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DEIXA EU TIRAR TEU VÉU?

Reportagem



O nosso lado libertino não nos deixa enganar. O prazer pode estar no sexo, mas o gozo está nas proibições


Por MAURÍCIO HORTA


Quando P. atravessou a fronteira entre Afeganistão e Irã, deixou para trás uma de suas maiores experiências eróticas: tirar o véu de uma mulher afegã. Em seu périplo de mochileiro pela Ásia, o jovem engenheiro português conheceu um comerciante em Herat, uma cidade afegã na rota que liga o Sul da Ásia ao Oriente Médio. O Islã possui algumas normas surpreendentes para ocidentais, entre elas a obrigação religiosa de oferecer hospitalidade a viajantes. E, como bom muçulmano, o comerciante abriu sua casa para P., que lá se hospedou por um mês. Essa era uma família liberal para os padrões afegãos, e, ainda que P. só pudesse ver as mulheres cobertas pelo hijab, ao menos tinha a liberdade de falar diretamente com elas. P. falava, mas sobretudo com a filha do comerciante.


Não conheci a moça, mas a fantasia ocupa os nossos vazios, e ela ganhou os olhos de Sharbat Gula, a garota refugiada afegã de olhos verdes felinos fotografada na mais famosa capa da National Geographic. Seu rosto ficava à mostra, mas o cabelo permanecia proibido ao visitante. Durante esse mês, P. aguentou, com uma curiosidade insuportável. E suponho que ela também – preciso admitir que P. era bonito, certamente mais do que eu; e, com sua pele oliva e corpo atarracado, não teria dificuldade de se misturar entre os mais garbosos tadjiques de Herat, com o grande benefício de não ter as marcas de mais de três décadas de guerra. Quando conseguiu cavar uma oportunidade sem que houvesse parentes por perto, P. pediu que tirasse o hijab. Ela tirou. E se beijaram. Nesse momento, P. teve aquela experiência arrebatadora que vai além do prazer. Aquele gozo cocaína, precipício, oceano. Mas esse momento também o obrigou a partir. A situação podia se complicar, pois, assim como o islã dá ao viajante o direito à hospitalidade, exige dele obrigações, entre elas, naturalmente, a de não desonrar suas filhas.


P. era um galanteador, e sua ficha de experiências sexuais não deve ser das mais curtas. Ainda assim, essa foi arrebatadora. Mesmo sem troca de fluidos – ou pelo menos assim me contou. Tenho uma teoria. Algumas pessoas dizem que sexo é uma necessidade fisiológica. Quando nos falta, nos causa sofrimento, até que transamos e nos aliviamos – e aí está o prazer. Bom, a tese pode ser válida se falarmos em prazer de forma geral. Mas o gozo está além do prazer, além do mero alívio, além daquela satisfação de sentar-se numa poltrona e tirar o sapato depois de um dia inteiro de pé. Não, o gozo não é comer uma torta quando está com fome. É roubar a torta. É namorar uma proibição e depois transgredi-la. Para P., o véu bastou. É um homem de sorte. Outros buscam muito mais.


LIBERTINOS


Uma década atrás, num porão da Praça Roosevelt, centro de São Paulo, eu me vi amarrado a correntes, fustigado cenicamente por rapazes vestindo cintas-caralho patéticas, enquanto duas experientes cafetinas contavam histórias criminosas para uma plateia constrangida. Não era bem a minha vontade parar lá. A ideia inicial era que eu e alguns colegas de faculdade fizéssemos um documentário sobre o grupo de teatro Os Satyros. Queríamos contar a história da trupe que transformou aquela praça – então uma boca de fumo e ponto de travestis – num dos mais fervilhantes centros culturais de São Paulo. Rodolfo García Vázquez, o diretor, topou a filmagem. Mas acrescentou: “Que coincidência; vamos começar agora a adaptar pro palco um romance do Marquês de Sade. Por que vocês não acompanham o processo de criação?”


O 120 Dias de Sodoma é a obra máxima do Marquês de Sade, escrita num rolo de papel com letras miúdas quando estava preso na Bastilha, condenado por envenenamento e sodomia. Nela, relata com detalhes os 600 diferentes crimes sexuais que quatro nobres libertinos infligiam em grau crescente de crueldade a 46 adolescentes sequestrados. Na montagem dos Satyros, eram apenas 16, e um dos atores abandonou o papel. Foi quando Rodolfo me fez a proposta: “Você está conosco há meses. Por que então não entra para o elenco?”


Oportunidade não se perde, e, assim, por 80 noites, fui Hyacinthe, menino de 14 anos que animava orgias com peças de Bach e se servia, até a morte, de banquete orgástico para libertinos como o duque de Blangis – que bradava do alto de um mezanino: “Cedo me convenci de que a existência do Criador é um absurdo revoltante. Não tenho absolutamente nenhuma necessidade de constranger as minhas inclinações com vista a agradar-lhe. Se recebi da natureza inclinações más, foi porque, aos olhos dela, assim me eram necessárias”.


ATÉ PODEMOS SENTIR PRAZER COM REGRAS. MAS SE AS VIOLAMOS, VAMOS ALÉM DO PRAZER. GOZAMOS

Confesso que o gozo fantástico dos libertinos de Sade não me persuadia. É claro, havia os exageros do teatro, a fantasia da ficção. Faz parte. Mas, ainda assim, era uma perversidade caricata por demais. Como o banqueiro Durcet poderia sentir prazer em desposar a própria filha, a piedosa Adelaide, que rezava com paciência para um dia receber do céu recompensa pelas punições aplicadas pelo pai-marido? Que graça sentia o presidente de Curval, esse porco de Sodoma, em cultivar um anel de duas polegadas de imundice no traseiro? Somente pessoas doentes poderiam alimentar perversões semelhantes.


Talvez fosse simples questão de posição e oportunidade, como dizia um dos libertinos. Se na peça eu fosse um personagem com poder, gozaria dos deboches, em vez de me acabrunhar nos cantos do palco. Porque o diabo mora no espelho. Ainda que com diferentes objetivos e em diferentes intensidades, todos queremos transgredir. A genialidade humana foi capaz de diminuir o sofrimento construindo civilizações que aumentaram a expectativa de vida, domesticaram as intempéries da natureza e organizaram as relações humanas de forma minimamente harmoniosa e produtiva. Mas isso só foi possível por causa de um pacto: em troca de paz e conforto crescentes, aceitamos sacrificar nossas vontades por meio de regras. Até podemos sentir prazer dentro da civilização. Mas quando as violamos, vamos além do prazer. Gozamos.


CHICOTINHO FAKE


Quando os libertinos dos séculos 18 e 19 criaram uma literatura de excessos, não passavam de círculos quase aristocráticos. Já a partir da segunda metade do século 20, a transgressão entrou para a cultura popular numa espiral ascendente. Desde o advento dos beatniks, o mercado de transgressões prontas só cresceu. O heavy metal vendeu fantasias de poder ilimitado, forças sobrenaturais e destruição. Os punks se rebelaram contra o Estado, a religião e qualquer rastro de civilidade. Madonna destruiu símbolos católicos e os reconstruiu como objeto sexual. Isso para não falar das fantasias vendidas pelo cinema. Mas isso não quer dizer que as gerações seguintes se tornaram mais transgressoras. Talvez o contrário. Todos esses produtos culturais são eficientes em oferecer uma imagem de transgressão; no entanto, quem os consome não faz nada de transgressor. Na verdade, compra um produto permitido, catalogado, voltado ao devido público-alvo. Um pedaço de transgressão alheia.


É como o chicotinho indolor vendido em sex shops. Ele é lúdico; serve bem para um fazer de conta que está apanhando, sem ter que arcar com a dor de apanhar de verdade, e para o outro fazer de conta que está batendo, sem precisar assumir a responsabilidade de provocar dor. Pensamos: “Eu sei muito bem que não é de verdade, mas, ainda assim, é como se fosse”. Sabemos muito bem que ler um romance de Sade não equivale a abusar sexualmente de 46 adolescentes num castelo inacessível. Que assistir a seriados não nos torna traficantes de drogas, nem políticos inescrupulosos, nem espiões russos. Que ver um vídeo MILF num site pornô não é a mesma coisa que transar em cinco posições diferentes e em diferentes orifícios, em ângulos desconfortáveis, com uma mulher de 45 anos fingindo orgasmo. Mas dá na mesma. É como se fosse.


Essa ilusão de transgressão nos permite driblar imperfeitamente um dos grandes dilemas da vida: a escolha entre liberdade e segurança. Por mais que tentemos, nós nunca sentimos que temos o suficiente dos dois ao mesmo tempo. Quando nos falta segurança, abrimos mão de liberdades. Seguimos os dez mandamentos bíblicos. Restringimos o número de parceiros. Botamos camisinha. Dirigimos dentro do limite de velocidade. Restringimos a gula, cortamos o excesso de álcool, tentamos parar de fumar, começamos a fazer esportes. Pensamos que rebeldia é coisa da adolescência, ou de adulto com baixa expectativa de vida. Então, nos sentimos seguros. Mas eis que o desejo por liberdade começa a nos perseguir. Queremos transgredir e gozar. Transar com pessoas em situações proibidas. Intoxicar-nos num festival de música até perder a consciência. Pegar a estrada à noite e dirigir com o acelerador no talo – não pela mera velocidade, mas para chegar ao limite do nosso controle sobre o carro, tangenciando a morte. A ilusão de transgressão satisfaz um pouco da ânsia por liberdade, sem nos tirar da zona de segurança.


E ASSIM É GOZAR. É A SENSAÇÃO DE ESTAR MUITO VIVO PORQUE PRÓXIMO DO FIM. SENSAÇÃO DE QUEDA LIVRE

Algumas pessoas não se satisfazem com a ilusão e abrem mão totalmente da segurança em busca da liberdade. Lembro-me de C., uma australiana quarentona que conheci em Bangcoc. Havia cerca de um ano, ela descobriu que tinha câncer. Depois das primeiras sessões de quimioterapia, decidiu abandonar de vez o tratamento. C. não tinha muito mais o que perder. Se a morte era certa, para que continuar sacrificando a liberdade? Então C. rompeu o equilíbrio da balança. Os filhos queriam que ela fosse ao hospital; ela preferiu cortar toda comunicação com a família e viver de sol e mar no Sudeste Asiático. E, numa praia tailandesa, conheceu um jovem nigeriano e redescobriu sua vida sexual. C. trocou a incerteza da cura pela certeza do gozo.


Embora C. parecesse feliz com sua liberdade, ela não era inteiramente sem dor. Pelo contrário. A liberdade que ela conquistou foi um ganho em prazer, mas também em sofrimento. Foi um amálgama de prazer e dor, ganho e perda, vida e morte. E assim é o gozo. É a sensação de estar muito vivo porque próximo do fim. Sensação de queda livre. De roleta russa. E a liberdade entrega a morte.


Caímos numa armadilha. Dependemos de um sistema de interdições para chegarmos ao gozo acachapante, e acabamos correndo atrás do próprio rabo. Quando transgredimos demais, damos sorte pro azar, e a bala no tambor periga alguma hora chegar à cabeça. Quando permanecemos na zona de segurança, consumindo apenas ilusões de transgressão, acabamos insatisfeitos. Então me lembro de P., o engenheiro português. Eu o admiro. Consegue escolher pequenas proibições e transformá-las em motos perpétuos de erotismo. Depois de deixar o Afeganistão, atravessou o Irã até chegar a Yazd, uma cidade desértica no centro do país. Percorrendo os labirintos de construções de adobe, encontrou uma mulher de hijab. Desta vez, não uma muçulmana, mas A., uma estudante brasileira que também atravessava a Ásia por terra. Como todas as mulheres no Irã, tinha que cobrir o corpo, com exceção das mãos e do rosto, sob o risco de repreensão da polícia. Era, então, envelopada por um sobretudo justo preto, uma calça larga preta e um lenço colorido. Acabaram seguindo viagem juntos por mais quatro dias, dormindo em quartos separados, conforme prescreve a lei iraniana para os viajantes solteiros. Até que, num hotel em Shiraz, no primeiro dia de Ramadã, ele esperou um momento em que não havia nenhum iraniano no corredor, entrou no quarto daquela mulher que era só rosto e mãos e perguntou: “Quero ver o teu cabelo. Deixa eu tirar teu véu?”


ILUSTRAÇÕES EDUARDO KERGES



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