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WANDERLÉA | ABRIL, 1996

Playboy Entrevista



Uma conversa franca com a rainha da Jovem Guarda sobre sucesso, inveja, carinhos, socos, pernas, forças estranhas e — finalmente! — sexo, drogas e rock and roll

Foi assim: no tempo em que o bispo Edir Macedo ainda rezava o Padre-Nosso, o melhor da música brasileira se acotovelava nos bastidores da TV Record de São Paulo. Era uma época de fronteiras bem desenhadas. Num dia da semana, Elis Regina comandava o programa Fino da Bossa, que trazia nomes como Tom Jobim, Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque e Caetano Veloso. Em outro dia, a cantora Elizeth Cardoso apresentava Bossaudade, à frente de uma seleção de masters do samba e do choro — o público se emocionava com Jacó do Bandolim, Dorival Caymmi, Cyro Monteiro. E, nas tardes de domingo, o país era eletrificado por um grupo de jovens que conseguia repetir, neste sul de mundo, muito do fenômeno da idolatria fanática que cercava os grandes grupos de rock na Europa e nos Estados Unidos. Havia outras garotas no palco da TV Record há trinta anos, durante o estrondoso sucesso da Jovem Guarda — mas nenhuma igual a Wanderléa, que formava com Roberto e Erasmo Carlos a santíssima trindade do rock brasileiro.


No ano passado, quando comemorou três décadas de seu apogeu, a Jovem Guarda ressurgiu de uma forma tão surpreendente quanto espetacular: uma série de dez discos com uma seleção de sucessos vendeu 1 milhão de cópias; um show com antigos astros do programa lotou durante semanas a casa de espetáculos Tom Brasil, em São Paulo, e recebeu tantos convites para prolongar as apresentações que agora percorre o Brasil todo. Nessa ressurreição coletiva de nomes como Os Incríveis, Leno e Lílian, Ronnie Von e Eduardo Araújo, o milagre é Wanderléa: às vésperas de completar 50 anos, ela continua com as formas que enlouqueciam os brasas e os tremendões da Jovem Guarda, na época em que era chamada de "Ternurinha", pela doçura e pelos sentimentos que despertava. Hoje, ao vê-la sorridente e mais iluminada que seus companheiros no palco, ondulando o corpo na suave sensualidade de sua dança, parece até que o tempo não passou para ela. No entanto, passou — e, em muitos momentos, de um modo cruel.


Wanderléa viveu seus últimos instantes de despreocupação em 1970, quando parecia que nada poderia atrapalhar sua felicidade: era jovem, atraente, fazia sucesso e estava noiva de José Renato Barbosa, filho do célebre apresentador Chacrinha, da Rede Globo. Bastou um mergulho de piscina num fim de semana ensolarado em Teresópolis, na serra fluminense, para turvar aquele cenário todo azul: José Renato correu, deu uma pirueta e caiu de costas na piscina da casa de campo de uns amigos, onde um estúpido cano de ferro encoberto pela água separava o raso do fundo. Duas vértebras se romperam e ele ficou paraplégico. Wanderléa se casou com José Renato meses depois e, durante sete anos, viveu mais entre clínicas e sessões de fisioterapia do que no palco. Vendeu dois apartamentos, morou um ano em Los Angeles, nos Estados Unidos, e depois de pensar muito em como retomar a carreira, comprou equipamentos para montar um estúdio de gravações em Botafogo, no Rio. Ali, começou a conviver com músicos de escolas diferentes — entre eles, o virtuoso tecladista, violonista, maestro e compositor Egberto Gismonti, com quem gravou um disco e, já separada de José Renato, se envolveu num romance durante três anos. No fim dos anos 70, ela estava a zero: solteira novamente e sem estúdio, depois que num sábado de Carnaval ladrões arrombaram as trancas e levaram os equipamentos todos, provavelmente com os sons de cuícas e tamborins ao longe.


Em fevereiro de 1984, novamente parecia que nada poderia atrapalhar a felicidade reconquistada por Wanderléa: casada com o guitarrista chileno Lalo "Califórnia" Correia, era mãe de um garoto de 2 anos chamado Leonardo — e por ele, para que tivesse mais espaço para brincar, mudaram-se do apartamento da cantora no coração dos Jardins, em São Paulo, para uma casa num condomínio da Granja Viana, a 20 quilômetros da capital paulistana. A casa tinha uma piscina. Quinze dias depois da mudança, Leonardo caiu na água num momento de descuido, sem ninguém por perto, e morreu afogado. Era a pior, a mais trágica das perdas para a suave Wanderléa que, apesar do desespero que se seguiu, teve forças para não se deixar abater.


Essa garra talvez esteja em seu próprio sangue. O pai de Wanderléa, um mineiro descendente de libaneses chamado Antônio Salim, fez algum dinheiro com uma firma de terraplanagem e era ele próprio um trator: já homem feito, com quase 1,90 metro de altura, se encantou com a pequena Odete, uma garota de 13 para 14 anos que viu na soleira de uma casa em Magé, no Estado do Rio, e fugiu com ela para o interior de Minas Gerais. Moraram em várias cidades, entre as quais Governador Valadores, onde nasceu Wanderléa, e Lavras, onde a cantora se apresentou pela primeira vez num microfone de rádio, com 3 anos de idade. Ao contrário das previsões das duas famílias, o grande Antônio e a pequena Odete foram muito felizes. Tiveram treze filhos, dos quais sobreviveram sete, todos criados com mão de ferro e batizados com nomes que começavam da mesma forma — Wanderley, Wanderlene...


A família já tinha se mudado para o Rio e Wanderlene era noiva de um cadete quando, numa noite de Ano Novo, houve um tiroteio no subúrbio de Cordovil, onde moravam, e ela foi atingida e morta por uma bala perdida. Wanderléa ainda tinha 8 anos de idade, mas durante muito tempo amou secretamente o noivo da irmã falecida — e para ele cantou os boleros e guarânias que formaram o seu repertório infantil nas rádios e televisões cariocas, onde começou a fazer uma carreira de sucesso apesar da crescente resistência do velho Salim.


O resto da história... não, ninguém sabe direito. Apesar de todo o estrelato na época da Jovem Guarda, Wanderléa sempre foi extremamente discreta e reservada. Tanto, que o primeiro a confirmar o namoro que tiveram foi o próprio Roberto Carlos, normalmente pouco dado a confidências, num recente programa de TV. Hoje, casada com Lalo e mãe de duas garotas bonitas, Yasmin e Jadde, de 10 e 9 anos de idade, Wanderléa aproveita os poucos momentos de folga para trabalhar num livro que traz parte de suas memórias e que ela espera lançar ainda este ano. No resto do tempo, a cantora faz shows pelo país e todos os dias, religiosamente, dedica algumas horas a uma atividade mística em que se envolveu desde a morte do filho Leonardo (ela pertence a um grupo chamado Mestres Ascensionados da Fraternidade Branca, que acredita intervir na realidade com raios e chamas de várias cores, mentalizações e energias canalizadas a partir de uma mescla de filosofias orientais).


Depois de sofrer um novo golpe — a morte do irmão e confidente Wanderbil, vitimado pela Aids no ano passado — e um novo roubo de equipamentos de som no sítio para onde havia se mudado na própria Granja Viana, Wanderléa está de volta ao seu antigo apartamento nos Jardins, em São Paulo. Foi ali que, durante três dias, deu a mais reveladora entrevista de sua vida para o editor-contribuinte Guilherme Cunha Pinto, de PLAYBOY, que recolheu as seguintes impressões:


"Durante esses três dias, eu tocava a campainha do apartamento sempre às 4 da tarde. A porta era aberta por Iracema, uma empregada que chegou de Tocantins para a casa de Wanderléa, onde ganhou um uniforme azul-claro e uma touca no mesmo tom, imensa e desajeitada, que ela equilibrava no alto da cabeça como uma alegoria. Wanderléa aparecia depois de um minuto ou dois, vestida sempre com roupas justas e discretas, enfeitada apenas por um medalhão indiano de prata.


"Sentávamos sempre nos mesmos lugares, em volta de uma mesa onde a simpática Iracema serviu algumas vezes chá, suco de laranja, café e uma travessa com azeitonas pretas, tâmaras, queijo-de-minas e castanhas. Numa das tardes, Lalo, o marido de Wanderléa, trabalhou silenciosamente em alguns arranjos musicais num computador Macintosh, na sala ao lado, com fones de ouvido. Nas outras, não apareceu. Yasmin e Jadde, as filhas, chegaram da escola e saíram para as aulas de inglês discretamente, depois de um beijo na mãe e de uma conversa rápida e calorosa, resumindo os principais acontecimentos do dia. Ficou a impressão de que há toda uma proteção cooperativa em torno de Wanderléa, para que nada atrapalhe a sua concentração quando ela está trabalhando.


"Durante nossas três longas sessões de entrevista, muitas vezes Wanderléa se emocionou. Algumas vezes, quando falava de outros tempos, vagou os olhos verdes pela sala do apartamento de estilo mediterrâneo que comprou nos anos 60, ainda com o dinheiro recebido no apogeu da Jovem Guarda — o chão é de tábuas largas, o teto também é forrado de madeira e as paredes brancas têm várias aquarelas em que a artista aparece retratada como uma fada, flutuando sobre o verde dos campos. Também rimos bastante durante a conversa, em que ela revelou um extraordinário talento para contar histórias — um talento que, pensando bem, é típico dos mineiros.


"Ao final de uma soma de 10 horas e meia de gravações, a própria Wanderléa parecia surpresa com tudo o que havia contado para PLAYBOY. Na despedida, ela disse: 'Pode parecer incrível, mas você agora sabe muito mais de mim do que o Roberto e o Erasmo, que são meus grandes amigos há décadas. Eles não sabem um terço disso que acabei de contar.'"


PLAYBOY — Onde você guarda o segredo da eterna jovialidade?


WANDERLÉA — O que há de mais forte no ser humano é uma chama interna. Não adianta plástica, não adianta cirurgia nenhuma. É uma chama de vida. Existem pessoas que têm e pessoas que não tem.


PLAYBOY — Muita gente sofre um único golpe e se ressente dele pela vida afora.


WANDERLÉA — Pois eu acho que tem de ser o contrário. Acho que a gente deve viver intensamente cada situação, sem fugir de nada — mas, à medida que vive, ir limpando e tirando as carcaças, para ficar cada vez mais leve. Não é fácil, não. Mas, se não fizer isso, tudo na vida conduz para a amargura. Sempre achei que a vida tem de trazer uma sabedoria maior. Sempre lutei por isso. Quando as pessoas me vêem lá em cima do palco, num show supervitalizado, começam a questionar a própria vida — e eu gosto disso. Gosto de causar inquietação.


PLAYBOY — Pouquíssimas mulheres chegam aos 49 anos com um corpo como o seu. Você faz muito exercício para ficar assim?


WANDERLÉA — Não. Acho que tive muita sorte, porque não tenho tendência a celulite, nem a estrias. É uma bênção, porque vejo que é um terror que atormenta as mulheres. E tenho uma elasticidade natural, está vendo? [Sentada, de repente descruza as pernas e coloca um pé na altura do próprio ombro] Não consigo ficar muito tempo parada, sem fazer nada. Caminho muito, tenho as pernas fortes, as passadas largas — é difícil me acompanhar.


PLAYBOY — Você se olha muito no espelho?


WANDERLÉA — De vez em quando. Acho que continuo com um corpo legal. É engraçado, porque olho e penso: "Gente, se eu tenho esse corpo hoje, quando tinha 20 eu devia ser um avião!" Mas me lembro nos meus 20 anos cheia de pudores de me exibir... Acho que a mulher tem uma exigência muito grande, vive procurando defeitos.


PLAYBOY — Tinha medo de decepcionar?


WANDERLÉA — Não, de decepcionar não. Sempre usei biquíni bem pequeno, uso até hoje. Gosto de me queimar — e, de preferência, nua. Não gosto de biquíni.


PLAYBOY — É?


WANDERLÉA — Ah, não gosto. Tudo que puder fazer ao ar livre, cercada de natureza, deixando o corpo respirar, eu prefiro. Acho muito mais saudável. Isso vem da minha família, com certeza. Meu pai era fanático por essas coisas de saúde. Quando a gente morava em Minas, lembro de acordar com um estrondo da porta da frente abrindo — às 4 da manhã, ele reunia toda a garotada de Lavras em casa; de lá saíam correndo até a praça em fila, aos gritos de "hip, hurra!", faziam ginástica e voltavam correndo, uma loucura. Quando a gente se mudou para o Rio, a gente ia para a praia ainda escuro, para fazer ginástica. E a minha mãe também é muito sacudida, conservadíssima aos 70 e poucos anos. Ela mora no Grajaú, no Rio, e às vezes telefona: "Filha, você perdeu. Caiu uma tempestade aqui e tomei o maior banho de chuva, na varanda." Nua. Nunca foi de usar sutiã. Quando a gente vai para uma praia, escolhe sempre um lugar deserto e, se de repente ela sumir, você pode procurar que ela já tirou a parte de cima do biquíni e está lá, tomando sol [risos].


PLAYBOY — E você, qual a parte que gosta mais no seu corpo?


WANDERLÉA — Gosto das minhas mãos. Das minhas pernas... Acho que tenho um corpo legal, harmonioso. Tenho uma estatura média, mais para baixa, com 1,64 metro, mas engano muito porque tenho pernas compridas, no palco pareço muito mais alta. Que mais? [Faz uma pequena pausa.] Acho que sempre tive um bumbum bonito. Mantenho o peso com facilidade, tanto que as roupas do tempo da Jovem Guarda ainda servem em mim.


PLAYBOY — Muitas atrizes, e outras mulheres que se mantiveram bem conservadas, se deprimiram quando o envelhecimento afinal chegou. Você está preparada para isso?


WANDERLÉA — Ah, acho que não vou ter esse problema. Os cuidados que tenho são um carinho comigo mesma, mas sem aquela neura de tentar conter o tempo de qualquer jeito. A juventude não é eterna, mesmo.


PLAYBOY — No tempo da Jovem Guarda, quem era a cantora mais bonita?


WANDERLÉA — Eu! [Risos.] Isso a gente mede pelo sexo oposto, não é? Eu era a mais assediada, a mais cortejada, sentia que despertava mais... mais...


PLAYBOY — Você teve que enfrentar muitas cantadas grosseiras?


WANDERLÉA — Agora mesmo, fazendo os shows pelos 30 anos da Jovem Guarda, entravam muitos casais no camarim do Tom Brasil [casa de espetáculos de São Paulo], e de repente um sujeito falou: "Ah, eu daria minha BMW pra ela!" Deve ser o valor máximo, para ele. Achou que era um elogio. Depois ele pediu para tirar uma foto junto comigo e não queria de jeito nenhum que a mulher aparecesse: "Não, você não, eu estou aqui com a Wanderléa." Olha, não entendo como uma mulher continua com um homem assim. Eu não suportaria, teria dado um murro na cara dele! Juro.


PLAYBOY — Você gosta de ouvir galanteios?


WANDERLÉA — Se eu gosto?


PLAYBOY — Quando uma mulher está passando e alguém diz: "Gostosa!" Isso é um elogio ou um insulto para ela?


WANDERLÉA — Para mim é um insulto. Não gosto de ouvir isso. Tem jeito de uma mulher se sentir gostosa, sem passar por uma coisa assim [risos]. Olha, é muito raro eu ouvir uma grosseria, porque em geral tenho uma relação muito carinhosa e ao mesmo tempo respeitosa com as pessoas. Essa é uma coisa que você passa para os outros, entende? Sempre fui assim. Se for lembrar da época da Jovem Guarda, o pessoal contava muita piada — especialmente o Roberto Carlos, que conta piadas muito bem, mas comigo por perto ele jamais contou uma picante. Perto de mim ninguém falava palavrão, sabe? Era algo que eu tinha trazido de casa. Imagine o meu pai... Filha dele que falasse palavrão ele quebrava os dentes [risos].


PLAYBOY — Por que você sempre negou que tivesse namorado o Roberto Carlos, até ele próprio revelar isso no ano passado, no programa Jô Soares Onze e Meia?


WANDERLÉA — Porque foi um namoro quase de criança — quer dizer, eu era muito menina. E o Roberto estava começando a carreira. Um dia ele foi fazer um show com uma caravana do [radialista] Luiz de Carvalho num clube em Cordovil [subúrbio da Leopoldina, no Rio]. Por sinal, um show muito mal organizado, sem nenhuma divulgação, tanto que não tinha ninguém na platéia, além de mim e de uma cunhada minha. Mas quando ele entrou no palco, cantando uma versão de Mr. Sandman, não parecia estar se importando se havia muito público ou ninguém. Cantava aquilo como se fosse para a amada dele que estivesse ali. E me pegou, com a introspecção dele. "Mr. Sandman..." [Cantarola um trecho, quase sussurrando.] Gostei dele.


PLAYBOY — E ele de você. Consta que nessa mesma noite, depois do show, o Roberto Carlos teria lhe dado um beijo de surpresa, com a boca engordurada por uma coxinha de frango.


WANDERLÉA — [Alarmada.] Nossa! Como você soube disso?


PLAYBOY — Saiu num artigo do [falecido jornalista e letrista] Ronaldo Bôscoli. Não é verdade?


WANDERLÉA — Bom, no meu livro vou dizer que era um sanduíche, porque fica melhor que coxinha de frango. Tinha um sabor salgado, gorduroso.


PLAYBOY — Foi o seu primeiro beijo?


WANDERLÉA — Acho que foi... Um beijo roubado, de surpresa, eu não estava esperando. As pessoas da caravana já estavam no ônibus chamando para ir embora, e nós numa conversa animada. Aí, antes de ir, ele me puxou e deu um beijo.


PLAYBOY — E depois?


WANDERLÉA — Depois aconteceram outros beijos [risos].


PLAYBOY — Só?


WANDERLÉA — Só.


PLAYBOY — Quanto tempo vocês namoraram? Meses?


WANDERLÉA — Alguns anos de nossas vidas.


PLAYBOY — Naquela época do Quero Que Vá Tudo Para o Inferno, do Pare o Casamento, ainda rolava?


WANDERLÉA — A gente sempre teve uma proximidade muito forte. Mas tudo muito comedido. Quem via minhas modernidades no palco, os modelos com saia curta como eu usava no tempo da Jovem Guarda, poderia pensar: "Pô, aquela menina é da pá virada." Mas não. Eu era muito pudica. E pode parecer estranho, porque os anos 60 foram justamente aqueles em que se quebraram tabus, em que houve o advento da pílula e tudo o mais, mas eu pessoalmente era pura e casta.

PLAYBOY — Literalmente? Você era virgem em plena época da Jovem Guarda?


WANDERLÉA — Eu estava sempre com alguém da minha família e, além disso, fora do palco o Roberto e o Erasmo me protegiam muito do assédio, eram guardiões, assim, da...


PLAYBOY — Da sua virtude?


WANDERLÉA — É. Quando começamos a fazer muito sucesso, havia um cerco em torno da gente. Mas foi nessa ocasião que conheci o meu primeiro namorado para valer, que foi o Armando Lara [falecido aos 43 anos, de um ataque cardíaco], de uma família tradicional de São Paulo. Um príncipe encantado, um gentleman, uma pessoa linda. Foi o primeiro homem da minha vida.


PLAYBOY — Com que idade você teve a primeira experiência sexual?


WANDERLÉA — Com 19 anos.


PLAYBOY — Quer dizer que a Juventude Transviada não era assim tão implacável?


WANDERLÉA — É que vivi essa fase toda não na pista de dança, ou namorando nos bailes. Eu tinha uma outra razão para estar lá — o meu trabalho como cantora. E, talvez porque o meu pai tenha tido tanta resistência em relação à minha carreira, dizendo que o ambiente não era bom para mim, fiquei muito mais precavida, dei muita atenção a isso.


PLAYBOY — Você namorou o Erasmo também, não foi?


WANDERLÉA — Não. Nunca.


PLAYBOY — Isso já saiu publicado algumas vezes.


WANDERLÉA — O Erasmo é que sempre me namorou. Ele sempre falou de um amor, de uma paixão. Na época de que estou falando, o Armando tinha ciúme doentio do Roberto, mas não do Erasmo. Dizia: "O Erasmo é franco, fala mesmo." Tomavam uns porres juntos, ficavam falando umas coisas malucas nos fins de noite.


PLAYBOY — O Erasmo dizia para o seu namorado que amava você e tudo?


WANDERLÉA — É. Ele sempre foi muito emotivo, era de falar e chorar, uma coisa escancarada, bonita, de um homem que ama. O Erasmo sempre se iludiu comigo. Acho que sou uma grande ilusão na vida dele, mas nunca pude resolver isso, porque meu amor por ele se estabeleceu de outra forma, num carinho imenso, uma amizade eterna. Ele brinca até hoje, dizendo que nenhum homem me ama ou me amou como ele. Na verdade, ao longo do tempo fui tendo provas infinitas de que o Roberto e o Erasmo são mesmo uma família para mim. Aquilo que a gente passa no palco é a pura verdade. É bonito e reconfortante saber que, pela vida afora, tudo o que precisar do Roberto e do Erasmo eles estarão lá, sempre o que um de nós precisar os outros estarão por perto.


PLAYBOY — Você desculpe a insistência, mas...


WANDERLÉA — Ih, lá vem de novo...


PLAYBOY — É que não faz sentido. Você e o Roberto Carlos no auge da juventude, aliás à frente da juventude, comandando um movimento de quebra de padrões... Os dois símbolos sexuais da época, cada um com uma casa e um carrão — namorando no portão?


WANDERLÉA — É que eu sou dura na queda [risos]. Sempre fui muito rígida com o Roberto. Como o assédio a ele era muito grande, eu me sentia muito insegura. Na Jovem Guarda era uma loucura — saía mulher debaixo da cama dele em hotel, de dentro do armário. E ele sempre foi mulherengo. O Roberto tem um lado — agora acho que acalmou, tomara — sempre galante, sempre soube cortejar uma mulher, ele é todo sedutor. E eu, como única mulher naquele grupo meio machista, via a mulherada se expondo e achava aquilo tudo muito feio. Pensava: "Não vou ser mais uma igual àquela ali." Tenho muito respeito pelo meu corpo, sabe? Não sei se é a maneira como fui criada, ou se é algo próprio da mulher mesmo.


PLAYBOY — O que seria próprio da mulher, no caso?


WANDERLÉA — A maioria das mulheres ainda não se soltou como o homem, não lida com a sexualidade de uma forma tão liberada como vocês. Ela deixa de dormir com o marido porque brigou durante o dia. O homem não, parece separar os sentimentos em departamentos — o sexo aqui, o amor ali...


PLAYBOY — Existe um estudioso americano chamado David Buss que explica isso mais ou menos com a seguinte teoria: toda atração entre sexos diferentes visa, instintivamente, a reprodução da espécie.


WANDERLÉA — [Um tanto cética.] Sei.


PLAYBOY — Estaria tudo no inconsciente, no mapa genético. Os machos seriam mais despreocupados porque buscam a quantidade, acima de tudo, e levam apenas alguns minutos para consumar a fecundação. Já as fêmeas estariam mais ligadas na segurança do projeto, porque vão ficar muito mais tempo comprometidas, até formar o filhote dentro delas, parir e ainda cuidar da sua amamentação. O que você acha disso?


WANDERLÉA — Até que faz sentido. A mulher tem a necessidade da harmonia, do equilíbrio, de que tudo esteja funcionando. Tem necessidade de um chão. Precisa ser estimulada de alguma maneira, por isso tem aquelas que adoram receber presentes, se sentem especiais, valorizadas... [Pausa.] Por que a gente estava falando isso?


PLAYBOY — Estávamos falando da sua relação com o Roberto Carlos. Você acha que existe um homem capaz de entender inteiramente uma mulher?


WANDERLÉA — Acho o universo feminino muito maior, muito mais rico. Por ter ficado séculos, milênios atrás da porta, a gente desenvolveu uma intuição muito maior. O homem talvez não perceba a mulher por inteiro — e provavelmente a mulher ainda não aprendeu como chegar ao homem sem assustá-lo tanto. Os encontros são muito difíceis, não é? Exigem sempre uma busca de mudanças, por isso são tão complicados, cheios de resistências. A relação entre duas pessoas é, no fundo, uma busca permanente de contato e acho que a mulher batalha mais para isso, o homem foge muito.


PLAYBOY — Você quer dizer que, nesse sentido, a mulher é mais ativa e o homem mais passivo?


WANDERLÉA — Acho que sim. Converso com minhas amigas sobre isso e vejo que a relação é sempre batalhada por elas. Existe até um tom complacente quando se fala das dificuldades do homem: "Sabe, ele tem tais dificuldades mas eu tento assim e assim...." Algo quase maternal, com a preocupação até de conduzir as situações de uma forma que o homem pense que ainda está no comando, sabe como?


PLAYBOY — Você tem inveja de alguma coisa do universo masculino?


WANDERLÉA — [Depois de uma pausa considerável.] Tenho inveja dessa soltura em relação ao sexo. Dessa despreocupação, de poder fazer sexo para relaxar se estiver tenso, ou de curtir mais se já estiver numa boa — tenho uma certa inveja dessa disponibilidade permanente.


PLAYBOY — Fidelidade é importante para você?


WANDERLÉA — Eu não exijo fidelidade do meu marido.


PLAYBOY — Não?


WANDERLÉA — Não. [Pausa rápida.] Bom, também não quero que ele saia por aí... Mas acho que se algo na rua desperta o interesse, que ele leve isso às últimas conseqüências.


PLAYBOY — E se o seu marido obedecer, o que acontece? Você coloca as malas dele no elevador?


WANDERLÉA — Só se já estivesse predisposta a isso [risos]. Aí seria um pretexto. Mas não sei... não penso muito nisso. Acho que se eu por acaso estivesse com alguém que buscasse aventuras o tempo todo, diria para ele: "Olha, é melhor você ficar sozinho logo de uma vez, fica solto que vai aproveitar mais." Numa boa. Deve ser insuportável viver assim.


PLAYBOY — Num acaso: o seu marido está viajando na Ponte Aérea e acontece um encontro mágico com uma outra mulher. E aí?


WANDERLÉA — Se for só uma aventura, preferia que ele não me contasse. Porque ficaria mais preocupada, neste mundo em que a gente está vivendo, com o problema das relações sem segurança, sem preservativo. Ficaria mais preocupada com isso.


PLAYBOY — E você, invertendo os papéis: como se comportaria se estivesse atraída por alguma pessoa fora do casamento?


WANDERLÉA — Iria me sentir muito incomodada. Não sei manter dois relacionamentos ao mesmo tempo. Não tenho jogo de cintura para isso. Sempre fui muito seletiva nas minhas escolhas e, também, nunca fui de ficar fantasiando com as pessoas — pelo contrário: quando começo a achar alguém interessante, já começo a tentar descobrir o que essa pessoa tem de errado e não está revelando. Sou muito pé-atrás.


PLAYBOY — Você tem o temperamento muito forte?


WANDERLÉA — Fortíssimo. Sou extremamente delicada, e acho que a imagem de Ternurinha faz o maior sentido, porque sou suave mesmo, fácil de conviver. Mas se vejo uma injustiça, se não concordo com alguma coisa, acho que aí o sangue árabe sobe à cabeça. Minha família é toda impetuosa, meu pai era assim. Apesar de toda a adoração que eu tinha por ele, muitas vezes nós brigamos, porque tínhamos o gênio forte — e, de todos os filhos, era eu quem enfrentava as posições conservadoras dele em casa.


PLAYBOY — Uma vez seu pai chegou a bater em você já adulta, não foi? Você contou rapidamente numa entrevista para O Pasquim.


WANDERLÉA — Bateu mesmo. Eu estava no auge do sucesso, me achando muito poderosa! [Risos.] Atuando muito, falando muito alto dentro de casa... E à medida que eu ganhava muito dinheiro, meu pai foi ficando... incomodado, talvez. Eu queria que ele relaxasse, que curtisse um sítio que comprei para a família na antiga estrada Rio—Petrópolis. Achava que ele já tinha trabalhado demais para criar uma família do nosso tamanho. Mas ele tinha pudor em relação ao meu dinheiro. Aquilo bem árabe, o patriarca comandando tudo. Ainda mais uma filha mulher... era muito forte para ele. Um dia, minha irmã Belinha ia ter bebê e fui com ela e com o marido dela para a maternidade. Deu tudo certo, nasceu uma garotinha linda, a Andréa. No dia seguinte eu tinha o programa Jovem Guarda para fazer. Fiz e voltei para o Rio. Cheguei em casa toda animada, comentando da menina que tinha nascido, perguntei se eles já tinham visto — mas não, nem meu pai nem minha mãe tinham ido à maternidade. Falei: "Como? Vocês não foram?" E eles, muito naturalmente, disseram que estavam esperando minha irmã vir para casa e então veriam o bebê. Para eles, que tiveram treze filhos em partos normais, usando óleos e métodos naturalistas, aquilo era muito corriqueiro. Fiquei indignada e comecei a questionar, falando alto. Meu pai levantou e disse: "Cala a boca." Aí eu continuei: "Não, mas eu acho que..." No terceiro "eu acho", pimba! Arriei num canto da sala, porque ele era um homem forte, de 1,90 metro. Avermelhei, mas levantei e ainda tentei falar alguma coisa — e ele deu outra. Foi a conta de entrar pela porta o meu cunhado, que tinha acabado de voltar da maternidade, "Mas o que é isso, seu Salim?", segurou e tal.


PLAYBOY — E você?


WANDERLÉA — Fiquei surpresa, principalmente, porque a família toda deu razão para o meu pai! [Risos.] A família inteira adorou aquela porrada [mais risos].


PLAYBOY — O seu sucesso estava incomodando todo o mundo.


WANDERLÉA — Só aí eu entendi isso. E eu pensava: logo eu, que fico aqui peitando meu pai; questionando a hora de irmão voltar para casa à noite, brigando para minhas irmãs também poderem usar minissaia, que estou do lado deles o tempo todo, de repente levo uma porrada e todos acham o maior barato, comemoram.


PLAYBOY — Tem aquela frase do Gore Vidal, escritor americano: "Quando um amigo meu faz sucesso, eu morro um pouquinho." [Risos.] A inveja é um dos sentimentos mais humanos.


WANDERLÉA — Acho que havia uma necessidade deles de afirmação, assim: aqui somos todos iguais, somos todos filhos do seu Salim e da dona Odete. Aqui não tem essa história de Rainha da Juventude. Porque, se a gente for ver, um sucesso muito grande traz muito transtorno para uma família — ninguém está preparado, muito menos os irmãos menores, adolescentes. Tumultua a vida... Sinto isso com as minhas filhas no colégio, até hoje. Uma pessoa pública atua na vida da família inteira, desarticula todo o mundo, coloca o pessoal em situações...


PLAYBOY — O que, especialmente? As meninas gostariam de dar uma volta com você a pé pelo quarteirão, mas se saírem logo junta gente — é isso?


WANDERLÉA — Não, não é isso. Não estou questionando isso, de ser famosa e acontecer um tumulto em volta da gente nos lugares públicos. Falo de uma referência obrigatória que os familiares carregam em sua própria vida, mesmo quando você não está perto. As pessoas se tornam elas e mais vo­cê, como uma sombra. São coisas que fui percebendo depois. Uma irmã mi­nha que fez Educação Física conta que tentou se anular um pouco na faculda­de, para passar despercebida. Outros curtiam um outro tipo de música, para não haver confusão possível, para não serem tratados sempre como a irmã ou o irmão da Wanderléa. Tentativas para escapar das brincadeiras, dos ape­lidos, de serem apontados.


PLAYBOY — O que você acha que foi esse sucesso todo da Jovem Guarda? É engraçado que hoje ela seja vista histo­ricamente como um movimento de rebeldia: se a gente reparar na roupa do Roberto Carlos, do Erasmo e de ou­tros artistas da épo­ca, vai ver o pessoal metido nuns terni­nhos apertados, com golas sufocan­tes — justamente o inverso de uma imagem de liber­dade.


WANDERLÉA — É que eles foram na moda dos Beatles, mais inglesa, mais bem-comportada que a moda ameri­cana dos couros, jeans e camisetas.


PLAYBOY — Mes­mo nas músicas. O Erasmo Carlos, que era o Tremendão, tinha uma que dizia assim: "Eu ganhei um canguru que me leva pra lá e pra cá / Ele é tão ensinado que só falta falar." Era uma estra­tégia para ganhar também o público infantil ou foi só acontecendo?


WANDERLÉA — Não era estratégia, aquilo era o nosso mundo também. Eu lia Bolinha, Luluzinha. Depois, a proposta da Jovem Guarda não era um rock pesado, metaleiro, era um negócio mais soft. Pode parecer ingê­nuo, mas nós acreditávamos que está­vamos fazendo um movimento de transformações, com nossos cabelos compridos, as botinhas, as minissaias. E estávamos mesmo jogando o Brasil nos anos 60 das grandes mudanças — você vê que nos outros países da Amé­rica Latina, onde não houve um movi­mento como o nosso, a juventude te­ve uma lacuna nesse período, sem uma cultura pop local. Abrimos uma estrada para a música brasileira, en­frentando o preconceito contra o uso da guitarra e outros instrumentos ele­trônicos — hoje parece brincadeira, mas na época havia até passeatas de protesto. Enfim, fizemos isso tudo, mas docemente, defendendo nossos valores sem romper com a geração anterior. Éramos daquele jeito, e quem gostasse vinha atrás.


PLAYBOY — Por que você acha que a Jovem Guarda trabalhou tanto a ima­gem de seus ídolos ligada a carrões, medalhões, pulseiras de ouro?


WANDERLÉA — Acho que pela nossa origem. Viemos todos da classe média mais ou menos baixa, tínhamos talvez essa insegurança de precisar demons­trar: "Olha aqui, eu venci." Eram to­dos sinais exagerados para que não fi­casse nenhuma dúvida.


PLAYBOY — Vocês ganharam fortunas nessa época?


WANDERLÉA — Ganhamos muito dinheiro, e certamente poderíamos ter ganho muitas vezes mais. Vivíamos mais dos shows e dos contratos com a TV Record. Eu recebia um pouco pe­los brinquedos e outros produtos lan­çados pela indústria, alguma coisa pe­las roupas oficiais e nada pelo número impressionante de confecções que en­chiam as lojas com cópias dos modelos desenhados pelo meu irmão Bill que eu usava. Ganhávamos pouco por isso, pagando o preço de vir na vanguarda, sem nenhuma experiência anterior. O Pelé foi à lona nessa mesma época, não é? Depois é que ele foi para os Es­tados Unidos e aprendeu como se usa­va o marketing, en­tão teve tempo de refazer a vida.


PLAYBOY — Quan­to vocês chegavam a ganhar por mês?


WANDERLÉA — Não tenho idéia. Hoje tenho uma noção muito maior de dinheiro, por­que sou eu que ad­ministro, controlo e recebo. Na época da Record, tudo era administrado pelo [empresário ar­gentino] Marcos Lá­zaro e ficavam uns acertos interminá­veis, uma coisa difí­cil de administrar. Ele não cuidava só da minha parte, cuidava dos cachês e salários de uma série de artistas. Ele me dava uma canseira... É um grande amigo meu até hoje, mas foi um período horrí­vel. Precisei contratar um contador pa­ra descobrir o que tinha para receber. Aí o contador ficava três dias sentado na ante-sala do Marcos Lázaro e vinha pedir demissão para mim: "Não dá, te­nho mais o que fazer." Eu contratava um outro, e repetia a história. Então eu contratava um advogado, que tam­bém não resistia à canseira. No fim, o máximo que eu conseguia era fazer uns vales, até um acerto de contas muito lá na frente. Uma coisa muito esculhambada.


PLAYBOY — Você disse que o Marcos Lázaro é seu amigo até hoje?


WANDERLÉA — Acho que uma pessoa só faz isso se a outra permite. Hoje, eu não permitiria.


PLAYBOY — Você acha que o rock brasileiro melhorou ou piorou com o tempo? Os músicos, por exemplo, ho­je têm mais técnica, independente­mente da qualidade dos equipamen­tos? Dá para comparar os Paralamas do Sucesso e os Jet Blacks?


WANDERLÉA — Eles não têm o patru­lhamento que nós tivemos. São mais soltos, mais livres. Eles fazem rock, mas podem fazer o rock de MPB, não se sentem estrangeiros fazendo músi­ca aqui. Podem usar uma percussão brasileira, entende? No nosso tempo, era mais complicado, os territórios eram mais demarcados. Além disso, a gente viveu uma época precária, em termos de tecnologia, com amplifica­dores a válvula — e não dá mais para falar em qualidade do som sem consi­derar o equipamento que se tem. Ho­je, cada artista pode ir lá para fora e descobrir um microfone com uma voltagem, uma curva que se adapte ao seu timbre e não sei o quê, são as suti­lezas todas de sonorizar sua voz, é uma coisa grandiosa. Nós fizemos o início, mesmo. Lembro de um espetá­culo que fomos fazer na Bahia — até o Raulzito, o Raul Seixas, fazia parte da banda local que me acompanhou. O show era num grande ginásio, lota­do de gente, e não tinha palco. A gen­te ficou em cima de um caminhão, que dava voltas devagarinho no giná­sio. Tudo no caminhão dando cho­que, se encostava a boca no microfone dava choque, a mão dava choque — e a gente rodeando o público. En­tão cantava num ponto "uma vez você falou...", e quando voltava ali estava fazendo "por favor, pare agora", uma outra música, e o pessoal só ouvia aquilo ali perto dele, do outro lado não se ouvia nada. E mesmo as TVs, no Rio e em São Paulo, não estavam preparadas para reproduzir o instru­mental eletrônico. O primeiro pro­grama que nos colocou no ar foi o Musical Tonelux, na TV Tupi, e eles com o maior receio da barulheira que íamos fazer — como sonorizar aquilo, o medo de aquilo apitar no meio da música. Estavam acostumados a lidar só com orquestras e regionais.


PLAYBOY — O programa Jovem Guarda, já na Record, era uma super­produção?


WANDERLÉA — Não sei como saía, co­mo aquilo ia para o ar. A gente estava sempre chegando de shows em algum lugar do país, muitas vezes chegava em cima da hora — e, às vezes, depois da hora. Aconteceu de o Erasmo Carlos apresentar o programa no lugar do Roberto, a todo momento olhando pa­ra as coxias e prometendo para a pla­téia: "Ele vai chegar! Ele está chegan­do!" Os diretores do programa, numa época o Carlos Manga, em outra o So­lano Ribeiro, ficavam loucos com aqui­lo, queriam que a gente chegasse pela manhã, ensaiasse... Mas era impossí­vel, e acho que isso ajudou a esvaziar o programa — um cantor repetia a mesma música durante meses, todo do­mingo, simplesmente porque era a que ele tinha ensaiado com a banda que teria de acompanhá-lo. E as con­dições técnicas... Hoje você tem vários microfones para sonorizar uma bate­ria, uma série de condições — os pro­gramas são editados, o som mixado. Eu escuto o que a gente fazia trinta anos atrás e penso: gente, com um mi­crofone só, é um milagre essa qualida­de de som... Quem participou da TV nessa época, em que quase tudo era ao vivo, pegou jogo de cintura para fa­zer qualquer coisa dali para a frente.


PLAYBOY — E os camarins, refletiam esse nervosismo?


WANDERLÉA — Não, eram uma ale­gria só. Uma festa, todo o mundo se trocando, conversando. Nos dias dos programas especiais, que reuniam to­do o elenco de shows da Record, eu adorava ficar no camarim ouvindo a Isaurinha Garcia contar as histórias do Walter Wanderley [tecladista e ex­-marido de Isaurinha Garcia, cantora célebre pela dramaticidade de suas in­terpretações], contando aqueles amo­res, eu achava aquilo tudo fantástico, ela chorava muito. Aí passava em ou­tro camarim, era o Caçulinha contan­do piada com um grupo e aí já era outra história. Ia até a maquiagem e encontrava não sei quantos, o Golias, a Hebe Camargo. Aí entrava o Chico Buarque e eu ficava assustada, olhan­do aquele tipo de sapato que meu avô usava — que hoje é até moderno, fechado com aquele cadarço, eu achava uma coisa tão pesada, séria, ele tão menino com aquele sapatão amarrado.


PLAYBOY — Os grupos se misturavam ou havia rivalidades à flor da pele?


WANDERLÉA — A gente convivia bem, muitas vezes alguém de um gru­po ia cantar no programa do outro. Mas a Elis Regina, de quem depois fi­quei muito amiga, questionava muito o nosso sucesso todo, porque a gente veio revolucionar o showbizz brasilei­ro, que era uma coisa bem arcaica, bem primária. Nós da Jovem Guarda trouxemos um outro pique para um mundo que era muito mais contido, em todos os sentidos — na relação com o público, no volume do som, no dinheiro envolvido. Surgiam as com­parações e ela dizia: "Como é que vem essa garotada de cabeludos, de repente ganhando muito mais que a gente?" Nós éramos os megastars nacionais. Nunca tinha se visto uma ex­plosão de popularidade tão grande no Brasil.


PLAYBOY — Mas espere um pouco: a Jovem Guarda não foi o primeiro fe­nômeno pop no Brasil. Antes dela as multidões já rasgavam a roupa de Or­lando Silva, Cauby Peixoto...


WANDERLÉA — Mas não tinha televi­são. Rasgavam a roupa, mas a coisa se limitava aos fãs na porta da Rádio Na­cional. A televisão provoca uma rea­ção, uma loucura em massa, imediata­mente. Veja os atores, hoje. Uma atriz numa semana é uma cidadã comum, de repente faz uma minissérie e no dia seguinte não pode mais sair na rua. É um negócio muito maluco. Ela não se preparou para isso.


PLAYBOY — O sucesso aprisiona? A gente vê o Roberto Carlos, por exem­plo, que é um caso raro no mundo de se manter tanto tempo no topo, há dé­cadas nas paradas de sucesso — muitas vezes seus discos parecem burocráti­cos, seguindo apenas fórmulas.


WANDERLÉA — O Roberto Carlos é um artista genial. O que ele faz é mui­to difícil — tocar o povo mais simples, com poucas palavras. Você acha que isso é fácil? Tente, para ver como é di­fícil sintetizar suas mensagens de uma forma tão sucinta, tão simples. É o ta­lento deles, do Roberto e do Erasmo. Além disso, ele é capaz de vôos mais elaborados, como a melodia de Não Quero Ver Você Triste, que acho uma obra-prima. Mas acontece que o Ro­berto se impôs a tarefa de fazer um hit por ano, que acho uma carga muito pesada. Quando morei em Los Ange­les, na década de 70, conheci alguns artistas americanos — por exemplo, o Neil Diamond: durante seis meses ele não trabalha, viaja, passeia, compõe de vez em quando. Nos outros seis meses ele faz shows. Acho que um artista do tamanho do Roberto deveria se dar es­se espaço. Mas ele não tem tempo nem de criar o espetáculo de fim de ano para a Globo, faz uma coisa cor­rendo porque tem os compromissos no Brasil e no exterior, tem de cobrir os espetáculos todos que são vendidos, tem de criar suas próprias canções, gravar, administrar seus negócios. Isso é uma loucura. Ele trabalha incessan­temente. É um trabalhador. Acho até que se tirasse um pouco mais de férias, se não se impusesse esse ritmo — sei lá, se gravasse ano sim, ano não — sua música poderia... Bom, mas não estamos aqui para discutir, nem para jul­gar, a carreira dele.


PLAYBOY — Quando vocês namora­vam, os dois sonhando em ser artistas, já imaginavam que um dia poderiam chegar tão alto?


WANDERLÉA — Não. Mas eu sabia que seria artista. Sempre soube. Tan­to, que com 3 anos já cantava na rádio de Lavras.


PLAYBOY — Que imagens mais você tem da infância?


WANDERLÉA — Lembro de acordar cedo e ir para o quintal, onde o dia to­mava várias cores, várias temperatu­ras. Lembro de fi­car muito sozinha e também de muitas cenas com a família toda — havia um forno enorme no fundo da casa e, num dia certo por semana, nós fazía­mos pão, todos jun­tos, num clima bem comunitário, boni­to. Os cheiros do fogão a lenha, das frutas no pomar... E algumas coisas es­tranhas, como num filme: havia uma comunidade de le­prosos nos arredo­res de Lavras. Eles andavam em burri­cos e tocavam um sino para avisar a cidade que estavam vindo buscar algum alimento — o to­que do sino era pa­ra que as pessoas fechassem as jane­las e as portas. Mi­nha casa ficava numa rua de passagem e era o único local em que eles sabiam que podiam parar. As empregadas iam lá para a frente e davam água, ou o que eles quisessem. Uma vez lembro que minha mãe preparou um prato enorme para um homem vestido com uma capa. Ele comeu e, no final, pe­diu permissão para quebrar o prato. Levantou um pedaço da capa e mos­trou o braço todo enfaixado. A minha mãe, que não tinha identificado esse homem como um leproso, consentiu. Todo mundo tinha preconceito, medo de ser contaminado pela doença, por isso inutilizava tudo o que era tocado por eles. Poucos anos depois, quando a gente se mudou para o Rio de Janei­ro, aí já me vejo ainda bem pequena viajando de avião, o vestido cheio de nervuras, anágua, sapatinhos de ver­niz, casaquinho de pele branca e boi­na vermelha, a caminho do programa de aniversário do Clube do Papai Noel, em São Paulo. Eu era uma estre­linha infantil, muito bem-sucedida — cantava no Clube do Guri, da TV Tu­pi, e tinha vencido o concurso da mais bela voz infantil da TV Rio.


PLAYBOY — O que você cantava, na­quele tempo?


WANDERLÉA — Comecei a cantar músicas em castelhano, que uma vizi­nha espanhola me ensinava. Umas fantasias espanholas, como Violetas Imperiais ou a mexicana Granada... Não existia repertório infantil. Então eu cantava aqueles boleros todos que faziam sucesso no Brasil, do Lucho Gatica, do Bienvenido Granda, tudo muito dramático. E assumia um estilo empostado, grave — eu me dava gran­des responsabilidades quando meni­na, levava a carreira muito mais a sério do que levei depois, no tempo da Jovem Guarda.


PLAYBOY — Como assim?


WANDERLÉA — Sempre tive um vozei­rão. Depois, na adolescência, passei por um problema de mudança de voz. Dei um agudo e saiu uma coisa horrí­vel, fininha. Até então eu tinha grande confiança nos meus dotes vocais, mas a partir daí fiquei aterrorizada, com muito medo de cantar. Deveria ter pa­rado um tempo, mas não tinha nin­guém para me assessorar e fui levan­do. Virei crooner de orquestra com 14 anos. Quando fui gravar meu primei­ro disco, tive de en­golir todo aquele vozeirão para can­tar mais baixo, mais moderno — era a época da bos­sa-nova, do twist, e a gente precisava fazer uma vozinha menor, sem empos­tação. Mudou mi­nha tessitura vocal, sem que eu perce­besse. Mas tudo is­so era uma técnica adquirida — cantar os rockinhos era menos natural do que soltar a voz. Eu dominava mais o outro gênero, mas foi nesse que aca­bei me tornando conhecida, não é engraçado isso?


PLAYBOY — O Exército do Surf era mais difícil, que Granada?


WANDERLÉA — Pa­ra mim, era. E foi talvez a partir daí que passei a não ter tanta seriedade com aquilo que fazia. Tinha encontrado uma forma de can­tar aqueles rockinhos e baladas, e achei que podia me divertir, cantando e dançando isso tudo livremente.


PLAYBOY — Mas um pouco dessa fase dramática apareceu ainda na época da Jovem Guarda. Quando cantava "ago­ra você vem dizendo... adeus", o seu "adeus" era um pouco tremido.


WANDERLÉA — É verdade! Na minha primeira gravação dessa música, ainda havia resquícios dessa minha fase in­fantil, tremia a voz no final. Para fazer o rock, tinha de ir limpando isso. Eu limpava, mas de vez em quando escor­regava.


PLAYBOY — E como foi que você aprendeu a dançar daquele jeito?


WANDERLÉA — Era meio ousado para a época, não é? A mão junto ao pél­vis... propunha mesmo uma coisa de dança sensual, um pouco o que o Mi­chael Jackson faz hoje. Na época fica­va todo o mundo... Imagine: a pacata filha do seu Salim... E, taí, essa dança talvez tenha uma origem na música árabe que os meus tios colocavam pa­ra ouvir, nunca tinha pensado nisso, mas pode ser até que aquele passinho que eu fazia na Jovem Guarda [coloca as duas mãos sobre o alto da coxa esquer­da] seja uma coisa adaptada da coreo­grafia da dança do ventre, um negó­cio inconsciente. Sou uma dançarina de música árabe, devo ter sido em ou­tras encarnações. Porque se existe uma música que me energiza de mo­do fantástico é música árabe. Sempre gostei muito de dançar, mas a música árabe é a única que me toma. Eu fico tomada.


PLAYBOY — O seu pai tentou impedir sua carreira?


WANDERLÉA — Ele chegou a impedir, quando eu era garota. Nessa fase, o pessoal da rádio e da televisão tentou mudar o meu nome, porque Wander­léa Salim não parecia muito bom. En­tão no Programa Paulo Gracindo da Rá­dio Nacional fizeram um concurso, as pessoas escreviam para lá e sugeriam um nome para mim. No subúrbio on­de eu morava ficou todo o mundo en­volvido com aquilo. Me lembro que um dia entrei na padaria para com­prar alguma coisa, um guaraná caçuli­nha ou umas balas tofe, sei lá, aí saiu lá de dentro um padeiro todo sujo de farinha de trigo e limpando a mão no avental. Ele me conhecia como filha do seu Salim, e disse: "Olha, eu estava pensando aqui... o que você acha de Solange Maria?" [Risos.]


PLAYBOY — Seria mais ou menos co­mo aquele brasileiro que cantava as músicas do Trini Lopez, usando o no­me Prini Lorez.


WANDERLÉA — Agradeci, mas não me sentia precisando de outro nome. Eu tinha tanto orgulho de ser Wanderléa, filha do seu Salim, dentro daquela li­nhagem de Wanderley, Wanderlene... Quando a gente dizia o nome dos fi­lhos todos, enchia o peito [fala muito rápido]: Wanderley, Wanderlene, Wanderbele, Wanderli, Wanderlan, Wan­derléa, Wanderbil, Wanderte e Wan­derlou... Aí o meu pai decretou: "Está na hora de acabar com essa história. Você não vai mais cantar, não vão mais mexer com a nossa família." Me apa­nhou pelo braço, me levou até a rádio e falou: "Minha filha nasceu Wander­léa Salim, vai morrer Wanderléa Salim e acabou." Justo quando eu estava pa­ra gravar pela primeira vez, com uns 12 anos de idade.


PLAYBOY — E como foi que você con­seguiu ser crooner com 14 anos?


WANDERLÉA — Eu fugia. Meu pai sempre foi de dormir muito cedo. Aí eu e meu irmão Wanderley ficávamos esperando um toque da minha mãe, que passou a ser nossa cúmplice nes­sas fugas. A gente ia até a garagem, que ficava um pouco longe, e pegava o Aero-Willys do papai.


PLAYBOY — Mas qual era o interesse do seu irmão?


WANDERLÉA — Ele queria ir dançar nos clubes. Na verdade, tudo começou com ele... Um dia, meu irmão Wan­derley entrou em casa correndo, me procurando. O Olaria, clube que ele freqüentava, ia participar de um con­curso de quadrilhas, numa festa juni­na envolvendo vários clubes da Zona Norte. Uma garota do grupo do Ola­ria tinha destroncado o pé, ou algo as­sim, e não poderia mais participar da quadrilha. O Wanderley lembrou que eu adorava dançar e me chamou para substituir a menina. Tive de aprender aquilo tudo correndo, recebi reco­mendações de todo o mundo, eles le­vavam tudo muito a sério, "não pode fazer isso, não pode fazer aquilo", que­riam ganhar o concurso de todo jeito. Compenetrada de toda a responsabili­dade, aprendi tudo muito rápido. O concurso era no Social Ramos Clube e o júri estava cheio de personagens im­portantes, como o [compositor] Lamar­tine Babo. Eu tinha um sapato sem so­la, parecido com sapatilha de balé, e achei que aquilo seria apropriado para dançar a quadrilha, mas na hora cho­veu e eu comecei a escorregar que foi uma loucura. Quando as pessoas me davam a mão, eu escorregava e elas tentavam me segurar. Quando vi que ia arrasar a apresentação deles, sabe o que eu fiz? Anarquizei a quadrilha to­da, fiz um personagem como se fosse uma matuta que não soubesse dançar — escorregava, caía, segurava a saia. Comecei a fazer um tipo. Acabou a apresentação e o pessoal da quadrilha me cercou lá trás, achei que iam bater em mim, estavam todos indignados. Mas o que foi que aconteceu? Nós ga­nhamos a quadrilha, por minha causa [risos]. O júri achou tudo muito origi­nal, como se nós tivéssemos armado aquilo, ensaiado. Com essa conquista, fui recebida no clube como uma es­trela. Pouco depois disso o meu ir­mão me procurou de novo. Queria que eu participasse de um concurso chamado Miss Koleston.


PLAYBOY — Miss o quê?


WANDERLÉA — É o nome de uma tin­tura de cabelo. Fui lá, cortaram o meu cabelo bem curto, bem fashion, todo picado, tingiram de louro e ganhei o concurso. Miss Olaria. A partir daí, eu teria de estar presente aos concursos dos outros clubes, até chegar à final. Comecei a achar interessante, porque em cada concurso a festa era animada por uma orquestra. Mas, enquanto fi­cavam todos em volta da competição, eu estava vidrada com o que estava acontecendo no palco, com a orques­tra. Num sábado, estava tocando urna banda chamada Jayme e Sua Música, que fazia muitos bailes no Rio. Eu numa mesa, me sentindo ridícula com aquele cabelo louro. De repente, sem falar nada para ninguém, me levantei e subi no palco. Peguei o microfone e ninguém entendeu nada, os músicos ficaram perdidos, se perguntando quem era eu, se eu ia falar alguma coi­sa. Eles estavam no meio de uma sele­ção de sambas e naquela hora ficou só a percussão, tum, tum, o resto da banda na expectativa. E comecei [cantaro­lando]: "O mulata assanhada que pas­sa com graça fazendo pirraça..." A banda foi se ajeitando, entrou primei­ro um, depois o outro, e no fim eles todos estavam me acompanhando. Era uma banda ótima, toda swingada. Quando acabou a música, o maestro Jayme se aproximou, dizendo baixi­nho: "Tá ótimo, tá ótimo, sabe mais uma?" Pensei um pouco e comecei, de novo: "Guarda a rosa que eu te dei, es­queça os males que eu te fiz..."


PLAYBOY — Que força carregou você assim até o meio do palco?


WANDERLÉA — Um impulso mesmo, uma espécie de necessidade. Talvez al­go para me equilibrar, entende? Deixa eu ver se consigo me explicar: sou uma pessoa séria, conseqüente. Mas o palco sempre foi um lugar de escapes, ali nunca tive pudores, eu sempre me permitia enlouquecer em cima do pal­co. Sempre foi um lugar de fantasias.


PLAYBOY — Como uma outra di­mensão?


WANDERLÉA — Sempre fui muito tí­mida, tagarela em casa, mas retraída em público. Ainda hoje. Fico impres­sionada com essas pessoas que fazem testes para ser artista — em qualquer teste eu seria anulada, porque se não for para valer não destravo.


PLAYBOY — Já em público...


WANDERLÉA — Sempre com muito público é fácil. O artista é um exibicio­nista mesmo...


PLAYBOY — O que aconteceu naquela noite, quando você terminou de cantar?


WANDERLÉA — Desci do palco, aplaudida e tal, um sucesso. Quando fomos para casa, meu irmão disse: "Olha, amanhã é dia do Jayme tocar no Olaria." Me animei toda e disse que queria ir com ele ao clube, no dia seguinte.


PLAYBOY — Seu irmão era uma bra­sa, hein?


WANDERLÉA — Animadíssimo. Fui ao baile com ele no dia seguinte, e assim que a banda começou a tocar, sugeri: "Wanderley, vamos dançar?" Fui para a frente do palco para me mostrar para o pessoal da orquestra, para ver se eles lembravam de mim do dia anterior.


PLAYBOY — E eles lembraram?


WANDERLÉA — Quando o Jayme me viu, fez um sinal para ir aos bastidores depois, para falar com ele. Na semana seguinte eu já era crooner da orques­tra dele, junto com um outro cantor, o Luís Keller, que depois virou um gran­de amigo meu e fez a versão de Pare o Casamento, um dos meus grandes su­cessos na Jovem Guarda.


PLAYBOY — Nesse tempo, havia muita droga entre os jovens?


WANDERLÉA — Nunca vi.


PLAYBOY — Nem na Jovem Guarda?


WANDERLÉA — Não, não. Uma vez, depois da época da Jovem Guarda, fui a uma festa em que estava todo o mundo doido, dopado mesmo. Um pessoal estranho, de bata, sentado no chão, falando mole e se mexendo muito devagar.


PLAYBOY — Afinal a festa de arrom­ba!


WANDERLÉA — [Rindo.] Devia ser a verdadeira festa de arromba. Eu me senti a maior caretona ali.


PLAYBOY — Não experimentou nada?


WANDERLÉA — Só experimentei ma­conha alguns anos depois, num estú­dio de gravação. Eu estava gravando e os Novos Baianos esperando o ho­rário deles. Mas eu estava péssima, o Zé Renato numa casa de saúde, eu ti­nha perdido o meu pai, uma sucessão de coisas. Não conseguia gravar de jeito nenhum. A certa altura a Baby Consuelo [Baby do Brasil] me cha­mou no banheiro e disse: "Olha, eu tenho uma coisa aqui", e tirou um charutão imenso, prometendo: "Você vai relaxar, vai gravar rapidinho." Eu estava mesmo no fim do meu horário no estúdio, resolvi experimentar. Comecei a tossir e ela disse: "Não, não é assim — você puxa e segura" [risos]. Tentei umas quatro vezes, achei que não estava sentindo nada, que aquilo não fazia efeito em mim. Quando saí do banheiro, olhei para a mesa de som e vi todos aqueles botões giran­do no ar. Tive de me segurar para não cair. Meu irmão olhou para mim, percebeu na hora o que tinha aconte­cido e me arrastou dali. Me colocou dentro do carro junto com minha se­cretária e começou a rodar comigo, Ipanema, Copacabana — eu falava o que me vinha na cabeça, esbravejava, punha a cabeça para fora da janela, olhava para cima e falava com Deus, um horror. Aquilo parou só de ma­drugada, quando meu irmão trouxe leite para mim... Fiquei com uma pés­sima impressão da maconha. Depois hospedei em casa uma amiga ameri­cana, que fumava dia e noite. Um dia ela estava em casa, rindo muito com uma amiga nossa, na sala. Passei para o quarto e fui falar com elas, para sa­ber o que era tão engraçado. Aí elas me passaram o cigarrinho e alguns minutos depois eu estava morrendo de rir. Olhava para o Cristo Redentor pela janela e ria, sei lá do quê. Expe­rimentei essa outra vez, vi que a via­gem provavelmente pode ser boa ou ruim dependendo do seu estado de espírito — e parei por aí as experiên­cias, porque sempre gostei de me sentir no controle das minhas emo­ções. Sou de encarar as coisas, sem estímulos nem nada.


PLAYBOY — Você é a favor ou contra a descriminação da maconha?


WANDERLÉA — Acho que tudo o que é proibido se torna mais atraente. Existem outras drogas piores, como o pó, que envolvem coisas químicas e fa­zem mal mesmo à saúde.


PLAYBOY — Você acha que suas fi­lhas vão viver num mundo melhor do que o nosso?


WANDERLÉA — Espero que sim. O ano 2000 está aí para grandes mudan­ças — mas não falo de tecnologia, computadores, realidade virtual ou sei lá mais o quê: falo de mudanças internas, de expansão. De cada ser humano, individualmente, aumentar os seus canais de percepção. Os fi­lhos em geral são melhores que a gente, eles vêm com uma percepção muita aguçada para coisas que demo­ramos a entender.


PLAYBOY — O que você, particular­mente, tem feito para isso?


WANDERLÉA — Trabalho com energi­zação, mentalização, todos os dias sozi­nha e uma vez por semana com um grupo. Não é uma religião, é um tra­balho espiritual. A partir da morte do meu filho, comecei a despertar para esse aprendizado, mais ligado ao ocultismo, pode-se dizer assim. O ho­rizonte se abre, é como se a gente ga­nhasse novos olhos. Mas não é algo de olhar para o seu umbigo e traba­lhar visando sua vida pessoal. A gente atua para a limpeza do planeta. Tra­balha com os elementais da natureza, a terra, o a água, o ar, o fogo, traba­lha com essas energias.


PLAYBOY — Mas trabalha como?


WANDERLÉA — São energizações, ba­sicamente. Existe um grande aprendi­zado para que a gente seja capaz de canalizar forças no sentido de interfe­rir num determinado ambiente. Por exemplo, fui muitas vezes em hospitais e centros de recuperação de aidéticos de São Paulo e do Rio, para acompa­nhar o tratamento do meu irmão Bill, que morreu um ano atrás. Hoje, a par­tir da imagem mental que tenho des­ses lugares, faço regularmente energi­zações não só dos pacientes como dos atendentes e dos médicos que estive­rem ali. Gosto de atuar em situações de tempestades, desabamentos, confli­tos entre nações — e também fora das situações de catástrofe. A gente pode ver um mar maravilhoso e fazer uma mentalização, num sentido mais geral, de harmonia. Individualmente, o tra­balho é limpar o campo energético das pessoas para que elas encontrem seu próprio caminho, livres das amar­ras que a vida vai colocando.


PLAYBOY — No palco, você também atua com essa preocupação?


WANDERLÉA — Não, ali é outra coisa. Se bem que, depois dos espetáculos, muitas pessoas — sem saber nada do que venho fazendo — dizem para mim: "Quando você entra, modifica a energia do local." Mas é muito desgas­tante tudo isso, porque normalmente eu vivo muito isolada, e na época dos shows há muita gente no camarim, os abraços têm campos de forças energé­ticas muito diferentes, que me abalam profundamente. Tento chegar em ca­sa o mais depressa possível para tomar um banho, um fantástico banho — que é que quando se entra na magia dos elementais da água, para limpar nossos quatro corpos.


PLAYBOY — Quatro?


WANDERLÉA — Você tem seu corpo físico, seu corpo etéreo, seu corpo mental e seu corpo emocional. O tem­po todo você tem que equilibrar os quatro.


PLAYBOY — Ao mergulhar nesse aprendizado místico, você conseguiu entender por que aconteceram tantas perdas na sua vida?


WANDERLÉA — Mas acontece na vida de tanta gente!... Depois que o Leo­nardo faleceu, me levaram na casa do Chico Xavier. Lá, pude ver que, en­quanto eu estava chorando a perda de um filho, outras pessoas choravam a perda de uma família inteira. A vida dos seres humanos aqui na Terra, com raras exceções, é bastante sofri­da. Eu tive uma vida generosa nos dois sentidos — coisas muito legais, ricas experiências, e grandes, imensas perdas. Perdi primeiro minha irmã mais velha, mas eu ainda era muito pequena. Quando houve o acidente com o Zé Renato na piscina e ele fi­cou paralítico, senti um tranco. Até então, eu praticamente só tinha co­nhecido o lado bom da vida — eu ti­nha tudo, minha carreira, o sucesso, era jovem... Aquele golpe foi como se alguém estivesse me dizendo: agora acabou a brincadeira; vamos entrar um pouco na vida.


PLAYBOY — Você tem uma história pessoal trágica com piscinas — já con­seguiu entender por quê?


WANDERLÉA — Não. Mas algum dia vou descobrir. Devo ter alguma coisa cármica com água. Quando eu era bem pequena, naquele tempo em que a gente ainda morava em Minas, mi­nha família toda passou uma tempora­da no Rio. Um dia, uma mulher malu­ca me raptou na porta de casa, onde eu estava brincando. As pessoas saíram correndo atrás dela e ela escapou para a praia e foi entrando mar dentro co­migo nos braços. Eu poderia ter mor­rido, ali. O curioso é que, com essas histórias todas de água, eu nunca sou­be nadar. Aprendi um pouco agora, recentemente, quando minhas filhas entraram numa escola de natação, mas ainda não sei legal.


PLAYBOY — A maioria das pessoas que tivessem um acidente como o que aconteceu com seu filho na pis­cina nunca mais se aproximaria da água. E você continuou na casa por muitos anos, vendo todos os dias a piscina onde ele tinha morrido. Você estava lá havia apenas quinze dias, sem uma história com a casa... Isso não dá para entender: por que você resolveu ficar?


WANDERLÉA — Logo que aconteceu o acidente, meus amigos tentaram me tirar dali. Viajei, fui para vários luga­res, mas queria voltar, queria voltar sempre. E voltando vi que, apesar de ter vivido tão pouco tempo ali com meu filho, havia tantos sinais do que tínhamos feito — um abacateiro que nós plantamos, um cenário que olha­mos juntos... No tempo em que ele vi­veu, vi o mundo com seus olhos — só tinha olhos para ele e, se ele estivesse olhando o céu, eu olhava também e dizia: "Ah, você está vendo as estrelas, elas são lindas, não é?" Depois que ele se foi, eu não queria fugir, enterrar aquilo. Tentei lidar com a perda de outra forma.


PLAYBOY — Hoje, olhando sua vida toda, tudo o que você passou, as per­das e os ganhos, como é que você ou­ve os versos daquela música: a felicida­de até existe — ou não?


WANDERLÉA — Até existe... Momen­tos, eu acho. Tem momentos em que você tem certeza de que está no lugar certo, na hora certa, trocando energia com a pessoa certa... Dali a pouco vo­cê pode achar que está no lugar erra­do, com a pessoa errada, entendeu? [Risos.] Outro dia me contaram uma história bem legal, que talvez explique o que eu acho disso. Um sujeito subiu ao céu e disse que não agüentava mais a vida na Terra, que tinha um fardo muito grande para carregar. Jesus dis­se a ele: "Então você escolhe outro." O sujeito experimentou um outro fardo e continuou gemendo, experimentou mais um e também reclamou. Por fim escolheu um fardo mais jeitozinho, mais leve, pôs nas costas e disse, alivia­do: "Esse está bom." E Jesus, para ele: "Pois é, esse é o seu." [Risos.] Não é as­sim mesmo? Cada um segura o mique tiver condições de segurar.


POR GUILHERME CUNHA PINTO

FOTOS CACALO KFOURI


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