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ÊXTASE NO OLHAR

Reportagem

As delícias do voyeurismo, a arte de ter satisfação sexual olhando os outros, num irresistível encontro da imaginação com a sensualidade e a aventura


POR HAMILTON DOS SANTOS

FOTOS HELMUT NEWTON


Os desejos do voyeur são movidos pelo prazer. Por isso, Helmut Newton, o americano que se transformou num sinônimo de excelência na arte de fotografar e que está sempre com os olhos em busca do erotismo, criou o sensualíssimo ensaio que, com êxtase e requinte, emoldura esta reportagem. Nele, desvenda os mais íntimos segredos guardados em suas retinas, ousadas retinas de um voyeur. É sob este clima de sedução que começa esta história.


São Paulo, Avenida Angélica. Um jovem executivo entra na sala de seu belo apartamento, onde encontra a empregada, de corpo exuberante. Enquanto, maliciosa, ela se livra do uniforme, o executivo vai até a janela e mira o binóculo para o apartamento da frente, onde uma outra empregada, também estonteante, dá início a um bailado erótico. Assim, enquanto sua empregada lhe aplica um ardente blow-job, nosso jovem executivo acaricia a outra através das lentes de seu binóculo. Uma a seus pés, a outra se exibindo afoitamente a uns 100 metros dali, nosso executivo enche seu imaginoso fim de tarde com um prazer que deslumbra seus olhos e arrepia seu corpo, ambos absolutamente seduzidos pelas serviçais maliciosas.


Enquanto a amante lhe aplica um ardente beijo, o executivo acaricia a outra através das lentes do seu binóculo

Rio de Janeiro, Leblon. Uma conhecida estrela da música brasileira encontra-se atrás das cortinas da janela de seu quarto. Está numa posição de certo desconforto. Tem enorme dificuldade para desabotoar seu jeans sem que seja notada pelo casal que faz amor em sua cama. O homem sabe que sua performance está sendo degustada pelos olhos de sua irmã espiã. Mas, se ele sabe que sua irmã está atrás das cortinas, sua parceira, uma loira debochada, de pernas grossas e seios grandes, nem sequer imagina que os insistentes pedidos do parceiro para que se mantivesse na quina da cama com as pernas bem abertas fosse para o deleite da famosa espiã e não para o do seu próprio amante.



De volta a São Paulo. Uma jovem assistente de marketing volta para casa depois de um intenso dia de trabalho. Alguns quarteirões antes de ganhar a garagem de seu apartamento, na Alameda Campinas, nos Jardins, percebe que sob uma árvore um casal se beija freneticamente. Há movimento na rua, que no entanto já está bastante escura. A garota percebe que o casal está evoluindo para uma relação mais nervosa. Ela estaciona seu Voyage sorrateiramente a alguns metros da cena e começa a perceber que o rapaz, com a mão esquerda, invade o vão entre as pernas de sua namorada, e com a direita começa a atingir com golpes curtos, mas violentos, a cara da parceira. Certificando-se de que se encontra num ponto seguro, a assistente de marketing levanta o vestido até a cintura, rasga suas meias finas e começa uma delicada masturbação, enquanto, lá fora, o casal quase chega às vias de fato.


Um depoimento: "Tenho que produzir certas cenas para satisfazer meu tesão. Às vezes, é possível convencer um casal amigo para que transe no meu apartamento e que eu possa observá-lo. Mas são poucos os que topam. Por isso, passei a consultar os classificados de jornal e, através deles, contratar garotos e garotas de programa. Invento as maiores fantasias para eles. Nunca entro na transa mas, como também sou uma exibicionista irremediável, às vezes pago para que eles não façam nada, apenas me observem enquanto me masturbo. Além do meu trabalho como publicitária, essa tem sido minha melhor terapia relaxante nos últimos sete de meus 34 anos."


Berlim, zona central. Um rapaz de ombros largos e membro nitidamente avolumado traz nas mãos uma pilha de moedas. Quando entra no pip-show (espetáculo de exibicionismo) são mais ou menos 10 da manhã. Às 14 horas, já havia consumido um arsenal inimaginável de moedas que trazia dentro da bolsa. Enquanto, com a mão direita, deposita as moedas no orifício, com a outra acaricia seu próprio membro.


SEM TRAUMAS, SERVE COMO UM ESTIMULO À ATIVIDADE SEXUAL


Todas essas histórias, reais, têm a mesma raiz — o voyeurismo, este clássico erotismo-óptico praticado em larga escala em cada canto do mundo, com maior incidência nos países da Europa central, sobretudo os de tradição protestante, onde a repressão sexual é mais característica. O voyeurismo, praticado desde que o Criador nos legou a visão, só atinge ares patológicos quando levado a extremos, como no caso do rapaz das moedinhas. No mais, garante a psicanálise, é uma grande festa do olhar, um estímulo à atividade sexual.


Mas o que é mesmo um voyeur? Antes, de onde surgiu esta palavrinha que já consta nos dicionários de centenas de línguas, entre elas a portuguesa, devidamente registrada pelo Aurélio? Voyeur deriva de voir, palavra do idioma francês que significa ver. O fato de o termo ter surgido na França não é de se estranhar. Lá, a experiência visual faz parte da tradição cultural do país, onde a expressão surgiu no século XVIII, provavelmente cunhada por um daqueles conhecidos libertinos que ajudaram a desencadear a modernidade do chamado Século das Luzes, o qual nos brindou com Marquês de Sade, Restif de la Bretonne (também conhecido como o Espectador Noturno), ambos autores de desconcertantes obras sobre sexo, e muitos outros. Se a palavra apareceu na França do século XVIII, não se pode esquecer que o seu significado não está totalmente dissociado do chamado amor platônico, cuja existência foi detectada, na Grécia Antiga, pelo filósofo Platão, que falava de um amor baseado na beleza, não sendo necessário o contato sexual para que ele se realizasse. No mundo erótico, o voyeur, diz o neuropsiquiatra paulista Rubens Piutilik, é aquela pessoa que se sente sexualmente estimulada através da observação dos órgãos genitais ou da ação sexual de outras pessoas.


Mas, se existem aqueles que se realizam com o ato de olhar, o oposto também ocorre na mesma proporção. O exibicionismo é o contraponto exato do voyeurismo. Como na Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, ainda que de forma subliminar, há quase sempre uma cumplicidade entre o ato de olhar e o de ser olhado. Diferente de flertar, a ação voyeurista e exibicionista têm um fim em si mesmas. É exatamente nessa brecha deixada pelo "quase sempre" que o mundo moderno incorporou as formas institucionalizadas de atender a demanda voyeurista. Uma demanda tão expressiva na sua quantidade quanto na sua diversidade. Estas formas institucionalizadas (os filmes pornôs, os pip-shows, as revistas eróticas e pornográficas, os kilts etc., etc.) são meios práticos e seguros de se exercer o voyeurismo — mas voyeur que se preza faz mesmo é como a nossa estrela da música e seu irmão ou como a nossa assistente de marketing, dois casos raros, já que as chamadas voyeuses existem em quantidade infinitamente menor do que os homens que gostam de sentir prazer com a visão. Já em se tratando de exibicionismo, as mulheres estão na frente.


Se existem aqueles que se realizam vendo os outros, o oposto, o exibicionismo, também faz parte desse jogo sensual

Os voyeurs clássicos não dependem exclusivamente destas formas institucionalizadas. Eles têm os seus próprios métodos e sempre agem com extrema segurança: alimentam seus impulsos sem nunca incomodar os outros, a não ser que estes estejam de acordo — e aí, claro, o incômodo vira cumplicidade. Já aqueles que chegam a fazer buraquinhos nas portas de banheiro ou os que se escondem dentro de toaletes femininos, colocando a sua privacidade e a dos outros em risco, estão no âmbito patológico. É diferente, por exemplo, do adolescente que, corno bem descreve a canção Doze Anos, da Ópera do Malandro, de Chico Buarque, sai "por aí pulando muro / olhando fechadura / e vendo mulher nua". Neste caso, o voyeurismo nada mais é senão um processo absolutamente normal na educação sexual do adolescente que, por mais safadinho que seja, nada mais está fazendo do que garantir a satisfação de sua curiosidade natural. A coisa será bem diferente se essa atitude passar a ser uma obsessão.


NA CULTURA CONTEMPORÂNEA, É UM FENÔMENO COLETIVO


Isso pode acontecer, segundo a psicanálise, quando os jogos amorosos entre pai e mãe se transformam num mistério proibido para a criança. Aquela coisa de os pais dizerem "Proíbo você de brincar de médico com sua amiguinha", "Querido, vamos parar que nosso filho está olhando" fará com que a criança conceba o amor como algo ruim. Estas palavras de ordem serão captadas como traços negativos e, se as proibições tiverem sido intensas demais para a personalidade frágil em formação, as relações íntimas entre os pais, o funcionamento dos órgãos sexuais e a curiosidade pelo corpo dos outros se transformarão no centro de atração da pessoa, que assim estará se tornando um típico exemplo de voyeur doentio, que muitas vezes se associa a outras perversões para compor quadros assustadores.


Mas o voyeurismo é, na maioria dos casos, outro recurso da sexualidade, que, em suma, está sempre em busca de algo mais, o que, para além do âmbito puramente sexual, não é nada fácil de se conquistar, mesmo quando temos na nossa cama uma Rita Hayworth sem aquele vestido preto com o qual aparece em Gilda. Se para a psicanálise o voyeurismo é um dos complexos ingredientes da sexualidade, para a filosofia, que tende a complicar a extremos inimagináveis qualquer expressão, é nada mais que uma modulação hiperintensa da experiência de fascínio comum a todos os homens. Por isso, não é de se estranhar que o voyeurismo, dentro dos labirintos da cultura contemporânea, esteja cada vez mais se expressando como um fenômeno de massa do que individual. O voyeurismo coletivo, que poderia ser destrinchado através da psicologia de massas de que falava Freud.


Tome, por exemplo, Dublê de Corpo, do diretor americano Brian de Palma. Neste filme, pode-se afirmar que o protagonista é nada menos do que o próprio voyeurismo, que contracena com o exibicionismo. O personagem Jake, que é ator mas acaba se transformando em detetive, tem um telescópio na janela do apartamento que toma emprestado de um amigo por um tempo. E através do telescópio que ele vai conhecer a mulher pela qual se apaixona. Ele vê tudo: os ataques do maníaco à mulher, ela se despindo e por aí vai. Com o desenrolar do filme, o telespectador vai descobrindo que tudo que é visto pelo telescópio de Jake não passa de uma sofisticada encenação exibicionista. Fica claro também que um filme como aquele não seria possível se o seu próprio diretor, De Palma, bem como o seu mestre, Hitchcock, não fossem irremediáveis voyeurs.


É DIFÍCIL MESMO RESISTIR AO ENCONTRO DE EROS COM NARCISO


O voyeurismo (cientificamente também conhecido como mixoscopia), em geral, é um jogo refinado por definição, e uma boa cota de imagens ardidas pode funcionar melhor do que o mais inventivo afrodisíaco. O nível de sofisticação é tanto que, nos Estados Unidos, a produção erótica feita em série já não chama mais tanta atenção. Os voyeurs mais exigentes não se contentam simplesmente com cenas hiperproduzidas e, às vezes, cosméticas. Preferem aquelas imagens naturais e que, de certa forma, estejam comprometidas com a realidade. Por esta razão, já é um fenômeno a quantidade de produção de vídeos amadores que circulam hoje pelo país. Estes vídeos têm combinado perfeitamente impulsos exibicionistas com os impulsos voyeuristas. Entre as centenas de milhares desses vídeos amadores, uma série se destaca. Trata-se de Maly Lou The Stud Finder (algo como caçadora de garanhões), que revela todas as intimidades de uma advogada criminal, uma fascinante balzaquiana. Até seu marido, um ginecologista, aparece em suas produções. "Eu era tímida. Eu cresci tímida como um patinho feio", diz a advogada. "Agora, acho ótimo pensar que as pessoas gostam de me ver e tenho enorme satisfação em ver a mim mesma nos filmes."


É justamente essa trama que faz o voyeurismo ser uma prática muito sedutora. Afinal, não há mesmo como resistir ao encontro de Eros com Narciso, este último um voyeur contumaz, cujo objeto de desejo era ele próprio. E se hoje em dia o voyeurismo não é um fenômeno social mais amplo, é porque, em sua trajetória rumo à modernidade, o homem incorporou novos conceitos à sua cultura. Como demonstram os estudiosos da chamada vida privada, a história do homem também pode ser vista pelo ângulo de seu desejo de intimidade. Na Antiguidade, por exemplo, era comum que as núpcias de um casal fossem acompanhadas por uma verdadeira multidão de parentes e amigos que, evidentemente, sentiam prazer com isso. Esses rituais foram desaparecendo a partir do início do chamado Século das Luzes, justamente quando apareceu a palavra voyeur.


SETE ESTILOS DIFERENTES


Há vários tipos de voyeur, cada um com seu estilo e modo de atuar. Confira:


High-Tech

É o tipo mais discreto e o que menos corre riscos de levar um susto. Está sempre armado até os dentes com equipamentos ópticos importados, de todos os alcances, para qualquer eventualidade erótico-visual. Vive pendurado em parapeitos e raramente se masturba em ação. Coleciona imagens para aproveitá-las na hora de uma transa concreta.

Cara a Cara

Para este tipo, o olhar primeiro detecta a beleza do rosto da pessoa a ser vislumbrada. Só vai em frente se o rosto for sinônimo de beleza. Detesta intermediações como binóculos, lunetas etc. Ganha o dia quando consegue admirar bem de perto os movimentos de uma ninfeta chupando sorvete.

Exibicionista

É tão marcadamente narcisista que adora saber que está sendo olhado. Não passa sem encarar o admirador, que por sua vez alimenta o jogo.

Neurótico

É inseguro em todos os sentidos. Teme ser descoberto em ação e jamais se satisfaz com o que vê. No meio de uma cena, já começa a pensar na próxima que pode surgir. Raramente acumula a característica de exibicionista. Quando casado, é o primeiro a entrar debaixo do lençol e torce para que a mulher troque de roupa num local que sua vista alcance. Sente-se culpado.

Patológico

Não chega a ser perigoso, mas provoca constrangimentos. Por exemplo; no cinema, procura sentar-se na frente de casais de namorados para flagrá-los se beijando etc. Em geral, gosta de presenciar cenas de sadomasoquismo. Em ação, quase sempre se masturba. É pornocinéfilo e gosta de tudo explícito. Não tem paciência para o famoso antes. Quer ir logo ao durante e torce para que nunca chegue o depois.

Moralista

Exemplo clássico é o padre, safadérrimo, do filme Crime e Paixão, de Ken Russel, que não perde um só lance das coxas de suas confessas. Enquadra-se perfeitamente neste caso aquele que, mesmo tirando uma casquinha, usando a estratégia do rabo de olho, critica e condena o exibicionismo da mulher olhada.

Televoyeurs

Só se relacionam uns com os outros através de intermediação eletrônica. Este tipo também é um colecionador de imagens, mas elas só lhe são úteis quando combinadas com estímulos auditivos. Sua prática mais comum é se masturbar por telefone, ouvindo a voz e olhando para a fotografia da parceira. Sentem-se cegos sem um telefone por perto.


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