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UMA VISITA ESPECIAL

Ficção


Ela exigia muito dinheiro em troca de um momento de prazer absoluto: uma história de erotismo e revolução pelo escritor mais célebre e polêmico da Itália


POR ALBERTO MORAIVA

ILUSTRAÇÃO MEL ODOM


PLAYBOY apresenta um trecho do último romance de Alberto Moravia — A Vida Interior — uma longa entrevista imaginária entre o autor, designado como Eu, e Desidéria, uma moça de 20 anos, de origem humilde mas adotada pela milionária Viola. Desidéria é arrastada por uma estranha Voz, sempre presente, para relações de um intenso erotismo com sua própria madrasta, seu procurador, Tiberi e participantes de grupos revolucionários.


 

Desidéria: A Voz pensou durante alguns dias e depois apareceu com uma proposta extraordinária.


Eu: Que proposta?


Desidéria: Era opinião da Voz que eu impressionara Tiberi no momento de irromper na sala de estudos e declamar o meu discurso contra a burguesia. A Voz lembrou-se que enquanto eu atacava violentamente Viola, Tiberi, certamente impressionado, olhava-me da cabeça aos pés, numa fria avaliação sexual. Segundo a Voz, aquele olhar tinha visto e gravado na memória a minha figura: a forma dos seios, a lisura do ventre, a grossura das pernas, a largura dos ombros, a cintura esbelta, mas, principalmente, a Voz ressaltou esse ponto, a dupla, sólida e agressiva curva das minhas nádegas.


Eu: Por que principalmente as nádegas?


Desidéria: Não havia um motivo especial, disse a Voz. Era um detalhe a ser considerado. No momento em que, num gesto violento, me voltei para partir, girando o tronco e deslocando com força os quadris, o olhar de Tiberi imediatamente se teria dirigido para lá.


Eu: Lá onde?


Desidéria: Para as minhas nádegas. Graças ao movimento, ele teria avaliado o volume, a forma, o peso, a consistência muscular, a capacidade de contração e distensão, a possibilidade de penetração.


Eu: Tudo isso com um olhar?


Desidéria: Segundo a Voz, sim. E ela prosseguiu fazendo-me notar que certamente eu ainda lembrava ter visto Tiberi, há três anos, totalmente nu, atrás de Viola, de quatro, momentos antes de sodomizar minha mãe adotiva. Essa lembrança e aquele olhar provavam que três anos depois Tiberi continuava mantendo suas idéias sobre a relação sexual. Sabendo disso, eu deveria procurá-lo e convencê-lo entregar-me uma grande soma em dinheiro do capital de Viola, do qual era administrador. Poderia fazer isso sem que Viola soubesse, tinha uma procuração e Viola confiava nele. Quanto ao argumento que eu deveria usar para convencer Tiberi, a Voz indicou-o brutalmente, com apenas uma palavra.


Eu: Qual?


Desidéria: O rabo.


Eu: Em resumo, a Voz queria que você seduzisse Tiberi.


Desidéria: Sim.


Eu: Porque percebera que Tiberi tinha olhado para as suas nádegas.


Desidéria: Sim.


Eu: E estabeleceu uma relação de continuidade forçada entre aquele olhar e a relação sodomítica entre Tiberi e Viola presenciada por você há três anos.


Desidéria: Sim.


Eu: Você não acha que a imagem de três anos atrás a teria traumatizado e talvez se gravasse no seu inconsciente e, assim sem se dar conta, você desejava que Tiberi lhe fizesse o mesmo que o viu fazer com Viola? E que, na verdade, o dinheiro que tiraria de Viola para dar a você era apenas um pretexto?


Desidéria: Pode ser, mas a Voz disse que isso não importava. O importante era aplicar o plano.


Eu: Sempre o plano! Mas o que a Voz queria que você fizesse com o dinheiro depois de obtê-lo?


Desidéria: Nada me explicou, pelo menos naquele momento. Dizia que me faria saber a tempo e na ocasião adequada.


Eu: E você não teve a sensação de que havia algo de irreal nesse projeto? Uma menina de 15 anos, embora com bonitas nádegas, vai ao administrador da sua mãe e consegue que ele lhe dê alguns milhões de liras...


Desidéria: Exatamente 20 milhões de liras.


Eu: Vinte milhões de liras em troca de alguns minutos de amor?


Desidéria: Eu não tinha experiência dessas coisas. Estava à mercê da Voz. Ela, como você sabe, tudo sabia, tudo fizera e nunca tinha dúvidas.


Eu: Então o que fez, ou melhor, o que a Voz obrigou-se a fazer?


Desidéria: Telefonei para Tiberi na loja de antiguidades e anunciei: "Sou eu, Desidéria." Do outro lado da linha ouvi uma exclamação de prazer, logo corrigida por uma frase irônica: "Desidéria? Mas que honra! O que posso fazer por você?" Disse-lhe rapidamente que queria falar com ele e que, se não se incomodasse, iria à sua casa, porque imaginava que não seria possível falarmos a sós na loja. Curiosamente, não demonstrou surpresa. Parecia até que estava esperando a chamada. Depois de um instante de reflexão, falou com o mesmo sotaque romano. Cerimonioso e arrastado, marcando um encontro na sua casa, para o dia seguinte, no início da tarde.


Eu: Onde morava ele?


Desidéria: Num prédio perto da Praça Cavour. Nunca tinha ido lá, mas sabia, por ouvir Viola falar, que Tiberi mantinha em depósito, no grande apartamento que ocupava todo o andar, muitos móveis que, pouco a pouco, colocava à venda na sua loja de antiguidades, que ficava nas imediações da Praça di Spagna. Sabendo disso, não me surpreendi, ao seguir a velha governanta que veio abrir a porta, ao deparar por toda a parte com móveis antigos e bonitos, mas — como direi? — desprovidos de qualquer caráter íntimo, privado.


Eu: Intimo, privado?


Desidéria: Sim, aqueles móveis tinham o mesmo ar promíscuo e atípico dos móveis das lojas, colocados uns perto dos outros, sem qualquer critério, além daquele simplesmente mercenário que encontramos na exposição de objetos colocados à venda. Tive a estranha impressão de que, pelo menos no que se referia à mobília, Tiberi não existia como pessoa privada. Até sua própria cama poderia, de um dia para outro, passar para o quarto de um comprador. A governanta, uma mulher de cabelos grisalhos, alta, magra, vestida de preto e mancando numa perna, levou-me até um salão. Abriu as cortinas das três janelas e depois retirou-se, dizendo que Tiberi estava ocupado e que por isso pedia-me para esperar alguns minutos. Sentei-me e esperei. O salão era como o resto da casa: grandes quadros escuros, móveis de todos os estilos e em tudo demonstrando ser mais um salão de exposição de uma loja e não a sala de estar de um apartamento privado! Não sabendo o que fazer, levantei-me e fui até uma das janelas, abri as vidraças e debrucei-me no parapeito. O apartamento ficava no terceiro andar; lá embaixo via-se uma rua do bairro de Prati, a linha do bonde, carros estacionados um ao lado do outro, lojas, portões de edifícios. Na calçada da frente havia uma bomba de gasolina amarela e vermelha, com uma placa onde se lia: "Fechado". Caía uma chuvinha fina e as pedras do calçamento da rua brilhavam na luz branca do início da tarde. Fiquei absorta olhando a rua. De repente, ouvi — ou pelo menos me pareceu ouvir — um barulho de porta abrindo-se atrás de mim; continuei inclinada sobre o peitoril da janela, sem me voltar; ao mesmo tempo, movimentei as nádegas, flexionando uma perna e estendendo a outra, como se estivesse cansada daquela posição. Sem saber por que fizera esse movimento, decidi girar o corpo. Deparei então com Tiberi parado no meio do salão; percebi logo que ele já estava ali há algum tempo e se detivera naquele lugar porque podia me observar bem à vontade. Numa fração de segundos reconheci a veracidade da observação da Voz sobre a preferência de Tiberi pela parte posterior do corpo feminino. Depois, fiquei surpresa com a maneira pela qual estava vestido.


"Continuei inclinada sobre o peitoril da janela, movimentando as nádegas, flexionando uma perna e estendendo outra"

Eu: Que roupas usava?


Desidéria: Vestia um terno cinza, com paletó de peito duplo, camisa branca, gravata escura, sapatos de sola fina e bico pontudo. Você se lembra dos filmes dos anos 30? Pois, displicentemente, Tiberi vestia-se no estilo dos atores daqueles filmes. Seu traje era, digamos, irrepreensível, no sentido que se dá a esta palavra em certos ambientes militares ou burocráticos. Observei com um único olhar essa sua forma de vestir e lembro-me que tive uma impressão desfavorável.


Eu: Desfavorável por quê?


Desidéria: Eu tinha uma idéia diferente da moda e, instintivamente, conferi um significado particular àquele gênero de elegância.


Eu: Que significado?


Desidéria: Agora, distanciada no tempo, posso assegurar com certeza o que então não teria sabido afirmar: era um significado fascista.


Eu: Fascista? Mas você sabia o que era fascismo?


Desidéria: Eu não, mas a Voz, como sempre, sabia. Da minha parte, como já disse, limitava-me a ter uma idéia diferente da moda. Eu também, naquele dia, estava vestida ao meu gosto e não ao gosto de Viola, que era, aliás, o equivalente feminino do modo de vestir fascista de Tiberi.


Eu: Como se vestia Viola?


Desidéria: Com trajes de grandes costureiras de Milão, muitos caros e pouco pessoais. De certo modo, suas roupas eram um uniforme, o uniforme de uma burguesa do Parioli.


Eu: E você, como estava vestida naquele dia?


Desidéria: Com um suéter grosso, marrom, bem largo e pouco elegante, calças de algodão azul, gastas e desbotadas. Usava esse tipo de roupa em todas as ocasiões, sentia-me à vontade com ela e para mim isso era suficiente. Em todo caso, não passava pela minha cabeça, de modo algum, que minha maneira de vestir podia ser o equivalente, em termos de indumentária, a um manifesto revolucionário.


Eu: O que então levou você a pensar que suas roupas exprimissem uma mensagem de revolta?


Desidéria: Tiberi. Talvez para disfarçar o verdadeiro motivo pelo qual ficara parado me olhando enquanto eu me debruçava na janela, ele disse: "Enquanto a observava, sabe o que pensei? Que em outra época você seria considerada uma maltrapilha, mas que atualmente devo considerá-la uma revolucionária. Não é por isso que vocês se vestem desse modo?"


Eu: E você?


Desidéria: Respondi rapidamente: "Quem são vocês?" — e sem esperar resposta dirigi-me para um grupo de poltronas, num canto mais sombrio, e sentei. Tiberi também sentou-se, a certa distância. Retirou do bolso da calça uma cigarreira dourada, longa e fina, abriu-a e me ofereceu um cigarro; recusei. Ele acendeu um cigarro, colocou a cigarreira no bolso, tragou duas vezes, soltando a fumaça pelo nariz e me olhando fixamente. A seguir pôs-se a falar, dizendo que se sentia contente em me ver; que por certo tempo me considerara uma filha; mas depois, por motivos independentes da sua vontade, deixara de freqüentar nossa casa e por isso há muito não me via; e que agora dava-se conta de que eu não era mais uma menina mas, sob todos os aspectos, uma mulher. Falava lentamente, com a entonação casual e afável própria de certos burgueses de Roma. Na sua voz cadenciada e que revelava, ligeiramente, o dialeto romano, seria difícil distinguir qualquer tipo de sentimento; enquanto falava, riscava a sola do sapato com a unha do dedo indicador (de pernas cruzadas, seus pés estavam a pouca distância das mãos). Em resumo exibia um comportamento acima de tudo relaxado e tranqüilo. Mas ao mesmo tempo um forte rubor, que parecia provir de uma vela encerrada no invólucro de papel transparente de uma lanterna, oriental, parecia queimar-lhe todo o rosto, do queixo aos malares. Observei tudo, isso sem, contudo, entender bem o que significava. Foi a Voz que, como de costume, me fez notar que Tiberi estava transtornado pela minha presença, e que eu devia perturbá-lo ainda mais, falando-lhe daquela famosa noite, já distante, quando o havia visto de pé, completamente nu, sodomizando Viola apoiada de quatro sobre a cama. Naturalmente, obedeci à Voz e disse, num tom repentinamente confidencial: "Talvez você não saiba, mas tornei-me mulher sob todos os aspectos, como você mesmo afirmou, sobretudo por sua causa." "Como assim?" "Lembra-se, há três anos, daquela noite em que entrei no quarto de mamãe sem bater na porta e vi você, Viola e a governanta fazendo amor a três? Bem, essa descoberta me fez amadurecer de vez. No dia anterior era uma menina; no dia seguinte era mulher."


Eu: O que ele respondeu?


Desidéria: Por um momento, nada. Seu rosto estava muito vermelho e me olhava. Depois fez uma pergunta curiosa: "Mas você ficou escandalizada porque fazíamos amor ou porque o fazíamos de um modo particular?"


Eu: E você?


Desidéria: Minha resposta foi ditada, palavra por palavra, pela Voz. Fiquei envergonhada, sozinha não o teria dito. Respondi, sorrindo, calma e dissimulada: "Mas será que você é capaz de perceber o que significa para uma menina de doze anos ver um homem todo preocupado em meter no rabo da sua mãe?"


Eu: O que foi isso? Uma volta aos palavrões? Você não disse que não recorreria mais a eles?


Desidéria: Sem dúvida, deixara-os de lado. Mas a Voz se reservara o direito de, em casos especiais, fazer com que eu os proferisse de novo. Aquele era um caso especial, devia provocar Tiberi, e a melhor maneira era deixar claro que eu tinha pleno conhecimento, digamos, da sua especialidade erótica.


Eu: Como Tiberi recebeu essa sua recaída nos palavrões?


Desidéria: Ficou ainda mais vermelho e por um momento pensei que fosse ter um ataque. Lentamente porém, sempre riscando a sola do sapato com a unha, declarou: "Ah, é este o modo que vocês, jovenzinhas contestadoras, usam para falar de certas coisas?" A palavra "contestadora" não me provocou nenhum efeito, tal como, pouco antes, a palavra "revolucionária". Eu nada sabia sobre a contestação que naqueles dias dominava tudo (estávamos em 1968), muito menos, como já disse, sobre a revolução. Tanto é verdade que prossegui, ignorante e tranqüila: "Depois daquela noite, Viola nada mais significou para mim, e o pior é que na mesma ocasião fiquei sabendo que, na realidade, não era sua filha e que ela era somente minha mãe adotiva." Exatamente nesse momento, aconteceu uma coisa extraordinária.


Eu: O quê?


Desidéria: Tiberi começou a fazer amor comigo.


Eu: Como? Agarrou você?


Desidéria: De maneira nenhuma. Continuou afundado na poltrona, pronunciando com lentidão marcada e satisfeita: "Bem, eu sempre soube que você não era filha de Viola, mas sim uma bastarda, filha de uma puta da rua."


Eu: Você chama a isso fazer amor?


Desidéria: Para Tiberi, sim. Para ele, aquela frase injuriosa equivalia a um início de sodomização. Era uma forma de sadismo verbal. Eu, da minha parte, não me senti ofendida. No máximo, experimentei o embaraço que toda mulher sente quando um homem declara repentinamente seu amor por ela.


Eu: Amor?


Desidéria: Sim, senti que ele só podia amar daquele jeito e que naquele momento, com toda certeza, me amava.


Eu: O que você lhe respondeu?


Desidéria: Nada. Obedeci à Voz que me ordenou silêncio. Aguardei imóvel e silenciosa que a sodomização continuasse: "Sua mãe era uma puta de calçada e você é uma puta igual à sua mãe. Aliás, eu sempre pensei que você fosse uma puta. Hoje tive a prova disso. Você acha que eu não percebi que você se debruçou na janela só para que eu pudesse olhar o seu rabo de piranha consumada? Não me venha dizer que não me ouviu entrar; chamei-a pelo nome em voz alta e você, como toda puta, em vez de se voltar, balançou a bunda de um lado para o outro, fingindo que se inclinava para olhar a rua.


Eu: Ouvindo essas palavras, a que ponto tinha chegado — para você — a sodomização verbal?


Desidéria: Digamos que ele tinha me despido toda, me deixado nua, e agora contemplava o objeto do seu desejo.


Eu: O que lhe respondeu?


Desidéria: A Voz mandou-me dizer, com falsa seriedade: "Não é verdade que me mexi para você, mexi-me para ver melhor uma coisa que estava na rua." "E que coisa?" "Agora não me lembro. Foi algo que me interessou." "Posso dizer o que a interessou. Você estava interessada que eu visse bem a sua bunda." "Mas por que fala comigo dessa forma?" "Falo assim porque você é uma puta e filha de puta. Não é assim que se fala com as putas?" "Em vez de ficar repetindo que sou uma puta, por que não me pergunta o que vim fazer aqui?" "Deve ser alguma coisa de puta." "O que é, segundo você?" Dessa vez, ele ficou quieto por um momento e depois disse: "Desidéria, você quer me provocar, mas não estou ligando para isso. Diga-me logo o que quer e acabemos com isso."


Eu: E você?


Desidéria: A sodomização verbal chegava a tal ponto que eu poderia abordar o assunto do dinheiro com razoável esperança de obter o que queria sem ter de me submeter à sodomização física. Sendo assim, sem mais preâmbulos, eu disse: "Vim aqui porque preciso de dinheiro." "Você precisa de dinheiro? Ora essa. Dar-lhe-ei o dinheiro. De quanto precisa? Cinqüenta mil liras bastam?" "Não, preciso de 20 milhões de liras." Minha resposta deve ter-lhe parecido tão absurda que nem se deu ao trabalho de discuti-la. Disse ironicamente: "Vinte milhões de liras? E onde posso encontrá-los? Se tivesse vinte milhões de liras seria um príncipe." "Você não precisa gastar uma só lira. Mamãe não lhe deu uma procuração? Basta que os retire da conta-corrente no banco. Já vi a conta: são 220 milhões de liras; se você retirar 20 ainda sobrarão 200." "Não sabia que você era tão boa em matemática." "Afinal, esses milhões são meus. Fazem parte da minha herança. Isso quer dizer apenas que os obterei antecipadamente."


Eu: Como fez para saber todas essas coisas?


Desidéria: Como sempre, a Voz sabia de tudo quanto me sugeria, palavra por palavra. Eu nada sabia.


Eu: E Tiberi?


Desidéria: Como se estivesse querendo ganhar tempo, perguntou: "Mate a minha curiosidade, diga-me o que quer fazer com 20 milhões de liras."


Eu: Uma pergunta sensata, não é?


Desidéria: De repente senti-me perdida. Como você deve lembrar, a Voz assegurava que me faria saber no momento exato que destino teriam os milhões de Viola. Mas agora ele esperava uma resposta e eu não sabia informar o destino do dinheiro nem o que deveria fazê-lo acreditar sobre isso. Perguntei rapidamente à Voz o que devia dizer e recebi uma resposta desconcertante: "Diga-lhe que precisa deles para fazer a revolução." "Mas não posso dizer tal coisa a Tiberi." Após um momento de silêncio, resolveu o problema substituindo a palavra "revolução" pelo equivalente cristão: "Diga-lhe: para fazer o bem." Obedeci e disse com suficiente convicção: "Para fazer o bem" — e, de repente, compreendi que a Voz, com astúcia didática, queria me colocar propositadamente numa situação embaraçosa, habituando-me a considerar a revolução como sinônimo de bem.


Eu: Como Tiberi recebeu essa resposta?


Desidéria: Retomou a sodomização verbal.


Eu: Quer dizer que recomeçou a fazer amor com palavras. Desidéria: Sim. Lentamente, como se quisesse me esbofetear, pondo uma pausa entre uma bofetada e outra, começou a dizer: "Ora vejam só, a filha de uma bilionária do Parioli, mas vestida de trapos, com um suéter deformado e calças gastas de algodão. Assim, vestida como um mendigo, ela vai à casa do administrador da mãe-bilionária, mexe bem o rabo sob os seus olhos e depois lhe pede, como de brincadeira, 20 milhões de liras. A serem retirados, bem entendido, da conta materna, graças ao rabo e graças à procuração. Vinte milhões para fazer o bem. Mas o bem que você quer fazer, minha cara, eu sei perfeitamente qual é, e não vou me furtar a dizê-lo. Com esses milhões você quer fazer o bem ligada a algum grupo da chamada contestação; quer financiar a pretensa luta contra os chamados patrões. Em resumo, você quer fazer a tal revolução. Não me diga que não, sua filha da puta, você não passa de uma, não me diga que não, porque suas roupas, seu suéter, suas calças, falam por você. Mas, muito bem, para começar você deve provar que pelo menos sabe como merecer esses milhões." Eu: A frase não me parece clara. O que ele queria dizer com isso? Desidéria: Talvez nem ele mesmo soubesse. Perdera a cabeça; estava quase disposto a pagar 20 milhões por uns poucos minutos de amor. Ao mesmo tempo, provavelmente percebia que era um preço muito alto; talvez esperasse obter tudo sem dar nada. De qualquer forma, logo ele me fez entender o que queria, com poucas explicações.


"Ela vai à casa do administrador da mãe bilionária, mexe bem o traseiro e depois lhe pede 20 milhões de liras"

Eu: De que modo?


Desidéria: Foi assim. Embora continuasse falando, de repente ergueu-se da poltrona e se aproximou de mim e, como tomando um impulso, cravou uma das mãos nos meus cabelos, formou com eles um grande cacho e, torcendo-os com força, quase me fez gritar de dor, obrigando-me a levantar da poltrona. Enquanto isso, continuou o seu discurso sádico, sucedâneo verbal da relação físico-anal: "E agora levante-se, vamos, e não diga uma só palavra, não reclame, não fale, sua puta, que eu vi crescer à minha vista e que, como um verdadeiro idiota, respeitei porque era filha da mulher que amava, não diga uma só palavra ou lhe torço o pescoço, vamos, ande na minha frente, caminhe novamente até a janela, debruce-se sobre o peitoril, isso, assim, incline-se bem para fora, olhe à frente, veja a bomba de gasolina, não é simpática aquela bomba, hein, não é simpática?, e agora empine o rabo para trás, empine-o mais, o máximo possível, mas continue olhando e continue a empinar esse rabo, sim, sim, é assim, assim. Agora fique parada, fique parada, incline-se para frente e grite: 'Abaixo a revolução'."


Eu: Abaixo a revolução?


Desidéria: Sim, foi isso que ouvi sua voz ofegante dizendo perto da minha orelha, enquanto me mantinha inclinada para a frente sobre o peitoril, e sua mão enorme puxava meus cabelos e, pressionando-me com todo o corpo, procurava abaixar minhas calças. Ora, até aquele momento eu nada sabia, absolutamente nada, sobre a revolução. E bem verdade que, de vez em quando, a Voz se saía com essa palavra, mas sem explicações, como se eu já soubesse tudo, quando, na realidade, não tinha a menor idéia do que se tratava. Também nada sabia sobre os grupos da contestação que, segundo Tiberi, eu pretendia financiar com o dinheiro. Em resumo, eu não entendia nada de política. Tiberi, porém, estava certo de que eu conhecia todas essas coisas que ele odiava e temia, porque eu me vestia da maneira adotada geralmente pelos rapazes e moças da minha idade. Assim, para ele, o suéter e as calças representavam a bandeira de um exército inimigo. E ele me fazia renegar essa bandeira sadicamente, sodomizando-me e me obrigando a gritar ao mesmo tempo "Abaixo a revolução". Assim, agora eu estava com a cabeça inclinada e a -bunda nua, projetada para trás, as pernas abertas, as calças incomodamente arriadas sobre os pés, uma mão terrível me obrigava a olhar para baixo, para a rua, e a outra mão segurava o membro procurando o orifício anal entre as nádegas contraídas e rijas. O peitoril me machucava os seios, e ele me intimava a gritar "Abaixo a revolução", e nesse momento percebi pela primeira vez o fato de que, finalmente, entendia o significado da palavra revolução, e que essa compreensão eu devia não à Voz, que nunca explicava nada, mas exatamente a ele, àquele burguês conservador, sádico e amedrontado. Sim, devo a Tiberi a compreensão do verdadeiro significado do termo revolução.


Eu: De que modo ele a fez compreender?


Desidéria: Tornando a fazer comigo algumas coisas que já fizera com Viola.


Eu: O quê?


Desidéria: Lembra-se da frase que Tiberi dissera a Viola enquanto a sodomizava? "Dá-me a América". Comigo, me obrigara, numa situação semelhante, a gritar "Abaixo a revolução". Ora, as circunstâncias eram idênticas. Em ambos os casos, tratava-se de "enfiar no rabo", no de Viola e no meu. Mas Viola e eu, naquele momento, éramos dois símbolos, Viola o da América, eu o da revolução. Em outras palavras, através de Viola e de mim, Tiberi queria "meter no rabo" da América e da revolução.


Eu: Por que a América?


Desidéria: Porque a América é poderosa, e era evidente que ele via esse poder como um desafio, como uma provocação.


Eu: Sintetizando, mais uma vez o simbolismo, à maneira da Voz.


Desidéria: Sim, mas de sentido oposto. A Voz tinha o simbolismo da revolta, Tiberi o da conservação.


Eu: Qual foi o resultado dessa sua imprevista iluminação?


Desidéria: Foi uma tomada de consciência fulminante. Enquanto olhava, obrigada por Tiberi a permanecer com a cabeça curvada sobre o peitoril da janela, olhando para a bomba de gasolina amarela e vermelha na calçada em frente, depois do asfalto molhado e deserto, lembro-me que pensei por um momento: "Mas então eu sou uma revolucionária." Foi só por um segundo; depois perguntei à Voz o que devia fazer e, para meu alívio, ouvi-a responder: "Mas, é claro, deve gritar: viva a revolução." Então, em tom submisso, como falando para mim mesma, sempre olhando a bomba de gasolina lá embaixo, na rua, gritei: "Viva a revolução".


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