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UM ESTILO DE VIDA PARA QUEM SABE O QUE É BOM



Por LUIS FERNANDO VERISSIMO


Meus vinte anos de PLAYBOY na verdade são quarenta. J. Alfred Prufrock, no poema de T.S. Eliot, diz que poderia medir sua vida em colherinhas de café. Eu poderia medir a minha em PLAYBOYs. Tive uma vida muito mais divertida que a de J. Alfred Prufrock.


Lembro da primeira vez que a vi. Eu tinha 18 anos, ela era recém-nascida. Segurei-a nas mãos com alguma emoção. Não, não era a minha primeira vez. Eu já tinha tido revistas de mulher nua. Mas em encontros furtivos sem muito prazer. Eram geralmente vagabundas e mal feitas e a impressão era a pior possível. Algumas, é verdade, tinham um certo verniz de respeitabilidade. As de “naturalismo”, por exemplo, em que famílias de nudistas brincavam ao sol em pálidas praias nórdicas. Mas você precisava procurar muito para encontrar uma nádega firme ou um seio aproveitável e ainda cuidar para que, em vez de uma sueca, não fossem de um sueco mais redondo. A PLAYBOY era outra coisa. Com toda sua precariedade de primeiro número — feito, segundo a lenda, por Hugh Hefner com uma tesoura, cuspe e peito, o dele e o da Marilyn Monroe — foi a primeira revista de mulher nua com classe que possuí.


Lembro que comecei a folheá-la ali mesmo (acho que a capa plástica ainda não tinha sido inventada, às vezes duvido que já existisse petróleo) mas fui interrompido pelo dono da banca, que disse:


— Hey bud, you gonna take that?

Levei-a para casa. Morava em Washington, que era então a pacata capital dos Estados Unidos do presidente Eisenhower, no finzinho da idade da inocência. Não era tão difícil conseguir sexo, ou coisa parecida, em Washington, mesmo descontando a minha timidez e o fato de que a revolução sexual americana ainda estava agrupando suas forças para começar. Eu tinha chegado aos Estados Unidos com 16 anos. Já tinha experiência, portanto, e com um pouco de persistência e coragem — e a ajuda inestimável do banco de trás do Chevrolet da família — conseguia ter uma vida sexual razoavelmente ativa.


Mas sexo era um problema nos Estados Unidos. Existia, mas não era reconhecido pela moral dominante. Pelo menos não era reconhecido como sendo americano. Beijo de língua, em americano, é “beijo francês”, presumivelmente para distingui-lo de um correto beijo nacional. Cartões pornográficos eram “French postcards”, mesmo que fossem feitos na gráfica do porão: Anos depois da liberação feminina iniciada na década de 20 e popularizada durante a II Guerra Mundial, a mulher sexualmente disponível só era aceita em duas formas no imaginário, leia-se cinema, americano: como a mulher fatal cuja sexualidade arruinava os homens ou como a loira burra, com a sexualidade cômica e algo infantil de uma Marilyn Monroe. Os decotes mostravam quase tudo mas persistia a dúvida sobre o que as mulheres tinham, exatamente, na ponta dos seios. Mesmo em espetáculos de striptease, nos anos 50, os mamilos ficavam tapados. Até hoje se discute a importância da PLAYBOY na revolução sexual, quando ela veio, mas não há dúvida de que a revista ajudou a distender os limites da repressão. Já existiam revistas sofisticadas para homens, como a Esquire, mas a Esquire também não mostrava os mamilos, a não ser, esporadicamente, em relevo. À PLAYBOY foi a primeira a mostrar o peito inteiro. E num contexto de bom gosto, não mais na prateleira dos fundos, com as revistinhas de sacanagem disfarçada, mas ali na frente, como a Life e a Look.


Hefner tinha pretensões intelectuais, a sexualidade aberta fazia parte de um novo ethos hedonista e consumista, e se ela também servia à onanistas perebentos estes eram um alvo secundário. O público idealizado por Hefner era de jovens urbanos que também seguravam a revista com uma mão só, mas porque a outra estava segurando o cachimbo. Com a PLAYBOY, o sexo pulou a barreira do puritanismo e se naturalizou americano.


Não foi uma conquista fácil. Hefner precisou guerrear contra a reação de defensores da moral pública, contra processos e ameaças. Durante anos antes da PLAYBOY, muita gente comprava a revista National Geographic, entre outras coisas para ver as nativas seminuas. A revista programava reportagens em que os mamilos de fora apareciam num contexto científico. Para serem ainda mais seguros, eram mamilos marrons e selvagens. Não por acaso, os primeiros pêlos pubianos que apareceram na PLAYBOY foram os de uma negra. Era um recurso estratégico, as nativas da National Geographic postas mais uma vez a serviço da hipocrisia. Os pêlos pubianos numa afro-americana garantiam que a novidade chegava protegida pelo exotismo e só dois ou três números mais tarde começaram a aparecer os pêlos de mulheres brancas.


A censura decretou uma cota mamária: só um número determinado de peitos por edição, e não mais de dois por página

Anos depois, as revistas masculinas brasileiras precisariam enfrentar a hipocrisia com um jogo de corpo, no caso um jogo de seios, parecido. A censura não proibiu a mulher nua mas decretou uma espécie de cota mamária: só um número determinado de peitos poderia aparecer em cada edição e nunca mais de dois na mesma página. Imagino as discussões conceitual entre editores e censores. Uma mulher com os dois seios de fora esgotava a cota da página ou contava como uma única exposição, dando direito ao bônus de mais um seio, desde que não fosse muito grande? Os regimes autoritários costumam cair pelas suas contradições e sua ilegitimidade mas o ridículo também ajuda.


Não sei bem quando publicaram o primeiro texto meu na PLAYBOY brasileira, nem que texto foi. Deve ter sido num dos primeiros números (*). A edição mantinha a filosofia da PLAYBOY de Hefner mas com um tratamento brasileiro. Desde o começo publicou autores e artistas nacionais. Há quem diga que tudo isso — a literatura, o bom acabamento gráfico, a “filosofia” de um estilo civilizado de vida para o homem que sabe o que é bom — não passa de pretexto, pois todo mundo sabe o que é bom: ver as peladas do mês. PLAYBOY é igual a mulher nua, segundo esta simplificação. Eu mesmo, confesso, me decepcionei um pouco quando entrei pela primeira vez na redação e vi todas as mulheres vestidas, e pior, trabalhando.


Certa vez a PLAYBOY me mandou cobrir uma Copa do Mundo. A de 1986, no México, aquela dos pênaltis perdidos. Fui, mas meu credenciamento não estava assegurado. Na chegada o Juca Kfouri precisou argumentar bastante para convencer o mexicano certo de que eu merecia uma credencial de imprensa, pois ele não entendia o que uma revista como a PLAYBOY queria num campeonato de futebol. Com a credencial pendurada sobre o peito, tive que aguentar olhares de surpresa, sorrisos safados e perguntas impertinentes. PLAYBOY, é? Onde estavam as mulheres? Eu ia fotografá-las em campo, entre os jogadores? Ou infiltrá-las peladas, nas concentrações? Também foi difícil organizar uma cara que correspondesse à que eles imaginavam devia ter um correspondente da PLAYBOY. Algo entre um sátiro e um manequim. Acho que não tive sucesso. Não adiantava dizer que a matéria da Copa seria na linha de outras reportagens sobre diversos assuntos da PLAYBOY, que decididamente não era só uma revista de mulher nua. A reação certamente seria uma piscadela de cumplicidade. “Está bien... ¿Pero, y las mujeres?”


PLAYBOY é muito mais do que uma revista de mulher nua, o que não significa que devemos diminuir o significado delas. Nestes vinte anos a revista fez um apanhado da beleza nacional — e se não apanhou todas as que convidou para posar, apanhou um número suficiente para se transformar num catálogo do gosto brasileiro em mulher. Nele estão expostas nossas admirações e nossa curiosidade com o maior respeito. Foi com estas que sonhamos, eram estas que queríamos saber como ficavam sem roupa. “Sair na PLAYBOY” significou entrar para uma seleta galeria de notáveis, as mulheres que fizeram a época suspirar — ou a intrigaram, como a moça do foguete. Elas se dividiram entre as que “saíram” porque eram célebres e as que ficaram célebres porque “saíram”. Em todos os casos foram expostas com talento e bom gosto. A todas (suspiro) obrigado, e voltem sempre.


Quarenta anos. Nestas horas tendemos a ter acessos de autoternura. Me vejo com aquela primeira PLAYBOY na mão, levando-a para casa porque tinha cartuns e jazz e uma aura de sofisticação, mas principalmente porque tinha peitos de fora, e me comovo. Mal sabia que estava contribuindo para o começo de uma revolução, e que eu também entraria na história da revista. No Brasil, anos mais tarde, num futuro então inimaginável em que os pêlos pubianos seriam livres.


ILUSTRAÇÃO: MATANGRA



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