmou-se como as águas de um lago, ajudei-o a vestir-se e caminhamos juntos de mãos dadas pelos jardins.


— Durante muitos meses vivi em meio a uma grande indecisão — disse ele —, mas esta noite acabou-se. Amanhã, você começará a servir como cavalheiro da Mão Direita de Nefertiri, pois você pertence ao palácio da minha primeira rainha. Você tem sabedoria para servi-la bem, e a mim, melhor ainda.


Inclinou a cabeça como aprovando o próprio discernimento.


— Você ficará próximo de Nefertiri. Nunca se afastará dela. Se chegar a notícia de que morri, mate-a onde ela estiver.


Beijou-me em seguida.


— Mate-a — tornou —, ainda que a presença dos guardas signifique que você também irá morrer no instante seguinte.


Curvei-me respeitosamente. O amanhecer era tão encantador como a lembrança da minha própria vida.


— É a morte mais apropriada para você — disse. — Estará em condições de acompanhar-me no Barco Dourado.


Ele era meu Rei, e por isso não me atrevi a dizer que poderia perder-me no Mundo dos Mortos e não ser recebido por ele em barco algum. Simplesmente curvei-me de novo.


• • •


Não sei ao certo agora se o rosto que vejo diante de mim ao pensar em Nefertiri é de fato aquele que eu amava quando sabia o que era desejar uma mulher completamente, a ponto de sentir um desejo ardente por ela até mesmo nas extremidades dos dedos dos pés, como se, qual árvore, eu pudesse extrair energia da terra. Conheço-lhe o rosto, sim, e no entanto, ao lembrá-la agora, não é diferente de Ma-Khrut. Não era gorda, naturalmente, mas tinha formas voluptuosas, ao menos na época em que a conheci, e o rosto de Nefertiri, como o de Ma-Khrut, tinha o nariz pequeno e belo, os mesmos lábios curvos e magníficos, cálidos como uma fruta, a expressão delicada, alegre ou cruel conforme o momento. Ninguém tinha cabelos tão negros e brilhantes e os seus olhos eram dignos de uma deusa. De cor profunda, entre o violeta e o púrpura, como o corante real que vem das margens do Tiro, falavam da opulência da realeza. Fitá-los era sentir a eternidade do céu noturno. Assim me lembro dela, e no entanto não sei ao certo se eu vejo seu belo rosto, ou apenas uma evocação.


Lembro-me da manhã em que entrei pela primeira vez na Sala do Trono de Nefertiri no Palácio da Esposa Real e lá fui apresentado à corte como cavalheiro da Mão Direita. A luz do sol passava por entre os pilares atrás dela e ofuscava-me os olhos ao cintilar sobre cada leão ou serpente esculpidos no tronco dourado.


Devo dizer que as sentinelas não demoraram em levar-me à sua presença. O valor evidente de minha nova posição na corte abriu portões atrás de portões, e após um grande par de portas duplas penetrei no ouro e no esplendor da vasta sala. Estava preparado para ficar cego pela luz que emanava do trono — as jovens rainhas, que podiam informar sobre tudo o que nunca tinham visto, haviam me contado muito a respeito do esplendor da luz da manhã, quando Nefertiri sentava-se junto à fileira de colunas situadas a oriente —, mas não estava preparado para perder os sentidos. Eu havia passado tantas horas com Usermare, que pensei que meus pés ficariam firmes na presença de sua esposa. Não aconteceu assim. Atirei-me ao chão e beijei o mármore, o que era então, como hoje, a formalidade aceita para a primeira ocasião em que se é apresentado na corte à rainha consorte. Ao lançar-me ao chão, formou-se uma nuvem e minha vista enfraqueceu, o rio do meu suor escoou, e meu coração — compreendi o que significava essa expressão — não estava mais dentro do peito. Explodira em vôo.


— Levante-se, nobre Menenhetet — foram as primeiras palavras agradáveis que a rainha Nefertiri dirigiu a mim, mas meus "membros lembravam a água quando não há o ímpeto de uma onda, apenas o peso, e, no entanto, como se tivesse de aprender a subir o rochedo mais íngreme, assim levantei minha cabeça e nossos olhares se encontraram no silêncio.


Seu olhar deu-me forças. As jovens rainhas tinham me avisado da cor singular dos olhos dela e eu estava prevenido, mas a verdade é que não há preparação possível para quem vê a última luz da noite real. A beleza do colorido deu-me forças como um homem agonizante conhece a felicidade quando lhe oferecem pétalas de rosa. Assim pois nossos olhos se encontraram, e experimentei com ela toda a agitação das águas do Nilo quando encontram uma ilha, tal o efeito que seus olhos azuis causaram em mim. Não nos saudamos simplesmente, recolhendo-nos em nós mesmos em seguida, mas nos encontramos como duas nuvens de matizes diferentes, viajando com ventos diversos em meio a um bailado de espaços vibrantes. Naquele primeiro momento, o rosto e o corpo dela pareciam um mosaico de pedras cintilantes — nem sequer pude vê-la por inteiro, mas eu a amava, e iria servi-la como fiel cavaleiro da Mão Direita. A felicidade apoderou-se de seus olhos, e ela riu com um doce repicar de riso jovial, como se, subitamente, o dia se revelasse melhor do que todos os augúrios haviam anunciado.


Apresentei-me com uma voz baixa e cheia de respeito, e com algo que, numa situação como aquela, é melhor que o respeito; ofereci, através da minha voz, um estremecimento de admiração não de todo controlado pela sua beleza, e assim entoei minhas palavras. Em seguida, levantei-me e fiz o que era, para um auriga que havia sido elevado de posto, uma nobre mesura tão cheia da elegância e distinção próprias de uma determinada província que a rainha indagou:


— Caro novo amigo Menenhetet, você veio de Sais?


— Não, grande consorte do rei, mas vivi entre os habitantes de Sais.


— Diz-se que algumas jovens rainhas são de Sais.


Inclinei-me. Não tinha resposta. Estava muito confuso. De fato, não sei dizer quantos cortesãos estavam na sala, se cinco ou quinze. Tinha olhos apenas para ela e para mim.


Mais tarde, naquele dia, quando me designaram a habitação de um cavalheiro Real e vi o ouro das cadeiras, mesas e arcas, as novas vestes de linho, as pulseiras de ouro, e a faiança da nova couraça, cada peça das mil e uma peças de lápis-lazúli ornada com uma borda de ouro, e quando senti os excelentes perfumes oferecidos a mim pela generosidade do rei — ou pela própria Nefertiri? quando examinei meus novos servos — cinco ao todo — e passei pelos aposentos encantadores da minha nova casa, sete no total, minha cozinha, minha sala-de-jantar, minha sala-de-visitas, meu aposento próprio para meditação e abluções, meu dormitório, e no fundo dois cômodos pequenos para abrigar meus cinco servos, meu cozinheiro, meu encarregado das chaves, meu palafreneiro, um jardineiro e, por último, meu mordomo, eu sabia que agora eu me elevara mais alto do que um general ou um governador, e que nunca mais viveria numa casa pequena, mas numa grande.


• • •


Entretanto, ao findarem meus primeiros poucos dias, sentia-me tão agitado quanto uma vela de barco soprada por dois ventos contrários. Se o palácio de Nefertiri vivia em meio ao esplendor da luz solar sobre o ouro, não diria o mesmo em relação aos súditos da rainha. Os oficiais era homens inferiores, generais a quem não se confiaria um comando, governadores que não governavam mais (como eu mesmo!) e um antigo vizir. As criadas, antes belas, não eram mais jovens do que ela mesma. Suas mentalidades eram estreitas e limitadas apenas à sorte da Rainha, às próprias famílias e às diversões. Tenho consciência de que perdi a conta dos dias, pois não se aprende tanto sobre a corte tão depressa. Acredito que meus anos no exército foram úteis. Quando era general, não precisava mais do que uma hora de visita de um novo comando para formar uma opinião indispensável: as tropas estavam preparadas ou fracas demais para meus propósitos. Assim, vi muito luxo durante minhas primeiras horas na corte, e conheci os modos sutis de muitos aristocratas, mas também compreendi que Usermare temia desnecessariamente seus vassalos — ali, a ambição enredava-se em si mesma, e a honra era rançosa. Aqueles cortesãos preocupavam-me mais com o que poderiam perder e pouco sonhavam com as recompensas da audácia. Ali, nenhuma trama poderia vingar.


Na verdade, não faziam mais do que mexericar, e novamente ouvi as estórias contadas entre as jovens rainhas, embora, dessa vez, fossem enriquecidas com pequenos detalhes mais preciosos que ornamentais, oferecidas como presentes. Assim, no palácio de Nefertiri, ouvi falarem mais de Rama-Nefru do que da Primeira Rainha. O vizir contou-me que Nefertiri zombara de Rama-Nefru porque esta só usava perucas loiras. Mas contou-me também que Nefertiri viu-se obrigada a reconhecer — graças, às gabolices do próprio Usermare — que os pêlos entre as pernas de Rama-Nefru também eram loiros. Ao ouvir a verdade, Nefertiri queimou todas as perucas loiras guardadas na arca. Nesse ponto o vizir interrompe a estória, limitando-se a fechar um olho discreto, triste e turvo e a abri-lo numa piscadela.


— Um dia, a cabeça de Rama-Nefru ainda será tão calva quanto a minha — murmurou.


Foi sua primeira visita à minha casa e outras se seguiram. O decoro nos Jar-dins dos Segregados era forte, a tal ponto que eu nunca tocara a mão de uma jovem rainha — com uma única exceção, mas ali eu podia ter cinco mulheres em cinco dias e elas eram requintadas na arte da sedução. É o que sobra quando a beleza se esvai. Desnecessário dizer que os mexericos eram cruéis. Assim, Nefertiri sempre ouvia celebrar a juventude e a beleza de Rama-Nefru, ou vinham lhe confidenciar que Usermare só se referia a Rama-Nefru como "Aquela que vê Horus e Set" — uma expressão verbal cunhada em honra da própria Nefertiri.


Meu dever como cavalheiro da Mão Direita era estar sempre perto da Rainha. Naturalmente deveria acompanhá-la toda vez que deixasse o Palácio, o que não acontecia todos os dias, embora quase sempre, pois aprazia-lhe procurar santuários incomuns em toda Tebas. Ao contrário de Usermare, ela não reverenciava, apenas Amon, mas também deuses venerados em outras cidades, como Ptás em Mênfis, ou Tote em Khnum, para não falar do grande culto de Osíris em Ábidos. Mas esses deuses tinham seus pequenos templos aqui com sacerdotes leais, em geral nos locais mais desprezíveis — no fundo de um beco lamacento. Quando o caminho era demasiado estreito para o palanquim, a rainha caminhava com suas sandálias douradas até o fundo das vielas onde seus belos pés eram lavados por sacerdotes de templos indignos e minúsculos, dedicados a Hator, Bestet ou Khonsu. Ou percorrendo os bairros mais elegantes, de largas avenidas, e mansões com pilares, sentinelas e pequenas esfinges de pedra. Às vezes atravessávamos as graciosas colunas de mármore de um "pequeno templo divino", como ela dizia, para pagar um preito a Mut, consorte de Amon, ou penetrávamos no templo de Sais-em-Tebas, onde se venerava a estranha deusa Neit. Não era fácil acompanhá-la em Tebas a todos esses templos de Ombos, Edfu, Dedu-do-Delta, ou ao de Ptás-em-Ápis, onde se adorava o deus sob a forma do boi Apis.


Depois, ela fazia compras. Viajávamos seguidos pela guarda e parávamos para ver um joalheiro ou um costureiro, mas tais passeios pelos bairros mais elegantes do mercado interessavam-na menos que os sacrários imundos, e isso me fez compreender o quanto ela estava interessada em conquistar os favores de cada deus. Ainda assim, eu sofria com essas jornadas. Como cavalheiro, era seu protetor, e ao mesmo tempo, em razão de minhas ordens secretas, era seu pior inimigo. Além disso, havia um outro obstáculo. O filho mais velho, Amen-khep-shu-ef, que costumava acompanhá-la, aceitou facilmente ser substituído por mim. Assim que me viu, deixou transparecer o quanto eu era bem-vindo. A cada manhã, no entanto, eu temia encontrá-lo junto à porta dupla do quarto dela e ouvir:


— Hoje acompanharei a rainha. Está dispensado.


Eu não saberia como replicar. Em Cadesh, ele ainda era um garoto, embora impetuoso ao ponto de preferir a morte a uma derrota no campo de batalha, mas há anos eu constatara que nunca poderia vencê-lo. Com efeito, era tão alto e hábil que os soldados o chamavam de Ha! — um nome veloz como o som de sua lança atravessando os ares! Bastava olhar para Amen-Ha, e os deuses que habitam dentro de nós recuavam atemorizados. Assim, eu não ousaria enfrentá-lo diretamente. E, no entanto, eu também não poderia permitir que ele se afastasse em companhia da rainha. Nesse dia alguém poderia tramar o assassínio do rei. E exatamente na hora em que o deus vivo agonizasse, seu sangue derramado no chão de mármore do próprio Palácio, ela estaria a salvo com Amen-khep-shu-ef em qualquer uma das centenas de mansões nobres, ou em algum casebre secreto perdido no labirinto de Tebas. Eu permaneceria a seu lado para protegê-la, mas também devia me preparar para voltar-me contra ela e, no instante seguinte, atingir o seu coração. Como meu monarca, eu habitava dois territórios ao mesmo tempo. Naturalmente, caso Amen-khep-shu-ef desse ordens para me afastar e eu me atrevesse a desobedecer, o príncipe poria fim à minha vida antes que se perdesse o eco de nossas palavras. Ele contaria a estória que bem quisesse. Por essas razões, não encontrei tranqüilidade em minha nova casa.


Mas desfrutei cada dia com Nefertiri. Apesar de todas as horas que passei com Ma-Khrut, nunca soube realmente como tratá-la. Para mim Ma-Khrut era ao mesmo tempo uma sacerdotisa, um animal, um companheiro de armas e minha mulher, e além disso sempre estávamos ocupados com diversas cerimônias. Entretanto, debatia-me à noite como se estivesse numa tempestade no oceano. Não sabia se eu é que a desejava ou ela a mim, mas algo permaneceu. A rapidez de nossa separação exerceu estranhos efeitos sobre mim, pois quando estava com Nefertiri cheguei a sentir a presença de Ma-Khrut influenciando meus atos de maneira positiva ou negativa. Eu era capaz de servir vinho com os gestos impecáveis de uma deusa que viesse beber do próprio lago, e sabia que era a mão de Ma-Khrut que guiava o calmo ritmo da minha, mas se a base da jarra dourada deixasse um círculo de umidade sobre a mesa, eu saberia que minha amada anterior havia me levado a deixar pingar dos lábios umas poucas gotas.


Ainda assim, tivesse eu uma hora sozinho com Nefertiri e conheceria a ventura. Ela falava tão bem! Era encantadora. Com Ma-Khrut, às vezes abatido, eu sentia nas artes mágicas o peso de um ritual praticado na profundidade das cavernas da noite. Sentando-me ao lado de Nefertiri, porém, aprendi sobre a outra magia que nasce do canto dos pássaros ou da ondulação das flores. Ela seduzia o ar com a doçura de sua voz.


O decoro era forte nos Jardins dos Segregados. Mas ali eu podia ter 5 mulheres em 5 dias, todas requintadas nas artes da sedução

Pouco importava o que dissesse. Vira-se obrigada a permanecer tanto tempo isolada na corte, que se deliciava comigo na mais trivial das conversações, e desejava conhecer os momentos da minha vida que eu não contaria a mais ninguém. Em breve, constatei que, durante todos os seus anos de casamento com Usermare, ela nunca havia conversado longamente com um morador nos Jardins dos Segregados, e por isso mesmo sempre estava interessada na vida das jovens rainhas. Sabia o nome de todas e aprendera muito sobre elas através das famílias sempre ansiosas por recordar a infância de suas filhas, para sempre afastadas do seu convívio. Nefertiri escrevia inúmeras cartas e freqüentemente me mostrava sua escrita. Eu me sentia encantado como se recebesse um presente precioso. A pureza de seus divinos traços, laços, vasos e curvas, o caráter de suas mensagens, e a vida preciosa das criaturas que pintava faziam o papiro tremer na minha mão, como se as asas das aves, fechadas pelo pincel preciso, agora se desembaraçassem e pudessem deslizar em vôo pelos meus dedos. Sentado a seu lado enquanto ela compunha aquelas cartas, vivi horas inesquecíveis (...).


• • •


Eu sentia que ela também se alegrava em ficar sozinha comigo apesar da adoração pelo filho. Essa variedade de sentimentos era natural por parte de uma grande rainha e consorte de deus que vivia como se, realmente, não tivesse um só Ka, mas catorze, e dentro de si muitas mulheres, cada uma em busca de prazer com um homem diferente. . Ela me conhecia bem, pois seu primeiro movimento quando ficamos a sós foi dirigir-se a uma imensa arca de onde retirou um disco de ébano, largo como um rosto e com um cabo de âmbar. Carregando-o cuidadosamente, de modo a mostrar apenas a parte posterior, ela sentou-se a meu lado e colocou-o sobre a mesa. Em seguida disse, ou assim entendi:


— Já olhou dentro de um belo revelador?


Mais uma vez, fiquei perplexo. Imaginei que não podia estar querendo dizer nada como concepção, que era um dos significados de revelador. Seu ligeiro sorriso indicava algo diverso. Procurei, então, outro sentido para a palavra e perguntei-me se não queria dizer: "Já olhou dentro da impureza?", mas, de novo, pela sua expressão, compreendi que dificilmente seria isso. Por fim, e com que alívio, concluí que ela havia perguntado: "Já olhou dentro de um belo rio?", pois, nesse caso a resposta era positiva — quem nunca olhou para o Nilo quando a água está calma e limpa, e nosso próprio rosto estremece na superfície das pequenas ondulações? —, fiz um sinal afirmativo e disse:


— Sim, conheço muito bem o Nilo.


Tranqüilizei-me. Nisso, ela se aproximou, beliscou a maçã do meu rosto, aproximou um castiçal e girou o disco de ébano. Recuei assustado. Ao brilho da chama, vi o rosto de um homem que se parecia comigo e, no entanto, era mais familiar do que as imagens entrevistas na superfície das águas enrugadas. Eu estava vendo, de verdade, meus traços naquele prato perfeito de prata polida e minha expressão era a de um servo tímido a serviço do faraó. Quão lisas e inquietas eram minhas faces! Meu coração deveria ser um sepulcro de corrupção! Esse foi o primeiro pensamento que me ocorreu tão logo vi meu rosto — um pensamento inspirado pela parte mais nobre e exigente do meu espírito, mas o lado frívolo de mim mesmo comprazia-se com aquela visão. Julgava-me formoso, e conhecedor dos desejos das mulheres. Mas ao mesmo tempo eu estava amedrontado, porque constatara que não era o meu próprio rosto que eu havia visto, mas minha sombra, meu duplo, e ele vivia na superfície daquele lago de prata argêntea e polida.


Nefertiri tocou a minha face com a ponta zombeteira de seus dedos e disse:


— Ah, meu prezado vassalo não conhece um espelho!


— Não um espelho como este — procurei responder, mas falava com dificuldade. "Porque esse espelho" — gostaria de explicar — "transformará tudo o que existe."


Se cada soldado ou camponês pudesse ver seu Ka, todos desejariam agir como deuses. Oh, eu tinha olhado dentro de espelhos comuns, riscados e opacos, com as superfícies tão impuras que a cada movimento os olhos e o nariz se deformavam; mas aquele era um espelho singular, o melhor em todo o Egito, um verdadeiro revelador — ah, a palavra que ela usara! — e meu Ka estava diante de mim, e nós nos olhamos.


Mais uma vez compreendi como devia ser terrível vagar em Khert-Neter, Mundo dos Mortos, sem nenhum sepulcro como lar, nada além de margens, monstros, e das chamas das serpentes que devoram nosso Ka. Pois percebi que meu Ka era virtualmente eu mesmo, ali, diante de mim, e tão vivo! Era ele que seria exterminado em meio à fumaça e com odores fétidos. Desejei protestar contra tamanha monstruosidade! Tão vívido era tudo o que tinha visto nesse rosto, que até mesmo a chama do castiçal evocava as labaredas de Khert-Neter, e compreendi que amava meu Ka e pouco importava a corrupção estampada naquelas feições, pois minha vida também estava nelas.


Eu arquejava. Com um simples movimento do pulso no cabo daquele revelador, vi seu Ka, não o meu, e seus olhos azuis, como a noite no fogo de uma tocha, abandonaram o disco polido e pousaram em mim, e eu ousei deitar meu olhar bem dentro dos olhos de seu Ka —pelo menos um entre os catorze — e ela fechou momentaneamente os olhos, como se também tivesse visto a sombra de asas invisíveis. Naquele instante, creio, ela descobriu que eu deveria matá-la, quando Usermare morresse. Através do espelho, olhamo-nos até as lágrimas caírem dos nossos olhos.


Ao mesmo tempo, movido pela força de nosso olhar, penetrei seus pensamentos pela primeira vez, e, antes que terminássemos, tomei-lhe a mão — ousei tomar-lhe a mão — e, por intermédio dos dedos, consegui penetrar o seu coração. Os pensamentos não eram banais. Pensava na noite em que Amon entrara em sua cama e ela concebera Amen-khep-shu-ef. Compreendi então por que seu filho escalava paredões de rochedos íngremes — Amon havia coabitado com sua mãe. Nefertiri também sonhava com os braços de Amen-khep-shu-ef. Sim, o ciúme de Usermare era justo. O fluxo dos pensamentos dela avançou sobre mim como o tropel de um cavalo a galope, golpes que me castigavam pela ousadia de tocar-lhe os dedos, mas em seguida acalmou-se de novo, e, maliciosa, inclinou-se para sussurrar ao meu ouvido:


— É verdade que Ma-Khrut não consegue esquecê-lo?


Não sabia dizer se ela estava ouvindo meus pensamentos ou se já sabia de tudo pelos mexericos dos servos que passavam livremente como pássaros das cozinhas de um palácio aos portões de outro. Senti um golpe no coração ao imaginar que eu caíra na bisbilhotice pública.


Não respondi. Imaginei que, se fingisse não ter entendido a pergunta, a dignidade de rainha a impediria de repeti-la. Não sabia ainda — tão requintados eram seus modos — que os desejos de Nefertiri eram poderosos como os rugidos de um leão.


— E então — perguntou novamente —, é verdade? Foi ela própria que disse.


Devo ter sorrido como um tolo, ou simplesmente aparentei sabedoria, mas alguma energia irradiada por meu coração, que às vezes se comportava admiravelmente, fez-me voltar os olhos para o espelho, e de dentro do meu Ka falei com o dela, e disse:


— Não fosse a beleza que circunda vossa majestade, pensaria quase sempre em Ma-Khrut.



Nesse momento, percebi que o autêntico desejo de vingança é como a serpente. Se sua cauda repousava na cova do meu sonho, sua cabeça revelava-se nos olhos da rainha. Ambos sentimos a presença invisível de Ma-Khrut: ela não trazia apenas a sua bênção mas, sobretudo, vinha emprestar-nos o poder de utilizar a sua maldição. Nefertiri e eu ainda nos olhávamos através do espelho, mas agora bem poderia ter sido o encontro das margens escarpadas de um rio e as águas turbulentas de uma grande cheia. Vimo-nos com toda a surpresa que alguém experimentaria ao encontrar um estranho numa feira — sim, tão parecida comigo, pela sua estatura e pela firmeza de seus quadris, aquela mulher me atraía. E assim a vi, e ela a mim. Ela, como mulher, não como uma deusa; eu, como homem, não como um vassalo. Foi maravilhoso esse encontro, de perfeita igualdade. Trocamos um sorriso afetuoso. Ai de mim! Aquele Ka era apenas um entre os catorze!


Tão parecida comigo pela sua estatura e pela firmeza dos seus quadris, aquela mulher me atraía. Estávamos próximos, na descoberta

Ainda assim, estávamos próximos como amigos recém-descobertos. E ela tomou-me a mão de novo e começou a explicar-me um assunto que eu nunca compreendera antes. Soube mais coisas sobre meu Faraó. Pois ela contou-me que, no dia da grande batalha, quando os hititas investiram, Usermare orou no interior da tenda, suplicando a Amon forças para enfrentar o inimigo e "Aquele que é oculto" respondera: "Sua vontade será satisfeita, desde que não me peça uma longa vida".


— Ele viveu — disse Nefertiri — 29 anos desde aquele dia, mas ainda aguarda o momento em que Amon virá buscá-lo. Por isso está agora com urna mulher hitita — continuou. — A esperança dele é que Amon não se atreverá a combater os deuses hititas.


Havia ira nos olhos dela.


— Ele busca a proteção dos deuses dela, mas ainda me quer.


A voz de Nefertiri era profunda como a noite e tão grave quanto o peso da pedra que ela colocaria sobre o túmulo dele.


Desprezo Usermare — disse. — É um covarde.


ILUSTRAÇÕES DON PUNCHATZ


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