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GILBERTO BRAGA | JULHO, 1980

Playboy Entrevista



Uma conversa franca sobre sexo, censura, dinheiro, sucesso, os bastidores da TV e o fantástico mundo da novela das oito, com o autor de Água Viva


Durante todo este mês de julho, 50 milhões de brasileiros estarão sintonizados na cabeça de Gilberto Braga. Água Viva, a novela que, desde fevereiro, tem obrigado o Brasil a ficar em casa entre 8 e 9 da noite, aproxima-se do último capítulo — e essa multidão de telespectadores está ansiosa por saber os destinos que Gilberto terá reservado para Nélson (Reginaldo Faria), Lígia (Betty Faria), Sueli (Angela Leal), Miguel (Raul Cortez), Esteia (Tônia Carrero), Lurdes (Beatriz Segall), Janete (Lucélia Santos), Marcos (Fábio Jr.), Sandra (Glória Pires), Irene (Heloísa Mafalda), Edir (Cláudio Cavalcanti), Márcia (Natália do Vale), Cléber (José Lewgov), Selma (Tatuara. Taxman), Maria Helena (Isabela Garcia) e os outros personagens que, durante tantos meses, entusiasmaram tanta gente.


Água Viva chegará ao fim com uma média de 90 pontos no Ibope este mês — a mais alta na história da telenovela —, mas a Rede Globo não descarta a possibilidade de, no próximo dia 2 de agosto, quando for ao ar o último capítulo, a novela superar até os quase 95 pontos que Pai Herói, de Janete Clair, alcançou no dia 18 de agosto de 1979. Se isso acontecer, não será surpresa porque Gilberto Braga está sendo considerado pela crítica como o melhor discípulo de Janete Clair. E a própria Janete foi mais longe e o classificou como "o melhor de nós todos".


Melhor discípulo ou melhor de todos, o fato é que; da cabeça de Gilberto, saíram os personagens e situações que, nestes últimos meses, andaram açulando paixões, despertando suspiros, provocando ódios e lançando modas em todo o Brasil.


As pessoas se comoveram (e vão se comover mais do que nunca) com o drama de Maria Helena, que conseguiu despertar até um novo interesse pelo problema da adoção e do menor abandonado. Elas amaram Nélson Fragonard e tiveram sentimentos confusos a respeito de seu irmão Miguel. Torceram desesperadamente por Sueli e reagiram violentamente a Lígia, já que ambas reagiram Nélson. Mas o personagem que reuniu a quase unanimidade de sentimentos foi o de Lurdes Mesquita, inspirado — segundo Gilberto — na madrasta da Branca de Neve. Rapaz, como ela foi odiada! Mas o melhor é que todos esses sentimentos continuarão sendo alimentados até o fim deste mês, quando todas as peripécias de Água Viva crescerão em intensidade até atingirem um clímax que, para milhões, será comparável ao de um orgasmo.


Depois de Água Viva, todas as praias do Brasil adotaram o windsurf. Reginaldo Faria tornou-se o novo símbolo sexual masculino do país, após vinte anos de carreira cinematográfica (veja PLAYBOY do mês passado). Lucélia Santos firmou a imagem de menina-moça que explodiria em toda a sua suave beleza nas páginas de PLAYBOY de abril último. E Betty Faria, de quem os leitores de PLAYBOY sentiam saudades desde a nossa edição de agosto de 1978, voltou com força total, após quase dois anos fora das novelas.


Gilberto Braga, carioca de 34 anos, não tem apenas um grande futuro como escritor de televisão. Já tem até passado. Começou adaptando A Dama das Camélias para "Caso Especial" e, durante alguns anos, habitou o horário das seis com Senhora, Helena, A Escrava Isaura e Dona Xepa. Todas essas eram adaptações de romances ou peças conhecidos, mas os créditos na abertura foram passando aos poucos de "Adaptação de Gilberto Braga" para "Uma Novela de Gilberto Braga", tal a margem de invenção a que ele se permitia. A novela das seis é aquela em que a Globo tenta formar escritores novos, antes de lançá-los na grande aventura da novela das oito, que é o filé do Ibope.


Para Gilberto, o salto para o horário das oito não foi uma aventura — foi uma apoteose. A novela chamou-se Dancin' Days, e, de outubro de 1978 a março de 1979, manteve o país inteiro ao ritmo da discothèque, e fez todo mundo se apaixonar por Júlia (Sônia Braga) e Cacá (Antônio Fagundes). Com Dancin' Days, Gilberto Braga passava a fazer parte desse clube fechadíssimo, composto por Janete Clair, Dias Gomes, Bráulio Pedroso e poucos outros.


Água Viva teve uma característica que, de saída, tornou-a diferente de todas as novelas: deu 80 de Ibope logo no primeiro mês, seus astros foram capa de todas as revistas e o clima da história — pesca, veleiro, topless, patins, festas e juventude — envolveu imediatamente o grande público numa atmosfera de euforia. A maioria das novelas começa por baixo e leva quase dois meses para decolar.


Mas como será a cabeça do autor de Água Viva? Para descobrir isso, como se jaz um noveleiro de sucesso e o que acontece por trás das câmeras, o editor Ruy Castro passou dois dias inteiros no amplo apartamento de Gilberto Braga no Flamengo, no Rio — teto preto, spots aparentes e uma estante cheia de livros sobre o cinema americano. "Eu já conhecia o Gilberto desde que ele era crítico de teatro, no início dos anos 70, e ainda se assinava Gilberto Tumscitz. Perguntei-lhe por que tinha mudado para Gilberto Braga", diz Ruy.


"Braga é o sobrenome de minha mãe", respondeu Gilberto. "Mas só mudei para facilitar as chamadas de áudio na televisão. Ia ser difícil o público entender: 'Uma novela de Gilberto Tumscitz, dirigida por Ziempinskv e estrelada por Sura Berditchevsky e Ísis koschdoski'. Não ia vender bem, ia?" E Gilberto Braga gosta de vender bem o seu produto.


PLAYBOY — O incrível sucesso de Águia Viva fez de você a maior revelação de escritor de televisão em muitos anos. Por que aparecem tão poucos bons autores de novela?


GILBERTO BRAGA — Deve ser porque é difícil escrever novela, não? E além disso é muito chato escrever uma história que tem de durar 150 capítulos e te obriga a produzir vinte laudas por dia, trabalhando a noite toda, acordando às 3 da tarde, sem ir ao cinema, sem ir ao teatro. É desumano. Outro dia eu li uma entrevista do Carlos Eduardo Novaes dizendo que, depois de Chega Mais, ele não quer escrever outra novela, porque não tem visto a mulher dele e tal. Eu entendo. E, se olhar para a minha cara, você vai ver que eu estou arrasado, física e psicologicamente.


PLAYBOY — Parece em bom estado de conservação. Mas como seria a estrutura ideal de novela para você? Noventa, cem capítulos, ou seja, três ou quatro meses no ar?


GILBERTO — Não. Eu tenho a impressão de que, pelo menos por enquanto, vai ter que continuar assim, porque acho que o público prefere novela longa. Ele demora muito a se ligar na novela, principalmente as classes B e C.


PLAYBOY — Mas com as suas não acontece isso. O público adorou Água Viva desde o começo.


GILBERTO — É. Com as minhas não. Talvez porque eu tenha uma boa audiência na classe A, e classe A se liga mais depressa. Mas o grosso dos telespectadores só começa a se interessar depois de um mês da novela no ar. Eu sinto isso na minha casa, pela minha cozinheira, que só fica ligadona a essa altura. Comigo é o contrário, porque eu só acho muito interessantes os primeiros capítulos e, quando o público começa a gostar, eu já estou cansado, estou noutra e não queria mais estar escrevendo aquilo.


"Só gosto dos primeiros capítulos das minhas novelas. Quando o público começa a gostar, já estou em outra"

PLAYBOY — Então por que continua? Por dinheiro?


GILBERTO — É claro que dinheiro é superimportante na minha vida, mas dizer que eu faço televisão por dinheiro seria uma simplificação. Tem outras coisas também. A sensação do sucesso é muito boa e eu lamento minha mãe não estar viva, porque ela adoraria. É ótimo quando, depois de um capítulo bom, o telefone não pára. Os amigos ligam para dizer que gostaram daquela frase ou daquela cena.


PLAYBOY — Seja como for, dinheiro é muito importante na vida dos seus personagens, não?


GILBERTO — Demais! Eu acho um saco o quanto se fala em dinheiro em Água Viva. [Risos.]


PLAYBOY — Você tinha algum preconceito cultural contra a televisão no tempo em que era crítico de teatro?


GILBERTO — Preconceito, não tinha, não. Problema em relação ao veículo eu tenho até hoje, e só estou conseguindo superar um pouquinho com o meu vídeo-cassete. Me grila muito esse negócio de ter que ver alguma coisa numa hora que escolheram para mim. Mas isso não tem a ver com preconceito, e sim com liberdade. Eu não era um espectador de televisão. Não era mesmo, não via nada. Uma dúvida que eu nunca vou resolver na minha cabeça é a de que, caso não tivesse entrado para a televisão, se algum dia eu seria espectador de televisão. Eu sempre me pergunto se veria Água Viva se não fosse o autor. Tenho a impressão de que, vendo, eu ia gostar, ia achar interessante. Mas não teria saco para ligar toda noite às oito horas. Há muito mais coisas para fazer.


PLAYBOY — Suponhamos que a maioria dos telespectadores não tenha tantas coisas para fazer.


GILBERTO — Pois é. Talvez isso tenha a ver com o fato de eles preferirem novela longa. Essa gente tem tão poucas opções de vida que precisa conviver durante seis meses com personagens que eles amam ou odeiam, mas que fazem parte da vida deles. Se as novelas fossem mais curtas, eles iam perder essa convivência e, até se acostumarem com uma nova família de personagens, seria trágico para eles. Pode ser isto, sim.


PLAYBOY — Como se explica que Água Viva tenha dado 80 pontos no Ibope logo no primeiro mês?


GILBERTO — Acredito que foi porque entrou numa época favorável, logo depois de uma novela que não era muito amada, como Os Gigantes, e então o público devia estar com vontade de ver alguma coisa interessante. Porque, em geral, é o contrário. Depois de um grande sucesso, como Dancin' Days, por exemplo, o público pensa assim: "Ah, não vou mais ver novela, porque me atrapalha o jantar ou chega uma visita e eu não posso conversar por causa da novela, e não sei o quê". As pessoas ficam com sentimento de culpa por não estarem fazendo outra coisa, por se sentirem escravos. Mas aí entra a novela seguinte e, como eles não têm opções, não resistem e vêem até o capítulo 150. Mas não vamos ser modestos demais: eu acho que o sucesso de Água Viva tem muito a ver também com a qualidade da novela. Ela é viva, os personagens são interessantes.


PLAYBOY — Como se cria uma novela como Águia Viva?


GILBERTO — No meu caso, eu começo por uma boa lista de personagens e de atores, uns cinco ou seis. Depois vou fazendo outros personagens que tenham a ver com eles, quer dizer, pai, mãe, tios, irmão, namorada. Daí em diante, vou criando situações até o último capítulo, numa redundância que possa manter o público interessado. Porque novela é isso mesmo: é redundância, é encher lingüiça, tem que inventar pra cacete...


PLAYBOY — Você não faz uma idéia muito boa das novelas...


GILBERTO — Faço sim! Além disso, encher lingüiça pode ser uma coisa muito agradável.


PLAYBOY — Bem, aí você reúne esses personagens numa sinopse que você submete à Globo, ou já aconteceu de a Globo te dar uma dica: "Olha, vamos fazer uma novela bem pro alto ou bem dramática"?


GILBERTO — Já aconteceram as duas coisas. Na minha primeira novela, a idéia geral foi da Globo. O Daniel Filho, que era o diretor geral das novelas, queria uma história de herança, me deu uma ideinha e surgiu A Corrida do Ouro, que eu escrevi junto com o Lauro César Muniz. Nas novelas seguintes, as idéias foram minhas. Claro que isso tem muito de intuição, e é mais ou menos óbvio que, depois de uma novela mais pra baixo como Os Gigantes, tinha de sair uma bem pro alto. No caso de Água Viva, eu não conseguia entregar uma história definitiva, só esboços. Eu tinha os dois irmãos, Nélson e Miguel, tinha a Lígia, mas o resto estava obscuro. Eu não sabia se o Nélson devia ser irmão bastardo, se começava rico ou começava pobre. Aí a gente discutiu com o Boni e surgiu a idéia do barco e da pesca, porque nós já tínhamos Angra dos Reis. Aliás, a idéia do veleiro foi do Daniel Filho, que me disse: "Ah, você vai gostar de veleiro! Você não lembra quantas vezes o Humphrey Bogart comeu a Lauren Bacall num veleiro?" [Risos.]


PLAYBOY — Quando você cria um personagem, você tem em vista um ator para ele ou isso não chega a ser uma preocupação?


GILBERTO — Eu sempre tenho em vista um ator, só que nem sempre é esse ator que vai fazer o papel. O ideal seria fazer o contrário. Em Água Viva, por exemplo, em que quase todos os papéis foram criados em cima dos atores, um dos que mais funciona é justamente o único que foi escrito sem ator definido: a Lurdes. A Tônia Carreio chegou a gravar, depois houve uma troca de papéis e a Lurdes acabou sendo a Beatriz Segall, que hoje é uma das melhores da novela.


PLAYBOY Água Viva tem nada menos que 35 personagens com falas. Como é que você faz para não se perder no meio da novela e misturar características de personagens?


GILBERTO — Bem, eu não posso ir pela memória, porque não tenho muita. Eu vou pelo grande dom que eu acho que está me ajudando a vencer na vida, e que é o ouvido. Eu tenho muito ouvido. Eu vou muito no tom do ator que está fazendo o papel e, quando estou escrevendo, quase ouço ele falando, como se ele estivesse ditando a novela para mim.


PLAYBOY — Acontece às vezes de certos atores recusarem pegar determinados personagens, achando que podem atrapalhar a imagem deles?


GILBERTO — Que acontece, não tem nem dúvida. Mas eu nunca tive esse problema, porque, se eu próprio sinto que está atrapalhando a imagem do ator, eu começo a mexer no personagem. Dancin' Days, por exemplo, tinha uma fase em que o personagem da Sônia Braga voltava da Europa e virava putona. Mas aí todo mundo começou a reclamar. Sônia Braga foi ótima, fazia bem putona mesmo, como eu queria; mas, depois de um mês no ar, eu já não agüentava mais: "Ah, porque ela não pode fazer isso!" ou "Ah, porque ela não pode explorar o Ubirajara!" Aí eu mudei — e mudo mesmo, porque eu estou escrevendo novela para agradar ao público. Escrever novela já é um saco e ainda sair à rua e ter de ouvir gente reclamando, eu não quero. Como mudei também a Lígia, o personagem de Betty Faria em Água Viva, pelo menos um pouco. Eu tenho uma tendência a fazer heroína puta, eu gosto de puta à beça, mas o público não gosta de puta feito eu.


PLAYBOY — E a Betty, também não estava gostando?


GILBERTO — A Betty? Pelo que me disse, estava. Mas o fato é que ela não estava agradando, né? E ninguém gosta de não agradar. As pessoas punham a culpa nela, mas a culpa só podia ser minha, porque ela sempre fez a Lígia exatamente como eu imaginei. E a Lígia era pra ser gostada pelo público — puta, sim, mas era pra ser gostada. Eu acho a Lígia muito mais interessante, por exemplo, que a Sueli. Todo mundo gosta da Sueli: "Ah, por que o Nélson não casa com a Sueli?" ou "A Sueli, sim, é que é mulher pro Nélson"... Pois eu acho a Sueli chata pra cacete, embora adore a atriz, que é a Ângela Leal e que está fazendo muito bem. Mas o personagem feminino que eu curto mesmo é a Lígia.


"A Lígia era prostituta, sim, mas era para ser gostada pelo público. Quando ela começou a não agradar, eu mudei tudo nela"

PLAYBOY — Se curtisse mesmo, manteria o personagem daquele jeito.


GILBERTO — Mas eles não forçam a minha barra pra eu fazer isso. Eu sou público também, e quero que gostem.


PLAYBOY — Como é o seu contacto com o público?


GILBERTO — Eu acho que tenho contacto mais ou menos com todas as classes, só que mais com a A e menos com a C. Mas me chegam cartas de todos os lugares, a classe C escreve muito.


PLAYBOY — E o que eles escrevem?


GILBERTO — De cada cem cartas, cinqüenta são de gente pedindo pra ser ator. As outras têm geralmente a ver com o que está acontecendo na novela. Outro dia, chegou uma carta de Recife, escrita por um casal de certa escolaridade, no mínimo ginásio completo, bem articulada, sabe como é? Eles falavam no problema da adoção, que estava muito bem enfocado na novela, etc. De repente, eu levo o maior susto: eles propunham uma solução para o problema e se ofereciam para adotar a Maria Helena! Queriam que a Sueli os encaminhasse à direção do orfanato e aí falavam da vida deles, da casa deles e de como eles tinham condições de criar a menina numa boa! [Risos.]


PLAYBOY — Incrível!


GILBERTO — Pois é. Eles acreditam nos personagens...


PLAYBOY — Isso não dobra a sua responsabilidade? Por exemplo, você não usa uma certa dose de cinismo para escrever o personagem da Maria Helena?


GILBERTO — Não sei se posso chamar de cinismo, porque eu vejo o cinismo como uma coisa muito positiva. É claro que é um personagem de apelação, que vai inevitavelmente comover, mas que me comove também, porque tem um lado meu que gosta muito dessas coisas, que chora com o drama da Barbara Stanwick e do filho em Stella Dallas, etc. Eu hesitei em criar a Maria Helena porque não gosto muito de criança, não tenho ligação com criança de menos de 10 anos. Então era um risco muito grande escrever sobre uma menina de 8 anos. Mas, depois que o Manoel Carlos começou a dividir a novela comigo, ficou bom, porque eu acho que ele escreve a Maria Helena melhor que eu.


PLAYBOY — Você é muito cobrado pelas chamadas "patrulhas ideológicas"?


GILBERTO — Ah, sou. Outro dia, uma revista aí, dessas que vendem pouco, me perguntou por que eu não aproveitava a abertura para discutir em Água Viva a realidade do país mais a fundo e não sei o quê. Esse tipo de pergunta me enche muito o saco porque eu não saberia discutir a realidade mais a fundo na novela. Eu veria com prazer programas políticos na televisão, seria uma boa, mas, se eu fosse fazer política na novela, ia sair uma bosta, ninguém iria gostar, iriam desligar na minha cara ou então ficar reclamando. Então, proselitismo eu não faço, tento não fazer. O que eu tento é não botar na novela coisas que possam prejudicar as pessoas, mais do que fazer coisas que possam ajudá-las, entende? Eu tento não pôr idéias reacionárias, mas gosto de pôr contradições novas e todas as que tenho eu vou jogando. Acho que tudo que é contradição tende a enriquecer quem está vendo.


PLAYBOY — Você não tenta passar mensagens?


GILBERTO — Tento, claro, e tem pelo menos duas que eu acho que estou passando bem em Água Viva: que estou dando uma força à liberação da mulher e que filho não tem de se submeter cegamente aos pais. Passando isso, a minha consciência fica tranqüila e me deixa ganhar meu dinheiro.


PLAYBOY — Você não estará se tornando um especialista em tratar de gente jovem, bonita, rica e cheia de problemas?


GILBERTO — Não é só isso, tem mais coisas. Tem gente jovem, bonita, rica e cheia de problemas, e tem também gente velha, feia, pobre e com menos problemas. Não sei por que esse negócio de achar que só tem rico na minha novela.


PLAYBOY — Estarão vendo mal a novela?


GILBERTO — Sei lá. Talvez por não ter nas outras, na minha realça. Mas os meus personagens são gente de classe média, que deve ganhar 20 ou 30 mil cruzeiros por mês. Os privilegiados são uns quatro ou cinco.


PLAYBOY — E essas histórias de coincidências entre alguns personagens e pessoas da vida real?


GILBERTO — Pois é, as pessoas vivem me perguntando se eu me inspirei em fulano, beltrano ou sicrano. Se o caso do Cléber com a manicure aconteceu com o Walter Moreira Salles, se a Lurdes é baseada na Ana Maria Tornaghi ou na Helena Brito Cunha, se a Estela é a Béki Klabin, sei lá o quê. Essa história do Walter Moreira Salles eu nunca tinha ouvido antes. Que idéia a dele de transar com a manicure! A Lurdes não tem nada a ver com a Ana Maria Tornaghi, com a Helena Brito Cunha talvez tenha pontos mínimos de contacto, mas ela tem muito mais a ver é com a madrasta da Branca de Neve. E a Estela tem realmente alguns detalhezinhos pitorescos da Béki, tanto que eu perguntei à Béki se ela se importava e ela disse que achava ótimo. Agora, dizer que a Estela é a Béki é uma besteira, não? O fato é que é difícil você encontrar uma história com um mínimo de interesse que já não tenha acontecido, né?


PLAYBOY — A televisão te impõe alguma restrição a temas?


GILBERTO — Isso é outra coisa que vivem querendo saber, se a televisão impõe, se a televisão não impõe. Quem é a televisão? É, o Roberto Marinho, o Boni? Eu não sei. O meu contacto com a televisão não é tão grande assim. A mim, pessoalmente, não impõe nada, na medida em que eu sou uma pessoa responsável. Se eu assino um contrato para escrever a novela das 8, eu automaticamente me imponho uma série de coisas. Eu sei que não posso fazer uma série de coisas. Outro dia, por exemplo, eu estava sem idéias para o personagem da Irene e me veio uma que eu achei engraçadinha. Eu pensei: seria engraçado que aquela patota que mora no apartamento descobrisse que a Irene é virgem. Aí elas iam achar isso um absurdo, iam ficar com pena dela e podiam fazer um sorteio para ver quem comia a Irene. Só que o sorteio ia sair pro mais tímido. Não é engraçado? Ia dar cenas ótimas! Mas aí eu penso melhor e concluo: "Não, não dá. Às 8 horas da noite não dá". Não é preciso ninguém da TV Globo vir me dizer, eu mesmo sei. Talvez daqui a uns dez anos possa.


PLAYBOY — Talvez a insistência nessa pergunta se deva ao fato de a televisão sem censura ainda não ter sido testada no Brasil. Como seria essa televisão para você?


GILBERTO — Isso é uma coisa que eu queria ver, porque, para mim, mais censor do que a censura é o próprio público. Eu peguei o tempo da censura braba, agora esse tempo passou e o público continua extremamente reacionário. Gente sem informação, de baixo poder aquisitivo, tem sempre os valores mais antigos possíveis. Mesmo a pior censura, como a do tempo do Medici, não chegava a ser tão reacionária quanto a do público. Então, se a televisão for estatal e eles não tiverem outro canal para escolher, tudo bem. Mas, enquanto a televisão for comercial e tiver anúncio, você vai ter sempre um problema grave com o público. Em Água Viva, por exemplo, a censura não cortou muita coisa, a não ser expressões como "Pombas!" e "puxa-saco". Em compensação, teve gente que escreveu para o Jornal do Brasil dizendo que a novela é anticristã, que eu preciso ler o Evangelho e que eu estou destruindo a família brasileira.


PLAYBOY — Isso o preocupa de alguma maneira?


GILBERTO — Me preocuparia se eu estivesse mesmo tentando destruir a família brasileira. Mas, como eu sou muito careta nesse ponto e acredito totalmente nos valores familiares, não me preocupa nem um pouco.


PLAYBOY — A censura já o incomodou diretamente?


GILBERTO — Não, a censura nunca encheu o meu saco porque eu sempre fui muito autocensurado. Talvez eu fique louco daqui a uns dez anos, de bloquear tanta coisa dentro de mim. Quando comecei a escrever A Escrava Isaura, fui chamado a Brasília para conversar, porque eles achavam a novela perigosa. Então, na reunião com censores, ficou mais ou menos estabelecido que eu poderia escrever A Escrava Isaura, mas que não poderia falar de escravo. Uma censora me disse que a escravatura tinha sido uma mancha negra na história do Brasil, e que não deveria ser lembrada — aliás, segundo ela, o ideal seria arrancar essa página dos livros didáticos; imagine então falar disso na novela das seis...


PLAYBOY — ... para criancinhas desprevenidas...


GILBERTO — É. Um censor falou que a novela podia despertar sentimentos racistas na netinha dele, porque ela via os brancos batendo nos escravos na televisão e podia querer bater nas coleguinhas pretas dela. Aí eu disse ao censor que ele devia ver um psicólogo para a menina porque, se ela se identificava assim com os bandidos... De qualquer maneira, eu prometi que ia falar o mínimo possível em escravo e falei o mínimo possível em escravo em A Escrava Isaura. [Risos.]


PLAYBOY — Algum problema quando a Tônia Garrem transou com um negro em Água Viva?


GILBERTO — Não, porque a censura está muito mais aberta agora, né? De qualquer maneira, eu não sei a quem possa fazer mal uma senhora de 60 anos transando com um negro numa novela. É que a gente está tão acostumada a que não pode nada que, às vezes, as coisas mais naturais a gente acha que não pode e, quando vai ver, pode.


PLAYBOY — Você não se sente um tanto limitado por não poder sequer insinuar que, quando um casal está "namorando" na novela, eles estão efetivamente trepando?


GILBERTO — Não. Eu fui criado dentro de uma estética cinematográfica dos anos 50, imposta pelo macarthismo, e não tenho dificuldade nenhuma em fazer isso. Essa limitação continua até hoje porque nem em Emmanuelle você vê o peru sendo enfiado — só se vê isso em filme pornô, clandestino. De qualquer maneira, se eu fizer uma cena de gente não casada num quarto com cama, não passaria na censura. Mas eu estou contente porque agora os casados já podem...


PLAYBOY — Você diria que, embora a televisão não te imponha nada, há uma série de regras não escritas a respeito de temas em que não se pode tocar?


GILBERTO — Talvez, mas a gente sabe lidar com regra não escrita, né?


PLAYBOY — Ninguém tem interesse em ir minando aos poucos essa resistência?


GILBERTO — Todo mundo tem esse interesse, tá todo mundo tentando, e eu sou um deles. Como é que eu posso garantir, por exemplo, que a Lurdes não chupa o Marcos, filho dela?


PLAYBOY — Chupa?


GILBERTO — Não sei, não sei... Não posso garantir que não. O que eu vejo na novela é que ela é muito sacana e ele é muito carinhoso com ela... [Risos.] Mas eu não posso nem mostrar um adultério bem bonitinho, com final feliz, para defender a coitada da amante, que é sempre sacaneada. Isso eu gostaria de fazer: defender a outra.


"O que eu queria era escrever uma história de adultério em que eu pudesse defender a outra, que é sempre tão sacaneada..."

PLAYBOY — E por que não faz?


GILBERTO — Porque não pode. Que eu saiba, não pode.


PLAYBOY — E divórcio, pode?


GILBERTO — Ah, divorciar pode à vontade. Só não pode mostrar as causas normais que levam ao divórcio, entende? A partir do momento em que os personagens já estão separados, podem ter uma vida sexual normal. Mas, enquanto estão casados, não podem nem olhar para outra pessoa, porque é considerado pernicioso...


PLAYBOY — Homossexualismo em novela também é considerado pernicioso?


GILBERTO — Nunca vi homossexualismo em novela, não.


PLAYBOY — Você mesmo já fez. O Everaldo, personagem de Dancin' Days, não era homossexual?


GILBERTO — Ah, sim! Mas era tão em nível de comédia que eu nem me toquei que estava tratando de homossexualismo. E, naquele tempo, a censura era violenta, mas ninguém reclamou.


PLAYBOY — Quer dizer que, em nível de comédia, pode?


GILBERTO — O Everaldo não ameaçava a moral de ninguém, assim como o Clóvis Bornay também não ameaça. Eu já vi mães pedindo autógrafo ao Clóvis Bornay, dizendo: "Ah, dá aqui pro meu filho, dá!" E ele bem desmunhecado e tal, era muito engraçado. Acho que a bichona não ameaça a moral de ninguém.


PLAYBOY — Então, pode-se concluir que, se você inventasse um personagem que fosse um homossexual sensível, sofrido, com problemas, e que discutisse esses problemas com os outros personagens, não passaria?


GILBERTO — Acredito, não. Porque, se foi cortada de Água Viva a única alusão um pouquinho mais clara de que a Janete não era virgem... a fala foi cortada!... Então, se não pode não ser virgem, claro que também não pode ser homossexual.


PLAYBOY — Mas pode ser viado.


GILBERTO — É, pode ser bichona. Não sei, varia muito, depende do grupo de censores. A censura não é uma coisa tão organizada como a gente supõe.


PLAYBOY — E, no entanto, o homossexualismo é um dado da realidade que as pessoas ainda costumam discutir, não?


GILBERTO — Talvez. Mas o tesão que eu sinto para escrever sobre isso é o mesmo que eu sentiria se escrevesse aquela história do adultério. É o tesão da dramaticidade. Daria cenas melodramáticas incríveis, como a da amante desprezada, sozinha, na noite de 31 de dezembro. Ou essa mesma situação com homossexuais que chocariam as pessoas quando começassem a se beijar na boca numa festa de réveillon, por exemplo.


PLAYBOY — Você tem percebido um aumento grande do homossexualismo feminino neste país, ultimamente?


GILBERTO — Não sei, mas tenho ouvido dizer que não. Pode parecer que está aumentando porque hoje elas usam o sapato na frente de todo mundo, e antes era mais escondidinho.


PLAYBOY — E não é uma pena que o mundo da novela deixe de fora todos esses assuntos?


GILBERTO — Mas é como eu disse: eu não fico me lamentando porque não pode isso ou aquilo. Eu prefiro ficar contente porque já pode isso ou aquilo.


PLAYBOY — Um dos motivos pelos quais você é considerado um renovador da novela é que os seus personagens femininos, como a Júlia de Dancin' Days e a Lígia de Água Viva são sempre mulheres fortes, decididas, que botam pra quebrar. Isso é premeditado?


GILBERTO — Não, não acho que seja. E que eu escrevo mulheres melhor do que homens.


PLAYBOY — E por que a maioria dos seus personagens masculinos são homens frágeis e supersensíveis?


GILBERTO — Quais, por exemplo?


PLAYBOY — O Cacá de Dancin' Days, o Nélson e o Edir de Água Viva...


GILBERTO — O Edir é frágil, mas menos do que a mulher dele. E o Nélson foi bolado pra isso, pra ser o irmão frágil do Miguel.


PLAYBOY — Você se acha frágil?


GILBERTO — Não, não me acho frágil, não. Mas eu tenho um lado frágil, como tenho um lado forte. O Nélson e o Miguel devem ter partido de alguma divisão minha: o Gilberto forte, o Gilberto fraco, o Gilberto que venceu, o Gilberto que perdeu...


PLAYBOY — Seja como for, nenhum desses personagens é o machão tradicional, como os que o Tarcísio Meira costuma interpretar.


GILBERTO — Mas só porque eu não sei fazer. Eu acho ótimo o machão tradicional, como o Rhett Buttler de ...E o Vento Levou, mas todas as vezes em que eu tentei fazer, saiu uma merda. Eu sempre fui mais para aquela linha do herói fraco, como os que o Montgomery Clift fazia, e que são a antítese do machista.


PLAYBOY — Você acha que o machista é uma espécie em extinção?


GILBERTO — Acho. Está havendo uma transformação na cabeça dos caras, e talvez isto se deva à cultura, né?... ao fato de o mundo andar pra frente.


PLAYBOY — Não será talvez o comportamento das mulheres que estará levando os homens a rever as posições deles?


GILBERTO — Pode ser. Há as feministas, há muitas mulheres independentes por aí, eu mesmo sou amigo de um monte delas.


PLAYBOY — Antigamente havia uma pressão para o homens ser o machão inflexível. Não estará havendo hoje uma pressão ao contrário, para o homem assumir a sua "porção mulher" e "transar o corpo numa boa", como foi proposto pelo Fernando Gabeira?


GILBERTO — Toda ação provoca uma reação em sentido contrário, não? A gente aprende isso no colégio...


PLAYBOY — Uma conseqüência natural para o homem que assuma tudo isso não será o bissexualismo?


GILBERTO — Esse é um assunto que eu não vejo com muita clareza. Tenho alguns amigos bissexuais que eu sinto dificuldade de entender. Na minha cabeça, a tendência mais espontânea é achar que eles estão divididos e que vão acabar pendendo para um lado ou para outro. Acho difícil alguém gostar de homem e de mulher ao mesmo tempo. Já com o bissexualismo feminino é diferente, porque eu conheço mulheres que gostam de homem e de mulher ao mesmo tempo.


PLAYBOY — Você já participou de alguma orgia ou suruba?


GILBERTO — Já. Várias vezes, mas há muito tempo. Houve até uma época em que eu participava bastante, mas suruba sempre me deu uma certa frustração, porque eu não sou surubeiro por temperamento. Ficava sempre a impressão de que havia alguém ali por quem eu tinha mais tesão do que pelos outros e aí eu queria me concentrar nessa pessoa. Mas numa suruba não dá pra se concentrar, porque tem muita gente na cama. Além disso, para quem gosta mesmo de suruba, tem que ser na base de número ímpar. Não dá certo com quatro, nem com seis, nem com oito pessoas, porque acaba casal com casal. Quem curte mesmo tem que ir com três, com cinco ou com sete.


PLAYBOY — Das que você participou, havia mais homens ou mais mulheres?


GILBERTO — Acho que a tendência é ter mais mulheres, mas, embora eu não saiba explicar, sinto que os homens gostam mais de suruba do que elas. Porque, em geral, é homem quem organiza, não?


PLAYBOY — O que você achou dessas experiências?


GILBERTO — Eu nunca saí de uma suruba achando que tinha sido satisfatória. Quer dizer, eu sempre gozei, mesmo que tivessem me jogado pra escanteio. Tinha pelo menos uma satisfação primária. Mas no fundo eu vivia com uma nostalgia da relação a dois, que é o que a minha cabeça prefere. Então eu entrei numa mais romântica e saí desse esquema.


PLAYBOY — Você tem algum problema de culpa em relação a sexo?


GILBERTO — Tenho. A minha cabeça não aceita bem poligamia.


PLAYBOY — E gostaria de aceitar?


GILBERTO — Não sei se seria uma boa pra mim.


PLAYBOY — Você também não gosta de ser passado pra trás?


GILBERTO — Não. Eu tenho todos os problemas do machão brasileiro.


PLAYBOY — Não é interessante você, que é o biógrafo desse "novo homem" brasileiro, antimachista, ter um problema típico do machismo?


GILBERTO — Claro que é interessante. E é claro também que eu tenho que ter problema de machismo, quem é que não tem? A gente foi educada por esse esquema. Todos os homens e mulheres que eu conheço são machistas.


PLAYBOY — As mulheres também?


GILBERTO — Extremamente. Às vezes até mais do que nós. Eu acho o feminismo um negócio muito legal, que eu defendo pra cacete, mas a gente vai ter que lutar muito para chegar lá, porque vivemos num sistema machista.


PLAYBOY — Quais as mulheres de Água Viva que têm comportamento extremamente machista?


GILBERTO — Quase todas as de classe média e de meia-idade. A mãe da Janete, a tia da Janete, deixe eu ver quem mais... Pô! Quer coisa mais machista do que a família pressionando a moça para casar com um rapaz rico porque só casamento é solução de vida? Ninguém nunca pensou na hipótese remota de aquela moça transar a vida dela numa boa. É machismo isso, não?


PLAYBOY — Engraçado como o casamento é um dos temas favoritos de novela. O que esses personagens casam e descasam não é normal. Ou é?


GILBERTO — É. Eu acho, inclusive, que, na vida real, os casamentos estão muito melhores do que antigamente, na medida em que hoje acontecem mais separações. As pessoas estão se sentindo um pouquinho menos culpadas quando não dá certo. E, quando elas sentem que, se errarem, vão ter uma chance de partir pra outra, passam a ter menos medo do casamento. Aquela história do "até que a morte nos separe" era uma violentação, um compromisso de doido. Porque, se você se compromete a ter o mesmo parceiro até a morte, você não está se permitindo o erro. E, não se permitindo o erro, você está fodido.


PLAYBOY — Por que tanta ênfase?


GILBERTO — Porque eu sou traumatizado por ser filho de uns casamento ruim que se manteve até o fim. E tomei muita porrada na vida para não ter ficado assim tão pró-separação.


PLAYBOY — Que grilos isso deixou na sua formação?


GILBERTO — Os grilos na minha formação foram as relações dos meus pais entre si, não as deles comigo. Eles fizeram pressão para que eu me tornasse diplomata ou militar, mas quando eu disse que não queria ser uma coisa nem outra, desistiram. Mas, com isso, eu tive um problema de identificação profissional que custou a se resolver. Demorei a entender que tinha de usar profissionalmente o meu interesse natural, que era o cinema, o teatro e a leitura. Fiquei perdidão, um tempo, fui professor de francês durante cinco ou seis anos, fiz vestibular para o Instituto Rio Branco e comecei até a fazer curso de Letras na PUC, que abandonei porque achava chato pra cacete. Eu não tinha saco pra estudar José de Alencar nem meia hora. Anos depois, quando adaptei Senhora para a televisão, às vezes ficava sem idéias e tinha de abrir o livro para procurar alguma coisa, e aquilo quase me matava de tédio. Aí, finalmente, fui ser crítico de teatro de O Globo e, depois, pintou a televisão.


PLAYBOY — Voltando aos seus pais, eles reprimiam a sua sexualidade de alguma forma?


GILBERTO — Meu pai morreu quando eu tinha 17 anos e minha mãe se matou louca quando eu tinha 27. Se havia algum problema sexual dentro de casa era o dela. Aquele negócio de insistir em ser a viúva virgem, de querer dar e não ter coragem, de achar que tinha de casar para dar... Na história da minha vida, não teve muita repressão sexual, não.


"Minha mãe queria ser a viúva-virgem; achava que não podia dar sem casar. Era igualzinha à Áurea de Dancin' Days, lembra?"

PLAYBOY — E hoje, tem alguma?


GILBERTO — Ao nível consciente, acho que não, mas é muito difícil garantir isso. Tanto que estou fazendo análise há seis anos, desde que minha mãe morreu.


PLAYBOY — A morte de sua mãe parece ter sido decisiva para você. Dá para falar a respeito?


GILBERTO — Dá, mas já contei quase tudo em Dancin' Days. Só mudei o final porque não tive coragem de contar tudo. Depois que meu pai morreu, ela ficou com características de psicose maníaco-depressiva. Mas só teve as fases de depressão, nunca teve a fase maníaca. Esteve várias vezes internada, sofreu tratamento à base de choques elétricos, saía da clínica numa boa, ficava assim uns tempos, depois voltava, saía de novo e, numa dessas, jogou-se pela janela do nosso apartamento em Copacabana. Foi uma coisa que eu nunca pude aceitar. A Áurea de Dancin' Days foi toda baseada nela. A Janete Clair, que entende tanto de novela e de vida, leu a sinopse de Dancin' Days e disse pra mim: "Ah, a Áurea não vai poder se jogar pela janela. Primeiro, porque a barra vai ser violenta e você não vai agüentar. Segundo, porque o público não vai aceitar ficar sem a Áurea". E, realmente, a Áurea acabou numa boa... [Risos.]


PLAYBOY — De certa forma, a personalidade da sua mãe interfere até hoje nos seus personagens femininos, não?


GILBERTO — Deve interferir muito. Minha mãe tinha todo esse problema de ter parado de estudar, de não ter uma profissão, por causa do casamento. E o casamento era ruim. Quando meu pai morreu, ela pegou uma barra mais pesada do que era na realidade, não resistiu e se matou. Claro que isso tem muito a ver com a força que eu dou para as mulheres na novela, não é?


PLAYBOY — É por isso que todas as mães que você cria são supermães?


GILBERTO — Eu não sei se todas são supermães, mas a única coisa que faz com que os telespectadores não pensem que o personagem de Lígia é o demônio é aquela transa com o filho. Até a Danusa Leão reclamou comigo outro dia: "Ih, esse negócio de puta com filho pra cá, filho pra lá, tou achando muito chato!" Mas tem personagens que não são supermães, e talvez isso seja uma idealização minha a respeito de uma mãe que eu gostaria de ter tido. Em Água Viva, essa mãe é a Estela.


PLAYBOY — A Estela, interpretada por Tônia Carrero, é uma mulher rica. Você era pobre?


GILBERTO — Ah, era pobre, pobre, pobre, de marré de ci. Pobre da rua Miguel Lemos, em Copacabana.


PLAYBOY — E te grilava muito ser pobre?


GILBERTO — Nunca achei que ia ser a vida toda. Se algum dia tivesse achado, teria me grilado muito. Mas eu era pobre assim como o Alberico de Dancin' Days. Nunca deixei de almoçar no Nico, um dos restaurantes mais caros do Rio, mesmo que tivesse de tomar dinheiro emprestado. Sabe, eu tenho muito a ver com a Lurdes Mesquita!


PLAYBOY — E hoje, você está rico?


GILBERTO — Não muito, não...


PLAYBOY — Quanto você ganha?


GILBERTO — Não vou falar. Além disso, é menos do que vocês pensam e, se meu copeiro ficar sabendo, vai pedir aumento — e ele já ganha muito bem.


PLAYBOY — Numa outra entrevista, você admitiu que ganhava uma fábula.


GILBERTO — Não admiti, não. Eu disse que ganhava uma fábula, mas em relação ao salário mínimo, e cortaram o resto da frase. Eu não ganho uma fábula. Roberto Marinho talvez ganhe.


PLAYBOY — Você acha que o seu salário compensa o sacrifício de escrever uma novela?


GILBERTO — Não.


PLAYBOY — Você acha que tem gente faturando em cima de você?


GILBERTO — Eu estou um pouco por fora, não dá para controlar direito e eu não sei bem como é o merchandising. Tem outras coisas que me preocupam também, como a utilização dos meus personagens para fazer publicidade fora da novela. O Everaldo de Dancin' Days, por exemplo, está fazendo anúncio dos pratos Meridional até hoje e eu não ganho nada.


PLAYBOY — Por que você pediu ao Manoel Carlos para dividir a novela com você numa certa fase?


GILBERTO — Porque o trabalho é massacrante e eu não gosto de trabalhar demais. Ele entrou por volta do capítulo 57, nós pusemos a novela em dia em uma semana e então seguimos um plano de trabalho, que era o de cada um escrever um bloco semanal, comigo aprovando ou não o que ele escrevia. Ele no Leblon e eu aqui no Flamengo, a gente transando por telefone. De outro jeito não dava. Malu Mulher, por exemplo, tem três escritores para pôr quatro programas no ar por mês. Pois eu tinha de pôr 25 programas no ar, sozinho!


PLAYBOY — É verdade que você ainda submete capítulos inteiros de Água Viva a Janete Clair?


GILBERTO — Não é verdade. Espera aí, deixa eu pensar bem. A Janete leu a sinopse de Dancin' Days, leu os primeiros vinte capítulos, sim. Submeti, sim. E o fato de ela ter gostado me animou muito, porque eu estava inseguro. Há duas pessoas em quem eu confio muito, e que são a Janete e o Daniel Filho. Então, quando eu tenho dúvidas, eu me abro com eles e eles me ajudam. E não vejo nenhuma dependência em pedir a opinião de pessoas que conhecem mais e há mais tempo do que eu.


"Eu já submeti muitos capítulos das minhas novelas à Janete Clair e não vi nenhum mal nisso. Eu me sentia inseguro"

PLAYBOY — A Janete Clair não seria, digamos assim, uma substituta intelectual da sua mãe?


GILBERTO — Ah, não tenho dúvida de que é. Mas não é só ela, não. Tem mais umas cinco ou seis...


PLAYBOY — A Janete Clair disse que você era "o melhor de todos" os escritores de novela, porque "seguia as regras do jogo". Você concorda?


GILBERTO — É um barato ouvir a Janete dizer isso, porque é um elogio sincero. Acho que, em termos dessa nova geração de escritores, ela tem razão, porque eu sou o que deu mais certo.


PLAYBOY — Você não gostaria de propor, um dia, uma novela fora das regras do jogo?


GILBERTO — Não sei por que não. No horário das 10, a própria Globo já bancou novelas fora das regras do jogo porque achou que devia. Se não, vai ficar tudo igual pelo resto da vida. A Globo bancou O Bofe, do Bráulio Pedroso, O Rebu, também do Bráulio, e, pelo que

sei, havia coisas geniais nessas novelas e elas estiveram longe de ser fracasso.


PLAYBOY — Porque, se fossem...


GILBERTO — Ah, mas aí, também, você não acha que está certo? Alguém vai fazer uma novela pra ninguém ver?


PLAYBOY — Qual é o piso de Ibope que uma novela pode dar sem que ninguém se sinta ameaçado?


GILBERTO — Não sei, mas acho que a Globo não agüentaria produzir Água Viva, por exemplo, se ela desse só 40 ou 50 de Ibope. Os custos são muito altos.


PLAYBOY — Quer dizer que, falando português claro, existe a ditadura do Ibope na sua cabeça?


GILBERTO — Mas eu acho que essa ditadura vai existir mesmo que eu saia da televisão e vá fazer teatro, cinema ou qualquer outra coisa. Porque eu vou estar sempre preocupado com o sucesso, com o dinheiro e com agradar. Eu raciocino muito com a TV Globo, porque eu quero mais ou menos a mesma coisa: que gostem da novela...


PLAYBOY — Ou seja: você não conseguiria jogar sem regras?


GILBERTO — Não. E assim: "Me diz quais são as regras que eu faço direito".


PLAYBOY — Outra coisa: por que personagem de novela bebe tanto? Ninguém bebe assim na vida real.


GILBERTO — Bebem tanto assim em Água Viva? Eu não tinha notado. Acho que é muito pra facilitar a marcação dos atores, não é? Quantas horas de cena você acha que se passaram na sala da Lígia? Então, como os atores não podem plantar bananeira, o diretor manda eles pegarem um copo, prepararem um uísque, sei lá.


PLAYBOY — Se essa marcação quisesse estar mais próxima da realidade, você não acha que eles deveriam estar enrolando um charo?


GILBERTO — Não, porque os meus personagens não fumam maconha.


PLAYBOY — E você, fuma?


GILBERTO — Olha, eu acredito que seria bom que legalizassem a maconha, embora eu, pessoalmente, tenha muito bloqueio em relação a drogas, inclusive bebida. Mas, em Nova York, onde eu passei dois meses antes da novela, eu senti que, depois da legalização, as pessoas estavam fumando menos — mais abertamente, mas fumando menos. Eu já fumei algumas vezes e, há muito tempo, me deu um efeito assim parecido com o de ficar de pileque. Mas muito breve, porque eu me bloqueio, porque tenho medo de ficar dependente. Eu já fico puto de ser dependente de cigarro. Mas, mesmo assim, não gostaria que proibissem o cigarro. Eu sou contra qualquer proibição.


PLAYBOY — O que leva as pessoas a tomarem drogas, na sua opinião?


GILBERTO — Escapismo, não? Deve ser a mesma coisa que me leva a dormir muito...


PLAYBOY — E você está tentando escapar de quê?


GILBERTO — De enfrentar a realidade, eu acho...


PLAYBOY — As novelas não seriam outra forma de escapismo?


GILBERTO — É provável que elas tenham esse lado também, mas, ao mesmo tempo, as pessoas querem ter emoções fortes. Será que ter emoções fortes é urna atitude escapista?


PLAYBOY — Você acha que o público pega tudo que você tenta passar na novela?


GILBERTO — Não sei. Outro dia, eu escrevi uma fala para o personagem da Lucélia Santos em que ela devia dizer: "Isto aqui não é convento de carmelitas, não!" Mas acho que o datilógrafo comeu uma sílaba de "convento" e saiu "conto". Aí a Lucélia disse no ar "conto de carmelitas" e todo mundo achou muito natural, ninguém estranhou nada! [Risos.]


PLAYBOY — Você não faz uma idéia muito boa da inteligência dos atores.


GILBERTO — Faço sim! Eu acho que eles são inteligentes e sensíveis pra cacete. Mas o que eles têm que decorar não tá no gibi. Já me perguntei várias vezes se seria possível fazer novela nos Estados Unidos e concluí que não, porque, nos Estados Unidos, os sindicatos não permitiriam que eles trabalhassem tanto.


PLAYBOY — Por falar no personagem da Lucélia, por que todas as mulheres jovens da novela são agressivas, despachadas, ativas?


GILBERTO — Ativas elas são. Mas, agressivas, nem todas. O personagem da Lucélia é agressivo, mas o da Glória Pires nem um pouco. E o da Natália do Vale também não. Há um equilíbrio entre agressivas e não-agressivas.


PLAYBOY — Você diria que, na vida real, está havendo uma tendência das mulheres a se tornarem mais ativas e agressivas do que eram?


GILBERTO — Num certo nível social, ou no meio que eu freqüento, acho que sim. Em geral, eu acho que não, o que é uma pena.


PLAYBOY — Você preferiria que elas fossem?

GILBERTO — Preferiria. Eu acho que as mulheres foram muito sacaneadas no curso da história. Que se agitem!


PLAYBOY — Você acha que, à medida que elas se agitam e ficam mais agressivas, ou, digamos, menos passivas, o homem tende a se assustar?


GILBERTO — Homem de cabeça boa gosta de mulher livre e ativa, porque assim ele divide mais as coisas com ela. Quem tem a cabeça boa não está a fim de controlar mulher, não. Está mais é a fim de uma relação equilibrada.


"Água Viva terá o final mais feliz possível, nem que a Lígia tenha de acabar com o Nélson"

PLAYBOY — Bem, hoje você é um sucesso, não? Água Viva deverá dar 90 pontos no Ibope neste último mês. E, como você sempre quis ser um sucesso, isso não o deixa super-realizado?


GILBERTO — Eu nunca pensei em me olhar no espelho e dizer: "Eu sou mais eu!" Em geral, eu penso: "Tou chegando lá, tou ficando contente!"


PLAYBOY — E aonde você quer chegar?


GILBERTO — Pragmaticamente, eu estou planejando a minha vida até meados do ano que vem, mais ou menos. Estou pensando em escrever um filme, estou pensando na minha próxima novela na Globo, e gostaria que os dois fossem sucessos. Ao nível da fantasia, eu gostaria de chegar à fama internacional. Com que, não sei. [Risos.] Quero fazer um trabalho que repercuta no mundo inteiro, de preferência nos Estados Unidos. E quero que pinte mesa em qualquer restaurante de lá na hora, porque esperar meia hora de pé na fila é muito chato. Para dizer a verdade, eu não quero ser reconhecido no Régine's, no Rio. Eu quero ser reconhecido é no Elaine's em Nova York.


PLAYBOY — Uau! Bem, agora a pergunta óbvia: como termina Água Viva?


GILBERTO — Você pode ter certeza de que vai terminar com o final mais feliz possível — nem que a Lígia tenha de acabar com o Nélson.


POR RUY CASTRO



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1 則留言


Ademar Amâncio
Ademar Amâncio
7月29日

Ele não assume a homossexualidade mesmo,os tempos eram outros!

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