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ZAGALLO | MAIO, 1997

Playboy Entrevista


Uma conversa franca com o único tetracampeão sobre suas quatro Copas e a próxima, Romário, sexo, pão-durismo e, enfim, o aplauso da torcida


O brasileiro mais discutido dos próximos doze meses será um alagoano de 65 anos, que deixou Maceió, com os pais, aos 8 meses de idade para morar no Rio de janeiro e, na passagem dos anos 40 para os 50, se fez jogador de futebol no bairro da Tijuca com a camisa do América, antes de se transformar em ídolo do Flamengo e do Botafogo. Mário Jorge Lobo Zagallo — sim, Zagallo com dois "l" — é pago, e muito bem pago, para fazer o trabalho que 150 milhões de brasileiros invejam e fariam, com a maior alegria, de graça: escalar a Seleção que tentará, na França, conquistar pela quinta vez o título mundial de futebol.


Pelo menos até 12 de julho de 1998, quando será proclamado em Paris o último campeão mundial do milênio, Zagallo viverá entre o amor e o ódio dos mais apaixonados torcedores de todo o mundo, cada um com a própria Seleção na cabeça e, portanto, absolutamente convencido de que o Brasil só ganhará a Copa se estiverem em campo os seus onze preferidos. Na verdade, já no mês que vem o técnico estará sob a severa vigilância dessa multidão, durante o dificílimo Torneio da França, em Paris — quando o Brasil vai enfrentar ingleses, franceses e italianos e a não menos problemática Copa América, na Bolívia.


O homem que foi duas vezes campeão do mundo como jogador, em 1958 e 1962, uma como técnico, em 1970, e uma como coordenador técnico, em 1994, não tem saída: ou ganha o título pela quinta vez, o que deixaria o futebol brasileiro na indiscutível condição de campeoníssimo do século XX, ou voltará para o país como um fracassado. No Brasil, em matéria de bola, não há meio termo.


O desafio é proporcional ao sucesso da carreira de Zagallo, que chegou ao centésimo jogo à frente da Seleção principal do Brasil nos 3 a 1 sobre a Polônia, no Espírito Santo, em 26 de junho do ano passado, com um retrospecto sem comparação no futebol mundial — foram, até então, 72 vitórias, 23 empates e apenas cinco derrotas. Os "fracassos" do técnico Zagallo ornariam a biografia de muitos companheiros de profissão pelo mundo afora: um quarto lugar na Copa do Mundo de 1974 e o vice da Copa América em 1995, com a Seleção principal; o vice da Copa Ouro de 1996, disputada pelos primeiros times da América do Norte e da América Central, e a medalha de bronze na Olimpíada de 1996, com a Seleção olímpica.


O currículo de vencedor nem sempre lhe bastou, no entanto, para ter o reconhecimento dos brasileiros. Foi olhado por parte da opinião pública com certa desconfiança, principalmente depois do tricampeonato mundial conquistado nos piores tempos da ditadura brasileira, algo que demorou a entender, pois é pouco afeito às coisas da política. Curiosamente, ganhou o reconhecimento público quando voltou ao comando técnico da Seleção, depois da Copa do Mundo de 1994, como substituto do amigo Carlos Alberto Parreira. Antes, era tido como retranqueiro. Nos últimos tempos, vem sendo saudado como o homem que devolveu a criatividade e a ofensividade ao futebol da Seleção.


O tratamento que hoje recebe mudou o seu humor. Para melhor, é claro, como reconhece: "Eu tinha raiva das críticas que me faziam e que não eram justas. Então, embarcava na mesma onda e dava uma de teimoso. Respondia às críticas lembrando aos críticos que era um ganhador e, portanto, não tinha o que mudar." Mudou o quê? "Continuo sendo o mesmo Zagallo, mas tenho mais experiência, mais vivência, estou mais solto, vamos dizer assim, porque não tenho mais a raiva contida dentro de mim."


Pelé, parceiro em campo nas Copas de 1958 e 1962 e diletíssimo pupilo na Copa de 1970, tem uma explicação para o tardio reconhecimento da importância de Zagallo na história do futebol brasileiro: "Nós valorizávamos muito a individualidade, o drible, a jogada sensacional, éramos o país do jeitinho, da esperteza, da ginga. Nos últimos tempos, no entanto, o povo está mudando e passou a valorizar o trabalho, o espírito coletivo, a dedicação. E Zagallo sempre se destacou pelo trabalho, pela entrega ao grupo. E por isso que hoje ele está sendo mais valorizado".


A explicação do Rei do futebol, talvez escorada em sua visão de político e ministro do presidente Fernando Henrique Cardoso, comove Zagallo, quase o leva às lágrimas. Ele gosta de responder, em tom de brincadeira, quando lhe perguntam como era jogar com Pelé: "Não fui eu quem jogou com ele, foi ele quem jogou comigo. Afinal, sou mais velho, já estava no futebol há mais tempo". E não se esquece do que lhe disse o maior jogador de todos os tempos, ainda nos vestiários, depois dos 4 a 1 sobre a Itália na final da Copa de 1970: "Precisávamos estar juntos de novo para sermos tricampeões do mundo".


Não acha, é claro, graça igual na observação de outro velho companheiro, da Seleção bicampeã mundial e do Botafogo, o lateral Nílton Santos: "Não sei quem está mais rico com o futebol, se o Telê ou o Zagallo. Sei quem é mais pão-duro — os dois". Dinheiro, como bem mostra nesta entrevista, é assunto que Zagallo, formado em Contabilidade, sempre tratou a sério. Comprou o primeiro apartamento logo que assinou o primeiro contrato com o Flamengo, em 1952, mas o alugou e continuou morando com os pais e, depois de casado, com os sogros. Só foi comprar carro em 1958, já campeão do mundo. Quando jogador do Flamengo, ia de ônibus da Tijuca à Gávea, uma viagem de quase 1 hora de ida e outro tanto de volta. Econômico com o que ganhava, tem um lema: "Em futebol, pão-durismo quer dizer cabeça no lugar". Sempre endureceu na hora de negociar o contrato com os clubes, mas faz questão de lembrar: "O que um jogador de nível médio ganha hoje, logo em seu primeiro contrato com um clube europeu, é mais do que um ídolo do meu tempo ganhava em toda a carreira".


Para os padrões brasileiros, Zagallo é um homem rico, graças principalmente aos sete anos de trabalho como técnico no Kuwait, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes. Recebe algo em torno de 70.000 reais por mês da CBF, mora num condomínio luxuoso da Barra da Tijuca, onde cuida da forma física jogando tênis diariamente com amigos. Tem alguns imóveis, que não enumera, e uma sábia política de aplicação financeira: "É aconselhável ter sempre algum dinheiro disponível, pois os bons negócios aparecem quando menos a gente espera".


Pai de quatro filhos, dois homens e duas mulheres, avô de quatro netos, Zagallo é casado há mais de quarenta anos com a professora Alcina de Castro Zagallo, de quem fala com carinho. É claramente grato à retaguarda que lhe permitiu cuidar exclusivamente da carreira: "Minha atuação como pai foi muito prejudicada pela minha vida de atleta e, em casa, naturalmente a mãe passou a ter uma responsabilidade muito maior do que o pai na educação dos filhos".


Fora o joguinho de tênis de cada dia, o técnico da Seleção gosta de ir ao cinema, pelo menos uma vez por semana. No teatro é fã de Tônia Carrero e Paulo Autran. Não perde um hábito dos tempos de jogador: acorda cedinho, par volta das 7 horas. Começa o dia lendo o Jornal do Brasil e O Globo e, algumas vezes por semana, O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo. À tarde, vai à sede da CBF, no centro do Rio, onde passa 3 ou 4 horas por dia. É quase sempre ali que atende os muitos jornalistas que o procuram.


Para esta entrevista a PLAYBOY, Zagallo recebeu seu autor, o jornalista Roberto Benevides, editor de Esportes de O Estado de S. Paulo, em quatro manhãs seguidas, no prédio em que mora, no Rio, e, mais tarde, no hotel em que a Seleção se concentrou em Brasília antes de derrotar o Chile por 4 a 0. Benevides, que acompanha as andanças da Seleção Brasileira desde 1989, fala desses encontros:


"Conheço Zagallo há mais de dez anos, estive muitas vezes com ele, então comentarista de TV, na Copa do Mundo de 1990, e tenho uma convivência mais ou menos assídua com ele desde que, em companhia de Carlos Alberto Parreira, voltou a trabalhar na Seleção. Não é fácil entrevistar o homem. Mas não há personagem mais solícito no futebol brasileiro. Zagallo sempre atende os repórteres que o procuram, conversa o tempo que eles quiserem, mas dificilmente abre o jogo. Costuma brincar com os mais conhecidos: 'Vocês perguntam o que querem e eu respondo o que quero'. Raramente não é assim.


"Entrevistar Zagallo num lugar mais ou menos público — como um cantinho escondido no restaurante do hotel em que se concentra a Seleção, por exemplo — é quase impossível. Cinco minutos depois de começar a entrevista, a mesa é cercada por dezenas de repórteres e fotógrafos pouco dispostos a respeitar a exclusividade da conversa. Em Brasília, o próprio Zagallo ajudou-me a afastar os mais insistentes até que esta entrevista chegasse ao fim.


"Nossas conversas renderam mais de 10 horas de gravação e revelam alguns segredos que muito raramente este retranqueiro da palavra deixa escapar. Vamos conferir?"


PLAYBOY Quando você começou a jogar futebol, nos anos 50, nem as famílias mais pobres queriam um filho jogador. Hoje em dia, muitos pais dariam tudo para ver o filho jogando como profissional. O que mudou?


ZAGALLO Quando comecei a namorar, em 1952, escondi que era jogador até da namorada. Falei que trabalhava com o meu pai. Se contasse que jogava futebol, o namoro nem começava.


PLAYBOY Como foi que você conseguiu esconder?


ZAGALLO Ela estava no último ano do Instituto de Educação e eu fazia um curso de datilografia ali perto. Então, eu dizia que trabalhava com meu pai e ela me via estudando datilografia. Tudo casava. Seis meses depois que começamos o namoro, eu estava com ela na Praça Saenz Peña [no bairro carioca da Tijuca] e um cunhado dela, rubro-negro doente, viu a gente de braços dados entrando num cinema. Chegou junto: "Você está namorando o Zagallo, jogador lá do Flamengo, não é?"


PLAYBOY Qual foi a reação dela?


ZAGALLO Foi um deus-nos-acuda. Os pais chiaram. A sorte foi que, em seis meses de namoro, ela tinha uma idéia de quem era eu, não era aquela idéia que se fazia de um jogador de futebol. Aí a coisa caminhou. Passei a namorar na porta da casa, veio o noivado e depois o casamento, que já dura 42 anos.


PLAYBOY Hoje, os profissionais do futebol são bem aceitos socialmente. O mundo do futebol é melhor agora do que naquele tempo?


ZAGALLO Algumas coisas mudaram para melhor. Na minha época, só se jogava aos domingos e o Fleitas Solich [técnico paraguaio que comandou o Flamengo na campanha do tricampeonato carioca de 1953/1955] inovou em matéria de concentração. Nós jogávamos no domingo e voltávamos para a concentração. Na segunda-feira, íamos para casa. Na terça, treinávamos de manhã. Na quarta, à tarde, fazíamos o coletivo e dormíamos na concentração para treinar na quinta. Aí íamos para casa e voltávamos na sexta à tarde para dormir duas noites seguidas na concentração. Era tempo demais.


PLAYBOY Os outros times passaram a se concentrar também?


ZAGALLO Acabou pegando. A imprensa deu muita força porque o Flamengo foi tricampeão. Mas não era benéfico. A gente ficava no segundo andar e o Solich, embaixo, isolado, no apartamento dele. Havia um mesa de sinuca, mas jogar cartas era proibido.


PLAYBOY Era proibido porque corria dinheiro?


ZAGALLO Exatamente. O pessoal ficava escutando radinho, mas ele desligava a luz. Começaram a levar rádio de pilha. Passava e mandava desligar. Dava umas incertas e mandava: "Apaga a luz". O pessoal tinha cadeado nos quartos, mas o Solich retirou e ordenava que as portas ficassem abertas.


PLAYBOY O jeito era dormir, então?


ZAGALLO Que nada. Começou a correr o jogo, pif-paf. Ele desligava a luz geral. Só tinha luz no quarto dele. O que acontecia? Quando a luz do quarto dele apagava, foi que tinha ido dormir. Os jogadores acendiam uns tocos de vela e jogavam pif-paf até de madrugada. O time foi campeão, foi bi, foi tri, mas garanto que tanta concentração não é uma boa.


PLAYBOY Ninguém fugia da concentração?


ZAGALLO O Solich desconfiou de que alguns estavam fugindo aos domingos, depois do jogo, e foi aí que mandou tirar os cadeados. Um grupinho saía para a boate. Havia jogador que fazia um boneco com o travesseiro para deixar no quarto. Como ficava tudo escuro, ele olhava, via lá um vulto e ia embora. Um dia, desconfiou, entrou lá e pegou todo o mundo que foi à boate. Quem fugiu foi punido.


"Um grupinho saía para a boate. Havia jogador que fazia um boneco com o travesseiro para deixar no quarto"

PLAYBOY Quem eram os fujões?


ZAGALLO Não vou citar nomes. Eu não ia, o Joel [ponta-direita que chegou a jogar na Copa do Mundo de 1958 antes que Garrincha fosse efetivado como titular da Seleção] não ia, muitos não iam. Só estou contando essa história porque isso foi em 1953. Acho que nem nos jornais da época saíram essas coisas.


PLAYBOY Acontecia a mesma coisa em outros clubes?


ZAGALLO Acontecia. Era comum na minha época de jogador. Desde que sou treinador, deixo jogar cartas na minha frente. Não quero que joguem nos quartos, mas às vezes fecho os olhos. Até a comissão técnica da Seleção joga biriba, canastra. Nós jogamos e deixamos jogar, mas a atual geração não é muito de jogo.


PLAYBOY Será que tinha mais graça quando era proibido?


ZAGALLO Pode ser. No Botafogo, quando o treinador era o Geninho, havia dois jogadores que jogavam sinuca o dia inteiro. O Geninho era tido como malandrão, vinha da polícia, dizia: "Não fica de malandragem comigo, não. Enquanto vocês estão indo, já voltei há muito tempo. Só pode apostar milzinho, bota milzinho na caçapa". E o pessoal ficava jogando e apostando a maior grana. É o tal negócio: quem pensa que sabe tudo não sabe nada. Na caçapa tinha 1.000 [cruzeiros]. Por fora, corria muito mais dinheiro. Ninguém é mais malandro do que ninguém. É verdade que, com o que o pessoal ganha hoje, ninguém vai ficar apostando para tirar dinheiro do outro. O jogo é apenas uma distração.


PLAYBOY — Você exige que os jogadores durmam em horário determinado?


ZAGALLO — Não. Quando a Seleção se concentra, é servido sempre um lanche às 10 e meia, 11 horas da noite. Quero todo o mundo nos quartos antes da meia-noite, mas não posso obrigar o cara a dormir. Há gente que tem o costume de dormir mais tarde. Normalmente, nem treinamos na parte da manhã. Quando vamos treinar nos dois períodos, às 11 horas eles vão para o quarto, mas dorme quem está com sono. Não vou lá desligar a televisão. A responsabilidade é de cada um, mas tudo tem um limite, é claro. Não vou deixar o cara ficar batendo papo comigo até 2 da manhã. Eu posso ficar, mas o atleta tem de correr no dia seguinte, é diferente. Então, sobe para o quarto. Às vezes, um vai para o quarto do outro e fica batendo papo, mas sabe a hora de dormir porque, no dia seguinte, tem de treinar.


PLAYBOY — E como você encara uma fugidinha para o quarto da outra?


ZAGALLO — Falam muito disso. Até em termos de Seleção Brasileira, falavam na Copa do Mundo. Se é verdade ou mentira, não posso afirmar.


PLAYBOY — Na Copa, não era um pouco difícil?


ZAGALLO — Pois é, mas eu soube que saíram algumas notícias sobre isso. Nós nos concentramos isoladamente, em hotéis fechados, para evitar esse problema. Quando você vai para um hotel que tem doze, quinze andares, o sexto andar é todo da concentração, mas o elevador é todo nosso. [Grande gargalhada.] Eu vou ficar de babá, às 3 horas da manhã, vendo se alguém vai sair do quarto? Acho que cada um tem a sua responsabilidade. O jogador é um homem, não é um verme. Um cara que vai para uma Copa do Mundo e foge de um andar para o outro não é digno de vestir a camisa da Seleção Brasileira. Você pode deixar perfeitamente de ter relações sexuais por um mês, pois o objetivo de cada um, ali, é o título.


PLAYBOY — E nos dias de folga?


ZAGALLO — Na folga, o cara vai tirar o sarro que tiver de tirar, mas não é dentro de uma Copa do Mundo que vai dizer: "Ah, eu sou macho, preciso ter relação todo dia". Não é por aí. Tudo tem o seu momento. Sexo é gostoso, sem dúvida. Quem é contra está na contramão. Agora, concentrado para participar de uma Copa, como ficamos em Los Gatos [cidade da Califórnia em que a Seleção Brasileira permaneceu até as semifinais da Copa de 1994, quando foi para Los Angeles], não é para o cara sair gastando energia. O jogador que sai para fazer sexo não faz simplesmente sexo, acaba perdendo uma noite de repouso. No dia seguinte, tem treinamento e gasta mais energia. Isso vai prejudicar todo o grupo.


PLAYBOY — Como são as folgas nas competições grandes, como a Copa do Mundo e a Olimpíada?


ZAGALLO — Nós damos dia livre para quem quiser fazer compras. Quem quiser, compra; quem não quiser, não compra. Quem quiser ir ao ninho do amor, vai. Cada um faz o programa que quiser, mas não damos noite livre.


PLAYBOY — Por quê?


ZAGALLO — As noite livres entram pela madrugada. O jogador volta às 2, 3 horas da manhã. Não é por aí. Nós temos um limite de horário. Sexo faz parte da vida e é necessário, mas no momento certo. Se alguém escapar fora dos horários, vai ser punido. Se pegarmos um cara fazendo isso, não tenha dúvida de que ele volta para casa.


PLAYBOY — Você prefere ficar com 21 jogadores a manter no grupo o atleta sexual?


ZAGALLO — Não tenha dúvida. Esse cara estará prejudicando o trabalho. Competição é competição.


PLAYBOY — Vamos voltar um pouco no tempo: dizem que, na Copa do Mundo de 1958, houve jogador brasileiro que deixou filho na Suécia.


ZAGALLO — Isso foi no dia da folga. No dia da folga, pode fazer filho. A Suécia daquela época era o Brasil de hoje. A garota de 16, 17 anos, se quiser, tem o mesmo direito de um garoto de 16, 17 anos. Na Suécia, já havia essa liberdade em 1958. Aqui era um pudor danado, não havia essa liberdade. Para fazer sexo era uma dificuldade, a não ser que você fosse para a zona ou encontrasse umas gatas-pingadas. Na Europa, principalmente naqueles países nórdicos, a meninada toda não tinha problema nenhum. Sexo era uma coisa comum, normal, como almoçar e jantar.


PLAYBOY — Você acha que, no Brasil, o sexo já é tratado com tal naturalidade?


ZAGALLO — As coisas mudaram, mas as culturas são muito diferentes. Por aqui, ainda temos gente que leva as coisas para um lado totalmente diferente do sadio. Ouve-se muita safadeza: "Comi fulana, comi sicrana". Para conviver naturalmente com a liberação sexual, nossa cultura vai levar tempo.


PLAYBOY — Com todas as dificuldades daquele tempo no Brasil, não havia assédio das mulheres aos jogadores mais famosos?


ZAGALLO — O assédio cresceu, em quantidade e em qualidade. Os costumes mudaram, a população aumentou, a Seleção é mais vista, principalmente por causa da televisão, mas os artistas e os atletas sempre foram procurados pelas mulheres. Acontece que, antigamente, como o jogador não era aceito na sociedade, a mulher tinha receio de ir ao encontro com ele. Hoje, é bacana a menina estar com fulano. Sai na imprensa. Se ela namorar o Ronaldinho, então, vira estrela. É por aí a coisa.


"Hoje, é bacana a menina estar com fulano. Sai na imprensa. Se ela namorar o Ronaldinho, então, vira estrela"

PLAYBOY — Hoje, o movimento de meninas na porta do hotéis que hospedam a Seleção é impressionante.


ZAGALLO — É, é. Antigamente, não tinha isso. Hoje, a gente vê mãe e filha esperando os atletas para pedir o autógrafo. Mas é tudo sem maldade, é até bacana essa comunicação.


PLAYBOY — Como é que você, sempre tão discreto, respondia — ou melhor, responde — ao crescente interesse feminino pelos astros do futebol?


ZAGALLO — Comigo, realmente, as coisas sempre foram mais discretas. Eu não gosto de alarde. Além disso, me casei cedo. Conseqüentemente, esse problema ficou superado.


PLAYBOY — Superado?


ZAGALLO — Eu me casei com 22 para 23 anos. Antes, porém, é evidente que aproveitei um pouco a vida, já era jogador do Flamengo...


PLAYBOY — Você está querendo dizer que teve pouco tempo para aproveitar a fama e que nunca tirou proveito da condição de campeão do mundo? Não está escondendo o jogo?


ZAGALLO — Não, não estou escondendo o jogo, sempre tive uma boa estrutura e, depois de casado, não havia uma necessidade maior nesse aspecto. Que havia procura, havia.


PLAYBOY — Vamos a uma clássica pergunta de PLAYBOY: você ainda se lembra de como foi a primeira vez?


ZAGALLO — [Rindo.] Bota tempo nisso, rapaz. Eu era garoto. Tinha o quê? 16, 17 anos, nem me lembro mais. Como todo homem daquele tempo, fui a uma dessas casas, né? Foi fora do Rio, tinha ido jogar no interior, também não me recordo mais em que cidade. Eu jogava nos juvenis do América.


PLAYBOY — Alguns jogadores do seu tempo tinham fama de bons copos. O pessoal de hoje é chegado à bebida?


ZAGALLO — Não vejo mal nenhum em liberar uma cervejinha depois que ganhamos um jogo, por exemplo. O que é mal é tomar três, quatro, cinco. É o que acontecia antigamente. O cara saía para a farra e ficava de porre. Qual é o problema, porém, de tomar uma cerveja numa churrascaria? Acho que o homem público tem de saber o que fazer na hora certa. Ele não pode, mesmo numa festa de Carnaval, pegar uma cerveja e entornar. Ele tem de se cuidar, é a imagem dele que ele tem de preservar. É deprimente ver nos jornais a foto de um jogador entornando um chope, mas, de um modo geral, hoje não vejo problema de jogadores com a bebida.


PLAYBOY — E com drogas?


ZAGALLO — Eu escuto falar. Comprovar, a gente não comprova, mas ouço falar de nomes importantes.


PLAYBOY — Nomes com passagem pela Seleção?


ZAGALLO — Nomes com passagem pela Seleção.


PLAYBOY — Cocaína?


ZAGALLO — Não sei o que é. Não posso afirmar uma coisa que não sei. Eu escuto.


PLAYBOY — Mas o que se fala é isso?


ZAGALLO — É. Cheira. Eu não sei, não entendo desse troço. Não posso falar de uma coisa que não entendo. Mesmo que soubesse que fulano, beltrano e sicrano fazem isso, jamais falaria, mas escuto falar de jogadores de prestígio, que já passaram por Seleção Brasileira. Já ouvi de diversas fontes. Se é verdadeiro, não sei. Nas competições, eles têm de fazer teste. E evidente que, se fazem uso de droga, deixam de fazer em certos momentos. Mas vai daqui um conselho: isso não traz saúde para ninguém. Ao contrário, temos exemplos de jogadores que foram punidos pela Fifa, com exame comprovado, público e notório, como é o caso do Maradona. Se temos um exemplo de um excepcional jogador que seguiu esse caminho, os outros deveriam evitar segui-lo. Mas escuto falar que muitos atletas, não só o Maradona, fazem isso — muitos atletas da Argentina, muitos atletas brasileiros.


PLAYBOY — Existe homossexualismo no futebol?


ZAGALLO — Não vou dizer que não exista, mas acho muito difícil, dentro desse ambiente de futebol, haver uma pessoa do outro lado.


PLAYBOY — Por que você acha tão difícil assim?


ZAGALLO — No passado, já houve casos, mas no presente...


PLAYBOY — Diz-se muito que a preparação das categorias de base é entregue, muitas vezes, a homossexuais que se aproveitam da condição para molestar os garotos.


ZAGALLO — O que falam é que diretores de clubes vão para o comando desses departamentos com tal intenção.


PLAYBOY — Ainda existe isso?


ZAGALLO — Não sei, porque não estou nesse meio, mas é algo totalmente errado. Por que eles se infiltram nesse meio? É fácil pegar um garoto daqueles, sair e dar um dinheiro para ele. O garoto pega. É por isso que falam que [o homossexualismo] existe nesse ambiente. Mas não é o garoto que é [homossexual], não é o preparador físico, não é o treinador, e sim o diretor. Falavam muito, antes. Hoje, escuto falar pouco. Talvez ainda exista, mas não deve ser com a freqüência de antes, senão a gente sabia logo. É difícil no futebol encontrar um jogador que seja veado. Não se cria. É um ambiente de gozação, não vai dar para ele.


PLAYBOY — Você enxerga alguma incompatibilidade técnica entre homossexualismo e a prática do futebol?


ZAGALLO — Acho que não dá para um homossexual jogar.



PLAYBOY — Mas há homossexuais em todos os setores, até nos altos escalões dos exércitos de diversos países. O cidadão que é capaz de lutar numa guerra não pode jogar futebol?


ZAGALLO — O futebol é outra coisa. Sou contra o machismo, mas já imaginou como é que ele vai dar o pulinho na hora do pontapé? Como pode jogar bola alguém que leva todo um jeito ao contrário? Ele quer é outra bola.


"Sou contra o machismo, mas já imaginou como é que ele vai dar o pulinho na hora do pontapé?"

PLAYBOY — Você está falando do efeminado, da bicha.


ZAGALLO — Mas não é isso?


PLAYBOY — Para muitos, o homossexualismo é uma escolha sexual que não os faz sair por aí cheios de trejeitos. A pergunta é: o cara que vai para a guerra não pode jogar valentemente o futebol?


ZAGALLO — Pode dar na guerra. Mas, no meio do futebol, essa pessoa não vai se criar. Dentro do futebol, um cara desses não vai dar certo, vai dar problema. Analise os times de futebol, não tem como.


PLAYBOY — Vamos falar, então, de um ilustre heterossexual do futebol. Você entrou para a história como Zagalo, com um "l", mas virou Zagallo, com dois, de um tempo para cá. Foi conselho de algum numerólogo?


ZAGALLO — Meu nome é Zagallo, com dois eles. Desde que comecei minha carreira de jogador, lutei para ter o meu nome escrito certo. A imprensa começou a escrever Zagalo com um só "l" ainda no juvenil e o meu pedido não teve força. Não liguei mais. Há uns dois anos, fui à Folha de S.Paulo e, no fim de uma longa entrevista, quiseram saber: "O que você gostaria de falar e nós não lhe perguntamos?" Respondi: "Eu gostaria é que meu nome parasse de sair errado". Eles começaram a escrever Zagallo com dois eles e quase toda a imprensa, finalmente, passou a escrever o meu nome certo.


PLAYBOY — Você foi quatro vezes campeão do mundo como Zagalo. Recomeçar a carreira como Zagallo não é um risco?


ZAGALLO — [Rindo.] Dizem que sou supersticioso, mas o meu nome é com dois eles e eu fico satisfeito que saia uma coisa certa. A pronúncia não muda. E eu faço votos de que, com dois eles, as coisas funcionem em dobro.


PLAYBOY — Já a partir da Copa da França?


ZAGALLO — Vai ser uma Copa muito difícil. Só uma vez uma Seleção ganhou uma Copa disputada fora do seu continente — o Brasil, em 1958, na Suécia. Na Europa, mesmo durante o verão, a temperatura não é tão alta e as seleções européias conseguem fazer o jogo de que mais gostam, de marcação ininterrupta durante os 90 minutos. Mas quero o pentacampeonato. A Torre Eiffel está lá, iluminada há dois anos, esperando a Seleção Brasileira. Vamos lá.


PLAYBOY — Neste mês de junho, a Seleção Brasileira estará participando do Torneio da França com ingleses, italianos e franceses, é claro. Qual a importância desse torneio?


ZAGALLO — Será um aperitivo da Copa do Mundo. Em seguida, vamos disputar a Copa América, na Bolívia. Serão experiências benéficas para a Seleção, pois os novos jogadores estarão se afirmando dentro de competições difíceis. A Copa América é uma competição dificílima. O Brasil nunca venceu uma fora de casa. A disputa na Bolívia vai dar aos jogadores novos uma tarimba que será importantíssima, mais tarde, na Copa do Mundo.


PLAYBOY — Essas duas competições chegam, então, em boa hora?


ZAGALLO — Nesse aspecto de que falei, sim, mas sair de três jogos difíceis na França diretamente para a Copa América, na Bolívia, não é o mais lógico. Pode ser bom, no entanto, para o ritmo de uma Seleção que não está disputando as eliminatórias para a Copa. Esta será, aliás, outra dificuldade desta Copa América. Vamos enfrentar seleções já formadas e a Seleção Brasileira ainda estará em formação.


PLAYBOY — Quer dizer que seria melhor estar disputando as eliminatórias?


ZAGALLO — Graças a Deus, estamos fora das eliminatórias. Já estamos com a vaga garantida na Copa do Mundo. Eles estão ganhando ritmo, mas estão sofrendo as conseqüências de uma disputa difícil. Nós estamos tranqüilos.


PLAYBOY — Até a Copa América, pelo menos.


ZAGALLO — É o que eu digo. Embora ainda tenhamos, em dezembro, a disputa da Copa Intercontinental na Arábia Saudita, essas duas competições de junho serão fundamentais para a formação ideal da Seleção Brasileira — em especial, a Copa América, por todas as dificuldades que oferece aos nossos jogadores. Ela é fundamental até para o Ronaldinho, que é campeão do mundo mas não participou de nenhum jogo em 1994. Na Copa América, há muita malandragem, a marcação sobre os craques é mais maliciosa. É mais fácil jogar bem numa Copa do Mundo do que numa Copa América. É melhor enfrentar as seleções européias numa Copa do Mundo do que uma Colômbia, um Equador, uma Bolívia, um Chile na Copa América.


PLAYBOY — Ganhar o título na Bolívia é fundamental?


ZAGALLO — Nós vamos tentar ganhar, mas sabemos que é muito difícil. Insisto: o Brasil não conseguiu ganhar ainda nenhuma Copa América disputada em outro país.


PLAYBOY — O mais importante, portanto, será preparar o time para a Copa do Mundo de 1998?


ZAGALLO — Sem dúvida. Não podemos ter uma Seleção com uma média alta de idade, ainda que formada por jogadores de categoria. Temos de rejuvenescer o time e lhe dar experiência internacional.


PLAYBOY — Que jogadores de 1994 poderão estar em 1998?


ZAGALLO — Não vou afirmar que eles estarão na Copa, pois o futebol dá muitas voltas e eu sou precavido com o que digo, mas o Mauro Silva, o Leonardo, o Cafu têm idade para participar tranqüilamente. O Márcio Santos teria. Nem falo do Ronaldinho porque ele tem apenas 20 anos. É possível ainda escalar um zagueiro com 32 anos, como o Aldair, se ele jogar bem protegido e estiver em boas condições físicas. Temos ainda o Romário, que também estará com 32 anos. O que não podemos é ter uma equipe com a idade média muito alta, mas podemos levar jogadores experientes até para o banco. Ele pode não jogar os 90 minutos, jogar 45, pode começar e sair, desde que seja um jogador útil para a Seleção naquele momento.


PLAYBOY — E o Taffarel?


ZAGALLO — Quando acabou a Copa América de 1995, chateado porque falaram mal dele, o Taffarel disse que não queria mais jogar na Seleção. Estava de cabeça quente. Depois que mudou de idéia, deixei passar um tempo e o chamei. É um goleiro experiente, participou de duas Copas do Mundo, de algumas Copas América, de uma Olimpíada e é um jogador que não pesa na média de idade da equipe. Vamos ganhar com a experiência dele.


PLAYBOY — Você voltou a chamar também o Romário. Ele está nos seus planos para 1998?


ZAGALLO — O Romário depende dele próprio. Acho que sentiu a ausência de dois anos, procurou se cuidar mais, começou a se preocupar mais com os treinamentos, afinou o corpo, mudou a cabeça para retornar à Seleção. O espírito dele é outro. Ele teve uma fase difícil, melhorou. Dentro da Seleção Brasileira, a tendência é ele subir de produção, pois tem parceiros de maior qualidade técnica. Cuidando-se, será capaz de dar aqueles arranques que os zagueiros não conseguem acompanhar e já mostrou que tem também condições de recuar um pouco e enfiar boas bolas para o parceiro de ataque. Tudo indica que estamos ganhando novamente o Romário.


"O Romário depende dele próprio. Ele mudou a cabeça para retornar à Seleção. E vamos ganhar com a experiência do Taffarel"

PLAYBOY — Passou alguma vez pela sua cabeça e pela do técnico Carlos Alberto Parreira ir à Copa dos Estados Unidos sem Romário?


ZAGALLO — Vamos falar dessa história, que começou na França, por etapas. Se não me falha a memória, Bebeto e Careca vinham jogando. Acho que o Bebeto estava gripado e não podia jogar todo o tempo contra a França [amistoso vencido pelo Brasil por 2 a 0, em Paris, no dia 26 de agosto de 1992]. Não tenho certeza, só vendo a escalação. Sei que o Romário não iria começar jogando, iria ficar no banco, mas alguém estava resfriado, não pôde jogar e ele entrou. Distribuímos os números das camisas, coisa que para mim não tem importância nenhuma, e a escalação para toda a imprensa. Eu estava batendo papo fora do vestiário, veio o Parreira e me disse: "O Romário está querendo jogar com a 11 porque não joga com outra camisa". Nem lembro que número tínhamos dado para ele, mas a reclamação tinha chegado aos repórteres. Fui lá fora e avisei: "Vamos fazer uma mudança, o Romário vai jogar com a camisa 11". É um detalhezinho, não tem nada demais, mas acho que o próprio Romário deveria ter nos falado que gostava de jogar com a 11. Mudar a numeração do time, depois de anunciada a escalação, parece desorganização. Esse fato não caiu bem, mas passamos por cima.


PLAYBOY — Ficou por isso mesmo?


ZAGALLO — Uns meses depois, houve um jogo em Porto Alegre, contra a Alemanha [3 a 1 para o Brasil, no dia 16 de dezembro]. Tínhamos no grupo o Bebeto, o Careca, o Renato, o Romário e o Müller, cinco pontas-de-lança, mas avisamos que só jogariam dois. Nós nos reunimos com eles e o Parreira disse: "Nossa maneira de jogar é essa, com dois pontas-de-lança. Alguém tem alguma coisa a dizer?" Ninguém falou nada, fomos para o treino.


PLAYBOY — Foi dito quem jogaria?


ZAGALLO — Não. No treino tático foi que o Parreira escolheu Bebeto e Careca. Ninguém reclamou na hora. Já no hotel, um repórter contou ao Parreira que o Romário estava fazendo a maior onda porque não era titular. Chamei o Romário para uma conversa, junto com o Parreira. Dentro do quarto, lhe disse: "Romário, você falou alguma coisa que não devia ter falado". E ele: "Eu não falei nada demais". Respondi: "Você falou alguma coisa porque já há jornalista comentando que você falou algo que não devia ter falado". Então ele respondeu: "Não falei nada demais, só disse que não vim de longe para ser reserva. Sou o melhor e o titular tem de ser eu". Perguntei: "Como é que é? Você tem de ser o titular? Nós nos reunimos antes, falamos que só jogariam dois pontas-de-lança e vocês não falaram nada. Foi tudo avisado antes e, agora, você está agindo para sair esse troço publicado? Aqui a determinação não vem de baixo para cima, é de cima para baixo, aqui quem escala time é o treinador, não é você". Foi uma chamada firme, como tinha de ser. No futebol, perde-se a liderança numa fração de segundo. Ele sentiu que a Seleção tinha comando. O jogador sabe quando tem e quando não tem. Ele experimenta para ver qual é a reação.


PLAYBOY — Foi dito ao Romário que ele não seria mais convocado?


ZAGALLO — Nós não falamos que ele não seria convocado, mas deixamos de convocá-lo. Quando chegou o último jogo das eliminatórias [contra o Uruguai, no Maracanã, em 19 de setembro de 1993], perdemos o Evair e o Müller. Eu e Parreira, que tínhamos o mesmo pensamento, resolvemos chamá-lo. É claro que tínhamos de chamá-lo. Não foi por imposição de ninguém. Nós não nos deixamos influenciar por pressão. Acho que demos muitas provas disso durante a Copa.


PLAYBOY — O Brasil teria sido campeão do mundo sem Romário?


ZAGALLO — Ele teve uma participação importante porque, primeiro, naquele jogo [o Brasil venceu por 2 a 0, com dois gols de Romário] veio mordido. Foram 90 minutos em cima do Uruguai. Foi um banho de cuia, como se diz. E partimos para a Copa do Mundo já com ele, evidente, e sem problema nenhum. Fomos levando as coisas dentro dos moldes e não houve problema nenhum com a comissão técnica.


PLAYBOY — Vamos insistir: o Brasil teria sido campeão do mundo sem ele?


ZAGALLO — Não gosto de falar em "se". Achei que o Bebeto e ele foram jogadores excepcionais na Copa do Mundo. Um fez cinco, o outro fez três gols. Bebeto jogou tanto quanto Romário, os dois tiveram participação ativa. Acontece que, no futebol, aquele que faz mais gols aparece mais. E, de fato, ele fez uma grande Copa, estava numa boa forma física, é um jogador que sabe fazer gol, tem talento e um forte arranque para chegar na cara do gol.


PLAYBOY — Ele é, então, uma de suas apostas para 1998, já que você tende a levar para a França uma equipe experiente?


ZAGALLO — A gente sabe que manter a base da Copa anterior sem afetar condição física da equipe é o ideal. Fomos derrotados em 1990, mas aquela Seleção nos deu a base para o título de 1994. Estamos partindo para 1998 com a possibilidade de contar com quatro, talvez cinco jogadores que participaram efetivamente da equipe, mais o Cafu e o Leonardo, que atuaram em algumas partidas, e o Ronaldinho, que estava no grupo. Preenchendo as outras vagas com jogadores de bom potencial técnico, vamos ter uma equipe sólida, madura, que vai entrar na Copa com uma responsabilidade tremenda, mas terá jogadores que não serão afetados por isso. E os outros terão, ao lado, a força dos que já foram campeões. Muita gente não leva em consideração esses detalhes, mas são fundamentais numa Copa do Mundo.


PLAYBOY — O capitão Dunga, que terá 34 anos na Copa do Mundo, está fora dos seus planos?


ZAGALLO — Não descarto a hipótese de contar com o Dunga. Muita gente não gosta dele. Parreira e eu fomos muito criticados por chamá-lo em 1994, mas eu o considero um jogador excepcional. Deixei de levá-lo para a Olimpíada porque estava com 32 anos e eu já pensava na Copa do Mundo, mas, se a gente for ver como ele está no Japão, certamente ele estará bem. O Baresi [libero da Seleção Italiana] estava com 34 anos nos Estados Unidos e fez uma senhora Copa do Mundo.


PLAYBOY — Você acha que Dunga fez falta à Seleção na Olimpíada?


ZAGALLO — Antes, ninguém achava. Levei o Rivaldo, pela meia-esquerda, porque eu tinha o Amaral, o Flávio Conceição e o Beto pelo lado direito. O Dunga também joga pela direita. Eu teria de cortar alguém e não tinha praticamente ninguém pelo lado esquerdo: o Denílson estourou depois da Olimpíada e o Souza foi mal no Pré-Olímpico. Então, optei pelo Rivaldo e levei o Aldair e o Bebeto na cota dos jogadores com mais de 23 anos. Se for analisar por aquele momento, foi o que foi. Depois do acontecido, no entanto, eu inventava outra coisa. Botava o Dunga, pô! [Sorrindo.] A gente poderia até estar com a medalha de ouro. E temos a obrigação de vencer sempre. Cobram da gente como se o futebol brasileiro fosse o basquete americano. O futebol é diferente. No basquete, o melhor time ganha de quem quer, na hora que quer. No futebol, existem surpresas. Uma equipe pequena pode ganhar de uma grande equipe.


PLAYBOY — Você chegou a lembrar essa diferença entre basquete e futebol antes da Olimpíada e até chamou a atenção para a iminência de uma surpresa africana no futebol, mas muitos críticos dizem que o Brasil perdeu o ouro olímpico porque você, arrogantemente, não tomou conhecimento dos adversários.


ZAGALLO — [Separando as sílabas.] E-xa-ta-men-te. Cheguei a falar: "Rezo para que não seja agora porque, mais cedo ou mais tarde, os africanos vão aprontar uma surpresa numa competição internacional". Acabou acontecendo na Olimpíada. Ganhamos deles [a Seleção da Nigéria] por 1 a 0 na primeira fase e acabamos perdendo nas semi-finais, depois de estar ganhando por 3 a 1, por 4 a 3. Foi uma fatalidade, mas acabamos perdendo para o futebol que mais sobe no mundo, que é o africano. Eles vão ter muito o que aprender, mas têm material humano que, trabalhado, vai dificultar... vai dificultar, não, já está dificultando a vida das escolas tradicionais.


PLAYBOY — O que eles têm e os outros não têm?


ZAGALLO — O que eles têm é o que os brasileiros têm: a leveza, a ginga, a agilidade. Falta-lhes a malícia do futebol brasileiro, falta-lhes mais consciência tática, mas material humano eles têm e do bom. Por exemplo: a Seleção da África do Sul, que nós vencemos em Johanesburgo [por 3 a 2, no dia 24 de abril de 1996], mostrou técnica, velocidade, habilidade e força. Falta, ainda, maturidade ao futebol africano, mas eles têm o que mostrar ao mundo.


PLAYBOY — Você acha que eles vão continuar aprontando surpresas?


ZAGALLO — Tudo indica que sim. A Nigéria ganhou o ouro olímpico e não se ganha uma competição tão importante à toa. Os nigerianos ganharam do Brasil e da Argentina. Eles têm qualidade. Nós temos que abrir os olhos e prestar atenção aos países africanos que se classificarem para a Copa da França. Se a gente não os encarar com seriedade, vai entrar pelo cano. E temos exemplos: perdemos da Nigéria e do Japão na Olimpíada.


PLAYBOY — Essas derrotas podem ensinar alguma coisa ao nosso futebol?


ZAGALLO — Claro. Perdemos para o Japão por excesso de confiança. Perder para o Japão foi um acidente. Perder para a Nigéria foi uma fatalidade. [Pontua a observação com uma gargalhada.] Digo que foi uma fatalidade porque estávamos ganhando por 3 a 1, mas continuo afirmando a qualidade do futebol nigeriano. [Depois de uma pausa, em tom sério.] São derrotas que servem de lição para todo o nosso futebol e não só para a Seleção olímpica.


PLAYBOY — A lição serve igualmente para o mais carioca dos técnicos brasileiros?


ZAGALLO — É claro que me serve, mas eu sou alagoano, nasci em Maceió, o que me honra muito. Meus pais eram alagoanos. Vim para o Rio com 8 meses de idade, em 1932. Fui criado aqui. Meu pai veio como representante de uma firma de tecidos e toalhas do meu tio Mário Lobo. Meu pai era casado com uma irmã dele e ele era casado com uma irmã do meu pai.


PLAYBOY — E como nasceu o seu interesse pelo futebol?


ZAGALLO — Eu morava na esquina da Professor Gabizo com Trapicheiros, que hoje é a Heitor Beltrão, na Tijuca, e meu pai era sócio do América. Depois mudamos para a Doutor Satamini, perto também. Jogava na rua, cheguei a jogar pelada no gramado do Derby Club quando as cocheiras foram transferidas para o Jockey, abrindo espaço para a construção do Maracanã.


PLAYBOY — Você pode dizer, então, que inaugurou o Maracanã?


ZAGALLO — [Rindo.] Antes de existir. Ali pelos 14, 15 anos, como sócio, jogava no Maguari e no América Júnior. Em 1948, dos 16 para os 17 anos, comecei a jogar no juvenil do América, mas meu pai não queria que eu jogasse futebol.


PLAYBOY — Por quê?


ZAGALLO — E aquela história de que o jogador não era bem-visto pela sociedade. Mas um diretor do América foi à minha casa, conversou muito e ele acabou deixando. Meu pai era conselheiro do clube, tinha chegado a jogar futebol pelo CRB de Alagoas, passou a me acompanhar nos jogos e, mais tarde, teve a alegria de me ver na Seleção. Ele morreu em 1958, quando eu já era campeão do mundo.


PLAYBOY — Quanto tempo você ficou no América?


ZAGALLO — Joguei três anos no juvenil — dois pelo América e um pelo Flamengo. No América, comecei na meia-esquerda, mas enxerguei longe e vi que, para chegar um dia à Seleção, era mais fácil jogar na ponta esquerda. Então, fui para a ponta. No Flamengo, depois de me ver jogando como meia num time misto contra o Botafogo, o [técnico] Flávio Costa quis me tirar da ponta, mas não aceitei. Eu sabia que a concorrência no meio era mais forte.


PLAYBOY — Por que você foi para o Flamengo?


ZAGALLO — O América estava sem campo para treinamentos. Eu tinha feito o ginásio no Externato São José, um colégio de irmãos maristas, e estava cursando Contabilidade no Vera Cruz. Quando me formei, servi o Exército e conheci lá um pessoal do Flamengo que me levou para treinar e, depois de dois treinos, me convidou para jogar. E ainda me prometeu um dinheiro. Eu não ganhava um tostão no América. Aliás, pagava para jogar, pois era sócio-contribuinte do clube. Pagava 20 cruzeiros de mensalidade. O Flamengo me prometeu pagar 1.000 cruzeiros. Naquele tempo, para um garoto, era dinheiro à beça.


PLAYBOY — Você já tinha decidido que seria jogador profissional?


ZAGALLO — Ainda era mais uma brincadeira. Recebia o dinheiro por fora. Eu já estava acompanhando o meu pai com a idéia de segui-lo no trabalho de representação comercial, mas tudo foi se engrenando dentro do futebol e uma coisa que a família não queria acabou sendo a minha vida.


PLAYBOY — Você talvez tenha sido o primeiro jogador brasileiro, pelo menos de 1950 em diante, a ganhar o passe livre. Como foi que isso aconteceu?


ZAGALLO — Quando assinei meu primeiro contrato com o Flamengo, em 1952, pedi o passe livre. Eles me disseram que não poderiam ceder o passe no fim do primeiro contrato. Então, eu lhes disse que ia parar: "Vou seguir minha vida, pois o futebol é um ponto de interrogação e prefiro trabalhar com o meu pai". Diante da minha atitude, foram me buscar em casa e disseram que, no fim do contrato, me dariam o passe livre. Na hora da renovação, não cumpriram a promessa, mas acabamos fixando o valor do passe e, ao fim do segundo contrato, eu o comprei. Meu contrato terminou no dia 30 de junho de 1958, um dia depois da Copa do Mundo. Eu era campeão do mundo e tinha o passe na mão.


PLAYBOY — O Flamengo aceitou sem problemas?


ZAGALLO — O meu pai teve de contratar um advogado para depositar os 100.000 cruzeiros estipulados pelo passe. Eu não tinha intenção de sair do Flamengo. Gostava do ambiente e só queria que cumprissem uma promessa feita desde que assinei o primeiro contrato — um emprego na Caixa Econômica. Propus dar o passe se o clube me conseguisse o emprego. Um emprego na Caixa era a garantia de uma vida definida e eu sempre olhei muito para o futuro. Tinha, então, boas propostas do Palmeiras e do Botafogo, mas me dispunha a ficar no Flamengo pelo mesmo dinheiro que o Botafogo me oferecia. Eles não me deram e ainda me pediram que eu fosse, então, para o Palmeiras. Mas não era o melhor para mim, pois minha mulher era professora, nós tínhamos filhos pequenos e mudar para São Paulo complicaria a vida. Acabei indo para o Botafogo.


PLAYBOY — E foi lá que você encerrou a carreira de jogador e começou a de técnico.


ZAGALLO — Joguei no Botafogo até 1965 e fui, então, convidado para ser o treinador do juvenil. Fui campeão do juvenil em 1967 e, no mesmo ano, assumi a equipe principal. Fomos bicampeões cariocas, em 1967 e 1968, ganhamos a Taça Brasil. Ganhamos tudo. Tive a felicidade depois de ser convidado para ser o treinador da Seleção Brasileira em 1970.


PLAYBOY — Como foi feito o convite?


ZAGALLO — Um pouco depois que o [técnico] Aimoré Moreira saiu da Seleção, eu estava no México com o Botafogo e chegou lá a notícia de que estava para ser escolhido o novo treinador. Já tinham sido escolhidos o médico, o Lídio [Toledo], o preparador físico, o [Admildo] Chirol, ambos do Botafogo, e obviamente eu achava que, tendo sido campeão de tudo com o Botafogo, seria o novo treinador. Quando um jornalista me contou que o [João] Saldanha tinha sido escolhido [técnico da Seleção], pensei que fosse brincadeira. O Saldanha era comentarista.


PLAYBOY — Mas o Saldanha tinha sido seu treinador.


ZAGALLO — Foi, joguei com ele no Botafogo em 1958 e 1959.


PLAYBOY — Como era o Saldanha como técnico?


ZAGALLO — Prefiro não comentar.


PLAYBOY — Não parece um elogio.


ZAGALLO — Prefiro não fazer comentários sobre ele. Trabalhei só um ano, mais ou menos, com ele. Eu me machuquei, trabalhei pouco tempo com o Saldanha para poder falar sobre ele. Quando tive a confirmação de que ele era o técnico da Seleção, estranhei. Por dentro, senti, porque, honestamente, achava que eu seria o treinador. Estou comentando pela primeira vez, mas senti. Afinal, se o Botafogo ganhava tudo e o médico e o preparador físico tinham sido chamados, eu achava que o treinador tinha de ser eu. O tempo passou. Tempos mais tarde, depois de um jogo da Seleção com o Bangu [1 a 1, no dia 14 de março de 1970, no Estádio de Moça Bonita, no Rio], o Saldanha saiu. Eu estava treinando o Botafogo no Forte da Urca quando chegou o Chirol e pediu ao Luís Henrique [preparador físico que, em 1990, viria a trabalhar com Sebastião Lazaroni na Copa do Mundo] que eu saísse, escondido, para me encontrar com ele e com o dr. Antônio do Passo [diretor de Futebol da então CBD, a Confederação Brasileira de Desportos] num carro que nos levaria ao Retiro dos Padres, em São Conrado, onde se concentrava a Seleção Brasileira. Recebi o convite no carro, aceitei, passei em casa para pegar minhas coisas e já fui apresentado ao time na concentração.


"Por dentro, senti, achava que eu seria o treinador [e não Saldanha]. Estou comentando pela primeira vez, mas senti"

PLAYBOY — Sempre se disse que Dino Sani, então técnico do Corinthians, foi convidado antes de você.


ZAGALLO — E verdade, mas ele não aceitou. Parece que veio ao Rio, mas não aceitou e voltou do [Aeroporto] Santos Dumont. Também chegou a ser convidado o Oto Glória, que tinha sido o técnico da Seleção Portuguesa na Copa do Mundo de 1966. Não sei bem como foi essa história, soube depois, mas cheguei à concentração e fui apresentado ao grupo. A única coisa que exigi foi chamar cinco novos jogadores. Reconvoquei o Félix, que havia sido cortado, e chamei o Leônidas, o Roberto Miranda, o Dario e o Arílson. Ficamos com 27. Mais tarde, tive de cortar o Leônidas por problemas físicos. O Arílson não foi bem nos treinamentos, eu cortei. Fiquei com o Dario, o Roberto Miranda e o Félix. Desconvoquei o Zé Carlos e o Dirceu Lopes. Desconvoquei dois do meio-de-campo para convocar dois pontas-de-lança, e ainda me chamaram de retranqueiro durante 200 anos.


PLAYBOY — Aliás, muita gente dizia que o Dario foi convocado pelo general Emílio Garrastazu Medici, que era o presidente da República.


ZAGALLO — Se o Medici quisesse o Dario, ele teria de ser o titular da Seleção Brasileira. Essa conversa diminui até o valor desse jogador, que era um fenômeno, foi artilheiro em todas as competições de que participou. Temos de enaltecê-lo e não repetir uma mentira como se fosse verdade. Isso ficou escrito até em livros. É um absurdo imaginar que um presidente da República possa querer escalar um time de futebol. Quem criou essa situação... eu não gosto nem de falar. Paro por aqui.


"É um absurdo imaginar que um presidente da República [Medici, na Copa de 1970] possa querer escalar a Seleção"

PLAYBOY — Pára por quê?


ZAGALLO — A pessoa não está mais viva. Então, é preferível a gente nem citar esse fato lamentável. Tive um bate-boca feio com o [jornalista] Juarez Soares, na televisão, a esse respeito. Saí da minha maneira de ser, gritei, peguei firme e feio porque, na minha razão, vou até o final. Não faço uma coisa dessas com ninguém e não admito que façam comigo. Acontece muita coisa dentro do futebol que, pela minha seriedade e pela minha honestidade, acho que não poderia existir.


PLAYBOY — Essa história é certamente responsável pela má vontade que parte da opinião pública tinha com você, pelo menos até a Copa de 1994.


ZAGALLO — Sem dúvida. Quando peguei a Seleção em 1970, a equipe jogava num 4-2-4. Jogavam Piazza e Gérson no meio-de-campo, Clodoaldo e Rivelino estavam na reserva. Mudei tudo. Não quero dizer que o Saldanha estivesse errado. Acho que ele teve os méritos dele na classificação [do Brasil para disputar a Copa].


PLAYBOY — Qual foi a grande contribuição de Saldanha à Seleção?


ZAGALLO — O futebol brasileiro estava totalmente desacreditado e, embora na época ele fosse um comentarista, assumiu o cargo com autoridade, já escalando o time, uma coisa bem diferente do que vinha acontecendo. Ele escalou o time, do goleiro ao ponta-esquerda. Eram "as Feras do Saldanha". Ele deu uma confiança à equipe. O time foi para as eliminatórias e classificou-se — o que, aliás, nunca deixou de acontecer com a Seleção Brasileira. De fato, o grande mérito dele foi ter botado a mão num momento difícil, em que ninguém sabia quem era quem e ele determinou, com pulso, que o time seria aquele, que o grupo seria aquele. Ele mudou o astral da Seleção.


PLAYBOY — Quando assumiu, o que você mudou?


ZAGALLO — Quando eu assumi, tinha em mente o que queria e iria fazer. Mudei tudo. E aí é que eu me bato: não quiseram me dar, na época, o mérito daquilo que foi realizado. Hoje, sou reconhecido por tudo o que fiz. Sou grato à imprensa e ao povo pelo reconhecimento de hoje. Mas, quando assumi, achei que tinha meio-de-campo demais. Era chamado de retraqueiro, apesar de ter conquistado muitos títulos. Peguei o time num 4-2-4, com Piazza, Gerson, Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu. Tirei o Piazza do meio, passei para a quarta zaga, porque não estava gostando nem do Joel nem do Fontana. Coloquei o Clodoaldo, comecei com o Paulo César Caju pelo lado esquerdo, depois meti o Rivelino. Minha idéia inicial era jogar com o Roberto e o Jairzinho, mas até coloquei o Rogério porque ele estava melhor do que o Jairzinho. O Rogério se machucou, o Jairzinho se efetivou lá dentro do México. Ele foi a explosão da Copa.


PLAYBOY — Você acha que aquela foi a melhor Copa do Pelé?


ZAGALLO — [Enfático.] Ah, foi, só foi, só foi. Foi a primeira vez em que jogou a Copa inteira. Em 1958, com 17 anos, começou machucado. Na de 1962, ele se machucou logo no segundo jogo. Quer dizer: não jogou.


PLAYBOY — Era fácil jogar ao lado de Pelé?


ZAGALLO — Eu agradeço a Deus a felicidade de ter sido campeão do mundo com o Pelé aos 17 anos, na Seleção Brasileira. Em 1958, eu não o conhecia, não tinha nem jogado contra ele. Ele estava começando, chegou machucado à Seleção, ficou guardado, fazendo tratamento para a Copa do Mundo. O Pelé foi qualquer coisa de extraordinário. Depois, na Copa de 1962, ele se machucou no segundo jogo. Em 1966, machucou-se novamente e a Seleção Brasileira não foi bem. E surgiu a oportunidade de jogar em 1970. Foi sua grande Copa. Era um jogador completo, batia de perna direita, batia de perna esquerda, sabia cabecear. Tinha, dentro da pequena área do adversário, a tranqüilidade que os bons jogadores têm no grande círculo. E ainda vivi a felicidade de ser o seu treinador. Quando entrei no lugar do Saldanha, logo no meu primeiro treino de campo, Pelé me chamou de lado, botou a mão no meu ombro e disse: "Zagallo, você hoje é o treinador, só lhe peço uma coisa — pode me barrar, pode fazer o que quiser, mas não faça sacanagem comigo". Mexi com ele: "Crioulo, fica na tua, vou fazer o que com você? A Seleção é você e mais dez".


PLAYBOY — Ele estava chateado com aquela história de que enxergava mal?


ZAGALLO — Exatamente. Tanto que acho que ele quis fazer aquele gol de 50 metros, contra a [então] Checoslováquia, para mostrar que não tinha cegueira nenhuma. Ele jogou a Copa achando que tinha de mostrar o que não precisava mais mostrar a ninguém. Poupava-se nos treinos porque não queria se machucar em mais uma Copa. É um cara fora de série, foi um cara extraordinário. Depois da conquista da Copa, ele me abraçou dentro do vestiário e disse: "Precisávamos estar juntos de novo para ser tricampeões do mundo". Fico arrepiado só de me lembrar.


PLAYBOY — Você tem lembranças igualmente boas de Garrincha?


ZAGALLO — Garrincha era outra pessoa, uma criança mal orientada, gente muito humilde. Era um companheiro e tanto, no Botafogo e na Seleção Brasileira. Foi muito explorado, na vida particular dele, por causa de sua infantilidade. Era um ser humano puro. Esse livro que saiu sobre o Mané [Estrela Solitária, de Ruy Castro] passa a idéia de que ele foi um alcoólatra. Depois que parou de jogar, de fato, o Mané se perdeu, mas a sensação que se tem no livro é de que foi alcoólatra nos tempos de atleta. É um livro bem escrito, mas tinha de contar que a bebida tomou conta dele depois da carreira de atleta. Aproveito a oportunidade para dizer que devo muito a esses dois jogadores sensacionais, o falecido Garrincha e Pelé, que ainda está entre nós e espero que esteja durante muito tempo.


PLAYBOY — Quanto se deve a Garrincha na conquista da Copa de 1962?


ZAGALLO — Ele foi uma peça fundamental, fez gol de pé direito, de pé esquerdo, de cabeça, mas acho que todo o mundo é importante dentro da Seleção Brasileira. Não é que Garrincha tenha ganho uma Copa do Mundo. Foi um jogador extraordinário, como tinha sido na Copa de 1958 e sempre foi no Botafogo, mas, no futebol, ninguém é estrela sozinho. Dentro de uma constelação, há os que brilham mais, como Pelé e Garrincha. Para mim, os dois jogadores melhores do mundo foram Pelé e Garrincha, mas todos os jogadores de um time são fundamentais na conquista dos títulos.


PLAYBOY — Voltando à Copa de 1970: é verdade que você não queria Pelé e Tostão juntos?


ZAGALLO — Cheguei a falar com o Tostão que ele ia ser reserva do Pelé. Resolvi testar o Tostão na frente, ao lado do Pelé, mas não acreditava muito que pudesse dar certo. Falei com ele: "Quero que você jogue como um pivô de basquete, não quero que a Seleção deixe de ter um ponto à frente dos jogadores que partem com a bola do meio-de-campo. Não posso jogar sem ninguém enfiado". Achava que ele não ia dar certo, entre aspas, por causa do problema na vista [Tostão sofrera um descolamento de retina]. Primeiro: ele não podia cabecear. Segundo: não podia enfrentar choques. E era um jogador que vinha de trás e eu queria vê-lo na frente. Quando conversei com ele, o Tostão me disse: "Deixa comigo". Botei ele lá, num jogo no Maracanã, gostei. Fomos para o México, continuei colocando. Então, o time mudou.


"Achava que ele [Tostão] não ia dar certo, entre aspas, por causa do problema na vista. Ele não podia cabecear"

PLAYBOY — O que mudou?


ZAGALLO — Do 4-2-4, a equipe passou a jogar num 4-5-1. O Rivelino fechava pela esquerda, o Pelé já vinha buscar o jogo pelo lado direito, o Jair entrava pela direita, como facão. Não fazíamos marcação no campo do adversário porque a característica da equipe era de pouca marcação. Então, fiz o time voltar todo para fazer a marcação dentro de nosso campo. Até o Jairzinho. Ficava o Tostão lá na frente. O time se fechava, não dava espaço. Tive de arrumar a casa em dois meses, porque nós não podíamos disputar uma Copa jogando no 4-2-4. Muita gente não quis aceitar a verdade, dizendo que peguei o time pronto. Minha mágoa é que fui treinador, tricampeão, mudando tudo e, por problemas políticos, quiseram negar minha participação.


"Minha mágoa é que fui treinador, tricampeão, e por problemas políticos quiseram negar minha participação"

PLAYBOY — A que você atribui as críticas de então?


ZAGALLO — Não sou de política, fiz a minha vida toda dentro do esporte, mas não tenho culpa de estar presente nas conquistas do futebol brasileiro em momentos políticos fervorosos em que os resultados do futebol tiveram interferência. Eu estava no esporte, vivendo exclusivamente o esporte, mas, como as vitórias vieram e alteraram planos para um lado, fui desprezado, tratado até como retranqueiro por causa disso.


PLAYBOY — Você acha que as vitórias da Seleção influíram mesmo na situação política da época?


ZAGALLO — Não tenho dúvida nenhuma, mas eu não ligava nada a porcaria nenhuma de política. Eu só soube, muito depois, porque vieram me contar. Sabe quando eu soube disso tudo?


PLAYBOY — Quando?


ZAGALLO — No amistoso Brasil x Paris Saint-Germain [0 a 0, em Paris, a 20 de abril de 1994], aquele em que o [Ayrton] Senna deu o pontapé inicial. Um indivíduo chamado Juarez Soares falou, no hall do hotel, que não me topava porque eu era a favor da ditadura. Vieram me contar. Nunca, na minha vida, me passou pela cabeça que houvesse envolvimento de algum problema político comigo. Sou esportista, gente! Nunca me meti em partido. Nem voto em partido, sou antipartido, voto na pessoa, esteja em que partido estiver. Sou um homem apolítico. Converso sobre política como todo o mundo, mas não tenho uma noção profunda para falar politicamente de nada. Falo profundamente de futebol. Este é o assunto que eu abracei, eu conheço, eu discuto. De política não entendo. Por que me colocaram nessa situação com que não tenho nada a ver?


PLAYBOY — Você nunca teve, antes, consciência desse tipo de crítica, tão comum na opinião pública?


ZAGALLO — Não, nunca me bateu. Participei das etapas vitoriosas do futebol brasileiro — em 1958, 1962, 1970 e 1994 — e sempre estava olhando o meu lado. Era a minha vida esportiva que estava ali. Em 1970, entrei no lugar do Saldanha porque, pipocas, eu sou um treinador de futebol. Se ele tinha problemas políticos ou não, que culpa tenho eu? Tenho uma vida limpa, criteriosa, que estava sendo jogada num negócio em que não tive participação nenhuma. E só fui saber disso em 1994. Que é isso?


PLAYBOY — Você nunca sentiu sequer má vontade de parte da imprensa?


ZAGALLO — Sentia, mas não generalizada. Sempre tive muitos amigos na imprensa. Sentia em muitas matérias algo contra mim, mas não sabia por quê. Desde os tempos de jogador, havia muitas críticas ao meu jeito de jogar. Depois, como treinador, a mesma coisa. Mas fui vencendo todas as batalhas. A minha vida foi sofrida, mas hoje estou alegre à beça, estou satisfeito demais. Tenho o reconhecimento do público, da própria imprensa, muita gente que não gostava de mim passou a me aceitar melhor. Hoje, sinto o ego massageado.


PLAYBOY — Parece até que, depois de 1994, você é um homem mais feliz.


ZAGALLO — Hoje, tenho o carinho do público na dimensão que eu achava que já deveria ter tido anteriormente. E uma coisa fora do comum. Nos aeroportos, hotéis, restaurantes, shoppings, estádios, em todos os lugares, as pessoas pedem autógrafo, querem ser fotografadas comigo.


PLAYBOY — E quanto aos jogadores, como é o seu relacionamento com eles? Você costuma conversar com eles em particular?


ZAGALLO — Eu trabalho o plano tático com o todo, não posso falar individualmente. Quando chego para falar com um atleta em particular, é sobre alguma coisa que lhe interessa. Por exemplo: no fim do ano passado, conversei com o Ronaldinho, quando ele estava sendo superelogiado por todos, e o adverti de que bastariam duas ou três partidas sem fazer gol para acontecer o oposto. Disse-lhe que era preciso ficar atento para não se deprimir com as críticas. Falo para o bem. Na Copa do Mundo, eu dizia para ele: "Garoto, na sua idade, eu corria 360 minutos. Você não está correndo 15. Você quer chegar aonde?" Eu falava dentro do campo. Dou a porrada e amacio: "Estou falando para o seu bem, quero é o seu bem, senão não estava falando com você assim, não". É preciso habilidade para saber a hora e a maneira de falar com cada um.


PLAYBOY — Você acha que seria interessante a participação de um psicólogo, como havia na Copa de 1958, no trabalho da Seleção?


ZAGALLO — Não sou contra. Ao contrário, acho que os psicólogos podem dar uma boa contribuição ao futebol, principalmente no trabalho de base com os jogadores. Milhares de pessoas fazem análise e necessitam desse apoio. Não é no futebol que vai ser diferente. Mesmo entre os atletas adultos, vários ganhariam muito se fossem a um analista. Infelizmente, o atleta consagrado não aceita isso.


PLAYBOY — O que você acha do futebol feminino? Tem futuro?


ZAGALLO — Tudo é uma questão da cultura do país. Os Estados Unidos, que são alheios ao futebol, conquistaram os títulos mundial e olímpico no futebol feminino. É um bom time e as garotas não perdem a feminilidade. Nossa cultura já não aceita tanto e a garota fica com medo de entrar nesse ambiente. Nós perdemos com isso, quase não temos times femininos.


PLAYBOY — Você gostaria que sua filha jogasse futebol?


ZAGALLO — Minhas filhas já passaram dessa fase. Dou força ao futebol feminino, mas não gostaria que uma filha minha jogasse.


PLAYBOY — Você dá força à filha dos outros.


ZAGALLO — Eu dou força para a filha dos outros. Para a minha filha, eu não daria, não, mas dou força para que cada um pense de maneira diferente, dou força para a evolução. [Rindo.] Pimenta nos olhos dos outros é refresco.


PLAYBOY — E se um filho seu chegasse e anunciasse: "Pai, vou me casar com a zagueira da Seleção Brasileira"?


ZAGALLO — Aí a gente tinha de ver como é essa zagueira.


POR ROBERTO BENEVIDES

FOTOS FÁBIO M. SALLES



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