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ÂNGELA E A ZONA FRANCA

Ficção



Ela odiava o cunhado com todas as forças, há anos não lhe dirigia a palavra. E agora lá estavam os dois, a caminho de Manaus, dividindo uma cama num hotel.



POR CARLOS HEITOR CONY

ILUSTRAÇÕES PINKY WAINER



Se entrar num avião, antes mesmo de começar o vôo, ficarei com os cabelos totalmente brancos. Se for de carro levarei uma semana para chegar lá. Ângela tem de ir, afinal é a nossa filha que está em jogo. Ela não saberá resolver tudo sozinha, muito papel para tratar, precisa de ajuda. E eu também. Só tenho você para isso.


Olhei o irmão com surpresa:


— Você sabe que não gosto de Ângela, nem ela de mim. Não tem outro para ajudar?


— Ter, até que podia ter. Mas é assunto de família, precisamos ajudar minha única filha, que é a sua única sobrinha. Ela está num sufoco, depois da morte do marido, naquelas circunstâncias, parece que foi uma cilada, ele ia descobrir uma bandalheira no banco, foi uns crime brutal.


— Ângela aceita que eu vá com ela?


Augusto abaixou a cabeça. Eu o conheço bem, sei que nele a cabeça baixa é sinal de vergonha:


— Ela odeia você. Até hoje não entendi como vocês chegaram a esse ponto. Tudo porque, lá no passado, você deu em cima da irmã dela...


— Eu comi a irmã dela. Só isso.


— Já seria um motivo. Decido topar a missão:


— Está bem, peço uma semana de licença no jornal e vou com Ângela. Afinal, quero bem à minha sobrinha, embora achasse o marido dela um bolha.


Augusto aperta a minha mão. No final da tarde me entrega as passagens de ida e volta a Manaus. Embarque no dia seguinte.


Só fui ver Ângela depois de ter feito o check in. Passei pelo controle de bagagem, lá estava ela, em frente ao portão 9, uma pequena valise no chão, o cabelo muito preto caindo como um véu, tampando sua nuca branca.


Ângela tem 36 anos. Casou-se aos 16, já grávida de Olguinha. Sempre suspeitei que ela engravidara de outro, Augusto entrou de gaiato ou assumiu a paternidade, gostava de gestos, de grandes gestos. Ela percebeu que eu desconfiava e passou a ter medo de mim. Por vingança, dei em cima da irmã dela. Comi com alguma dificuldade mas comi.


O temor virou ódio. Ângela e eu nunca mais nos falamos. Evitava ir à casa deles. Quando estávamos todos juntos, tanto ela como eu dávamos um jeito de nos afastar.


"Mais do que tudo, gosto de sua bunda, perfeita, um pouco violenta mas proporcional com a cintura fina"

Sempre a desejei. Gosto de sua boca, do tom macio de sua pele, gosto sobretudo de sua nuca. Gosto ainda mais de suas pernas. E, mais do que tudo, gosto de sua bunda, perfeita, um pouco violenta mas proporcional com a cintura fina, bastava olhar para sentir que era uma bunda ao mesmo tempo dura e macia.


Não procurei sentar perto dela. Fiquei em pé, junto ao portão 9. Percebi que já me vira mas continuava mergulhada na leitura de uma revista que, de longe, parecia ser a Time. Era uma forma de me desprezar: só lia revistas estrangeiras para mostrar seu desagrado para com as revistas nas quais eu colaboro para reforçar o salário do jornal.


O alto-falante chamou nosso vôo, Manaus com escalas em Salvador, João Pessoa e Fortaleza. Bem que o irmão poderia ter arranjado vôo direto ou com menos escalas. Mas, como era ele que pagava, não podia reclamar.


Sentamo-nos lá atrás, no setor dos fumantes. Ela ficou junto à janela, eu no corredor. O assento do meio não foi ocupado. Nos próximos cinco ou seis dias estaríamos juntos, em tempo integral. Havia uma missão de misericórdia familiar a cumprir, papéis, polícia, juiz, providenciar mil coisas e trazer Olguinha de volta.


A Time daquela semana devia estar interessante. Apesar de não ser fluente em inglês, Ângela leu-a toda, letrinha a letrinha. Até Salvador, em nenhum momento passou recibo de que eu estava a seu lado. Na escala em Salvador a viagem começou a ficar complicada. Para ser franco, complicadíssima.


Um troço qualquer numa das turbinas e pediram que todos desembarcássemos. Percebi que o negócio era mais sério quando uma recepcionista nos convidou para almoçar por conta da companhia — sinal de que o problema demoraria a ser resolvido. Somente às 4 horas fomos chamados para bordo, o vôo ficara atrasado, chegaríamos a Manaus depois da meia-noite.


Pouco antes de o avião descer na segunda escala (João Pessoa), ouvimos um barulho estranho na turbina esquerda. Houve susto, o aparelho parecia que parara no ar por alguns instantes. Foi pretexto dos mais desculpáveis para me inclinar em direção a Ângela e tentar espiar a turbina. Evidente que nada vi e se visse ficaria na mesma. O importante é que coloquei a cabeça quase em cima dos seios dela, senti o perfume de sua carne, que era esplêndida ali, perto dos ombros que eu sabia redondos e pródigos. Nunca, nunca mesmo, estivera tão próximo de Ângela.


Quanto ao avião, não deu outra. O comandante pousou com dificuldade, houve um sacolejão formidável. Para ser honesto, tive medo, vi a mão crispada de Ângela agarrar a poltrona. E nem a turbina sobrevivente parara e já éramos avisados de que o vôo seria interrompido, a companhia providenciaria outro avião para aqueles que iriam a Fortaleza. Quanto aos passageiros para Manaus, a viagem só prosseguiria no dia seguinte, haveria um hotel à disposição. Ao sairmos do aparelho, notei que a Time ficara jogada no chão.


Eu não conhecia a cidade e acredito que Ângela também não. Ficamos sabendo que iríamos para um hotel na Praia de Tambaú. Que por sinal estava lotado, era uma sexta-feira, alta temporada, havia uma convenção de não sei o quê. Um sujeito com uma planilha dirigiu-se a Ângela, eu estava longe, notei embaraço nela, me aproximei.


— Vocês estão juntos? — perguntou o homem.


Olhei para Ângela. Ela abaixou o rosto. A resposta poderia ser sim ou não. Antes que o homem estranhasse a demora, disse que sim.


— Ótimo. Tiveram sorte, vão pegar um apartamento que dá para a praia.


E me entregou um cartão com a indicação: Apto. 209. Meia hora depois, o boy abria o apartamento 209, ligava o ar-refrigerado e mostrava como se empurrava a porta que dava para uma varanda quase em cima do mar. Na varanda, uma rede azul em diagonal. Imaginei que houvesse duas camas que podiam ficar juntas ou separadas. O que havia era uma cama larga, nupcial. Eu estava trêmulo.


O boy agradeceu a gorjeta e foi embora. Ângela parou diante de um espelho, sacudiu a cabeça e levantou os cabelos — um gesto que ela fazia quando estava cansada ou aborrecida.


A nuca, branca e nua, nunca foi tão branca e tão nua.


Jantamos no restaurante do hotel. Sem mortos e feridos, nos entendíamos por meio de códigos que fabricávamos na hora, alguns deles incluíam gestos, outros nem isso. Eu sabia que Ângela gostava de vinho branco mas não tive coragem de sugerir. Mesmo porque o prato principal era carne-de-sol — decididamente, não combinava.


Depois do jantar, demos uma volta em silêncio pelos jardins, havia um corredor que levava à praia. Ia tomando aquela direção quando Ângela disse a primeira frase naquele dia:


— Vou para o quarto.


Subimos ao 209. Enquanto jantávamos, alguém colocara dois bombons em cima dos travesseiros. E só então notei que Ângela não desfizera a mala. Procurava a chave na sacola de mão. Achei de minha obrigação avisá-la que a companhia podia nos chamar durante a noite. Em certo sentido, continuávamos em viagem. Tão logo consertassem o avião ou aparecesse outro para substituí-lo, seríamos acordados às pressas.


Ângela não ouviu ou se ouviu não deu importância. Tirou umas roupas, catou a camisola, sumiu no banheiro. Ouvi o chuveiro, lembrei que Augusto nunca dormia sem antes tomar banho. Deitei-me sobre a colcha, só tirei a camisa, não pretendia abrir minha mala. Fiquei com as calças.


A cama era larga — abominavelmente larga, larga demais. Mesmo assim, como os animais machos na floresta, marquei mentalmente um território para mim, outro para ela.


Demorou no banho. Em condições outras, eu teria cochilado. Mas não podia vacilar, precisava ficar vigilante, atento aos sinais — mas tudo era sinal naquela circunstância. Até mesmo o fato de, depois do banho, antes de abrir a porta do banheiro para sair, ela ter apagado a luz.


"Vi que sua camisola era curta, deixava à mostra aquelas que tanto me animavam no prazer solitário"

Não disse nada mas estranhou que eu estivesse deitado sobre a colcha, colcha suspeita de hotel. Começou a dobrá-la pelo lado dela, não tive outro remédio senão levantar-me. Ângela dobrou a colcha e a jogou em cima do armário. Ao passar pela pouca luz que vinha da varanda, vi que sua camisola era curta, deixava à mostra aquelas coxas que tanto me animava no prazer solitário.


Deitou-se em silêncio, virada de costas para mim. O momento era delicado. Sobre a colcha suspeita nada demais que eu dormisse de calça. Mas seria grosseria contaminar o lençol presumivelmente limpo com a roupa que usara durante o dia. Estava escuro, só havia o fiapo de luz que vinha de um lampião colonial pendurado no teto da varanda.


Tirei as calças. Dobrei-as com cuidado. Apesar da cautela com que se tiram as calças numa situação como aquela, percebi que Ângela sabia que, agora, eu estava, na melhor das hipóteses, de cueca sunga. Deitei-me aos poucos, procurando fazer o mínimo de marola, respeitando o território mentalmente marcado.



Ângela acendeu um cigarro. Para isso, mudou de posição: não mais estava de costas para mim. Também acendi um cigarro. A primeira a precisar de cinzeiro foi ela — levava umas quatro tragadas de dianteira. Quando percebeu que eu ia jogar cinza no chão, pegou o cinzeiro que estava na mesinha de cabeceira dela, colocou-o no centro da cama, um obstáculo a mais a nos separar.


Fui duas ou três vezes ao cinzeiro, cuidando para que os nossos cigarros não se encontrassem. O dela acabou antes do meu — o que era lógico, ela começara a fumar antes. E como se o cinzeiro agora a repugnasse, ela o pegou e tentou colocá-lo na minha mesinha-de-cabeceira. Com o movimento, veio toda em cima de mim. Foi muito rápido, deu apenas para sentir o peso de suas coxas em cima das minhas. E os cabelos, que ela lavara e não enxugara, molharam meu rosto.


Voltou para seu canto. Eu acabei o cigarro. Achava que a noite, que ainda nem começara, já tinha terminado para mim. Apesar do barulho produzido pelo ar-refrigerado, dava para ouvir o ruído do mar que batia nas colunas de concreto que sustentavam a varanda.


Cada vez que uma onda se quebrava, o silêncio voltava mais fundo. Um silêncio cheio de coisas — de coisas imprecisas, ou melhor, de certas coisas.


De repente, com a voz abafada pelo travesseiro que colocara a fim de escorar o rosto virado para a varanda, ela perguntou:


— Você dorme assim?


— Assim como?


— Seu irmão dorme de pijama.


— Não. Eu costumo dormir nu.


E para tranquilizá-la:


— Mas não estou nu...


— Eu senti...


Acredito que este tenha sido o diálogo mais comprido de nossas vidas. Apesar disso, era um diálogo que, embora não encorajasse, quebrava o código a que nos obrigáramos.


Avisei-a:


— Bem, se você não se incomoda...


Ela percebeu que eu ia tirar a cueca. Deu um pulo:


— Não! Deixa que eu tiro!


Ficou de joelhos em cima de mim. Sentia-lhe o peso do corpo, e nem cheguei a ficar surpreendido ao descobrir que ela estava sem nada por baixo. Tentei falar. Ela tampou a minha boca com a mão. Com um gesto firme tirou a camisola, passando-a por cima da cabeça. Jogou-a longe.


"Acho que ela gostou da rigidez com que a desejava. E nunca penetrei numa mulher tão úmida"

Pensei que fosse me beijar. Ela parecia ter pressa. Nem precisou apelar para as mãos. Erguendo-se um pouco, posicionou-se para a penetração — tanto eu como ela estávamos mais que preparados para isso. Acho que ela gostou da rigidez com que a desejava. E nunca penetrei numa mulher tão úmida.


Quando o telefone tocou, no meio da noite, avisando que um avião vindo não sei de onde acabara de chegar e que deveríamos, em 45 minutos, estar no aeroporto, ela deixou-me possuí-la outra vez. E como ela devia suspeitar há muito que eu gostava de sua nuca branca e nua, ofereceu-se inteira, total. Ao penetrá-la, senti que ela gozava antecipadamente. Só evitei a ejaculação precoce porque já gozara na primeira vez. Mas não pude me controlar quando ela, voz rouca, abafada pelos travesseiros, rosnou:


— Seu filho da puta, eu sempre soube que você queria comer a minha bunda!


Como era verdade, fiquei em silêncio. Estávamos atrasados. Ela foi mais rápida, desceu antes de mim. Na portaria do hotel, onde os passageiros se reuniam, encontrei a Ângela de sempre. Uma estranha. No avião, que ficara mais vazio, ela sentou-se em outra fileira.


Em Manaus, enquanto ela cuidava da filha, eu me virei com os papeis e os bancos. As duas únicas palavras que trocamos, até chegarmos ao Rio, foi no momento de despachar a bagagem. Eu comprara um telefone celular na Zona Franca. Com a embalagem ficara grande demais para caber na minha maleta. Ângela notou o meu embaraço, abriu a bolsa dela, uma bolsa macia, sensual — e a ofereceu, dizendo pela segunda vez naquela viagem:


— "Mete aqui!"


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