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UMA LIGAÇÃO SUBURBANA

Ficção


Ela, quase uma menina. Ele, um solteirão. O que aconteceria naquele prédio do Méier?


POR CARLOS CASTELLO BRANCO

ILUSTRAÇAO DUNG HILL STUDIO


Cerca de oito anos morei no Méier, rua Barão de São Borja, edifício de seis apartamentos pequenos. Secretário de senador, ocupava-me com o serviço a tarde e parte da noite, sem horários estritos. Pela madrugada, lia ou rabiscava, vaga tentativa de memória a respeito da lealdade política. O contato seguido, ainda que sóbrio, com a vizinhança modesta fez-me de certo modo viver a vida comum. Único no prédio, foi por meio do meu telefone, obtido por influência do chefe, que divisei a intimidade de algumas famílias. Suavizava ele o isolamento do solteirão.


 

As nádegas de dona Ester, grandes, estranguladas ao alto pela cintura e descendo harmoniosas em duas coxas fornidas e longas, me acordavam lá pelas onze horas. Pela fresta da porta do meu quarto percebia-lhe quase todo o traseiro, soberbo. As formas não se deixavam ludibriar pelos vestidinhos caseiros. A conversa ao telefone era longa e ciciada; mal se ouviam os sons emitidos mas via-se nos meneios do corpo e dos olhos o carinho que a inspirava.


Dona Ester amava o marido. Eram com o doutor Gildo as conversas telefônicas entre 11 e 12 horas. De meia-idade, óculos, mais baixo do que a mulher, o advogado saía de casa cedo e, segundo o depoimento da velha Nica, durava muito a despedida — beijos e abraços. Ester subia rápido a escada e postava-se na janela do primeiro andar para receber os últimos olhares e os últimos beijos que da esquina lhe mandava esse Romeu doméstico.


Minha vizinha tinha menos de trinta anos e magnífica carnadura, alta, braços longos, seios pontudos que se punham em pé sem auxílio do "soutien" e o mais de que já se deu notícia. Afastava intimidades, compensando com modéstia a indiscrição do corpo. Tratava-me cerimoniosamente e creio não fosse a necessidade de ouvir a voz do marido não ousaria entrar no meu apartamento. Enquanto conversava, segurava a porta de saída, que mantinha aberta em resguardo do seu bom nome. Embora todos me freqüentassem a casa e minha correção fosse inalterável, ela não dispensava a precaução. Para poupar os olhos, absorvidos nas evocações, dava-me a contemplar o traseiro.


Tenho a impressão de que pouco saía. Raras vezes cruzei com ela e confesso que sempre encontrava pretexto para deter-me e voltar à casa. Aspirava a aprofundar o olhar, escadas acima.


A filha, menina de 10 anos, forte, puxara a mãe. Crescida para a idade, Sônia brincava o dia todo na calçada e era ela quem ia ao meu apartamento para os telefonemas de serviço — o açougue, o armazém, a tia, a farmácia. Por aí obtinha algumas informações da família, os hábitos de vida, o orçamento caseiro etc. Se as coisas não eram fáceis, nada lhe faltava e contava com parentela numerosa e solícita.


Do seu apartamento, situado logo acima do meu, não vinha ruído que não fosse da menina. Dona Ester não tinha empregada e fazia todo o serviço. Às sete da noite quase nunca eu estava em casa, mas sabia pela velha Nica que meia hora antes já a mulher se punha à janela, de olhar voltado para a esquina, à espera de que surgisse pontual o marido.


 

Goulart, com seus cinqüenta e tantos anos, atarracado, grosso, viúvo com uma filha de quinze e uma mãe de quase oitenta, odiava Ferrari e sua aventura financeira.


— Explorador! Enriquece com o que nos rouba. Cobrar 3.500 cruzeiros de aluguel por um apartamento desses. Por isso é que pode ofender a gente com aquele carrão. O diabo da mulher, que fazia a feira de chinelo ali adiante, passa pela gente e mal abana a cabeça. Eu não respondo. Pago ao marido no dia certo, não devo favor. Me humilhar é que ninguém humilha.


Os telefonemas de Goulart eram ruidosos, inúmeros mas imprevisíveis. Entrava-me pela casa cedo ou tarde — trabalhava num horário atrapalhado na expedição de jornais —, dizia palavrões que assustavam a velha Nica, batia o fone com força no gancho e antes de sair, se era pela manhã, empurrava a porta do meu quarto para agradecer.


— Obrigado, doutor — berrava. Muitas vezes mordi um palavrão na língua.


Dona Nora, mãe de Goulart, de raro em raro me entrava mansa pelo apartamento. De feições finas, digna na sua velhice, fisicamente digna, precedia com uma visita o telefonema. Queria obter notícias da irmã internada em asilo. Preocupava-se em desculpar o filho — mal-educado, dizia ela, mas bom rapaz.


— Imagine, doutor, que não temos empregada. Todos os dias, antes de ir ao emprego, de madrugada, o Dioguinho (nome familiar de Diogo Goulart) varre a casa, lava a cozinha, prepara o almoço. Há oito anos, desde que morreu minha nora. A menina mais tarde só tem o trabalho de pôr a mesa e esquentar o almoço. Sei que ele às vezes incomoda o doutor — não pode deixar de incomodar! — mas o doutor vá desculpando. Ele trabalha muito.


Aos domingos, via sempre Goulart de lata d'água e escovão lavando o piso da varanda. Dona Nora, pessoa educada, filha de família distinta lá do sul, dera certamente uma cabeçada na juventude casando-se com pobretão.


Maria do Socorro, a neta, que outrora vinha me acordar na cama, fazendo-me cócegas ou metendo os dedos pelo ouvido, amulherava-se, os seios repuxando os vestidinhos pobres que o dinheiro do pai não dava para substituir. As circunstâncias fizeram de mim e da velha Nica testemunhas, quase confidentes, dos seus primeiros namoros. Entrava sorrateira no apartamento para telefonar e algumas vezes, de acordo com suas instruções, mandei Nica à casa de Goulart avisá-la, sem que dona Nora percebesse, de que o telefone a chamava. A intimidade que vinha da infância, minhas relações com a família, a confiança integral de Goulart explicavam o trânsito livre de Maria do Socorro pela minha casa.


 

Estava na cama, acordado, uma manhã, quando senti que empurravam levemente a porta da rua. Devia ser Maria do Socorro, que entrava sem bater para não chamar atenção nem me acordar. Decerto vinha telefonar para Sérgio, o namorado de três dias que tanto afligia e entusiasmava. Estirara-me à vontade na cama, pijama desabotoado de alto a baixo, a mão repousando na virilha. A porta do meu quarto, como sempre entreaberta, deixou-me ver quem acabava de entrar. Era mesmo Maria do Socorro.


Levei a mão ao pijama para compor-me. A abertura da porta — pensei, suspendendo o gesto — era pequena, não daria para ver. Espreguicei-me. A menina discou os números lentamente, sentando-se numa cadeira. Pela fresta — que me oferecia generosa, às 11, as nádegas de Ester —, via-lhe as pernas abertas com negligência, meu olhar escorregando pelos desvãos. Apurei a vista e pude distinguir o princípio das coxas já recobertas por aquela pele fina e sedosa de coxa de mulher.


Da cozinha vinham os ruídos da velha Nica preparando o almoço.


Maria do Socorro encerrou a conversa, levemente (ao contrário do pai) depositou o fone no gancho e saiu sem fazer barulho. Não procurou saber se eu estava acordado. Envergonhei-me do meu estado. A menina teria pressentido o que se passara comigo? Teria visto? Por que não viera me falar como de costume, quando percebia ou desconfiava que eu acordava? Se me vira pela fresta ou pela abertura da porta, teria atribuído minha postura a imprudências oníricas. Ou terá percebido que eu estava acordado e retirara-se chocada? Uma menina, podia ser minha filha.


Saía do banho quando Maria do Socorro voltou, olhou-me sem curiosidade nem espanto, falou-me preocupada tão-somente com Sérgio. Felizmente não me surpreendera na situação embaraçosa e ridícula.


Expandi-me na conversa. Dei-lhe conselhos: evitasse um pouco o rapaz, ele passaria a procurá-la. Maria do Socorro desistiu de telefonar.


— Que pena! — falou —, gostaria tanto de lhe dizer de novo que gosto só dele no mundo. Ah, meu Serginho!


E espocou numa gargalhada, que tinha tanto de alegre quanto de ansiosa.


— Cria Júlio! — disse-lhe, aproximando-me e pegando-lhe na ponta da orelha.


— Ah, doutor Luninha, por favor, é isso mesmo que eu devo fazer? Não devo telefonar?


Enterneci-me, passei-lhe o braço pelas costas — espáduas de menina — e a apertei carinhosamente. A coxa de Maria do Socorro bateu na minha, eriçando-me. Larguei-a de brusco e apressei-me rumo ao quarto. Senti os olhos da menina cravados na minha nuca. Estaria me achando absurdo e ridículo.


Passara a fechar cuidadosamente a porta do quarto, na hora de dormir. Não queria me expor ao desregramento da besta. Cabia-me respeitar Maria do Socorro, por ela, por sua inocência, pela candura de dona Nora e pelo ruidoso e bom Goulart. Se a menina desconfiasse do que se passava comigo, certamente sofreria um abalo. Fugiria de minha casa. Esconderia em segredo a vergonha e o nojo. Ou daria escândalo.


TINHA DE RESPEITAR A INOCÊNCIA DA MENINA. EU PODIA SER SEU PAI

Decidi me policiar, não perder de vista que Maria do Socorro não era mais menina.


Passara a fechar a porta. Às 9 horas da manhã, porém, uma força oculta me acordava. Ouvia a voz meiga de Maria do Socorro no telefone e a imaginava na mesma postura do dia em que a violara pela fresta.


Uma vez batido o fone no gancho, senti que ela fazia leve pressão na minha porta. Excitado com sua presença na casa, ficara inteiramente nu. O coração batia-me descompassado, quis puxar o lençol, gritar para que não entrasse. Mas deixei os braços caírem e fechei os olhos.


A porta, empurrada docemente, rangeu um nada. Deve ter ficado entreaberta de um a dois minutos, fechando-se depois perceptivelmente. Quando abri os olhos, varrido de emoção, de vergonha e de secreto contentamento, Maria do Socorro não estava mais na casa. Levantei-me, fui ao banho e saí cedo. Voltei alta noite, demorei-me antes de abrir a porta a contemplar as janelas cerradas do apartamento de Goulart. Um homem de quarenta e poucos anos fazendo coisa de adolescente, abusando da ingenuidade, da confiança alheia. Lembrei-me de que, rapazinho, meu pai me surpreendera nu, no quarto, a forçar uma empregada.


Sentia-me, contudo, com força moral para reagir. Não fecharia mais a porta, e voltaria a me compor para dormir. Afastaria a menina da cabeça. Dormiria mais tarde para acordar mais tarde. Castigaria o corpo, procuraria mulher diariamente para saciar o instinto rebelado. Provável também que Maria do Socorro desaparecesse, envergonhada com o que vira. Claro que não desconfiara de que estava acordado. Terá estranhado que eu, a quem, desde menina, ela vira sempre acordar com calça e paletó de pijama, dormisse nu? De qualquer forma, não poderia voltar a vê-la sem sentir-me asfixiado de pudor e medo. Esse sentimento incômodo me ajudaria a vencer a crise suscitada por inadvertência. Se tivesse me dado conta antes de que Maria do Socorro era já uma moça, teria acautelado minha paz interior e defendido minhas prerrogativas de solteirão. Se Socorro voltasse pela manhã encontraria a porta aberta e o homem dormindo, vestido e enrolado no lençol. Se acordasse não daria sinal de mim. Nessas coisas, pensei, o que vale é a decisão íntima, a força de vontade.


 

Alguma coisa estava se passando também com dona Ester. Seus telefonemas amiudavam-se e não deviam ser somente para o dr. Gildo. Enquanto estava em casa, via-a descer diversas vezes para o telefone e Nica informara que, desde manhã cedo, ela ia ao botequim fazer ligações. Dona Ester estava agitada, falava depressa, os olhos traindo preocupação. Apenas o traseiro, imune às alterações do espírito, permanecia no esplendor cotidiano, abrindo-me o apetite para o almoço numa alegre transferência sensual.


A menina Sônia, sua filha, praticamente saíra de cena, como se o tema em andamento fosse impróprio para menores.


 

No dia seguinte acordara ainda mais cedo e excitado. Maria do Socorro viria? Se ela viesse, empurraria novamente a porta?


Ao sentir, com os cinco sentidos, que ela abria de leve, como todos os dias, a porta da sala, estremeci de ansiedade e gozo. Cobri-me inteiro com o lençol, da cabeça aos pés, e emborquei-me contra o colchão. A menina demorou-se ao telefone, arrastando a conversa da qual me chegavam pedaços de frases — ... ao cinema, às quatro não desliga... gosto, sim... hein? um beijo... — Lutava contra a tentação recordando conversas de dona Nora, os palavrões do Goulart, obrigando a memória a recompor Maria do Socorro nos seus sete anos magricelos e desdentados.


Maria do Socorro empurraria minha porta? O coração alvoroçava-se e jatos de sangue me vinham à superfície do corpo. Ouvi apenas o rangido leve. A respiração como que parou. Comprimi o lençol com as mãos. Rápido a porta rangeu de novo. Maria do Socorro foi à cozinha conversar com a velha Nica, ruidosa, insistente, irresistível.


Procurava negar a evidência. Maria do Socorro não me vira nu, ao empurrar a porta desconfiara de que eu estivesse em trajes menores e recuara. Fora isso o que se passara, uma menina daquelas impossível que não tivesse pudor, não se assustasse e intimidasse. Levantei-me e entrei no banheiro, esforçando-me para não vê-la. Lavei-me, esfreguei-me para limpar as nódoas vergonhosas. Um homem de quarenta e quatro anos. A água do chuveiro, caindo grossa, não abafava de todo a conversa da cozinha. Menina cínica!


— Olá, seu doutor, fale com os pobres.


As palavras de Maria do Socorro borbulhavam entre risos. Ri-me, com uma ponta de encabulamento.


— E o Sérgio? Deixou de se fazer de besta? — perguntei-lhe tentando forçar naturalidade.


— Ah o Serginho, um amor! Só o senhor vendo.


Talvez o melhor fosse cortar a intimidade, impedir telefonemas cedo. Tinha um bom pretexto: estava cansado e precisava defender meu sono da manhã. Daria ordem à velha Nica para que ninguém me incomodasse de um modo ou de outro antes das 11 horas. Dona Ester — sua agitação serenara aparentemente —, com seu traseiro honesto e declarado, seria, portanto, a primeira visita matinal.


Naturalmente Maria do Socorro acreditava-se protegida, segura. Agora ela fora frustrada mas se enroscava pela casa, vadia e lúbrica, na expectativa de se excitar. Menina, nada. Uma sem-vergonha.


MENINA, NADA. A SEM-VERGONHA QUERIA ME EXCITAR, ENROSCANDO-SE PELA CASA

— Papai deixou um recado. Se o senhor chegar antes da meia-noite, apareça para tomar uma cerveja. É aniversário dele e ele só foi trabalhar de manhã.


Quando Maria do Socorro saiu, procurei Nica e me queixei dos telefonemas de manhãzinha.


— Assim é demais. Chego tarde, vou trabalhar e de manhã não posso dormir com esse namoro idiota pelo telefone.


— O senhor deu muita linha, doutor, o pessoal abusa — comentou a velha.


As coisas se arranjariam. Bastava aquela advertência para que Nica tomasse suas providências. Afinal, vencia uma dificuldade, e era tão fácil! Por que não me lembrara disso antes? À noite faria força para ir beber a cerveja de Goulart, veria Maria do Socorro enquadrada no seu ambiente familiar, com a avozinha amena e os grunhidos do pai, grosseiro mas carinhoso. Saberia encaminhar a conversa para advertir o vizinho. Tomasse cuidado com a menina, essa vida de hoje é perigosa, quando se pensa que a garota está no colégio ela fugiu cara o cinema com o namorado. Nem sempre um rapaz direito. Goulart ficaria confuso. Que poderia fazer com a filha, além de lhe dar comida pobre e aquela ternura desajeitada? Seria preciso cuidado para evitar destampatório inútil em cima da menina.


A conversa de Goulart, pitoresca, desconexa, cheia de alusões ao seu trabalho na expedição de jornais, cujo sentido apenas percebíamos embora ele as supusesse de alcance universal, não era totalmente desinteressante. Para falar a verdade, preferia seu jargão às explicações adocicadas de dona Nora, malgrado o abismo de superioridade que isolava a mãe do filho.


— Eta cervejinha boa — rosnava Goulart, enchendo-me o copo mal tomara um gole.


Eu alimentava a conversa de Goulart, na esperança de poder cumprir o que me prometera a mim próprio, mas o diabo era que Maria do Socorro não se animava a recolher-se com a avó, nem o pai pensava nisso, eufórico com o aniversário, a folga no serviço, a cerveja e os sanduíches de salaminho.


Media-lhe, a ela, por detrás, o corpo a se deitar em curvas. Sob o vestidinho melhor, posto em homenagem à data, percebia-se a expansão das nádegas. Goulart levantou-se para retirar mais uma garrafa da bacia de gelo, lá dentro. Dona Nora dormia de boca aberta. Passando a perna sobre o braço da cadeira aproximei-me da sacada, na esperança desculposa de sugerir à menina que fosse dormir. Na rua, as lâmpadas da iluminação pública transformavam copas de árvores em coágulos de luz. Fiquei braço a braço com Maria do Socorro. Goulart voltou. Abriu a garrafa e encheu nossos copos. Sem me afastar da sacada, voltei-me para ele, destorcendo o corpo. A poucos centímetros de mim cresciam as ancas de Maria do Socorro. Na meia-luz do alpendre reluzia a calva gorda de Goulart.


— Fazer a expedição do Diário é sopa. O Correio, sim, como tem assinante! O Diário vende bem, mas só na cidade...


Maria do Socorro balançava levemente o busto, o olhar perdido na rua deserta. De repente recuou um pouco, como disposta afinal a levar a velha para a cama. A nádega roçou-me o sexo duro. Vencida, ela voltou à posição inicial, apoiando o busto firme no peitoril.


— Menina, leva essa velha pra roncar na cama — disse afinal Goulart.


— Espera um pouco, papai.


Controlando Goulart com os olhos, galguei os dois centímetros que me separavam de Maria do Socorro. Ainda inseguro recuei como a dar a impressão de ausência de intenção. As nádegas da menina deslizaram lenta mas firmemente até encontrar resistência.


 

Acordei no dia seguinte com um escândalo no edifício. Um novo escândalo. Dona Ester saíra ao amanhecer e voltara às 7 com a comprovação das suas suspeitas.


— Um canalha é que você é. Nunca pensei, uma traição dessas! — gritava numa voz que se despencava do segundo andar para o prédio todo e a rua.


— Fala baixo, Ester. Não dê escândalo — tentava o doutor Gildo, entre enérgico e intimidado.


— Escândalo? Que me importa escândalo? Escândalo você já deu, traidor ordinário.


— Olha a criança, Ester.


— A criança, hein? Por que você não pensou nela antes? Covarde!


Doutor Gildo procurava reduzir a altitude da voz e ensaiava explicações. Dona Ester descobrira que há oito anos o marido montara casa para outra mulher, com quem passava as manhãs, com quem almoçava e de quem tinha filha de sete anos.

A mulher caiu no choro e o marido deixou a casa pela primeira vez sem beijos e adeusinhos. Às 11 horas senti a falta de dona Ester, de seu traseiro, o que agravava meu acabrunhamento. Todo o edifício parecia ruir. Nunca mais vi minha vizinha, que se mudou na mesma tarde, levando a filha. Doutor Gildo ficou sozinho por alguns dias, liquidou as contas para se passar, correto e pontual, para o lar que ainda lhe restava.


 

A velha Nica mostrava-se de uma eficiência irritante. Ninguém entrava no apartamento pela manhã. Goulart fora barrado.


Depois do terceiro dia levantava-me ostensivamente cedo, dizia-lhe que estava chegando em casa antes da meia-noite e dormia logo, a sono solto. Antes das 11, porém, ninguém ia telefonar. Não sei se Maria do Socorro tentou forçar a porta alguma vez ou se ela própria antecipara-se aos cuidados de Nica, percebendo a mudança profunda que se operava.


O desejo afastava de mim as ponderações e os receios. Minha chance era pela manhã e tinha que recuperá-la. Voltei em casa um dia à tardinha por não suportar mais aquela ausência total de Maria do Socorro. Da sacada, onde ela estava, acenou-me com a mão. Perguntei por Goulart. Saíra. Não teria motivos para ir até lá. Fui à esquina, sentei-me ao botequim e, sozinho, tomei uma cerveja. Onde andaria Guilhermino? Ao voltar deparei-me com a menina na porta, em conversa com o namorado. Apresentou-me Sérgio, rapazinho tolo. Irritei-me e saí.


ENFIM, A PONDERAÇÃO FORA VENCIDA PELO DESEJO. MINHA CHANCE VIRIA DE MANHÃ

 

Pensara em me mudar. Afinal, era tudo loucura. Não iria — idéia absurda que chegou a me ocorrer — casar-me com uma fedelha, na idade de ser minha filha, a quem praticamente conduzira no colo. Nem me casaria mesmo de jeito algum. Tinha a vida programada e decidira-me a vivê-la, de qualquer maneira, a meu modo. Não poderia também ofender uma pobre órfã, trair a confiança do pai simplório, a velhice da avó. O que eu estava a fazer era uma indignidade. Mudar-me-ia, e já. Deixaria ordem a Nica para comprar na manhã seguinte o Jornal do Brasil. Iria para casa de subúrbio, com quintal e sem vizinhos. O telefone faria falta àquela gente, mas me retirava para felicidade geral.


 

Demorei-me na rua pela madrugada. Cheguei pelas três horas. Um minuto depois mexia-se o trinco da porta. Maria do Socorro entrou.


— Vá-se embora!


— Papai só chega de manhã, vovó tá dormindo.


— Psiu! Olha a Nica!


— Tá dormindo lá em casa com vovó. Pedi a ela.


Maria do Socorro, subitamente encabulada, apagou a luz. Aproximei-me a princípio lentamente, indeciso, mas logo louco, arrastado pela vanguarda sedenta...


Enchi depois a mala com minhas roupas e alguns papéis, chamei táxi pelo telefone e fugi antes do sol nascer.


 

CARLOS CASTELLO BRANCO é um dos maiores colunistas políticos do país, responsável pela "Coluna do Castello" da página 2 do Jornal do Brasil e pela coluna de política nacional de Homem. Nascido em Teresina há 55 anos, passou muitos anos de sua adolescência e mocidade em Minas Gerais (onde se iniciou no jornalismo em 1939). Atualmente mora em Brasília. Sua estréia em livro aconteceu com Continhos Brasileiros, de 1952. Sete anos depois, publicou seu primeiro romance, Arco do Triunfo, recentemente reeditado. Neste livro, conta a simples história de um jovem nortista chamado José do Egito, que vai para o Rio tentar a vida na então capital, como jornalista e político. Arco do Triunfo teve uma excelente acolhida da crítica (Adolfo Casais Monteiro foi um dos críticos importantes que o elogiaram bastante), marcando seu autor como um ficcionista talentoso, herdeiro das três vertentes de sua formação: o Nordeste, Minas e o Rio. Mas desde Arco do Triunfo, Castello Branco não publica ficção. Dedicou-se à análise política e, no ano passado, fez muito sucesso com os dois volumes da Introdução à Revolução de 1964 (ainda há outros seis). O conto que publicamos, em condensação, faz parte do livro que o escritor promete para breve: Novos Continhos Brasileiros.


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